quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Olivaldo Junior (Buquê de Trovas Comemorativas)


Dia da Árvore
21 de setembro: Dia da Árvore 

De semente pequenina,
grande árvore nasceu; 
faz de conta que é menina, 
mas, no fundo, já cresceu... 

Numa curva da ribeira, 
dentre as pedras do riozinho, 
a mais linda laranjeira 
põe seus frutos no caminho!... 

Campo aberto, noite adentro, 
guarda as árvores que avisto; 
chega um dia, e acabo dentro 
de uma delas, que conquisto. 

Da sombrinha que nos dá, 
do carinho que nos tem, 
do arvoredo, "Shangri-Lá": 
esperança para alguém. 

- Sim, fui árvore, oh, menino, 
em longínqua encarnação!... 
Mas, sem água, meu destino 
foi morrer ao sol, sem pão... 

No jasmim que é só perfume, 
numa noite de Natal, 
cada mero vaga-lume 
vira enfeite natural... 

O papel que foi caderno, 
vão suporte de um poema, 
pode ter um ciclo eterno 
se o "reciclo" vira um lema.
_______________________________

Setembro Amarelo
(Mês da prevenção do suicídio)

'Amarelo' é atenção,
"prevenção" a se adotar;
o vermelho coração,
em setembro, quer falar.

Do edifício mais bonito,
da varanda em primavera,
quis ganhar seu infinito
quando a vida em si já era...

Nosso filho mais amado,
nossa amiga mais querida...
Todo mundo é delicado
se tem alma, e ela é ferida.

Um sorriso que conforta,
um abraço bem gostoso,
e o diálogo abre a "porta"
da conversa ao ser idoso...

Pelo fio do telefone,
ou de um chat na Internet,
CVV, para um insone,
faz que a mente se aquiete.
_______________________

Dia do Filósofo
16 de agosto: Dia do Filósofo

O Filósofo se esquece
sobre a pilha de tratados,
para ver se refloresce
cada um de seus legados...

Na (in)certeza dos saberes,
paira o "sol" da descoberta;
quanto mais tu aprenderes,
menos fica a luz (in)certa(?).

Pré-socrático, ou socrático,
mito grego, (des)engano...
Meu regime é democrático:
ser divino é ser humano.

No Café do Amor Platônico,
bebo só com a Solidão,
pois meu bem ficou irônico
ao pedir-lhe a sua mão...

Aristóteles me "impõe"
sua arte de poesia,
e meu peito recompõe
toda a vã Filosofia...
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Dia Nacional do Teatro
19 de setembro: Dia Nacional do Teatro

No tablado de carvalho,
ou na praça da Cidade,
um ator faz seu trabalho
com a maior felicidade!...

No Brasil de antigamente,
nosso índio contemplava
o teatro que outra gente,
lá de longe, lhe encenava...

Vem, menina, pinta o rosto,
veste as roupas da titia!...
Num 'teatro', sente o gosto
que é viver em fantasia...

Se essa vida é uma tragédia,
ponho a máscara da dor;
mas, se surge uma comédia,
saltimbanco, minha flor!

Luz na cara, em vã quimera...
Nove meses ensaiando!...
De repente, o fim da espera:
a plateia está gostando!

No porão da Ditadura
- torturados em segredo -,
o Teatro era a ternura
que calava todo o medo.

Da coxia, o 'meu' amor
vira a estrela de uma peça
cujo clown é professor,
só procura o que interessa...

Neste clássico imperfeito,
que interpreto com paixão,
sinto a vida no meu peito:
sou mocinho, ou sou vilão?

Faz de conta que me ama,
que lhe compro até anel,
pois o amor é puro drama,
não importa o seu papel...

Cada lágrima que escorre
dos "olhinhos" de um ator
molha a alma que socorre
quando encena com amor.

