terça-feira, 12 de dezembro de 2017

H. G. Wells (O desabrochar da estranha orquídea)

A compra de orquídeas sempre traz consigo um certo sabor especulativo. Você tem diante dos olhos um pedaço amarfanhado de tecido vegetal marrom, e para todo o resto precisa confiar apenas no seu discernimento, ou no leiloeiro, ou em sua própria sorte, conforme lhe parecer mais adequado. A planta pode estar agonizante ou morta, mas também pode ter sido uma compra valiosa, por um preço justo, ou quem sabe — pois isto tem acontecido, o tempo todo — comece a desabrochar ali, diante dos olhos deliciados do feliz comprador, dia após dia, alguma nova variedade, alguma rara preciosidade, uma estranha torção no labelo, ou uma coloração mais sutil, ou um mimetismo inesperado. Orgulho, beleza e lucro florescem juntos num delicado talo verde, e quem sabe, até mesmo a imortalidade. Porque o novo milagre da Natureza pode necessitar de um nome específico, e que nome mais conveniente que o do seu descobridor? “Johnsmithia!” Ora, há nomes piores.

Talvez fosse a esperança de uma extraordinária descoberta desse tipo que fazia de Winter-Wedderburn um frequentador habitual desses leilões — essa esperança e também, talvez, o fato de que ele não tinha nenhuma outra coisa minimamente interessante para fazer neste mundo. Era um homem tímido, solitário, desprovido de talentos; dispunha de uma renda apenas suficiente para não permitir que passasse necessidades, e faltava-lhe a energia necessária para ir em busca de um trabalho mais exigente. Poderia ter sido um colecionador de selos ou de moedas, ou poderia ter traduzido Horácio, ou encadernado livros, ou inventado novas espécies de diatomáceas.

Acontece, no entanto, que ele cultivava orquídeas, e era proprietário de uma estufa pequena e ambiciosa.

— Tenho o pressentimento — disse ele, durante o café — de que alguma coisa vai me acontecer hoje.

Ele falava lentamente, tal como pensava e se movia.

— Oh! Não diga isto! — disse sua governanta, que era também sua prima distante. Porque “acontecer alguma coisa” era para ela um eufemismo que tinha apenas um significado.

— Você não me entendeu. Não quero dizer nada desagradável, embora eu não faça ideia do que possa ser. Hoje — prosseguiu ele — o Peters’ vai pôr à venda uma coleção de plantas das Ilhas Andamã e da Índia. Vou até lá para ver o que eles têm. Pode acontecer que eu compre algo interessante sem perceber. Pode muito bem ser isto.

Ele estendeu a xícara para servir-se de café pela segunda vez.

— São essas coisas que aquele pobre rapaz colecionava, aquele de quem você me falou outro dia? — perguntou a prima, enquanto enchia sua xícara.

— Sim — disse ele, contemplando meditativo uma fatia de torrada. — E depois de algum tempo comentou, como que pensando em voz alta: — Nunca acontece nada comigo. Fico pensando por quê. Acontecem coisas com todo mundo. Veja Harvey. Só na semana passada, na segunda-feira, ele achou na calçada seis pence; na quarta-feira suas crianças adoeceram; na sexta seu primo chegou da Austrália, e no sábado quebrou o tornozelo. Que turbilhão de emoções! Comparando comigo...

— Pois eu creio que passaria muito bem sem essas emoções todas — disse a governanta. — Não pode lhe fazer bem.

— Imagino que é algo que gera problemas. Mesmo assim... você sabe, nada me acontece. Quando eu era menino nunca sofri um acidente sequer. Quando cresci, nunca cheguei a me apaixonar. Não me casei. Imagino como deve ser quando alguma coisa nos acontece, alguma coisa extraordinária.

“Aquele colecionador de orquídeas tinha apenas trinta e seis anos, vinte anos mais novo do que eu, quando morreu. Tinha sido casado duas vezes, e divorciou-se uma; teve malária quatro vezes, e uma vez quebrou a coxa. Matou um homem, um malaio; e foi ferido por um dardo envenenado. E no fim de tudo foi morto por sanguessugas da floresta. Tudo isto deve ter lhe causado contratempos, mas também deve ter sido muito interessante, sabe, exceto talvez pelas sanguessugas.”

— Tenho certeza de que não fez bem a ele — disse a dama, cheia de convicção.

— É, talvez não. — Wedderburn olhou o relógio. — Passam vinte e três minutos das oito. Vou pegar o trem das 11h45, então tenho tempo de sobra. Acho que vestirei o meu paletó de alpaca, que é bastante quente, e meu chapéu de feltro cinzento, e sapatos marrons. Suponho que...

Olhou pela janela para o céu sereno e o jardim banhado de sol, e depois, com algum nervosismo, para o rosto de sua prima.

— Seria melhor levar um guarda-chuva, já que vai a Londres — disse ela, numa voz que não admitia recusa. — Lembre-se de que tem a caminhada daqui até a estação, e depois a volta.

Quando ele voltou, estava bastante animado. Tinha feito uma compra. Não era sempre que costumava tomar uma decisão de maneira tão rápida, mas desta vez tinha sido assim.

— Estas aqui são Vandas — disse —, esta é um Dendróbio, e estas aqui são Falenopses.

Examinou afetuosamente suas aquisições, enquanto tomava sopa. Estavam dispostas sobre a imaculada toalha de mesa, e ele contou toda a história à prima enquanto o jantar progredia sem muita pressa. Era seu hábito reconstituir suas idas a Londres, à noite, para o entretenimento da prima e o seu próprio.

— Eu sabia que alguma coisa ia acontecer hoje. E veja, comprei todas estas orquídeas. Algumas delas... algumas delas... tenho certeza, sabe, tenho certeza de que algumas delas devem ser extraordinárias. Não sei bem o que é, mas sinto uma certeza, como se alguém tivesse me garantido que algumas delas são fora do comum.

“Esta aqui”, prosseguiu, apontando um rizoma encarquilhado, “não foi identificada. Pode ser uma Falenopse, ou talvez não. Pode ser uma nova espécie, ou até mesmo um novo genus. E foi o último exemplar colhido pelo pobre do Batten”.

— Não gosto da aparência dela — disse a governanta. — Tem um formato tão feio.

— Para mim ela mal tem algum formato.

— Não gosto dessas coisas estendidas para fora.

— Amanhã vou colocá-la num pote.

— Ela parece — disse a governanta — uma aranha fingindo-se de morta. Wedderburn sorriu e examinou a muda de orquídea, inclinando a cabeça para um lado.

— Bem, é verdade que não é um objeto muito bonito — disse. — Mas nunca se deve julgar essas coisas pela aparência que têm quando estão secas. Ela pode vir a se tornar uma linda orquídea, sem dúvida. Puxa, amanhã vou estar muito ocupado. Hoje à noite verei exatamente o que preciso fazer com todas estas coisas, e amanhã... mãos à obra!

Depois de uma pausa, ele recomeçou:

— Encontraram o pobre Batten morto, ou moribundo, dentro de um mangue pantanoso, não lembro exatamente qual, com uma destas orquídeas esmagada sob o corpo. Ele já vinha adoentado havia alguns dias, com uma dessas febres nativas, e suponho que deve ter desmaiado. Esses mangues têm exalações muito doentias. E as sanguessugas do pântano, pelo que dizem, drenaram até a última gota que tinha nas veias. Ele deu a vida para conseguir uma planta, e talvez seja justamente esta.

— Nem por isso a vejo com bons olhos.

— Os homens devem lutar, mesmo que as mulheres chorem — respondeu Wedderburn, com profunda gravidade. — Imagine só, morrer longe de todo o conforto, num pântano repugnante! Imagine estar doente de febre, sem nada para tomar a não ser clorodina e quinino (se os homens fossem deixados em paz, eles poderiam viver somente de clorodina e quinino!), e tendo em volta apenas aqueles horríveis nativos! Dizem que os ilhéus de Andamã são os tipos mais repugnantes, e em todo caso dificilmente seriam bons enfermeiros, não tendo recebido o treinamento adequado. E todo esse sacrifício para que o povo da Inglaterra tivesse orquídeas!

“Não imagino que tenha sido algo cômodo, mas alguns homens gostam desse tipo de coisa”, disse Wedderburn. “De qualquer modo, os nativos que o acompanhavam foram civilizados o bastante para cuidar de sua coleção até que o colega dele, um ornitologista, voltasse do interior, embora eles não soubessem a que espécie pertencia a orquídea, e permitissem que ela ficasse ressequida. Isto torna as coisas mais interessantes.”

— Torna-as mais repulsivas. Eu iria imaginar que um pouco da malária aderiu a elas. E pense só, um cadáver ficou caído em cima dessa coisa horrorosa! Não pensei nisto antes. Ora! Não posso comer nem mais uma garfada do meu jantar.

— Posso tirá-las da mesa, se quiser, e colocá-las junto da janela. Posso vê-las do mesmo jeito.

Nos dias seguintes ele esteve atarefadíssimo em sua estufa quente e abafada, remexendo em carvão, pedaços de madeira, lodo e todos os demais mistérios do cultivador de orquídeas. Na sua avaliação, estava vivendo momentos muito movimentados. À noite, conversava com os amigos sobre suas novas orquídeas, e a toda hora voltava a se referir à sua expectativa de que algo estranho acontecesse. Algumas das vandas e o dendróbio morreram em suas mãos, mas depois de algum tempo a estranha orquídea começou a dar sinais de vida. Ele ficou entusiasmado e no momento em que fez a descoberta trouxe imediatamente a governanta, que estava fabricando uma geleia, para ver a flor.

