sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

Monteiro Lobato (A Chave do Tamanho) VII – Juquinha conta a sua história

Depois que o gato se foi embora, talvez em procura de mais insetos gostosos como aqueles, Emília pôs-se a refletir muito a sério. Podia sair da toca, mas já estava sem liberdade de ação. De um momento para outro o destino a transformara em mãe de dois órfãos. Juquinha não era nada; até lhe serviria de companheiro — menino taludo, de dois centímetros de altura. Já a Candoca não passava duma criança de três anos e meio, completamente boba. Teria de andar pela mão de alguém. Que alguém? Juquinha ou ela, a "ama seca" Emília — que graça!

— Nunca me casei de medo de ter filhos, e afinal me vejo tutora de dois marmanjos — um maior que eu, mas ainda sem juízo, e outro do meu tamanho, mas que só sabe chorar. A encrenca vai ser grande...

Emília sempre teve fama de não possuir coração. Mentira. Tinha sim.

Está claro que não era nenhum coração de banana como o de tanta gente. Era um coraçãozinho sério, que "pensava que nem uma cabeça". Podendo deixar ali as duas crianças, já que a situação do mundo era a de um geral "salve-se quem puder", não as deixou. Heroicamente resolveu salvá-las.

— Bem. E agora? — pensou lá por dentro logo depois de passado o perigo. — Sozinha, eu ia me arrumando muito bem. Mas tudo mudou. As duas crianças me obrigam a estudar a defesa. Que defesa devo adotar? Evidentemente, o disfarce. Não me resta outro caminho senão essa forma de mentira. Tenho de disfarçar-me em bicho-folhagem ou qualquer coisa assim — e tenho também de disfarçar estas crianças.

A ideia do bicho-folhagem foi sugerida pela lembrança de uma velha história de tia Nastácia. Para livrar-se da onça, o macaco besuntou-se de mel e rolou num monte de folhas secas, desse modo transformando-se em bicho-folhagem e enganando a onça. Emília tinha de inventar qualquer coisa assim.

— Juquinha — disse ela voltando-se para o menino — saiba que seus pais se mudaram para um país muito distante e deixaram vocês entregues aos meus cuidados.

— Para onde foram?

Emília demorou na resposta. Estava pensando. Isso de falar a verdade nem sempre dá certo. Muitas vezes a coisa boa é a mentira. "Se a mentira fizer menos mal do que a verdade, viva a mentira!" Era uma das ideias emilianas. "Os adultos não querem que as crianças mintam, e no entanto passam a vida mentindo de todas as maneiras — para o bem. Há a mentira para o bem, que é boa; e há a mentira para o mal, que é ruim. Logo, isso de mentira depende. Se é para o bem, viva a mentira! Se é para o mal, morra a mentira! E se a verdade é para o bem, viva a verdade! Mas se é para o mal, morra a verdade! Juquinha quer saber para onde os pais foram. Se eu disser a verdade, ele se desespera, chora, e fica uma 'inutilidade de olho vermelho e ranho no nariz atrás de mim. Logo não devo contar a verdade. Poderei inventar uma mentirinha benéfica. Dizer, por exemplo, uma coisa que ele não compreenda bem, mas que o sossegue." E respondeu:

— Seus pais, Juquinha, foram obrigados a mudar-se para a Papolândia.

— Onde é isso?

— É uma terra em toda parte, onde só há papa-popos. É a terra dos papapupu-dospos que voam, ou andam pelo chão miando como gato. E sabe o que é papapopo? — É uma espécie de colo. Antigamente as mães punham os filhinhos no colo; hoje os papapupudospos põem todo mundo no papapopo.

— E é bom lugar esse papapopo?

— Ótimo. Quentinho como cama. Quem adormece nesse colo gosta tanto que não acorda mais.

A explicação deixou Juquinha na mesma, mas o sossegou. Sentia muito que seus pais fossem dormir um sono tão comprido numa terra tão esquisita; mas se era no quente, então bem. A expressão "quentinho como cama" agradou ao menino, que estava nu e com frio.

— Não sei o que aconteceu com a nossa roupa, disse ele. — Eu estava com o meu capote vermelho, de boné na cabeça, pronto para sair com a tia Febrônia depois do almoço. De repente, tudo se sumiu diante de mim. Uma escuridão! Fiquei caído no meio de panos. Veio a falta de fôlego. Comecei a me debater e engatinhar para sair dali.

— Dali de onde?

— Daquela panaria escura.

— Sair e ir para onde?

— Não sei. Eu queria sair, sair — e fui saindo sempre engatinhando.

— Por que sempre engatinhando?

— Porque não podia ficar de pé. O pano não deixava.

— E depois?

— Fui indo, fui indo, até que rolei para um enorme buraco que já não era de pano. Parecia de couro. Escuro como a noite lá dentro. Felizmente vi uma luz. Era um buraquinho claro naquele buracão escuro. Encaminhei-me para lá e saí.

— E que viu?