Fonte: O Autor

terça-feira, 17 de outubro de 2017

Nilton Manoel (A Copa de um Grande Atleta)


Há quem diga que o operário 
não lê jornal nem poesia, 
nem tem tempo para a vida. 
O trabalho toma-lhe o dia 
e a noite sobra somente 
ao serviço que diariamente 
uma casa propicia. 
Tudo é difícil, tão caro, 
ao homem de curto salário. 
O sacrifício é doído 
para o valente operário... 
Quem tem pouco para gastar 
só vê a burguesia de bar 
curtindo o chope diário... 
Em sua longa jornada 
vai à luta e faz pilhéria 
sonhando com melhor dia... 
Vida de operário é séria... 
Quem manda não ter dinheiro 
para poder ser engenheiro 
e não pensar em miséria. 
Que interessa o pioneiro 
que plantando vai à frente. 
O alicerce esplendoroso 
de ouro do mais luzente 
não é para o seu conforto. 
Sem fantasia, absorto, 
tem sonhos como toda gente. 
Enquanto ébrios de chope 
gozam o preço do café, 
a garrafinha operária, 
não quer bolso barnabé; 
Distante da humilde boca 
bom cigarro é coisa louca... 
Dobradinha? Não dá pé! 
Reportam tanta notícia 
para a esperança do povo. 
Dizem que saco vazio 
cheio ele não fica não... 
No atacado, vejam só 
o preço amargo do jiló! 
quanta gente não tem pão! 
No tacho, o arroz e feijão 
não tem tempero opulento. 
Ovo de granja, fraquinho, 
na panela do sustento 
tem até sabor de glória. 
Quem tem a vida simplória 
quase que vive de vento. 
Nem correr pelos cestões 
ajuda o consumidor... 
Tornou-se caro o alimento 
ou o real não tem valor?? 
e a vaca da gorda teta 
dá ralo leite sem treta. 
Ah, paladar sonhador! 
De Deus é a Terra e de irmãos 
parco o traçado do chão! 
Sem terra não há verdura; 
alface, couve, agrião 
já vivem fora do prato! 
A carne? que espalhafato. 
Verde, não cai no fogão. 
A tristeza ainda é maior 
na loja do vestuário. 
Camisa, calça ou tecido 
custam quase que um salário. 
... e o solado da botina? 
tem fabricação tão fina... 
dura menos que o crediário! 
10 
O que importa o tormento 
de quem dobra o seu trabalho? 
Se de um lado há velório 
noutro há festa! O árduo o malho 
não assusta a feras bravas. 
Nem faltarão mãos escravas 
para o patronal baralho. 
11 
Tem gente com mordomias 
e outros sem ocupação... 
Há funcionário graduado 
que julgando-se o patrão 
usa e abusa do subalterno 
até pra tirar do terno 
os cisquinhos de ilusão. 
14 
Tantos falam em mutirão 
e em comunitárias hortas. 
Sem dar semente ao chão 
não se tem safra às portas. 
e o trabalhador silente 
até esquece que é gente 
perdido em ilusões tortas. 
15 
Cair vivo em qualquer trecho 
é fácil... constantemente! 
Vestido só de ilusão 
como sofre a humilde gente... 
e quando o riso da parca 
chega ao pobre, fere e marca 
como a lâmina mais pungente. 
16 
O morto tem tempo rápido 
e o comércio funerário, 
não perde tempo, trabalha! 
Tem tudo que o salário 
não deu conta pela vida... 
A honra fúnebre é florida. 
A saudade? Um crediário! 
17 
A vida é cheia de sonhos 
e a escolha envolve o saber. 
Não vive de espalhafato 
quem luta para bem viver... 
A vida nos seus desvãos 
pesa nos calos das mãos 
do que não pode escolher... 
18 
A educação brasileira 
precisa de animação 
pra deixar de ser cabide 
de política na gestão 
com eternos dirigentes 
longe de temas docentes 
segurando a evolução. 
19 
Basta de efetivação 
que adote o ministério 
a carteira de trabalho... 
Na ambição, fique sério! 
aposentados na ativa, 
e o novato sem saliva 
só se rala nesse império. 
20 
Vimos que na educação 
o governo ao professor 
nunca dá salário digno 
e a sina do educador 
é a eterna mixaria 
deputados? que poesia 
nenhuma moção de valor. 
21 
Creio que é bom repensar 
no superior via postal 
Sem sacrificar o descanso 
quem quer a vida real 
em casa todo contente 
estudará facilmente 
também pelo virtual... 
22 
Nem todo laboratório 
quer guarida num salão, 
quando a leitura é constante 
revigora a profissão 
a melhor catedrática 
demostrada é a prática 
de quem tem inclinação. 
23 
A vida é correspondência 
na suprema perfeição, 
banco escolar não é tudo 
depois da alfabetização. 
As entidades de classe 
nunca tiram desse impasse 
o operário em profissão. 
24 
A vida faz-se tranquila 
quando a família é feliz. 
Quem tudo pode fazer 
tem pensamentos sutis 
na mais franca atividade 
é fé da comunidade 
e sempre faz o que diz. 
25 
A jornada do operário 
em sua constante lida 
deve ser emocionante, 
cuidadosa, produzida, 
com sonhos de bom futuro 
quem não se perde no escuro 
tem próspera a luz da vida. 
26 
O lar que é felicidade 
da pátria a miniatura, 
é riqueza, é porvir, 
de tranquilidade segura, 
é moldura do batente 
do homem feliz e contente 
em sua dedicação pura. 
27 
Quem quer ser bom cidadão 
e gozar do seu direito 
gosta de tudo que é bom 
pondo à distância o imperfeito, 
pois quem tem bom coração 
reparte sempre o seu pão, 
não passa a vida no leito. 
28 
Felizmente o mundo é grande... 
- demonstra no dia a dia 
que a vida é laboriosa 
tem sempre à terra a poesia, 
daquele que não se cansa 
e trabalha com esperança 
de não ter vida vazia...