— É apenas um botão — disse ele —, mas daqui a pouco tempo haverá uma porção de folhas ali, e estas pequenas coisas que estão saindo por aqui são as raízes aéreas.

— Parecem dedinhos saindo de dentro dessa parte marrom — disse a governanta. — Não gosto deles.

— Por que não?

— Não sei. Parecem dedos querendo nos alcançar. Eu gosto das coisas ou não gosto, não posso mudar.

— Não sei ao certo, mas não acredito que haja orquídeas com raízes aéreas como essas. Pode ser fantasia minha, claro. Veja, são meio achatadas nas extremidades.

— Não gosto delas — disse a governanta, estremecendo e virando as costas.

— Sei que é uma tolice da minha parte, e lamento, principalmente porque você gosta tanto dessa coisa. Mas não paro de pensar naquele cadáver.

— Mas não era esta planta específica, foi apenas uma suposição minha.

A governanta encolheu os ombros:

— Seja como for, não gosto dela.

Wedderburn sentiu-se um pouco magoado diante do desagrado dela, mas isto não o impediu de continuar conversando sobre orquídeas em geral, e aquela em particular, sempre que lhe aprazia.

— Existem coisas curiosas a respeito das orquídeas — disse ele um dia. — Muitas surpresas à nossa espera. Sabe, Darwin estudou sua fertilização, e demonstrou que a estrutura inteira de uma dessas flores estava compactada de modo a que uma mera mariposa fosse capaz de conduzir esse pólen de planta em planta. Bem, parece que há uma quantidade enorme de orquídeas conhecidas cuja flor não pode ser usada para fertilização dessa maneira. Algumas das Cipripédias, por exemplo; não se conhecem insetos capazes de fertilizá-las, e em algumas delas nunca foram encontradas sementes.

— Então, como formam novas plantas?

— Através de estolhos e de túberas, e outros tipos de protuberâncias. É algo que se explica facilmente. A questão é: para que servem as flores? É bem possível — prosseguiu ele — que minha orquídea tenha algum aspecto extraordinário desse tipo. Se for o caso, vou pesquisar. Sempre pensei em fazer pesquisas como as de Darwin, mas até hoje nunca tive tempo, ou sempre acontecia algo para me impedir. As folhas dela estão começando a se abrir agora, gostaria que você viesse vê-las!

Mas ela disse que o orquidário era quente a ponto de lhe dar dor de cabeça. Já vira a planta, uma vez, e aquelas raízes aéreas, algumas das quais tinham agora mais de trinta centímetros de comprimento, davam-lhe a desagradável impressão de tentáculos tentando alcançar alguma coisa; e tinham reaparecido em seus sonhos, crescendo com incrível rapidez em sua direção. Ela tinha, portanto, afirmado com absoluta convicção que não iria olhar para aquela planta novamente, e Wedderburn teria de contemplar sozinho suas folhas. Estas eram de um formato comum, largas, com um verde profundo e luzidio, cheias de pequenas manchas e pontos em vermelho vivo na direção da base. A orquídea estava colocada numa bancada baixa, perto do termômetro, e ao seu lado tinha sido feito um arranjo mediante o qual a água gotejava sobre canos aquecidos e
umedecia o ar. Ele passava agora suas tardes, regularmente, meditando no próximo desabrochar daquela estranha planta.

E por fim deu-se o grande acontecimento. No instante em que entrou no orquidário ele soube que a planta tinha brotado, embora sua grande Falenopse lowii ocultasse o canto onde estava sua nova favorita. Havia um odor novo no ar, um aroma rico, intensamente doce, que suplantava todos os outros no interior da estufa repleta e coberta de vapor.

Wedderburn percebeu isto de imediato ao caminhar na direção da estranha orquídea. E, vejam! Os longos espiques verdes exibiam agora três grandes florescências, das quais emanava aquele irresistível odor adocicado. Ele se deteve, num êxtase de admiração. As flores eram brancas, com raias de laranja dourado sobre as pétalas; o pesado labelo se contorcia numa intrincada projeção, e nele uma tonalidade maravilhosa de roxo misturava-se ao dourado. Wedderburn percebeu de imediato que se tratava de um novo genus. E aquele perfume insuportável! Como o local estava quente! As pétalas pareceram oscilar diante dos seus olhos.

Tinha que verificar se a temperatura estava correta. Deu um passo na direção do termômetro. De repente tudo parecia oscilar. Os tijolos do piso pareciam dançar para cima e para baixo. Então as florescências brancas, as folhas verdes à sua frente, o orquidário inteiro, pareceram deslizar para um lado, e depois fazer uma curva para cima.

Às quatro e meia sua prima preparou o chá, de acordo com o costume invariável da casa. Mas Wedderburn não veio. “Está adorando aquela orquídea horrorosa”, disse ela para si mesma, e esperou dez minutos. “O relógio dele deve ter parado. Vou chamá-lo.” 

Foi direto para a estufa, e, ao abrir a porta, chamou-o pelo nome. Não houve resposta. Ela percebeu que o ar estava muito carregado, e saturado de um perfume intenso. Então viu alguma coisa sobre os tijolos do chão, entre os canos de água aquecida.

Durante um minuto, talvez, ela permaneceu imóvel.

Ele estava caído, com o rosto para cima, ao pé da estranha orquídea. As raízes aéreas semelhantes a tentáculos já não oscilavam soltas no ar, mas amontoavam-se num emaranhado de cordões cinzentos, e estavam retesadas, com as extremidades coladas ao queixo, ao pescoço e às mãos do homem caído.

Ela não compreendeu. E então viu que de um daqueles tentáculos exultantes sobre o rosto dele escorria uma gota de sangue. Com um grito inarticulado ela precipitou-se e tentou arrastá-lo para longe daquelas sanguessugas. Partiu dois dos tentáculos, e a seiva que escorreu deles era  rubra. Então o irresistível cheiro das flores começou a fazer sua cabeça girar.

Como aquelas coisas estavam agarradas a ele! Ela puxou os fios, tão resistentes, e o homem e as florescências brancas pareceram balançar diante dos seus olhos. Sentiu que ia desmaiar, mas não podia deixar que isso acontecesse. Deixou-o ali e foi às pressas abrir a porta mais próxima, e depois de aspirar o ar puro por alguns momentos teve uma ideia brilhante. Erguendo um vaso de flores, despedaçou as janelas de vidro no fundo da estufa. Só depois entrou novamente. Desta vez arrastou com força renovada o corpo imóvel de Wedderburn, fazendo a orquídea cair ao chão com violência. A planta ainda se agarrava obstinadamente à sua vítima. Com uma energia frenética, ela conseguiu arrastar o homem e a planta para o ar livre.

Então ocorreu-lhe atacar aquelas cordas cinzentas uma por uma; e um minuto depois ele estava livre, e ela o arrastava para longe daquele horror. Wedderburn estava lívido, e sangrava por uma dúzia de pontos em forma de círculo.

O caseiro estava chegando ao jardim, atraído pelo estardalhaço dos vidros quebrados, quando a viu emergir da porta da estufa, arrastando o corpo inanimado, com as mãos tintas de sangue. Por um instante, coisas impossíveis passaram pela cabeça dele.

— Traga água! — gritou ela, e o som de sua voz varreu da mente dele quaisquer suposições. Quando, com uma alacridade fora do normal, ele voltou com a água, encontrou-a chorando de excitação, com a cabeça de Wedderburn pousada no joelho, limpando o sangue do seu rosto.

— O que aconteceu? — disse Wedderburn, abrindo fracamente os olhos, e fechando-os de novo em seguida.

— Vá dizer a Annie que venha me ajudar, e depois corra a chamar o dr. Haddon, agora mesmo! — disse ela para o caseiro, assim que recebeu a vasilha com água, e completou, vendo que ele hesitava: — Quando voltar eu explico tudo.

Por fim Wedderburn abriu os olhos novamente, e vendo seu olhar espantado diante da posição em que se encontrava ela explicou:

— Você desmaiou dentro da estufa.

— E a orquídea?

— Depois eu lhe mostro.

Wedderburn tinha perdido uma boa quantidade de sangue, mas afora isto não tinha sofrido nenhum ferimento grave. Deram-lhe conhaque misturado com um extrato de carne de cor rósea, e levaram-no para sua cama no andar de cima. A governanta contou sua incrível história, de modo fragmentado, ao dr. Haddon.

— Venha até o orquidário e veja — disse ela.

O ar frio de fora entrava soprando pela porta escancarada, e aquele perfume doentio se dissipara quase por completo. A maior parte dos filamentos aéreos da planta já estava encarquilhada, por entre as manchas escuras dos tijolos. O talo da planta tinha se partido na queda, e as flores pendiam moles, com as bordas das pétalas já escurecidas. O doutor inclinou-se para examiná-la, então viu que uma das raízes ainda se movia debilmente, e hesitou.

Na manhã seguinte a estranha orquídea ainda estava lá, agora negra e putrescente. A porta batia de modo intermitente com a brisa da manhã, e toda a coleção de orquídeas de Wedderburn estava ressequida e prostrada. Mas ele em pessoa estava radiante e loquaz no andar de cima, inundado pela glória de sua estranha aventura.

Fonte:
H. G. Wells. O País dos Cegos e Outras Histórias. RJ: Objetiva, 2014.

Monteiro Lobato (A Chave do Tamanho) IV – A viagem pelo jardim

O mede-palmo vinha descendo pela haste dum ramo de hortênsia. Era dos peludinhos. Emília, ansiosa por se ver no chão, teve uma ideia.