— Vi este mundo de agora. Tudo tão grande que a gente nem reconhece as coisas. De repente, olhei; mamãe ia saindo de gatinhas de outro enorme monte de pano. E dum terceiro monte de pano, adiante, vi sair papai. Corri para eles. Estavam tão assustados que nem podiam falar. Mamãe afinal falou; papai nunca mais. Ficou totalmente mudo. Vovó, coitada, sumiu. A Zulmira também. Vi o chão forrado de pelos enormes; andar por ali era o mesmo que andar por um capinzal cerrado. Pelos vermelhos e azuis e pretos.

Emília percebeu que Juquinha estava se referindo ao tapete da sala de jantar.

— E a Candoca? — perguntou.

— A Candoca ia tomar banho naquele momento.

A Zulmira já tinha tirado o vestidinho dela... Emília horrorizou-se. Se a pequena já estivesse no banho quando sobreveio a "redução" teria morrido afogada. E pensou nos milhões de criaturas que pelo mundo a fora deviam naquele momento estar no banho e fatalmente morreram afogadas.

— Quem era a Zulmira?

— A ama de Candoca.

Um ponto da história do Juquinha Emília não compreendeu — o tal buracão escuro em que ele havia caído ao escapar da montanha de pano. Mas desconfiou duma coisa.

— Você estava calçado, Juquinha?

— Estava, sim, com os meus sapatos amarelos. E ia sair com a Febrônia justamente para comprar uns sapatos novos. O do pé direito estava furado no dedão.

Emília riu-se.

— Compreendo agora, Juquinha. O tal buraco enorme em que você caiu foi o pé direito daqueles sapatos velhos, o buraquinho do buracão" era o furo do dedão.

O menino ficou pensativo, de rugas na testa.

"Quem sabe se foi mesmo?"

A Candoca principiou a choramingar de frio. Aquele cimento da escada não era bom berço. O choro da criança fez que Emília voltasse à ideia do bicho-folhagem. Tinha de descobrir qualquer coisa com que vestir-se e vestir os órfãos. Pano?... Impossível. Pano até que havia muito, por toda parte montanhas de pano; mas pano pede tesoura e agulha, e se acaso ela possuísse uma tesoura e uma agulha seriam proporcionais ao seu tamanho e tão pequenininhas que não cortaria nem coseria nenhum dos grossos panos existentes no mundo.

Mas há uma coisa que pode substituir o pano: o algodão com que se fazem os panos. Se ela encontrasse um pouco de algodão, estariam resolvidos dois grandes problemas: o do vestuário e o da defesa.

— É isso! Vou disfarçar-me em chumaço de algodão e fazer o mesmo às crianças. Chumacinhos de algodão valem pela melhor roupa e podem rolar à vontade pelo mundo, sem atrair a atenção de gatos, pintos ou passarinhos. Que bicho come algodão? Nenhum. Logo, o problema agora é descobrir um chumaço de algodão.

E voltando-se para o Juquinha:

— Lá dentro de sua casa não haverá algodão?

— Algodão?

— Sim, desse de botar em cova de dente ou no ouvido, quando há dor de ouvido.

— Há, sim. Na estante dos remédios do quarto de mamãe há um pacote azul.

— Ótimo. Fique sabendo que a grande coisa para nós três agora é irmos até lá e apanharmos um pouco desse algodão.

— A senhora está com dor de ouvido? — perguntou o bobinho.

Emília riu-se.

— Não, meu amor. Estou com dor de papapopo e o remédio é algodão.

— Que tanto papapopo a senhora fala? Emília riu-se de novo.

— Juquinha, Juquinha. Papapopo era uma coisa que antigamente não preocupava a ninguém. Mas agora o papapopo é tudo. O grande perigo da humanidade nova, meu amor, é o Senhor Dom Papapopo. Saiba disso.

O menino não entendia. Quis explicações. Ela tapeou.

— O Senhor Dom Papapopo, Juquinha, deve ser filho daquele Papão que outrora assustava as crianças. O tal Papão, porém, era mentira. Nunca existiu. Começou a existir desde que alguém mexeu na Chave do Tamanho. Está entendendo? Desde esse instante o Papapopo, ou o Senhor Dom Papão — pois tudo é a mesma coisa — apareceu no mundo e anda por toda parte nos rondando. Felizmente eu não sou boba. Percebo as coisas muito bem. Penso em tudo e "adapto-me", como diz o Visconde. Por isso estou certa de que o grande remédio contra o Papão é o Algodão. Juquinha amigo toca a procurar o Senhor Dom Algodão por causa do Senhor Dom Papão.

Juquinha ficou na mesma e Candoca pôs-se a berrar.

— Vamos! — disse Emília, dando a mão à manhosa e saindo da fresta.

continua…

Fonte:
Monteiro Lobato. A Chave do Tamanho.

quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

Silmar Bohrer (Lampejo Semanal) II


Monteiro Lobato (A Chave do Tamanho) VI – A família do Major Apolinário

A torneira ficava a cinco palmos do chão, isto é, a cem alturas da Emília. Pareceu-lhe a maior torneira do mundo.

— Em geral as torneiras de jardim não ficam bem fechadas, pensou ela, de modo que de vez em quando cai um pingo.. Lá, portanto, é provável que eu encontre água.