Fonte: O Autor

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Olivaldo Junior (Poemas Escolhidos) II


A Senhora Aparecida

A Senhora Aparecida
tão cedinho, de manhã,
recomeça a sua vida:
ser do povo um talismã.

Dando a todos a guarida,
seja irmão, ou seja irmã,
sempre ajuda na "subida"
para a 'Terra de amanhã'.

- 'Negra mãe do nosso povo',
há trezentas primaveras
vem tornando o velho novo!...

Guardiã de "mil" esferas,
nesse mundo, que é um ovo,
aparece e doma as feras!
____________________________

Para São Francisco
04 de outubro: Dia de São Francisco de Assis

Para São Francisco,
o canário, o alpiste,
a vassoura, o cisco,
que um poeta triste
quer correr o risco
de saber que existe...

Para São Francisco,
verso e prosa a gosto,
que sequer eu pisco
quando o sol do rosto
do melhor Francisco
em meu verso é posto!...

Para São Francisco,
minha "vista" gasta,
meu abraço arisco,
o que se contrasta
quando tudo arrisco
e Francisco basta.
________________________________

À moda de um deus
Para Luís Felipe 

Cansado demais,
parei entre os meus,
na beira do cais,
à moda de um deus.

Cansado demais,
andei entre os seus,
curti os meus ais,
no encalço de Deus.

Cansado, sem ar,
fiquei sem saber
se é rio, se é mar

o mundo a correr,
a gente a sonhar,
o sonho a morrer...
________________________

Poesia, irmão, poesia!...

Poesia, irmão, poesia!...
Que essa vida fantasia
quando vem o Carnaval,
quando vai o funeral!...

Poesia, irmão, poesia!...
Que essa vida, hipocrisia
quando vem o bacanal,
quando vai o bom casal!...

Poesia, irmão, poesia!...
Que uma rosa se anuncia
numa tela, num jornal!...