— E se eu montasse nele e ficasse bem agarrada aos pelos? Os mede-palmos não mordem.

Emília aproximou-se e zás! cavalgou-o. O mede-palmo deteve-se, estranhando aquilo; ergueu a cabecinha e ficou uns instantes a virá-la dum lado para outro. Por fim continuou a descer.

— Primeira descoberta! — gritou Emília. — A escada rolante viva!

Em seu passeio a Nova Iorque, contado na Geografia de Dona Benta, Emília tivera oportunidade de conhecer as escadas rolantes das grandes lojas, escadas que em vez de serem subidas pela gente, subiam a gente. Os fregueses ficavam de pé nos degraus, imóveis e aqueles degraus os iam subindo de um andar para outro; e ao lado de cada escada em perpétua subida, ficava outra em perpétua descida.

— Meu mede-palmo agora — disse Emília — é a escada que desce.

Ao chegar ao chão, debaixo da moita de hortênsia, estranhou o escuro. Como viesse de cima da flor, onde a luz era intensa, custou-lhe acostumar os olhinhos a tanta sombra. Que frescura ali! Até demais. E úmido. Se ficasse muito tempo naquela sombra, apanharia um resfriado. A primeira coisa que a impressionou foi a aspereza do chão. Era irregularíssimo!

— Como há pedras no mundo! — exclamou, tropicando e machucando os delicados pezinhos.

— Isso que nós chamávamos terra ou chão, não é terra nada, é pedra, pedra e mais pedra. A crosta do planeta é uma pedreira sem fim. Hum! Por isso é que os bichinhos do meu tamanho usam tantos pés. Cada inseto tem seis. Os mede-palmos têm muito mais.

De dois pés não há nenhum. Agora compreendo o motivo — é que só com dois pés não poderiam caminhar pelas infinitas pedreiras destes chãos. A gente dá um passo e cai, porque, se um pé escorrega, o outro é pouco para manter o equilíbrio. Mas com seis pés o andar é fácil, porque, se um escorrega, sobram cinco para a escora. Além disso — estou vendo — todas as patas dos meus colegas possuem garrinhas, com as quais eles vão se agarrando às asperezas do chão ou da casca das árvores.

Emília compreendeu por que os insetos sobem tão bem pelas paredes. Para uma formiga uma parede é uma verdadeira escada, com degraus irregulares a que as garras das patinhas vão se agarrando.

— Mas em parede de vidro, formiga não sobe, porque o vidro não é escada, não tem degraus. O vidro é liso de verdade.

Aquela dificuldade de andar começou a aborrecê-la. Para ir daqui até ali era um custo — e quantos tombos! Experimentou andar de quatro. Muito melhor, mas cansava,

— O remédio é montar num dos meus colegas.

Nesse momento avistou um enorme caramujo da altura dela. Compreendeu que era um daqueles caramujinhos tão abundantes na horta de Dona Benta. Trepou sem medo em cima da casca e ficou de cócoras.

O caramujo parece que nem deu pela coisa. Foi andando, andando, mas vagaroso demais.

Emília cochilou e caiu.

— Este cavalo não serve. Dá sono na gente. Tenho de arranjar outro.

Seu pensamento era explorar o jardim e aproximar-se da casa para ver se havia gente grande lá dentro. Ainda não obtivera a prova provada de que o "apequenamento" das criaturas humanas havia sido geral. O palacete, porém, ficava longe dali, a uns dez metros de distância, e uma viagem de dez metros por um terreno tão horrivelmente pedregoso (uma rua apedregulhada de jardim) era proeza que seus pezinhos descalços não aguentavam.

— Assim não chego lá nunca e arrebento as unhas. Só de caminhar meio metro já fiquei com os pés em brasa. A solução é mesmo um cavalinho.

Olhou em redor. Além de lerdos caramujos havia muitos bichos-de-conta, ou "tatuzinhos" como ela dizia. Eram conhecidos velhos. Gostava de brincar com eles lá no sítio. "São uns bobos. Basta que a gente bula neles para que se finjam de mortos." Emília experimentou. Montou num dos maiores. O bichinho, apavorado, imediatamente virou bola — ou conta, como as de rosário.

— Não serve. Estes tatus-bolas também não nasceram para cavalos.

Um gafanhoto verde estava a espiá-la de dentro das folhas do "bananal." Tinha cinco vezes a sua altura. Emília foi-se aproximando sem que ele fizesse caso. Chegou bem perto e, súbito, zás! montou. Mas o gafanhoto deu um formidável pulo, lançando-a de ponta cabeça sobre as "pedras" da areia.

— Também não serve — disse ela, erguendo-se muito desapontada.

— Preciso dum bicho que não durma a gente, nem se finja de morto, nem pule.

A certa distância estava uma "vaquinha" pastando, Era o nome que no sítio Pedrinho dava a certo besouro de pintas amarelas e que o Visconde dizia ser um "coleóptero". O Visconde vivia estudando a vida daqueles animaizinhos. Explicou que se chamavam coleópteros por causa do sistema das asas dobráveis e guardáveis dentro dum estojo. Essas asas são membranosas, fininhas como papel de seda, mas não andam à mostra, como as das borboletas, aves e outros bichos menos aperfeiçoados. Só aparecem quando o coleóptero vai voar. O estojo é formado de dois élitros cascudos, duros como unha. São dois verdadeiros moldes côncavos ajustados à forma do corpo. Eles abrem aquilo de jeito a não atrapalhar as asas de dentro. Abrem o estojo e vão desdobrando as asas — e voam. Quando pousam, dobram de novo as asas, muito bem dobradinhas e cobrem-nas outra vez com as tampas do estojo.

O Visconde achava muita graça no sistema, que era o mais aperfeiçoado de todos, dizia ele; e vivia fazendo experiências com besouros de todos os tamanhos. Era um sistema tão bom, que o mundo já andava um besoural imenso. Cento e cinquenta mil espécies de besouros já haviam sido estudadas pelos sábios, imaginem! Se o sistema não fosse tão bom, a ordem dos coleópteros não se multiplicaria em tantas espécies. Quando um sistema não é aperfeiçoado, os bichos que o usam levam a breca, como aconteceu com aqueles grandes sáurios que o Walt Disney mostrou na Fantasia. Por que desapareceram tais monstros? Justamente porque o "sistema sáurio" não prestava. E por que os "besouros aumentaram? Porque o "sistema besouro" é aqui da pontinha — e Emília, que estava conversando consigo mesma, pegou na pontinha da orelha. O Visconde também achava que o futuro Rei da Criação ia ser o besouro, depois que o rei atual, o Homem, totalmente se destruísse na horrenda guerra que andava guerreando.

Emília aproximou-se da "vaquinha" e montou. O coleóptero quis reagir — abrir os élitros para desenrolar as asas e voar, mas Emília não deixou. Manteve o estojo fechado. A "vaquinha", então, pôs-se a andar com ela às costas, e justamente na direção da casa. Súbito, porém, mudou de rumo. Emília danou. Viu que tinha de descobrir a "dirigibilidade dos besouros" como Santos Dumont havia descoberto a "dirigibilidade dos balões". Os balões no começo eram como os besouros; iam para onde queriam e não para onde os homens queriam. Veio Santos Dumont e inventou o meio de governá-los. Já a "dirigibilidade dos animais" era coisa velha. A dirigibilidade do cavalo, por exemplo, surgiu com a invenção do freio. E se ela pusesse um freio naquele coleóptero? Emília apeou para estudar a situação. Mas assim
que se viu sem cavaleiro, o "cavalinho pampa" abriu os élitros, desenrolou as asas e lá se foi pelos ares — zunn...

— Maçada! — exclamou Emília cocando a cabeça e olhando em torno.

Havia se aproximado apenas dois metros do seu objetivo, que era a casa. Faltavam ainda sete metros e meio.

continua…

Fonte:
Monteiro Lobato. A Chave do Tamanho.

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Olivaldo Júnior (Poemas Escolhidos) IV


Meu amor me disse...

Meu amor me disse
que eu seguisse a pé
pela rua, em fúria,
que um amor dá pé!...

Meu amor me disse
que eu subisse ao céu
pela lua, em fúria,
que a lua é de mel!...

Meu amor me disse 
que eu servisse à fé
quase nu, em fúria!...
E ele?! "Deu no pé"!
________

A solidão é de ferro

Para Teresinska Pereira
Ottawa Hills, Ohio, EUA

Nem de mel, nem de papel,
nem do verso que descerro;
tão sozinha, em seu cordel,
a solidão é de ferro.

Não do tal das ferrarias,
nem do tal que passa a roupa,
mas das velhas ferrovias,
onde um trem parece estopa.

Assim, só, de madrugada,
tendo o ferro da paixão
nestes ossos, quase nada,

passo a ferro o coração,
velho trem, nessa toada
de ser ferro, ou solidão.
___________________

Passarinho aflito

Engolindo alpiste,
na maior clausura,
gradeada e triste,
terna voz perdura...

Alma eterna, insiste
em poupar ternura
e, ao poupar, resiste
co' a maior bravura.

Passarinho aflito,
bica os livros, para
e já volta ao 'rito'...

A si mesmo encara,
sem soltar seu grito,
que o penar apara.
_____________________

Minha amiga, a Solidão

Num cantinho lá de casa,
onde mora uma ilusão,
certa amiga arrasta a asa
por um pobre coração...

Por um pobre coração
que foi rubro, em viva brasa,
certa amiga faz serão
e, depois, meu sono "arrasa"...