Emília desceu da folha de samambaia e avançou na direção da calçada. Teve a sorte de ver no chão uma folha de iúca mexicana, que o jardineiro podara na véspera e deixara caída por ali (talvez o "apequenamento" o tivesse colhido durante o trabalho.) Onde andaria o pobre jardineiro? No papo de algum passarinho, com certeza. Emília caminhou muito bem por cima da folha de iúca e assim chegou à beira da calçada sem judiar dos pezinhos na dureza das pedras.

A altura da calçada seria duns 20 centímetros, o que representava 20 alturas da Emília, de modo que ela ficou a olhar para semelhante barreira como se fosse a muralha da China. Que colosso! Como galgar tamanha escarpa? Se fosse formiga, dotada de seis patinhas, nada mais simples; naquele momento duas formigas ruivas subiam pela pedra com a mesma facilidade com que andavam no plano. Mas para um bípede de um centímetro de altura, obstáculos de um palmo são muralhas intransponíveis. Emília seguiu pela beira inferior da calçada, na esperança de encontrar um "subidor" qualquer.

Logo adiante deu com uma imensa "cobra vermelha", que descia da calçada, atravessava o pedregulho e afundava a "cabeça amarela" na grama do canteiro próximo. Emília aproximou-se cautelosamente. Viu que era o cano de borracha do jardim. Parou diante dele. Mediu-o com os olhos. Diâmetro igual a três vezes a sua altura. Se pudesse trepar e caminhar por sobre esse cano, ser-lhe-ia fácil transpor a escarpa e descer no cimento.

Por felicidade, a "cabeça-da-cobra", isto é, o esguicho de metal amarelo, afundava na grama do canteiro. Emília foi para lá, agarrou-se às folhinhas de grama e depois de várias manobras conseguiu trepar sobre a borracha. O resto foi fácil. Seguiu pelo cano até à escarpa, isto é, o ponto em que o cano subia do pedregulho à calçada. Esse trecho íngreme ela o galgou de gatinhas.

Ótimo. Estava outra vez no horizontal, em cima da calçada. Com as mãos na cintura, Emília contemplou a paisagem. Que calçada imensa, Deus do céu! Parecia o deserto do Saara.

Deixando-se escorregar do cano abaixo, encaminhou-se para a torneira. Como era gostoso andar no liso do cimento! Até deu uma corridinha.

Bem debaixo da torneira, olhou para cima. Haveria algum pingo em formação naquelas alturas? Impossível perceber. Súbito, sem aviso, um pingão, plaft! pingou em cima dela e esborrachou-a no cimento.

Que banho! Emília ficou atordoada por vários segundos. Nunca supôs que um pingo d'água pesasse tanto. Erguendo-se, bebeu, à moda dos animais, numa das pocinhas formadas pelos respingos, e aproveitou a ocasião para um banho.

— Que coisa curiosa! — exclamou enquanto se esfregava. — Estou nua e não sinto a menor vergonha. Será que isso de vergonha depende do tamanho das criaturas? Deve ser, porque entre os homens a vergonha era só para os adultos. As criancinhas novas não mostravam vergonha nenhuma nem ninguém se ofendia de vê-las nuas.

Aprendi mais essa: vergonha é coisa que depende do tamanho. 

A torneira ficava perto de uma enorme escadaria de cinco degraus — a escadinha da varanda das trepadeiras. Lá no quarto degrau Emília percebeu viventes. Firmou a vista. Eram dois insetos cor-de-rosa e um preto — insetos desconhecidos e evidentemente descascados. Chegando mais perto, compreendeu tudo.

— Meu Deus do céu! Aquilo é gente!...

Era de fato gente — gentinha como ela — os donos da casa com certeza, O inseto preto seria uma tia Nastácia de lá — a cozinheira. E Emília teve assim a primeira prova provada de que o apequenamento também havia alcançado outras criaturas.

— Bom. Vou dar uma subida até lá para conversar com aqueles companheiros.

Mas havia escada, com cada degrau vinte vezes a sua altura. Ah, se aparecesse por ali a mutuca! Emília viu enorme pau caído sobre a escada e compreendeu que era a vassoura. Com certeza a negra estava passando a vassoura na varanda e no momento em que ficou pequenininha a vassoura escorregara escada abaixo e era agora o tal "enorme pau". Felizmente a palha encostava no chão, de modo que Emília pôde subir por ela até equilibrar-se em cima do pau — e lá se foi engatinhando. Ao chegar ao ponto desejado, pulou.

Quando a viram engatinhando por cima do cabo da vassoura, as criaturas do quarto degrau supuseram tratar-se dum mede-palmo; mas mede-palmo não pula, de modo que o pulinho da Emília fez que todas recuassem assustadas.

— Não tenham medo! — disse ela aproximando-se. — Também sou gente. Sou Emília, lá do sítio de Dona Benta, que fiquei pequenininha e ando em exploração pelo mundo.

— É a Emília mesmo, mamãe! — gritou um menino que também andava por ali e só então ela viu.

— Conheço os livros que falam dela. A cara é a mesma, o jeito é o mesmo. Só falta a roupinha de xadrez.

— E quem é você? — perguntou Emília.

— Sou o Juquinha. E esta é a Candoca, minha irmã — disse o menino apontando para outra criança.

— E que aconteceu por aqui?