Poesia, irmão, poesia!...
Que uma lua, luz do dia
num poema original...
______________________

Mil lampadazinhas

Olho o japonês
ir cuidar das plantas.

Paro e fico olhando,
para ver se enxergo...

Cego, não dos olhos,
mas da triste alma,
miro, mas não vejo...

Olho o japonês
ir jantar, e é tarde.

Paro e fico olhando
seu jardim de inverno...

Terno, e sem demora,
bem à flor da palma,
eis que vejo a aurora:

- Mil lampadazinhas!...
__________________________

Príncipe de alma 

Pelas horas que levo na mochila,
pelas lágrimas secas em minh'alma, 
todo dia sem tempo me aniquila, 
leva as horas que iria ter em calma... 

Rubra rosa que velo à mão tranquila, 
eu, pequeno ser, "Príncipe de Alma", 
todo o tempo só penso em possui-la, 
jardineiro que as flores só desalma!... 

No relógio que a lida me desmonta, 
nestes olhos que secam sua fonte, 
eis o ser que à nobreza já desponta, 

sol que à rosa parece um horizonte, 
peregrino senhor que faz de conta 
que do corpo há de vir a sua 'ponte'.

João do Rio (O que se vê nas ruas) Pequenas Profissões

O cigano aproximou-se do catraieiro (1) . No céu, muito azul, o sol derramava toda a sua luz dourada. Do cais via-se para os lados do mar, cortado de lanchas, de velas brancas, o desenho multiforme das ilhas verdejantes, dos navios, das fortalezas. Pelos boulevards sucessivos que vão dar ao cais, a vida tumultuária da cidade vibrava num rumor de apoteose, e era ainda mais intensa, mais brutal, mais gritada, naquele trecho do Mercado, naquele pedaço da rampa, viscoso de imundícies e de vícios. O cigano, de frack e chapéu mole, já falara a dois carroceiros moços e fortes, já se animara a entrar numa taberna de freguesia retumbante. Agora, pelos seus gestos duros, pelo brilho do olhar, bem se percebia que o catraieiro seria a vítima, a vítima definitiva, que ele talvez procurasse desde manhã, como um milhafre (2) esfomeado.

Eduardo e eu caminhamos para a rampa, na aragem fina da tarde que se embebia de todos aqueles cheiros de maresia, de gordura, de aves presas, de verduras. O catraieiro batia negativamente com a cabeça.

— Uma calça, apenas uma, em muito bom estado.

— Mas eu não quero.

— Ninguém lhe vende mais barato, palavra de honra. E a fazenda? Veja a fazenda.

Desenrolou com cuidado um embrulho de jornal. De dentro surgiu um pedaço de calça cor de castanha.

— Para o serviço! Dois mil réis, só dois!...Eu tenho família, mãe, esposa, quatro filhos menores. Ainda não comi hoje! Olhe, tenho aqui uns anéis...não gosta de anéis?

O catraieiro ficara, sem saber como, com o embrulho das calças, e o seu gesto fraco de negativa bem anunciava que iria ficar também com um dos anéis. O cigano desabotoara o frack, cheio de súbito receio.

— É um anel de ouro que eu achei, ouro legítimo. Vendo barato: oito mil réis apenas. Tudo dez mil réis, conta redonda!

O catraieiro sorria, o cigano era presa de uma agitação estranha, agarrando a vítima pelo braço, pela camisa, dando pulos, para lhe cochichar ao ouvido palavras de maior tentação; ninguém naquele perpétuo tumulto, ninguém no rumor do estômago da cidade, olhava sequer para o negócio desesperado de cigano. Eduardo, que nessa tarde passeava comigo, arrastou-me pelo ex-Largo do Paço, costeando o cais até a velha estação das barcas.

— Admiraste aquele negociante ambulante?

— Admirei um refinado “vigarista”...