Minha amiga, a Solidão,
vende os ecos a granel,
mil sussurros sem razão!...

Diz que é feita só de mel,
mas eu sei que a Solidão,
minha amiga é de papel.

Fonte: O Poeta

Herman Hesse (O Demônio do Campo)

Na época em que, no Egito, o paganismo decadente cedia cada vez mais terreno à nova doutrina e floresciam nas cidades e mais humildes lugarejos inúmeras congregações cristãs, os antigos demônios viam-se forçados a retirar-se mais e mais para o deserto tebano. Era um vasto ermo então completamente desabitado, pois os devotos penitentes e os eremitas ainda não se atreviam a penetrar nessa perigosa região e preferiam viver, fechados a toda comunicação com o mundo, em pequenos hortos ou palheiros vizinhos das aldeias ou para além das grandes cidades. Assim, esse grande deserto estava completamente à disposição de Belzebu, com seu exército e séquito, pois as únicas criaturas que lá habitavam eram as feras e uma infinidade de vermes e répteis venenosos. A elas se juntavam agora — desalojados de toda a parte pelos santos e penitentes — os demônios superiores e os diabos inferiores, assim como todos os seres pagãos e heréticos. Entre estes havia os sátiros ou faunos, chamados demônios do campo ou silvanos, os unicornes e centauros, os druidas e muitos outros espíritos; pois Belzebu exercia poder sobre todos eles e era tido como certo que, tanto pela sua origem pagã como pela conformação meio animal, eram desprezados por Deus e não podiam jamais aspirar à sua glória.

Entre esses homens-animais e ídolos pagãos derrubados nem todos eram maus; alguns só a contragosto se submetiam a Belzebu. Outros, porém, obedeciam-lhe com prazer e, em sua raiva, comportavam-se de maneira muito diabólica, visto não saberem por que motivo haviam sido expulsos de sua anterior existência, tranquila e inofensiva, e empurrados para o seio das criaturas desprezadas, perseguidas e maldosas. Segundo as crônicas da vida do saudoso eremita Paulo e as notícias de Atanásio sobre o santo frade Antônio, parece que os centauros eram seres hostis e malignos mas os sátiros ou demônios do campo eram, até certo ponto, pacíficos e mansos. Pelo menos, está escrito que o bem-aventurado Antônio, durante sua prodigiosa viagem pelo deserto ao encontro de Paulo, deparou-se com um centauro e um demônio do campo; enquanto o primeiro o tratou com rudeza e malícia, o sátiro, pelo contrário, conversou amenamente com o santo e demonstrou até desejo de receber a sua bênção. É desse sátiro ou demônio do campo que trata esta lenda.

O demônio do campo, com outros da sua estirpe, acompanhara os demais espíritos maus até o deserto inóspito e nele vagueava. Como vivera outrora numa frondosa e bela floresta e suas relações se limitavam unicamente aos seus semelhantes e às graciosas dríades, ou ninfas dos bosques, o pobre sátiro ressentia-se profundamente desse exílio para lugar tão selvático e da convivência com os espíritos e demônios malignos.

Durante o dia, gostava de afastar-se dos outros, errando solitário entre os rochedos e dunas de areia, sonhando com os lugares verdejantes e férteis de sua vida anterior, despreocupada, alegre, e cochilando umas horas na sombra rala das palmeiras esparsas. De noite, costumava sentar-se em um vale sombrio, rochoso e agreste, de onde brotava um riacho, e aí ficava tocando em sua flauta de junco nostálgicas e dolentes canções, a que sempre acrescentava uma nova. Quando escutavam, ao longe, essas melodias plangentes, os faunos relembravam, pesarosos, os melhores tempos passados.

Alguns deles soltavam doloridos suspiros ou entregavam-se a penosas lamentações. Outros, que não sabiam mais do que isso, entregavam-se a danças turbulentas, soltando gritos e silvos estridentes, para esquecer mais depressa o que haviam perdido. Os demônios superiores, porém, debochavam do solitário e pequeno sátiro, arremedavam-no, troçavam dele e ridicularizavam-no de inúmeras maneiras.

Pouco a pouco, depois de ter largamente meditado sobre o motivo de sua tristeza, ter chorado os antigos e perdidos prazeres, e lamentado a desprezível existência atual no deserto, o sátiro passou a discutir tais assuntos com seus irmãos. E logo se formou entre os demônios do campo mais sérios uma pequena comunidade, empenhada em investigar as causas de sua degradação e a possibilidade de refletir sobre retorno ao antigo e paradisíaco estado de espírito.

Todos eles tinham consciência de se encontrarem submetidos ao poder supremo de Belzebu e suas hostes, pois o mundo era regido agora por um novo Deus. Desse novo Deus pouco sabiam. Mas da conduta e modo de ser do Príncipe das Trevas sabiam muito. E do que sabiam não gostavam. Era poderoso, sem dúvida, e entendia muito de feitiçarias, tendo com elas dominado a todos, e suas leis eram duras e terríveis.

Mas, agora, davam-se conta de que o todo-poderoso Belzebu também fora exilado e obrigado a refugiar-se no deserto. Por conseguinte, o novo Deus teria certamente de ser ainda mais poderoso do que ele. Assim, os demônios do campo acabaram por chegar à conclusão de que seria talvez melhor para eles manterem-se-sob as leis de Deus, em vez de obedecerem às de Lúcifer. E por isso estavam ansiosos por conhecer melhor esse Deus, resolvendo procurar todas as informações possíveis sobre Ele. Então, se gostassem do que lhes fosse dito, tratariam de se aproximar d'Ele.

Assim vivia essa pequena comunidade desalentada de demônios do campo, sob a direção daquele que era exímio tocador de flauta, numa tênue esperança de que seus tristes dias pudessem ter fim. Ignoravam, porém, até que ponto era grande o poder de Lúcifer sobre eles. Mas não tardariam em sabê-lo.

Na verdade, foi por essa mesma época que os piedosos eremitas devotos deram os primeiros passos no deserto tebano, até então jamais pisado por seres humanos. Só há pouco anos Frei Paulo, e mais ninguém, ousara penetrar nessas paragens. Dele conta a santa lenda que, durante esses anos, levou uma vida de penitente, vivendo numa estreita caverna, alimentando-se unicamente da água de uma fonte, dos frutos de uma palmeira e de um pedaço de pão que lhe era trazido diariamente das alturas por um corvo.

Foi justamente desse Paulo de Tebas que um dia o demônio do campo tomou conhecimento e como uma certa inclinação, embora tímida, o atraia para as pessoas, procurava observar e escutar frequentemente o santo eremita. Achava maravilhoso o modo de vida desse homem; pois Paulo vivia na mais santa pobreza e em completa solidão. Não comia nem bebia mais do que um pássaro, cobria o corpo de folhas de palma, dormia sem esteira, numa estreita gruta, e suportava o calor, as geadas, os ventos e a umidade sem um queixume, sujeitando-se ainda a penitências extraordinárias, como ficar rezando de joelhos, horas a fio, numa rocha áspera, ou jejuar dias inteiros, evitando até sua tão parca refeição.

Tudo isso parecia sumamente estranho ao curioso demônio do campo que, no começo, considerou aquele homem um tanto louco. Mas logo notaria que, afinal, Paulo levava realmente uma vida triste e dura, mas sua voz, quando ele orava, tinha um timbre singularmente suave e fervoroso, como se fosse o eco de uma grande felicidade interior; no rosto descarnado pairava uma expressão de tranquila bem-aventurança e sobre a cabeça grisalha havia como que uma auréola luminosa.

O demônio do campo ficou espiando o penitente durante dias e chegou à conclusão de que esse anacoreta era um homem feliz e recebia fluidos de uma felicidade extraterrena que brotavam de ignotas fontes. E como o ouvia louvar e evocar tantas vezes o nome de Deus, concluiu que Paulo era, certamente, um servo e amigo desse novo Deus e que seria bom pertencer-Lhe.

Assim foi que, um dia, se armou de coragem, saiu de trás de uma rocha e acercou-se do encanecido eremita. Este desviando-se dele exclamou:

— Para trás! Para trás, Satanás! — Mas, ignorando as imprecações, o demônio do campo saudou-o humildemente e, em voz baixa, disse:

— Vim porque gosto de ti, eremita. Se porventura és um servo de Deus, oh, fala-me então d'Ele, conta-me algo do teu Deus e ensina-me o que é preciso fazer para que também eu possa servi-Lo.

Ouvindo essas palavras, Paulo hesitou e, movido pela sua natureza benévola, explicou:

— Deus é amor, fica sabendo. E bem-aventurado é aquele que O serve e por Ele sacrifica sua vida. Tu me pareces um espirito impuro, por isso não posso dar-te a bênção de Deus. Para trás, demônio!

O demônio do campo afastou-se muito triste, carregando consigo as palavras do crente. Teria dado com prazer sua vida para assemelhar-se àquele servo de Deus. As palavras Amor e Bem-Aventurança, apesar de seu significado um tanto obscuro, soavam-lhe promissoras e deliciavam seu coração, despertando nele uma nostalgia violenta, não menos doce e forte do que a saudade dos perdidos tempos passados. Após alguns dias de silenciosa inquietação, lembrou-se novamente de seus amigos que, como ele, estavam cansados de ser diabos, e contou-lhes tudo. Discutiram muito sobre o caso, suspiraram e não sabiam ao certo o que fazer.