— Não sei. Era de manhã e estávamos na mesa almoçando. De repente, uma panaria sem fim nos enleou e foi um custo para sairmos de dentro. E todas as coisas ficaram enormes — enormíssimas, como a senhora vê. A casa cresceu que não tem mais fim. Nossa roupa evaporou-se, num mistério.

Emília viu que eles não estavam compreendendo a verdadeira situação. Julgavam-se do mesmo tamanho de sempre. As coisas em redor é que haviam crescido.

— Esse senhor quem é, Juquinha? Seu pai?

— Sim, meu pai. E ali está mamãe. A criada é a tia Febrônia, nossa cozinheira. Papai perdeu a fala coitado, tamanho foi o susto, e mamãe está
muito triste com o desaparecimento de vovó.

— Como desapareceu sua avó?

— Desapareceu porque não aparece — explicou Juquinha — Depois que conseguimos nos livrar daquela inundação de pano, reunimo-nos todos embaixo da mesa — menos vovó. Até agora, nem sinal.

Emília compreendeu o caso. A pobre velha não tinha podido safar-se de dentro de suas próprias roupas, e com certeza havia morrido asfixiada. Se o apequenamento foi coisa para a humanidade inteira, então milhões de criaturas deviam ter perecido como a avó daquele menino — pela impossibilidade de saírem de dentro das próprias roupas. Nada mais claro.

— Como se chama sua mãe?

— Nonoca.

Emília dirigiu-se para Dona Nonoca, que estava chorando. Contou-lhe mil coisas, as suas aventuras no jardim, a luta com a aranha, o perigo das aves, o almocinho de mel que havia feito. A mulher chorava, chorava.

— Chorar não adianta, Dona Nonoca. O que temos de fazer é nos adaptar.

Dona Nonoca não entendeu essa palavra tão científica. Emília explicou-se.

— Adaptar-se quer dizer ajeitar-se às situações. Ou fazemos isso, ou levamos a breca. Estamos em pleno mundo biológico, onde o que vale é a força ou a esperteza. A senhora até teve muita sorte de que nenhum passarinho ou gato a visse. Como vieram parar neste degrau?

A pobre mulher contou que depois do desastre eles vieram caminhando até à varanda, para ver como tinha ficado o mundo.

— E estávamos olhando para o nosso velho jardim, transformado nesta mata gigantesca e sem fim, quando um horrível pé-de-vento nos jogou aqui.

Emília achou graça no "horrível pé-de-vento". Havia de ser aquele mesmo ventinho insignificante que a derrubara duas vezes. Conversou o que pôde com a pobre criatura e com o inseto preto. Desejava provar que nada havia crescido, eles é que haviam perdido o tamanho — mas não pôde convencer ninguém.

— Como é que sabe? — disse a negra. — Eu estou vendo tudo grande.

Emília deu todas as razões imagináveis, sem conseguir coisa nenhuma. E diante da certeza da negra e de Dona Nonoca, também ficou na dúvida.

— Será que tudo ficou grande e as criaturas estão do mesmo tamanho de sempre ou tudo está do mesmo tamanho de sempre e fomos nós que diminuímos?

Pensou, pensou, pensou. O problema era dos mais sérios. Tanto podia ser uma coisa como outra — e em ambos os casos a situação das criaturinhas era exatamente a mesma.

Aquele homem era o Major Apolinário da Silva, prefeito da cidade, cidadão muito importante. Estava agora transformado em insetinho descascado e mudo. Emília mediu-lhe a altura. Viu que tinha 4 centímetros. E como fosse muito gordo, dava a ideia duma taturana cor-de-rosa em pé.

Juquinha, o mais esperto da família, mostrava-se contente com a novidade e, ao contrário do pai, falava pelos cotovelos. Contou que antes da "ventania" ele estivera na varanda espiando a rua pelas grades de ferro do jardim, e muito estranhara não ver movimento nenhum.

— Não passou nenhum automóvel nem carroça, nem nada. Tudo paradíssimo. Um silêncio que nunca vi. Silêncio de gente, porque os passarinhos andam mais barulhentos do que nunca. Parece que se mudaram todos para a cidade.

Emília riu-se. Lembrou-se da queda de içás e siriris em outubro, quando milhões de formigas de asas saem dos formigueiros para a festa anual do banho de sol. Nesses dias o assanhamento das galinhas e passarinhos é enorme — e os papos se enchem de arrebentar. O mundo inteiro devia estar agora cheio do assanhamento das aves, diante da inesperada aparição daquela nova espécie de içás.

Emília esclareceu como pôde o caso e deu os conselhos da sua experiência.

— É preciso, primeiro — disse ela — o maior cuidado com os ventos. Qualquer ventinho nos derruba. Segundo: cuidado ainda maior com os passarinhos e as galinhas. Basta dizer que eu estou aqui, nesta terra desconhecida, justamente por causa dum simples pinto sura, que ainda ontem corria de medo de mim. Terceiro: cuidado com os buracos redondos, porque em geral têm moradores dentro e esses moradores se defendem. Em vez de buraquinhos redondos, temos de procurar vãos, fendas e outros abrigos naturais, não feitos por nenhum colega.

— Colega?

— Sim, nossos colegas são agora os bichinhos do chão e do ar.