— Oh! meu amigo, a moral é uma questão de ponto de vista. Aquele cigano faz parte de um exército de infelizes, a que as condições da vida ou do próprio temperamento, a fatalidade, enfim, arrasta muita gente. Lembras-te de La romera de Santiago, de Velez de Guevara? Há lá uns versos que bem exprimem o que são essas criaturas:

Estos son algunos hombres
De obligaciones, que pasan
Necesidad, y procuran
De esta suerte remediarla
Saliendose a los caminos...

É quanto basta como moral. Não sejamos excessivos para os humildes. O Rio tem também as suas pequenas profissões exóticas, produto da miséria ligada às fábricas importantes, aos adelos, ao baixo comércio; o Rio, como todas as grandes cidades, esmiúça no próprio monturo a vida dos desgraçados. Aquelas calças do cigano, deram-lhas ou apanhou-as ele no monturo, mas como o cigano não faz outra coisa na sua vida senão vender calçar velhas e anéis de plaquet (3) , aí tens tu uma profissão da miséria, ou se quiseres, da malandrice — que é sempre a pior das misérias. Muito pobre diabo por aí pelas praças parece sem ofício, sem ocupação. Entretanto, coitados! o ofício, as ocupações, não lhes faltam, e honestos, trabalhosos, inglórios, exigindo o faro dos cães e a argúcia dos reporteres.

Todos esses pobres seres vivos tristes vivem do cisco, do que cai nas sarjetas, dos ratos, dos magros gatos dos telhados, são os heróis da utilidade, os que apanham o inútil para viver, os inconscientes aplicadores à vida das cidades daquele axioma de Lavoisier: nada se perde na natureza. A polícia não os prende, e, na boêmia das ruas, os desgraçados são ainda explorados pelos adelos (4) , pelos ferros-velhos, pelos proprietários das fábricas...

— As pequenas profissões!... É curioso! 

As profissões ignoradas. Decerto não conheces os trapeiros sabidos, os apanha-rótulos, os selistas, os caçadores, as ledoras de buena dicha. Se não fossem o nosso horror, a Diretoria de Higiene e as blagues das revistas de ano, nem os ratoeiros seriam conhecidos.

— Mas, senhor Deus! é uma infinidade, uma infinidade de profissões sem academia! Até parece que não estamos no Rio de Janeiro...

— Coitados! Andam todos na dolorosa academia da miséria, e, vê tu, até nisso há vocações! Os trapeiros, por exemplo, dividem-se em duas especialidades — a dos trapos limpos e a de todos os trapos. Ainda há os cursos suplementares dos apanhadores de papéis, de cavacos e de chumbo. Alguns envergonham-se de contar a existência esforçada. Outros abundam em pormenores e são um mundo de velhos desiludidos, de mulheres gastas, de garotos e de crianças, filhos de família, que saem, por ordem dos pais, com um saco às costas, para cavar a vida nas horas da limpeza das ruas.

De todas essas pequenas profissões a mais rara e a mais parisiense é a dos caçadores, que formam o sindicato das goteiras e dos jardins. São os apanhadores de gatos para matar e levar aos restaurants, já sem pele, onde passam por coelho. Cada gato vale dez tostões no máximo. 

Uma só das costelas que os fregueses rendosos trincam, à noite, nas salas iluminadas dos hotéis, vale muito mais. As outras profissões são comuns. Os trapeiros existem desde que nós possuímos fábricas de papel e fábricas de móveis. Os primeiros apanham trapos, todos os trapos encontrados na rua, remexem o lixo, arrancam da poeira e do esterco os pedaços de pano, que serão em pouco alvo papel; os outros têm o serviço mais especial de procurar panos limpos, trapos em perfeito estado, para vender aos lustradores das fábricas de móveis. As grandes casas desse gênero compram em porção a traparia limpa. A uns não prejudica a intempérie, aos segundos a chuva causa prejuízos enormes. Imagina essa pobre gente, quando chove, quando não há sol, com o céu aberto em cataratas e, em cada rua, uma inundação!