Aconteceu então que nessa mesma época surgiu um outro penitente. Foi instalar-se num lugar ermo e uma multidão de vermes asquerosos fugia e contorcia-se diante de seus pés. Era o santo Antônio. Lúcifer, porém, irritado com a presença do intruso e temendo por sua soberania nesse deserto, logo se empenhou em usar todo seu poder para afastá-lo daqueles lugares. É do conhecimento geral os mil e um ardis a que Lúcifer recorreu para desencaminhar, assustar e afugentar o santo homem. Surgiu-lhe como uma bela e sedutora mulher, como um irmão e confrade; ofereceu-lhe deliciosas iguarias e colocou prata e ouro em seu caminho.

Como tudo fosse em vão, passou a apavorá-lo. Espancava o santo até jorrar sangue, aparecia-lhe nas mais pavorosas formas, atravessava sua caverna com hostes de diabos, espectros, duendes, sátiros e centauros, ou com verdadeiros exércitos de lobos ferozes, panteras, leões e hienas. Também o melancólico demônio do campo tinha de participar nessas cavalgadas tenebrosas mas, quando se acercava do mártir, fazia apenas gestos suaves e compadecidos. Se os seus irmãos zombavam dele, puxando-lhe a barba ou o grosseiro hábito, o demônio do campo pousava o olhar envergonhado no santo e pedia-lhe um silencioso perdão. Mas Antônio não entendia e tomava as atitudes do infeliz sátiro como chocarrice de um espírito maligno. Tendo assim resistido a todas as tentações diabólicas, pôde então viver muitos anos de solitária vida santa.

Quando chegou aos noventa anos, Deus achou por bem dar-lhe a saber que nesse mesmo deserto vivia um ainda mais velho e digno penitente, e Antônio imediatamente se decidiu a visitá-lo. Sem conhecer o caminho certo, peregrinou ao acaso pelos ermos; mas o melancólico demônio do campo seguia-o furtivamente e ajudava-o, de modo discreto, a encontrar o rumo exato. Por fim, com a sua habitual timidez, apareceu diante de Antônio. Saudou-o com humildade e disse-lhe que ele e seus irmãos ansiavam por conhecer Deus, rogando-lhe que os abençoasse. Mas como Antônio desconfiasse dele, o sátiro afastou-se, entre lamentações compungidas, como também está escrito em todas as antigas crônicas das Vitae Pat rum.

Prosseguindo Antônio em seu caminho, encontrou Paulo, lançou-se-lhe aos pés e foi seu hóspede. Paulo morreu aos cento e treze anos e Antônio foi testemunha de que surgiram dois leões ferozes, rugindo lamentosamente, e com as garras cavaram a sepultura para o santo. Depois disso abandonou a região e regressou ao seu lugar anterior.

O demônio do campo presenciara todos esses acontecimentos à distância. Sentia profundamente no inocente e magoado coração que os dois santos padres o tivessem rechaçado sem consolo. Como decidira ser preferível morrer a continuar escravo da maldade e como observara, e gravara bem o modo de vida e os gestos do saudoso Paulo, penetrou na mísera caverna onde ele vivera, vestiu seus trajes de penitente, feitos de folhas de palmeira, e passou a alimentar-se de água e tâmaras, ficava horas e horas ajoelhado numa postura incômoda, cheio de dores, sobre duras pedras, e procurava imitar em tudo o eremita defunto.

Apesar de tudo, seu coração entristecia cada vez mais. Era evidente que Deus não o aceitava como a Paulo, pois o corvo que vinha diariamente visitar o ancião nunca mais aparecera. Além disso, bem vira, quando foi visitar Frei Antônio, que o mesmo corvo lhe levara o dobro do pão. Na caverna havia um fólio com os Evangelhos mas o demônio do campo não sabia ler. Em certos momentos, quando ficava ajoelhado até à exaustão e clamava fervorosamente por Deus, sentia perpassar em seu íntimo como que uma suave e furtiva sombra, um pressentimento de Sua presença, mas não conseguia chegar ao pleno reconhecimento.

Lembrou-se então das palavras de Paulo, que para a salvação é preciso morrer por Deus, e decidiu morrer. Nunca vira um seu semelhante morrer e a ideia de morte parecia-lhe algo terrível e amargo. Mas sua intenção era firme. Deixou de comer e beber, e passava dia e noite de joelhos, repetindo incansavelmente o nome de Deus.

E assim morreu. Morreu ajoelhado, tal como vira Frei Paulo. Momentos antes da morte, viu com espanto o corvo aproximar-se com um pão igual ao que costumava levar ao santo e apoderou-se dele um profundo júbilo, agora certo de que Deus aceitara o seu sacrifício e o elegera para a Redenção.

Pouco tempo depois de sua morte apareceram novos peregrinos, no intuito de se instalarem naquela região do deserto. Quando avistaram o vulto imóvel de joelhos, em traje de penitência e amparado pela rocha, acercaram-se e percebendo que estava morto, decidiram enterrá-lo cristãmente. Cavaram uma pequena sepultura, pois o morto era de pouca estatura, e entoaram preces.

Mas ao levantar o cadáver para sepultá-lo, os peregrinos observaram que, por baixo dos cabelos desgrenhados, havia dois pequenos chifres; e sob as folhas de palmeira viram ocultos dois pés de cabra. Então gritaram apavorados, crentes de que tudo não passava de uma zombaria do Príncipe do Mal. Largaram o morto e fugiram, entoando em altas vozes suas orações.

Fonte:
Herman Hesse. O Livro das Fábulas

Monteiro Lobato (A Chave do Tamanho) III – Por causa do pinto sura

III
Por causa do pinto sura

As viagens com o superpó eram instantâneas. Um fechar e abrir de olhos. Emília fechou os olhos lá no pedestal e abriu-os na porteira do sítio. Que colossal porteira, Santo Deus! Duzentas vezes a altura dela. Lá longe viu um enormíssimo animal pastando: a vaca Mocha. E mais adiante, uma colossal montanha dormindo: Quindim. E a casa? Oh, a casa, no fim do extensíssimo terreiro, tinha para ela a mesma altura do Pão de Açúcar para um homem antigo. O telhado parecia esbarrar nas nuvens.

Como atravessar a pé os cem metros do terreiro?

Cem metros antigamente pouco significavam para a Emília "grande", mas agora, ah, exigiam 33.353 passos, visto como o seu passo se reduzira a 3 milímetros.

Estava pensando nisso, quando um horrendo monstro surgiu no terreiro: o pinto sura. "Parece incrível!" — murmurou ela. "Aquele pinto que não passava de simples pinto como todos os pintos do mundo, desses que a gente chama com um "Quit! Quit!" ou toca com um "Chispa!" virou um verdadeiro Pássaro Roca." 

Emília calculou que o pinto devia ter umas vinte vezes a sua altura, isto é, o tamanho dum avestruz de 70 metros para um homem como o Coronel Teodorico.

— Será possível que um monstro desse vulto me enxergue? — disse ela sem ânimo de atravessar o terreiro.

Mas o pinto sura era um danado para enxergar. Tinha olhos de microscópio. Assim que Emília, pé ante pé, pôs-se a andar, ele a viu e veio de bico aberto para devorá-la. Emília mal teve tempo de recorrer ao superpó que havia trazido. Precipitadamente levou ao nariz os dois grãozinhos e aspirou-os. Fiunn...

Despertou muito longe dali, sobre uma árvore enorme, a cuja galharada se agarrou. As folhas eram azuis como o céu e formavam morros redondos. "Folhas? Não. Isto nunca foi folha. Isto é flor. E os tais morros não passam de cachos de flores. Mas que árvore dá flores azuis assim?" 

Emília lembrou-se logo das hortênsias, e com algum esforço viu que realmente havia caído em cima dum enormíssimo cacho de hortênsias. Era-lhe difícil manter-se ali, porque as criaturas humanas, dotadas de só dois pés, têm necessidade de superfícies planas para se equilibrarem, e naquele cacho de hortênsias só uma ou outra pétala estava em posição horizontal.

Emília tratou de descer. "Para uma criatura-gente, não há como a terra plana", pensou. Antes de descer, porém, correu os olhos em redor.

— O que me pareceu uma floresta, não passa dum jardim. Um imenso jardim, o maior jardim do mundo, com roseiras da altura de árvores e aquele pé de jasmim com flores do tamanho de Vitórias-régias, e na beirada dos canteiros uma grama que lembra os bananais do Cubatão. Como tudo ficou imenso, meu Deus!

E lá adiante? Emília firmou os olhos. Um verdor elevava-se a grande altura e em cima espalhava-se sobre caibros horizontais. Mas rapidamente Emília ia aprendendo a "interpretar" as imensas coisas vistas.

— Sim, estou entendendo. Aquele verdor é a trepadeira duma varanda, e o que me parece caibros são os arames em que ela se apoia. Varanda? Então aquela imensidade branca que me parece erguer-se até às nuvens é a fachada dum palacete.

Emília firmou a vista. Quadrados enormes lá em cima: as janelas! A platibanda ficava tão alta que ela mal podia vê-la.

— Um palacete, sim, muito maior que a casa de Dona Benta. Vai ser difícil acostumar-me ao novo tamanho das coisas; para as formiguinhas, no entanto, esse tamanhão das coisas é o natural, pois foi como sempre elas o tiveram. As formigas ruivas nem podem compreender o que é uma casa. Hão de ver as casas como partes do mundo, ou coisas que sempre foram, como os morros, as pedreiras, os rios, as árvores; e por isso passeiam sem medo pelas casas, sobem e descem pelas paredes, chegam até a fazer seus buraquinhos rente às calçadas. Quando veem sair lá de dentro uma pessoa, com certeza nem compreendem o que é uma pessoa; acham que é apenas uma imensidade móvel, corno os rios ou o mar.