Quarto conselho: cada um que arranje um espinho de cactos, porque se não fosse este aqui — e mostrou a sua lança — eu já estava sugada por uma aranha.

— Mas onde poderemos arranjar essa arma? — quis saber Juquinha.

— Esta encontrei perto do "violetal", no chão. Mas criaturas grandes, como seu pai, sua mãe e a tia Febrônia, podem usar alfinetes. Não há alfinetes aqui em casa?

Nesse momento um miado de gato assustou Emília. O menino, porém, e a negra fizeram cara alegre.

— É o Manchinha, disseram os dois ao mesmo tempo.

— Que Manchinha? — perguntou Emília.

— O nosso gato amarelo.

— Emília horrorizou-se. Pois então estavam com um gato ali perto e não se escondiam?

— Ele é o que há de manso — disse a boba da Febrônia. — Dormia na minha cama. Fui eu que o criei.

Oh, estupidez humana! — pensou Emília. — Será que esta gente supõe que o gato vai reconhecê-los e continuar bonzinho como era?

Explicou-lhes isso, e aconselhou-os a procurarem refúgio. Mas quem pode com a burrice de certas criaturas? Ninguém acreditou em suas palavras. Riram-se. Até o Major Apolinário riu-se — pela primeira vez depois do apequenamento.

— Você diz isso porque não conhece o Manchinha — observou Dona Nonoca. — Não há no mundo gato mais meigo.

— Mas pega camundongo?

— Isso, pega.

— E gafanhotos?

— Também pega. Ainda ontem andou atrás dum gafanhoto aí no jardim.

— E acha então que ele tem inteligência bastante para nos distinguir dum gafanhoto ou duma barata?

O Major riu-se de novo. Ele ainda estava com a "ideia de gato" própria das gentes que possuíam tamanho. Emília tentou esclarecê-lo. Explicou aquela história da "ideia filha da experiência".

— A "ideia de gato", Senhor Apolinário, vinha da nossa antiga experiência de criaturas tamanhudas em relação aos gatos. Era a ideia dum animal perigoso para ratos, baratas e gafanhotos, mas inofensivo para nós. Agora, porém, temos de reformar essa ideia, como também temos de reformar todas as ideias tamanhudas, como por exemplo, a "ideia de pinto", a "ideia de leão" e tantas outras. E quem não fizer assim está perdido.

O Major não entendeu. Era a burrice em pessoa. Achou aquele sermão com cara de "coisa de livros". Nesse momento o Manchinha miou novamente mais perto.

Emília não quis saber de mais nada. Agarrando as duas crianças correu a esconder-se numa rachadura do cimento.Foi a conta. A enorme carantonha dum gato gigantesco surgiu à porta da varanda. Miou várias vezes, como quem está aflito em procura dos donos. Depois, aproximou-se, no perigoso andar de gato que enxerga barata.

Que horrível cena! Apesar de durinha de coração, Emília arrepiou-se ao ver o meigo Manchinha, tão saudoso dos seus donos, comer sossegadamente os três insetos descascados que descobriu ali. Mas teve o cuidado de tapar com as mãos os olhos das duas crianças. Juquinha e Candoca nunca vieram a saber do trágico destino de seus pais — vítimas da "lerdeza com que sé adaptavam às novas condições de vida", conforme Emília mais tarde explicou ao Visconde.

continua…

Fonte:
Monteiro Lobato. A Chave do Tamanho.

quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Ógui Lourenço Mauri (Poemas Escolhidos) II


UM REFÚGIO POR OPÇÃO
(glosando José Feldman)

MOTE:
Pai, eu te peço perdão
por não ser o que querias!
Eu vivo na contramão,
num refúgio... de poesias!
 José Feldman (Maringá/PR)
  
GLOSA:

 Pai, eu te peço perdão
por ter frustrado teu sonho.
Assim, não queria, não;
é disso que me envergonho!

Lamento muito, meu velho,
por não ser o que querias!
 Na leitura do Evangelho,
eu tento acalmar meus dias.

Desde cedo, fiz a opção,
eu nasci pra ser poeta.
Eu vivo na contramão
de tua paternal meta.

Não me ajeito a obrigações,
só faço o que repudias.
Vivo minhas emoções
num refúgio... de poesias!
_____________________

PROCURA-SE UM PAPAI NOEL

Procura-se um Papai Noel bem brasileiro,
Com total verde-amarelo em seu visual.
Nada de indumentária vinda do estrangeiro,
Terá que mostrar sua origem tropical.

Procura-se um Papai Noel de tez morena,
Trazendo às crianças o sabor da surpresa,
Magia que o comércio retirou de cena
Na ânsia de vender, de acumular riqueza.

Procura-se um Papai Noel que abrace forte,
Um abraço bem ao modo tupiniquim...
Um gesto sem a frieza do Polo Norte,
Bem ao estilo dos que meu pai dava em mim.

Procura-se um Papai Noel, sorriso aberto,
Que a criança possa tocar, ver e curtir.
E que seu presente só seja descoberto
No exato momento em que o "Velhinho" partir.

Procura-se um Papai Noel de nossa gente.
Viajante de trenó e renas, jamais!
Nós almejamos alguém que esteja presente.
Muito nosso, sim!... Dos Pampas aos Seringais.
_____________________

CHEGANDO PELO SUL...