— Falaste, entretanto, dos sabidos?

— Ah! os sabidos dedicam-se a pesquisar nos montes de cisco as botas e os sapatos velhos, e batem-se por duas botas iguais com fúria, porque em geral só se encontra uma desirmanada. Esses infelizes têm preço fixo para o trabalho, uma tarifa geral combinada entre os compradores, os italianos remendões. Um par de botas, por exemplo, custa 400 réis, um par de sapatos 200 réis. As classes pobres preferem as botas aos sapatos. Uma bota só, porém, não se vende por mais de 100 réis.

— Mas é bem pago!

— Bem pago? Os italianos vendem as botas, depois de consertadas, por seis e sete mil réis! E o mesmo que acontece aos molambeiros ambulantes como o cigano que acabamos de ver — os belchiores compram as roupas para vendê-las com quatrocentos por cento de lucro. Há ainda os selistas e os ratoeiros. Os selistas não são os mais esquadrinhadores, os agentes sem lucro do desfalque para o cofre público e da falsificação para o burguês incauto. Passam o dia perto das charutarias pesquisando as sarjetas e as calçadas à cata de selos de maços de cigarros e selos com anéis e os rótulos de charutos. Um cento de selos em perfeito estado vende-se por 200 réis. Os das carteiras de cigarros têm mais um tostão. Os anéis dos charutos servem para vender uma marca por outra nas charutarias e são pagos cem por 200 réis. Imagina uns cem selistas à cata de selos intactos das carteirinhas e dos charutos; avalia em 5% os selos perfeitos de todos os maços de cigarros e de todos os charutos comprados neste país de fumantes; e calcula, após este pequeno trabalho de estatística, em quanto é defraudada a fazenda nacional diariamente só por uma das pequenas profissões ignoradas.

— Gente pobre a morrer de fome, coitados...

— Oh! não. O pessoal que se dedica ao ofício não se compõe apenas do doloroso bando de pés descalços, da agonia risonha dos pequenos mendigos. Trabalham também na profissão os malandros de gravata e roupa alheia, cuja vida passa em parte nos botequins e à porta das charutarias.

— E é rendoso?

— Rendoso, propriamente, não; mas os selistas contam com o natural sentimento de todos os seres que, em vez de romper, preferem retirar o selo do charuto e rasgar a parte selada das carteirinhas sem estragar o selo.

— Mas os anéis dos charutos?

— Oh! isso então é de primeiríssima. Os selistas têm lugar certo para vender os rótulos dos charutos Bismarck — em Niterói, na Travessa do Senado. Há casas que passam caixas e caixas de charutos que nunca foram dessa marca. A mais nova, porém, dessas profissões, que saltam dos ralos, dos buracos, do cisco da grande cidade, é a dos ratoeiros, o agente de ratos, o entreposto entre as ratoeiras das estalagens e a Diretoria de Saúde. Ratoeiro não é um cavador — é um negociante. Passeia pela Gamboa, pelas estalagens da Cidade Nova, pelos cortiços e bibocas da parte velha da urbe, vai até ao subúrbio, tocando um cornetinha com a lata na mão. Quando está muito cansado, senta-se na calçada e espera tranquilamente a freguesia, soprando de espaço a espaço no cornetim. Não espera muito. Das rótulas há quem os chame; à porta das estalagens afluem mulheres e crianças.

— Ó ratoeiro, aqui tem dez ratos!

— Quanto quer?

— Meia pataca.

— Até logo!

— Mas, ô diabo, olhe que você recebe mais do que isso por um só lá na Higiene.

— E o meu trabalho?

— Uma figa! Eu cá não vou na história de micróbio no pêlo do rato.

— Nem eu. Dou dez tostões por tudo. Serve?

— Heim?

— Serve?

— Rua!

— Mais fica!