Para as formigas o mundo deve estar dividido em imensidades paradas e imensidades móveis. Uma casa ou um morro é uma imensidade parada; de dentro das casas saem imensidades móveis: gente, cachorro, gatos. E nos campos há imensidades com chifres, que nós chamamos vacas ou bois. Mas apesar de ter eu agora o tamanho duma saúva, possuo a mesma inteligência de antes — e sei. Sei que estas imensidades que estou vendo não passam de verdadeiras pulgas perto de outras coisas ainda maiores, como as montanhas; e as montanhas não passam de pulgas perto de outra coisa maior, como a Terra; e a Terra é uma pulga perto do Sol; e o Sol é um espirro de pulga perto do Infinito.

Como sei coisas, meu Deus!

Emília pôs-se a filosofar, a pensar nos estranhos bichos que andavam em redor dela, uns de asas, outros sem asas, uns pretos, outros verdes, outros
moles — mas todos cheios de pernas.

— Como há pernas neste mundo que antigamente eu chamava "mundo dos bichinhos" e que para mim agora virou o meu mundo! Pois também virei bichinho. E vejo colegas de todos os tamanhos, uns menores que eu, outros maiores. Aquele mede-palmo que ali vem vindo, por exemplo. Para mim é um verdadeiro monstro, pois tem de comprimento cinco vezes a minha altura — equivalente a uma sucuri de 8 metros para um homem antigo. E no entanto é a mesma lagartinha que outrora eu punha na palma da mão.

continua…

Fonte:
Monteiro Lobato. A Chave do Tamanho.

domingo, 10 de dezembro de 2017

Rita Mourão (Poemas Escolhidos)


AMOR

O gato chegou de esguelha, moroso, amorado.
Chegou, gateou, miou um miado de desejo.
Derramou um olhar de sultão, denunciando volúpia.
Palmeou o terreno, miou mais afinado.
Saracoteou exibindo felinidade.
Agradou, submeteu-se.
A lua romântica prateou o gato.
O miado se alongou, alcançou a lua e se fez orgasmo.

REGRESSO

Na bica de água fresca me debruço.
Bebo o tempo e a espera, me farto de renovo.
Foi então que colhi gotas d’água e com elas 
quis me fazer represa, eternizar o momento.
Mas elas não se prenderam em meu corpo
gasto pelos climas de outras paisagens.
Meu chão se empedrou, ficou cinzento
e minha alma sofre de um matagal sufocante.
Só na poesia me desbravo e me despedro.

TERRA MINHA 

Este meu jeito de engaiolar lembranças
é para guardar um punhado da Terra em que nasci.
É a maneira de reduzir meu isolamento rodeado de distâncias.
Todas as manhãs meus ouvidos varam os confins do passado 
e ouvem um passaredo barulhando dentro de mim.
Aí, eu me encanto com o encantamento que tem gosto de barulhar.
Coisas de alumbramentos, renovo de poeta para encurtar lonjuras. 
Lá o amanhecer põe glorias nos horizontes
que do lado de cá, só enxergo no pensar.
Ali também ficou meu despropósito de corça
correndo lampeira, relvada da de capim gordura,
desapegada de medos e futuros.
Os medos acordaram e até botaram trancas em meus sonhos.
Perdi o gosto de gostar.
Gostar é correr livre, ser rio descompromissado
derramando levezas sobre o corpo da Terra amante.
Isso já não sou.  Hoje quem me relva é a saudade.
Saudade de você Terra minha, berço de renomados estadistas,
JK, Tancredo e tantos outros que não tiveram medo de se exercer.
Oh, Minas Gerais, quem nasce em suas paisagens assina contrato de fidelidade,
carrega no peito seus aconselhamentos  e a bravura de seus heróis.
Boa Terra, sou cria do seu sertão.
O seu chão me fez árvore, me enraizou e os pássaros em mim gorjeiam
Mas a distância me corrói e me soma para menos.

REFLEXÃO

Neste Natal, Senhor meu Deus,
quero me despir de mim para me revestir da tua rica presença.
Quero ostentar em todos os dedos das minhas mãos
o brilho da fraternidade, o desapego do egoísmo e as chaves da sabedoria
para que meu coração  esteja aberto às tuas palavras.
Sei que nada sou, nada posso sem a graça da tua luz que me transmuda e me transcende.
Somente Tu, Senhor, conheces as minhas fragilidades e o prazo de validade    
dos dias do meu tempo. 
Sei que o futuro a Ti pertence e que o presente é uma dádiva tua.
Dou-Te glórias por teres me permitido chegar até aqui e reconheceres a minha fraqueza.
Perdoa a minha insensatez, perdoa-me pela fé  não professada
e pelo amor   que neguei ao irmão abandonado, sem ilusão e sem esperança.
Ensina-me a repartir os dons que me destes e a deixar por onde passo
o sinal da tua presença.
Despoja-meda vaidade, da ganância e faça do meu coração uma nova manjedoura sem  ouro e sem prata,
mas rica  em  atos e palavras  que  traduzam  a minha fé.
Que este Natal, chegue frondoso de esperança e recheado do amor
que abastece os corações vazios  de Ti.
 Senhor meu Deus, fica comigo, a noite já desce, o mar se avoluma.
Eu preciso da tua presença para o êxito da minha travessia. 
Feliz e Santo Natal a todos.

Fonte: A Autora

Rita Mourão (Resumo de Vida)

Rita teve uma infância feliz. Cresceu entre árvores frutíferas e pássaros.

Nesse convívio com a natureza teve seus primeiros contatos com a Poesia.

Aos dez anos foi para Piumhi estudar no Grupo Escolar Dr. Avelino de Queiroz onde terminou  o quarto ano do Ensino fundamental com destaque e diploma de honra ao mérito. 

Seu desejo era continuar os estudos, queria ser professora, mas o pai preferiu que voltasse à fazenda. Casou-se aos 19 anos com Aurélio Mourão, teve 7 filhos e aos 35 anos mudou-se com a família para Ribeirão Preto. Aos 56 anos voltou a frenquentar o Centro Supletivo Cecília Dutra Caran e logo após o Magistério na escola Estadual Otoniel Mota. Frequentou por vários anos o Grupo Flanboyan, dirigido pela escritora e professora Ely Vieitez e, nesse grupo, desenvolveu suas aptidões literárias.

Enfim, aos 60 anos realizou o tão esperado sonho. Ingressava no Colégio Metodista de Ribeirão Preto como professora de Produção e Interpretação de textos com alunos dos quartos e quintos anos onde deixou editadas 14 Antologias com trabalhos dessas crianças.

Rita é poeta, cronista e contista premiada em Ribeirão Preto e região. Possui 4 livros de poemas editados, sendo que o último foi o vencedor em 2010, do Prêmio “Literatura nas Grandes Empresas.” Em maio de 2014 lançou seu quinto livro, “E A PALAVRA HABITOU EM MIM.

É membro da Academia Ribeirãopretana de Letras, da União Brasileira de Escritores, da Academia da Educação e da União Brasileira de Trovadores.

Essa é a menina, a jovem e a mulher, que nunca deixaram de lutar por seus ideais. 

Viver é uma ordem, mas vencer, é privilégio de quem jamais desiste de um sonho.

Fonte: A Autora

Monteiro Lobato (A Chave do Tamanho) II – A Chave do Tamanho

II

A Chave do Tamanho


Fiunnn!!!

Quando Emília abriu os olhos e foi lentamente voltando da tonteira, deu consigo num lugar nebuloso, assim com ar de madrugada. Não enxergou árvores, nem montanhas nem coisa nenhuma — só havia lá longe um misterioso casarão.

— Isto deve ser o Fim do Mundo, e aquela casa só pode ser a Casa das Chaves. Que pó certeiro o do Visconde!

Ergueu-se, ainda tonta, e aproximou-se do casarão. Certinho! Um grande letreiro na fachada dizia simplesmente isto: "CASA DAS CHAVES."

Emília esteve algum tempo de nariz para o ar, com os olhos naquelas estranhas letras de luz. Viu uma porta aberta. Enchendo-se de coragem, entrou. Não havia coisas lã dentro, objeto nenhum, nem máquinas. Só aquele mesmo nevoeiro de lá fora mas numa espécie de parede distinguiu um correr de chaves como as da eletricidade, todas erguidas para cima.

— Hão de ser as chaves que regulam e graduam todas as coisas do mundo — pensou Emília. — Uma delas, portanto, é a chave que abre e fecha as guerras Mas qual?

Emília segurou o queixo, a refletir Pensou com toda a força. Não havia diferença entre as chaves.Todas iguaizinhas. Nada de letreiros ou números. Como saber qual a chave da guerra?

— A única solução é aplicar o método experimental que o Visconde usa em seu laboratório. É ir mexendo nas chaves, uma a uma, até dar com a da guerra.

Mas as chaves ficavam numa fileira a oito palmos do chão, fora, pois, do alcance duma criaturinha
de apenas dois palmos de altura. Como alcançar as chaves?

Emília correu os olhos em redor. Não viu nenhuma escada nem cadeira, nem caixão em que pudesse trepar. Não havia sequer uma vara. O remédio seria recorrer novamente ao superpó. "Se eu cheirar a metade do menor dos grãozinhos trazidos nesta caixa, subo até lá e agarro-me a qualquer das chaves."

E assim fez. Escolheu o grãozinho de pó menor de todos, partiu-o ao meio e aspirou metade. Deu certo. Bastou o cheiro daquela isca de superpó para erguê-la até às chaves, permitindo-lhe pendurar-se numa. Nem precisou fazer força. Bastou o seu peso para que a chave descesse quase até o fim.