Você tramou tudo ao anoitecer
E chegou antes do clarão da lua...
Maliciosa, esperou-me farta e nua;
No rocio, sem que eu pudesse prever.

O modo como apareci, porém,
Resultou para você surpreendente,
Pois, evitando encontrá-la de frente,
Logrei pregar-lhe uma peça também.

Pouco somou seu tentador sorriso
Ao me aguardar desde os rumos do norte;
Pois vim do sul, a emoção foi mais forte,
E ao vê-la de costas perdi o juízo...

Fui às nuvens, não sabia onde estava
Quando, perto, e pela primeira vez,
Vi seu cabelo a ornar sua nudez...
Trança única que às nalgas chegava.

Fonte: O Poeta

Malba Tahan (Radiá! Radiá!)

Um dilúvio de luz cai da montanha”. O silêncio, na claridade suave da tarde, era como uma dádiva de Allah sobre a terra. Parecia-me ouvir, ao longe, o doce som de flautas e adjuaks vibradas por artistas invisíveis.

À porta da tenda surge, de repente, a figura altiva do quebir, chefe da caravana.

— Vamos, beduíno! — gritou, arrebatado. — A grande caravana vai partir! Iremos para além da Pérsia; atravessaremos a índia; levaremos os nossos camelos até os confins da China e do Tibet. Terás a fortuna de conhecer as cidades e os recantos mais prodigiosos do Islã: encontrarás os mercadores mais ricos do mundo; os teus lucros serão fabulosos. Vamos! Por Allah, o Exaltado! A caravana vai partir!

Respondi:

— Sim, valente quebir! Sempre desejei conhecer as maravilhas desses países cheios de lendas e mistérios. Estou convencido de que essa longa e curiosa viagem seria para mim fonte de incalculáveis riquezas.

Mas...

Naquele momento a encantadora Radiá, com sua graça infinita de inum, colocava cocrals (1) de ouro em torno de seus tornozelos morenos.

A caravana vai partir? Vai em busca da Riqueza? Deixá-la ir, a caravana...

— Prefiro, ó quebir! Continuar aqui, recostado nestas almofadas, vendo a querida Radiá prender colares de ouro em torno de seus tornozelos morenos...

* * *
    
A baraca (2) protegia a minha confortável tenda na orla do deserto. O narguilé (3) embriagador parecia mais doce que o sorriso nos lábios da noiva apaixonada.

Alguém chama por mim. Ouço o meu nome repetidas vezes. Reconheço a voz de um taleb (4).

— Por que me procuras, ó venerável taleb? — perguntei.

— Vem comigo, jovem poeta! — respondeu o sábio. O rei de Cabul e o imperador da China, em viagem para Meca, pararam, esta tarde, no oásis de Bled-Djerid (5). Falei em teu nome. Já leram os teus versos. Admiram-te.  Fazem questão de  conhecer-te.  Vamos até ao oásis antes que eles partam. Por Allah! É uma oportunidade única em tua vida! Receberás as homenagens dos soberanos mais ricos e generosos! Serás o poeta mais afamado do mundo: Ficarás mais célebre do que Antar (6) e mais invejado do que Moslim (7).

— Sim, judicioso taleb! Sempre ambicionei receber as homenagens daqueles que têm em mãos o ouro e o poder. O imperador da China e o rei de Cabul são os monarcas mais ricos e mais generosos, entre quantos vivem sobre a face da terra. Recebido em audiência especial, por esses soberanos, tornar-me-ei célebre. O meu nome, emoldurado pela Glória jamais sairia da memória dos homens.

    Mas naquele momento a deliciosa Radiá cantava. A sua voz era tão meiga como a lua e mais doce que as tâmaras brancas do Iêmen.

O Rei e o Imperador esperam por mim? Encontrarei no oásis de Bled-Djerid a Glória que deslumbra e seduz os mortais?

A Glória? Deixá-la ir, a Glória...

— Prefiro, ó taleb!, continuar aqui, recostado indolente sobre estas almofadas, ouvindo a querida Radiá cantar, com indizível ternura os seus sonhos de amor...

* * *
    
Pouco faltava para a hora melancólica do ezzã (8). Uma poeira de luz envolvia a minha tenda onde as sombras procuravam refúgio.

Mac Allah!(9) Chamam por mim. Quem será?

Abre-se a porta. Acha-se, diante de mim, o meu grande e dedicado amigo.

— Venho buscar-te, meu caro — exclamou, cheio de alegria. Todos os habitantes da aldeia estão reunidos na mesquita. Mafoma, o enviado de Deus, vai falar aos fiéis, depois do ezzã. Aquele que ouvir as palavras do Profeta estará salvo e terá o seu nome incluído entre os bem-aventurados! Vem, ó irmão dos árabes, vem comigo!

Respondi:

— Sim, meu grande e incomparável amigo! Sempre almejei obter, pela mão do Enviado de Allah, a minha reabilitação aos olhos de Deus! Certo estou de que hoje na mesquita, entre cheiques (10) e ulemás (11), obteria a remissão de meus erros e a salvação de minh’alma. Ficaria, para sempre, livre do peso de meus pecados.