E quando o ratoeiro volta, traz o seu dia fartamente ganho...

Tínhamos parado à esquina da Rua Fresca. A vida redobrava aí de intensidade, não de trabalho, mas de deboche. Nos botequins, fonógrafos roufenhos esganiçavam canções picarescas; numa taberna escura com turcos e fuzileiros navais, dois violões e um cavaquinho repinicavam. Pelas calçadas, paradas às esquinas, à beira do quiosque, meretrizes de galho de arruda atrás da orelha e chinelinho na ponta do pé, carregadores espapaçados (5) , rapazes de camisa de meia e calça branca bombacha com o corpo flexível dos birbantes (6), marinheiros, bombeiros, túnicas vermelhas e fuzileiros — uma confusão, uma mistura de cores, de tipos, de vozes, onde a luxúria crescia. De repente o meu amigo estacou. Alguns metros adiante, na Rua Fresca, um rapaz doceiro arriara a caixa, e sentado num portal, entregava o braço aos exercícios de um petiz da altura de um metro. Junto ao grupo, o cigano, com outro embrulho, falava.

— Vês? Aquele pequeno é marcador, faz tatuagens, ganha a sua vida com três agulhas e um pouco de graxa, metendo coroas, nomes e corações nos braços dos vendedores ociosos. O cigano molambeiro aproveita o estado de semi-dor e semi-inércia do rapaz para lhe impingir
qualquer um dos seus trapos...um psicólogo, como todos os da sua raça, psicólogo como as suas irmãs que lêem a buena dicha por um tostão e amam por dez com consentimento deles.

Oh! essas pequenas profissões ignoradas, que são partes integrantes do mecanismo das grandes cidades! O Rio pode conhecer muito bem a vida do burguês de Londres, as peças de Paris, a geografia da Manchúria e o patriotismo japonês. A apostar, porém, que não conhece nem a sua própria planta, nem a vida de toda essa sociedade, de todos esses meios estranhos e exóticos, de todas as profissões que constituem o progresso, a dor, a miséria da vasta Babel que se transforma. E entretanto, meu caro, quanto soluço, quanta ambição, quanto horror e também quanta compensação na vida humilde que estamos a ver.

Estos son algunos hombres
De obligaciones, que pasan
Necesidad, y procuran
De esta suerte remediarla
Saliendose a los caminos...

Mas o meu amigo não continuou o fio luminoso de sua filosofia. O catraieiro apareceu rubro de cólera, e sutilmente cosia-se com as paredes, ao aproximar-se do cigano.

De repente deu um pulo e caiu-lhe em cima de chofre.

— Apanhei-te, gatuno!

O cigano voltara-se lívido. Ao grito do catraieiro acudiam, numa sarabanda de chinelas, fúfias, rufiões, soldados, ociosos, vendedores ambulantes.

— Gatuno! Então vendes como ouro um anel de plaquet? Espera que te vou quebrar os queixos. 

Sacudiu-o, atirou-o no ar para apanhá-lo com uma bofetada. O cigano porém caiu num bolo, distendeu-se e partiu como um raio por entre a aglomeração da gentalha, que ria. O catraieiro, mais corpulento, mais pesado, precipitou-se também. Os vagabundos, com o selvagem instinto da caça, que persiste no homem — acompanharam-no. E pelos boulevards, onde se acendiam os primeiros revérberos, à disparada entre os squares sucessivos, a ralé dos botequins, aos gritos, deitou na perseguição do pobre cigano molambeiro, da pobre profissão ignorada, que, como todas as profissões, tem também malandros.

Então Eduardo sentenciou.

— Tu não conhecias as pequenas profissões do Rio. A vida de um pobre sujeito deu-te todos esses úteis conhecimentos. Mas, se esse pobre sujeito não fosse um malandro, não conhecerias da profissão até mesmo os birbantes.