Mas o que aconteceu foi a coisa mais imprevista do mundo. Tudo se transformou diante de seus olhos, e um pano enorme, como o toldo dum circo de cavalinhos, desabou sobre ela. Emília sentiu-se rodeada de pano; o chão era de pano; por cima só havia pano; dos lados, pano, pano e mais pano. E com o peso de tanto pano ela nem podia conservar-se de pé. Ficou deitadinha, como achatada. Mas era preciso sair dali ou pelo menos fazer esforços para sair, porque já estava sentindo falta de ar. E começou a engatinhar debaixo da panaria, numa cega tentativa de fuga. As dobras eram muitas, de modo que a cada momento, tinha de fazer rodeios para poder avançar. E foi engatinhando, flanqueando as dobras atrapalhadoras; às vezes até ficava de pé, quando uma dobra maior lhe dava espaço. Emília lembrou-se do Labirinto de Creta, onde morava o Minotauro. É escuro ali dentro. Nem ao menos aquela penumbra de madrugada de lá fora. Emília teve a impressão de haver passado um século naquele engatinhamento labiríntico. Por fim divisou em certa direção uma claridade. "Deve ser ali a bainha ou fim deste maldito pano", pensou ela, e para lá se arrastou. Era de fato a bainha — e Emília já quase sem fôlego, lavada em suor, saiu do labirinto e caiu exausta no chão, com um Uf!

Ficou algum tempo deitada de costas, os braços estendidos, sem pensar em coisa nenhuma. Primeiro descansar; depois o resto. Ergueu os olhos para as chaves da parede. Não viu na parede chave nenhuma. "Que história é esta? Será que as chaves se evaporaram?" Firmando a vista, verificou que não. As chaves lá estavam, mas em ponto muitíssimo mais alto. A parede crescera tremendamente. Parecia não ter fim. Tudo aumentara dum modo prodigioso. E no chão viu uma coisa nova, que não existia antes; um pedestal atapetado de papel amarelo.

Emília achava-se deitada justamente sobre esse pedestal. Depois, olhando para o seu corpinho, verificou que estava nua.

— Que história é esta? Eu, nua que nem minhoca, em cima deste pedestal amarelo cheio de riscos pretos, ao lado duma montanha de pano —e as chaves lá em cima — e tudo enormíssimo... Será que estou sonhando?

Pôs-se a pensar com toda a força. Examinou o tapete do pedestal.

Percebeu que os riscos eram letras e teve de ficar de pé para lê-las uma por uma. A primeira era um F; a segunda, um O; a terceira um S. Chegando à última, viu que formava a palavra FÓSFOROS. Em seguida vinha um D e um E, formando a palavra DE. E as últimas letras formavam a palavra SEGURANÇA. Tudo reunido dava a expressão FÓSFOROS DE SEGURANÇA.

— Será possível? — exclamou Emília consigo mesma. — Será que estou em cima da maior caixa de fósforos que jamais houve no mundo? Mas se é assim, então cada pau de fósforo deve ser uma verdadeira vigota de pinho — e como a caixa estivesse aberta, espiou. Não viu lá dentro vigota nenhuma, sim uma espécie de areia grossa, da cor exata do superpó do Visconde.

Nesse momento um raio de luz iluminou-lhe o cérebro.

— Hum! Já sei. Isto é a caixa de fósforos que eu trouxe e está do tamanho que sempre foi. Eu é que diminuí. Fiquei pequeníssima; e, como estou pequeníssima, todas as coisas me parecem tremendamente grandes.

Aconteceu-me o que às vezes acontecia a Alice no País das Maravilhas. Ora ficava enorme a ponto de não caber em casas, ora ficava do tamanho dum mosquito. Eu fiquei pequenininha. Por quê?

E pôs-se a pensar mais forte ainda.

— Só pode ser por uma coisa: por causa da descida da chave.

Logo, aquela chave é a que regula o meu tamanho. Regula só o meu tamanho, ou regula o tamanho de todas as criaturas vivas? Regula o tamanho de todas as criaturas vivas, ou só o das criaturas humanas?

Quantos problemas, meu Deus!

Pensou, pensou.

— Se todas as criaturas ficaram pequeninas como eu fiquei, então o mundo inteiro deve estar na maior atrapalhação e com as cabeças tão transtornadas quanto a minha. Mas a guerra acabou! Ah, isso acabou! Pequeninos como eu, os homens não podem mais matar-se uns aos outros, nem lidar com aquelas terríveis armas de aço. O mais que poderão fazer é cutucar-se com alfinetes ou espinhos. Já é uma grande coisa...

Pensou, pensou, pensou.

— Sim, eu mexi na Chave do Tamanho e todas as criaturas vivas ficaram pequenas porque seria absurdo haver uma chave só para minha pessoa. Se houvesse uma chave para cada pessoa, nesta sala deviam existir três bilhões e meio de chaves, porque a população do mundo é de três bilhões e meio de pessoas. Logo, a mesma chave serve para  todas as pessoas. Logo, toda a humanidade está "reduzida" — e impedida de fazer guerra. Uf! Acabei com a guerra! Viva! Viva!... Pensou, pensou, pensou.

— A prova de que essa chave só regula o tamanho das criaturas vivas, está aqui nesta caixa de fósforos. Se esta caixa de fósforos também tivesse diminuído, estaria proporcional ao meu corpo, e não imensa como está.

A situação era tão nova que as suas velhas ideias não serviam mais. Emília compreendeu um ponto que Dona Benta havia explicado, isto é, que nossas ideias são filhas de nossa experiência. Ora, a mudança do tamanho da humanidade vinha tornar as ideias tão inúteis como um tostão furado. A ideia duma caixa de fósforos, por exemplo, era a ideia duma coisinha que os homens carregavam no bolso. Mas com as criaturas diminuídas a ponto duma caixa de fósforos ficar do tamanho dum pedestal de estátua, a "ideia-de-caixa-de-fósforos" já não vale coisa nenhuma. A "ideia-de-leão" era a dum terrível e perigosíssimo animal, comedor de gente; e a "ideia-de-pinto" era a dum bichinho inofensivo. Agora é o contrário. O perigoso é o pinto.

Emília sentiu um friozinho no coração. Começou a desconfiar que havia feito uma coisa tremenda, a coisa mais tremenda jamais acontecida no mundo.

Pensou, pensou, pensou. Depois resolveu calcular que tamanho teria.

— Posso calcular o meu tamanho por comparação com as letras da palavra FÓSFOROS. Essas letras tinham um terço de centímetro no tempo em que eu tinha 40. Ora, se eu tinha 40 centímetros, era 120 vezes maior que um terço de centímetro. E agora? Qual o meu tamanho em relação a essas letras?

Para fazer a medição, Emília deitou-se sobre o F, e viu que aquele F tinha um terço da sua altura. Logo, ela estava reduzida a justamente um centímetro de altura.

— Que coisa — exclamou. Reduzida a um centímetro apenas, eu que tinha 40! Diminui 40 vezes. Nesse caso, Pedrinho, que tinha l,40m. — e contava tanta prosa — deve estar reduzido a 3 centímetros e meio. E o coronel Teodorico, que tanto se gabava de ter l,80m está reduzido a 4 centímetros e meio — do tamanho dum simples gafanhotinho...

Emília pensava, pensava.

— Que fazer agora? Tenho várias soluções a escolher. Uma, é largar tudo como está. Outra, é levantar novamente a chave e deixar as coisas como eram. Isto me parece o melhor, porque se eu voltar para o sítio deste tamanho é provável que nem possa atravessar o terreiro. O pinto sura não sai de lá. Devora-me, como se eu fosse uma formiga. Olhou para cima. A chave baixada parecia muito no alto — quarenta vezes mais alta que antes. Mas isso não tinha importância para quem ainda dispunha de tanto superpó. E, enfiando a mão dentro da abertura da caixa, Emília apanhou um grão e aspirou-o. O pó levou-a até à altura da chave, mas a sua forcinha, diminuída quarenta vezes, já não dava para mais nada.

Nem jeito de segurar na chave teve, a qual lhe pareceu como enorme maçaneta, de diâmetro igual à altura do seu corpo — o mesmo que a tora de um grande jequitibá para um homem dos antigos.

Dos antigos, sim, porque, se todos os homens estavam agora tão reduzidos de tamanho quanto ela, quem quisesse referir-se aos homens da véspera tinha de dizer "os homens antigos".

Emília sentou-se em cima daquela enorme tora de jequitibá, sem saber como descer.

— E agora?

Pensou, pensou, pensou.

— Vou atirar-me — resolveu. — Meu peso deve estar igual ao peso duma formiga saúva e portanto, se me atirar, devo cair com a leveza de um cisquinho — além de que há lá embaixo aquela montanha de pano.

E assim fez. Atirou-se em cima da montanha de pano.

E foi então que descobriu uma grande coisa: o pano daquela montanha era uma fazenda de enormes ramos de rosas vermelhas — iguais aos ramos de rosinhas do seu vestido evaporado — e compreendeu tudo. A enorme montanha de pano não era mais que o seu próprio vestido largado no chão. Quando baixou a chave e sofreu o instantâneo apequenamento, achou-se no meio do vestido o qual, sem o apoio do corpo que o sustinha, desabou, dando à minúscula dona lá dentro aquela impressão de circo que vinha abaixo.