Mas...

Naquele momento a sombra do desejo aparecia, bem nítida, nos olhos negros de Radiá.
    
O Profeta vai falar na mesquita? Devo ouvir a sua palavra que redime e salva? A Salvação Eterna! Deixá-la ir, a Salvação Eterna...

    Prefiro, ó inesquecível amigo! continuar aqui, recostado indolente nestas almofadas, pois a sombra do desejo aparece, neste momento, bem nítida nos olhos negros e sedutores de Radiá...

* * *
    Minha pobre tenda está triste e vazia na orla do deserto. Radiá desapareceu de meus olhos como um asfir (12) que fugisse da prisão.

De nosso amor, que parecia eterno, restam apenas as tâmaras amargas da saudade.

Radiá! Radiá! “Chovam lírios e rosas em teu colo! Chovam hinos de glória na tua alma!” Lembra-te, Radiá! Por ti sacrifiquei a Riqueza, a Glória, a Salvação Eterna!...

Resta-me, ainda, a Vida!

Sim, a Vida... Deixá-la ir, a Vida...
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Notas:
1- Cocral — peça de ouro ou marfim em forma de pulseira larga. Inum, fada; feiticeira. Criatura dotada de encantos irresistíveis.
2- Baraca — bênção especial de um santo. A tenda, sob a proteção de uma perfeita baraca, está livre dos maus olhares e dos espíritos daninhos e perturbadores.
3- Narguilé — peça usada pelos fumantes. Há diferentes tipos de narguilés. Em geral a fumaça é aspirada por um tubo longo e passa por uma pequena camada de água.
4- Taleb — Professor.
5- Bled-Djerid — país das tâmaras.
6- Antar — (Antara Ibn-Cheddad) poeta árabe notável, anterior ao Islamismo. Tornou-se famoso por causa do “Romance de Antara” no qual o poeta aparece como herói ao lado de Abla, a sua apaixonada, encarnando todas as virtudes que eram atribuídas aos paladinos errantes das tribos pagãs.
7- Moslim — (Moslim ben el-Valid) nasceu no ano 747 e morreu em 803. Teve, durante grande parte de sua vida, a proteção de vários generais e ministros. Foi conhecido pelo apelido de “Cari el-Asavani”, cuja tradução é: “Vitima das lindas mulheres”.
8- Ezzã — As preces obrigatórias para os árabes são em número de cinco; a primeira (mogreb) é feita ao nascer do sol; e a última (ezzã) é realizada à noite.
9- Mac Allah — Exclamação usual entre os crentes. Corresponde aproximadamente ao nosso “Deus seja louvado”.
10- Cheique — tratamento cerimonioso atribuído, em geral, aos homens respeitáveis pela idade ou pela posição social. Chefe de tribo.
11- Ulemá — doutor; homem de grande cultura.
12- Asfir — pássaro verde do Sul.

Fonte: 
Malba Tahan. Minha Vida Querida.

Monteiro Lobato (A Chave do Tamanho) V – Aventuras

A "vaquinha" havia largado Emília no meio duma das ruas do jardim. Como o sol estivesse esquentando as pedras, ela percebeu que se não fosse para a sombra morreria torrada. E como não viesse em redor nenhum cavalinho ao seu alcance teve de vencer a pé o espaço que ia dali até o canteiro próximo. Como padeceu para vencer aquela enorme extensão de um metro, por cima da horrível pedranceira do pedregulho! O sol queimava-lhe a pele e por duas vezes o vento a derrubou.

Outro grande inimigo da nova humanidade vai ser o vento, ia pensando Emília. O maldito vento já me derrubou duas vezes e, no entanto, devia ser um ventinho de nada, pois pouco boliu com as folhas deste jardim. O sistema de andar de pé, próprio dos bípedes, só dá resultado com as criaturas que possuem tamanho, como os antigos homens e as aves.

Para um serzinho sem tamanho como eu é o maior dos desastres. Por isso não há bichinho nenhum dotado de dois pés e que ande de pé. São todos horizontais e cheios de perninhas. Estou agora compreendendo: defesa contra o vento! Se um ventinho à-toa me derrubou duas vezes, isso quer dizer que um vento de verdade me joga para os confins do Judas e, no entanto, não há formiguinha que não resista aos ventos. Por quê?

Porque não é bípede nem anda de pé, como eu. Aprenda mais essa, Senhora Dona Emília. E assim filosofando alcançou a sombra dos periquitos em redor do canteiro, onde se sentou sobre um pauzinho seco, para descansar e pensar na vida.