A moral é uma questão de ponto de vista. Para julgar os homens basta a gente defini-los segundo os seus sucessivos estados. Se te aprouver definir os profissionais humildes pela tua última impressão, emprega os mesmos versos de Guevara com uma pequena modificação:

Estos son algunos hombres
De obligaciones, que pasan
Necesidad, y procuran
De esta suerte remediarla
Corriendo por los caminos...
___________________________
Notas
(1) Barqueiro de catraia (bote de um só lugar).
(2) Ave de rapina.
(3) Imitação de ouro.
(4) Quem compra e vende objetos usados; brechó.
(5) Desengonçados.
(6) Patife, malandro.

Fonte:
João do Rio. A Alma Encatadora das Ruas. Fundação Biblioteca Nacional.

domingo, 15 de outubro de 2017

João Batista Xavier Oliveira (Trovas de quem entende de trovas) II


A fugir da hipocrisia
na discrição eu me calo,
pois quem fala em demasia
cumprimenta até cavalo.

Alvo de risos e palmas
embutido em seu disfarce
o palhaço lava as almas
querendo da dor vingar-se.

Bate à porta a primavera;
vem ungir o meu jardim
com as cores de quimera,
lantejoulas e cetim.

Bem no meio da floresta
a terra respira fundo...
Aproveita o que lhe resta
arejando mais o mundo.

Das mãos limpas que me valho
são exemplos dos meus pais:
honestidade e trabalho,
ganância... inveja... jamais!

Dinheiro não cai do céu
e de pedra não sai leite;
quem espera sempre ao léu
não passa de um mero enfeite.

Dos meus olhos são colírios
os campos, linda morada,
por onde dançam os lírios
ao canto da passarada.

Escondida tua foto
no armário, tenho a impressão
que nossa distância noto
não estar no coração!

Humildade, dom Divino
vivendo no coração
pois é simplesmente um sino
a chamar-nos à união.

Inspiração mais prospera
no âmago do poeta
ao deparar primavera
por ser sonhador e esteta.

Não existe lei que impeça
um pensamento funesto
de quem semeia promessa
quando não quer ser honesto.

O presente desatina
quem cai no conto falaz:
- trocar voto por botina
leva sempre um pé por trás.

Para "gregos e troianos"
beberem da mesma taça...
se for preciso mil anos
de entendimento...que o faça!

Pelas flores que plantei
entre espinhos... muito fiz 
que um grande jardim ganhei:
minha sina é ser feliz.

Pergunto ao tempo até quando
a falsa paixão se esconde...
e ele passando... passando...
simplesmente já responde.

Qual anúncio a nova era
revelando tempos novos
eis a luz de primavera
doando flores aos povos.

Quantas pedras removidas
e quantas por remover...
Provações em nossas vidas
que só nos fazem crescer!

Querer ser poeta... não!
Quem é não é por querer;
escrever do coração
não precisa saber ler.

Quisera uma flor apenas
no meu portal de esperanças;
suas pétalas pequenas
são sorrisos de crianças!

Saudade, flor que a distância
seu perfume não desfaz...
jardim onde nossa infância
dança ciranda de paz!

Se cuidarmos bem da fonte
a natureza eterniza
os vislumbres do horizonte
com as promessas da brisa.

Seu eu ficasse aquele dia
sem aceno na estação...
hoje a cena não teria
cicatriz no coração.

Solidão é uma procura
além dos nossos sentidos.
Sem tempo, longe, a ternura
se perde nos alaridos.

Teus olhos, duas nascentes
que brilham a natureza
dos meus versos tão carentes
de rimas para a beleza.

Uma lágrima sincera
o poeta externa em canto
ao vislumbrar a primavera
luzidia em seu encanto.

Uma mulher, na verdade,
simplesmente poderosa,
vence os espinhos da idade;
ganha os encantos da rosa.

Vinte e oito pinceladas
e um quadro estampa tua arte
de refletir, ampliadas,
as emoções ao pintar-te.

Fonte: O Autor