— Que coisa! -- exclamou Emília. — Aquele imenso pano que formou o labirinto em redor de mim era o meu vestido. Felizmente a caixa do superpó estava na minha mão e não no bolso. Se tivesse no bolso, como poderia eu tirá-la agora do seio desta enorme montanha? Que coisa formidável!...

Emília pensou por mais uns instantes. Tinha de abandonar ali todo aquele precioso pó, apesar de ser o único que havia lá no sítio. Pois como levar de volta a caixa-pedestal? Se estivesse vestida, em seus bolsos ainda caberiam algumas pitadinhas. Mas daquele modo, nua que nem minhoca, o mais que poderia levar era o que coubesse em suas mãos — um grãozinho apenas em cada uma.

Mas antes isso do que nada — e Emília tomou um grão de pó em cada mão.

Depois aspirou um terceiro grãozinho e — fiun!... lá se foi pelos ares, de volta ao sítio de Dona
Benta.

continua…

Fonte:
Monteiro Lobato. A Chave do Tamanho.

sábado, 9 de dezembro de 2017

Monteiro Lobato (A Chave do Tamanho) I – Pôr de sol de trombeta

I


Pôr de sol de trombeta

O pôr do sol de hoje é de trombeta — disse Emília, com as mãos na cintura, de pezinha sobre o batente da porteira onde, naquela tarde, depois do passeio pela floresta, o pessoal de Dona Benta havia parado. Eles nunca perdiam ensejo de aproveitar os espetáculos da natureza. Nas chuvas fortes,

Narizinho ficava de nariz colado à janela, vendo chover. Se ventava, Pedrinho corria à varanda com o binóculo para espiar a dança das folhas secas — "quero ver se tem saci dentro". E o Visconde dava as explicações científicas de todas as coisas.

O pôr do sol daquele dia estava realmente lindo.

Era um pôr de sol de trombeta. Por quê? Porque Emília tinha inventado que em certos dias o Sol "tocava trombeta a fim de reunir todos os vermelhos e ouros do mundo para a festa do acaso".

Diante dum pôr de sol de trombeta ninguém tinha ânimo de falar, porque tudo quanto dissessem saía bobagem. Mas Dona Benta não se conteve.

— Que maravilhoso fenômeno é o pôr do sol! — disse ela.

Emília deu um pisco para o Visconde por causa daquele "fenômeno", e resolveu encrencar.

— Por que é que se diz "pôr do sol", Dona Benta? — perguntou com o seu célebre ar de anjo de inocência. — Que é que o Sol põe? Algum ovo?

Dona Benta percebeu que aquilo era uma pergunta-armadilha, das que forçavam certa resposta e preparavam o terreno para o famoso "então" da Emília.

— O Sol não põe nada, bobinha. O sol põe-se a si mesmo.

— Então ele é o ovo de si mesmo. Que graça!

Dona Benta teve a pachorra de explicar.

— Pôr do sol" é um modo de dizer. Você bem sabe que o Sol não se põe nunca; a Terra e os outros planetas é que se movem em redor dele. Mas a impressão nossa é de que o Sol se move em redor da Terra — e portanto nasce pela manhã e põe-se à tarde.

— Estou cansada de saber disso — declarou Emília. — A minha implicância é com o tal de pôr. "Pôr" sempre foi botar uma coisa em certo lugar. A galinha põe o ovo no ninho. O Visconde põe a cartola na cabeça.

Pedrinho põe o dedo no nariz.

— Mentira! — gritou Pedrinho desapontado, tirando depressa o dedo do nariz.

— Mas o Sol — continuou Emília — não põe cartola na cabeça, nem tem o péssimo costume de tirar ouro do nariz.

— É um modo de dizer, já expliquei — repetiu Dona Benta.

— Estou vendo que tudo que a gente grande diz são modos de dizer, continuou a pestinha. Isto é, são pequenas mentiras — e depois vivem dizendo às crianças que não mintam! Ah! Ah! Ah!... Os tais poetas, por exemplo. Que é que fazem senão mentir? Ontem à noite a senhora nos leu aquela poesia de Castro Alves que termina assim:

Andrada! Arranca esse pendão dos ares1
Colombo! Fecha a porta dos teus mares!

Tudo mentira. Como é que esse poeta manda o Andrada, que já morreu, arrancar uma bandeira dos ares, quando não há nenhuma bandeira nos ares, e ainda que houvesse, bandeira não é dente que se arranque? Bandeira desce-se do pau pela cordinha. E como é que esse poeta, um soldado raso, se atreve a dar ordens a Colombo, um almirante? E como é que manda Colombo fechar a "porta" dos "teus" mares, se o mar não tem porta e Colombo nunca teve mares — quem tem mares é a Terra?

Dona Benta suspirou.

— Modos de dizer, Emília. Sem esses modos de dizer, aos quais chamamos "imagens poéticas", Castro Alves não podia fazer versos.

— Mas é ou não é mentira?

Dona Benta ia abrindo a boca para a resposta, quando um homem a cavalo apontou na curva da estrada. Era o estafeta que, um dia sim, um dia não, portava ali para entregar a correspondência. Todos tiraram os olhos do pôr do sol para pô-los no estafeta.

O homem chegou. Deu boa tarde. Apeou com ar de eterno descadeirado e abriu o encardido saco de lona para tirar os jornais de Dona Benta.

— Há também uma carta para o Sr. Visconde de Sabugosa — disse ele entregando o pacote.

Emília atirou-se para cima da carta como um gato se atira a uma cabeça de sardinha, e arrancou-a das mãos de Dona Benta, como o poeta queria que o Andrada arrancasse a bandeira dos ares.

— Deve ser resposta a uma consulta que fiz sobre as vitaminas do pó de pirlimpimpim — explicou modestamente o Visconde, enquanto Emília se preparava para rasgar o envelope e Pedrinho suspirava pelo bodoque.

— Não abra, Emília! — gritou Narizinho. — Vovó já disse que o sigilo da correspondência é inviolável. Carta é uma coisa sagrada. Só o destinatário pode abri-la.

Emília fez um muxoxo de pouco caso e enfiou a carta no nariz do Visconde, dizendo:

— Coma, beba o seu sigilo.

Enquanto isso, Pedrinho desdobrava o jornal e lia os enormes títulos e subtítulos da guerra.

— Novo bombardeio de Londres, vovó. Centenas de aviões voaram sobre a cidade. Um colosso de bombas. Quarteirões inteiros destruídos. Inúmeros incêndios. Mortos à beca.

O rosto de Dona Benta sombreou. Sempre que punha o pensamento na guerra ficava tão triste que Narizinho corria a sentar-se em seu colo para animá-la.

— Não fique assim, vovó. A coisa foi em Londres, muito longe daqui.

— Não há tal, minha filha. A humanidade forma um corpo só. Cada país é um membro desse corpo, como cada dedo, cada unha, cada mão, cada braço ou perna faz parte do nosso corpo. Uma bomba que cai numa casa de Londres e mata uma vovó de lá, como eu, e fere uma netinha como você ou deixa aleijado um Pedrinho de lá, me dói tanto como se caísse aqui. É uma perversidade tão monstruosa, isso de bombardear inocentes, que tenho medo de não suportar por muito tempo o horror desta guerra. Vem-me vontade de morrer. Desde que a imensa desgraça começou não faço outra coisa senão pensar no sofrimento de tantos milhões de inocentes. Meu coração anda cheio da dor de todas as avós e mães distantes, que choram a matança de seus pobres filhos e netinhos.

Aquela tristeza de Dona Benta andava a anoitecer o Sítio do Picapau, outrora tão alegre e feliz. E foi justamente essa tristeza que levou Emília a planejar e realizar a mais tremenda aventura que ainda houve no mundo. Emília jurara consigo mesma que daria cabo da guerra e cumpriu o juramento — mas por um triz não acabou também com a humanidade inteira.

Na noite daquele dia, em sua caminha de paina, ela perdeu o sono. Quem entrasse em sua cabeça leria um pensamento assim: "Esta guerra já está durando demais, e se eu não fizer qualquer coisa os famosos bombardeios aéreos continuam, e vão passando de cidade em cidade, e acabam chegando até aqui. Alguém abriu a chave da guerra. É preciso que outro alguém a feche. Mas onde fica a chave da guerra? Pessoa nenhuma sabe. Mas se eu tornar uma pitada do superpó que o Visconde está fabricando, poderei voar até o fim do mundo e descobrir a Casa das Chaves. Porque há de haver uma Casa das Chaves, com chaves que regulem todas as coisas deste mundo, como as chaves da eletricidade no corredor regulam todas as lâmpadas duma casa."

O Visconde, de fato, andava estudando um misterioso superpó, capaz de maravilhas ainda maiores que o velho pó de pirlimpimpim; por isso passava as noites em claro e até recebia cartas científicas do estrangeiro.

Mas naquela noite Emília ouviu uns ronquinhos.

"Será o Visconde?" — disse ela — e foi ver. Era o Visconde, sim, que, depois de noites e noites passadas em claro, dormia um sono de Rabicó.

"Se ele está ferrado no sono a ponto de roncar" — pensou Emília, "é que já resolveu o problema do superpó. Ronco de sábio quer dizer cabeça fresca, invenção já inventada."

Pensando assim, Emília foi pé ante pé ao laboratorinho do Visconde e remexeu tudo até encontrar numa pequena caixa de fósforos uma substância parecida com cinza. Cheirou-a. Lembrava o cheiro do pó de pirlimpimpim. "Deve ser isto mesmo" — disse ela — e corajosamente tomou uma pitada.

continua…

Fonte:
Monteiro Lobato. A Chave do Tamanho.