— Que mundo este, santo Deus! — murmurou, muito atenta a tudo quanto se passava em redor. É o tal "mundo biológico" de que tanto o Visconde falava, bem diferente do "mundo humano". Diz ele que aqui quem governa não é nenhum governo com soldados, juizes e cadeias. Quem governa é uma invisível Lei Natural. E que Lei Natural é essa? Simplesmente a Lei De Quem Pode Mais. Ninguém neste mundinho procura saber se o outro tem ou não tem razão. Não existe a palavra justiça. A Natureza só quer saber duma coisa: quem pode mais. O que pode mais tem o que quer, até o momento em que apareça outro que possa ainda mais e lhe tome tudo. E por que essa maldade? O Visconde diz que é por causa duma tal Seleção Natural, a coisa mais sem coração do mundo, mas que sempre acerta, pois obriga todas as criaturas a irem se aperfeiçoando. "Ah, você está parado, não se aperfeiçoa, não é?" diz a Seleção para um bichinho bobo. "Pois então leve a breca." E para não levar a breca, o bichinho trata de inventar toda sorte de defesa e astúcias. O tatuzinho inventou aquela defesa de virar bola e fingir-se morto. Os gafanhotinhos inventaram um verde que os confunde com a grama. As aranhas inventaram a teia para caçar as moscas e os ferrões e o veneno para se defenderem. Inúmeros inventaram asas. Outros inventaram as cascas grossas. A pulga inventou o pulo. 

Eu sempre achei graça na "prosa" dos homens com as invenções lá deles. Que são as invenções dos homens perto dos milhões de inventos destes bichinhos? Não há pulgão que não tenha vários inventos para a defesa, para conseguir alimento, para morar — ou como diz o Visconde, para "sobreviver" num mundo onde a tal Seleção só tem duas palavras na boca: "Isca! Pega!"

Emília olhava em redor e ia compreendendo o mundo novo em que tinha de viver. À esquerda viu uma aranha sugando um mosquito preso em sua teia invisível. À direita um bando de formigas atracadas a uma pobre minhoca, que se debatia como um "S" vivo. Um filhote de louva-a-deus estava fingindo que rezava, de mãos postas, mas na realidade aquilo não era reza e sim um bote armado contra uma presa qualquer.

— A vida é uma caçada contínua — filosofou Emília. — Estes meus colegas parece que só não caçam quando estão dormindo.

Os pés de periquito abrigavam inúmeros moradores permanentes, além de hóspedes alados que chegavam, ficavam por ali alguns instantes e lá se iam. Emília calculou que para cada bichinho de terra, dos sem asas, havia muitos do ar, com asas, e que levam a maior parte do tempo voando.

— Chega de caçadas — disse ela por fim. — Preciso descobrir outro cavalinho para continuar a minha viagem.

Nesse momento uma mutuca sentou-se perto dela. Emília pensou:

"Montar nessa mutuca não vai dar certo porque há os tais tombos; mas se eu agarrar-me às suas patinhas traseiras? Isso não a atrapalhará em nada no voo, e pode ser que ela me aproxime do palacete."

Decidida a fazer a experiência, aproximou-se da mutuca por trás, como fazem certas aranhas de parede, das que não usam teias e sim botes, e fez como essas aranhas: deu um bote nas perninhas traseiras da mutuca, segurando-se com toda a força.

Assustada com aquilo, a mutuca voou — um voo pesado de quem está levando uma carga excessiva e desceu logo adiante. Emília largou-a, muito contente com a ideia que tivera.

— Bravos! Vou chegando, vou chegando. Estou só a três metros da calçada.

Que lugar era aquele? Um simples canteiro de violetas, dentro do qual Emília teve a sensação do caçador em plena mata virgem. A sua redução de tamanho permitia-lhe ver a "abundância do pequenino". Quantas vidinhas na sombra daquela mata, sobretudo sob forma de vermes! Bichos cabeludos de todos os jeitos, e lagartas não cabeludas, uma delas com chifres no nariz — como o Quindim. E mede-palmos cor de esmeralda, translúcidos, gulosamente devorando folhas ou tecendo casulos. E caramujos, e tatuzinhos. E uma infinidade de formas de vida que só os sábios sabem.Por uma fresta Emília viu lá pelas alturas várias borboletas borboleteando pelas flores, tão leves e lindas. Mas uma vespinha jiti a furtar o pólen duma violeta a distraiu — e por causa dessa vespinha a pobre Emília quase levou a breca. 

Enquanto observava a linda vespa naquele trabalho uma horrenda sarassará se aproximou, de ferrão arreganhado. 

Emília tinha ódio a essas formigonas pretas desde o dia em que Pedrinho encontrou, no pomar lá do sítio, um ninho de beija-flor com dois filhotes já meio devorados por elas. As canibais, foi o nome que o Visconde lhes deu. Será que ela iria ter a mesma sorte dos beija-flores implumes?

Na maior aflição, Emília olhou em redor, em procura de abrigo. Deu com uma velha casca de caramujo: lançou-se dentro, ficando bem escondidinha lá no fundo. A canibal plantou-se à porta, à espera de que aquele "inseto descascado" saísse. Por fim, desanimada, foi-se embora.

Quando Emília teve coragem de espiar, a horrenda canibal já ia longe.

— Que susto! — exclamou ela saindo de dentro do caramujinho e enxugando com uma isca de musgo o suor gelado da testa. — Tenho que arranjar uma arma qualquer. Há feras muito perigosas nesta mata.

Achou fácil e agradável caminhar dentro do "violetal", porque o chão estava coberto de folhas secas e úmidas, macias para seus pezinhos. Foi andando até chegar à beira da "floresta", onde deu com um gigantesco pé de cactos, dos chamados palmatórias-do-diabo. As enormes folhas chatas, recobertas de espinhos pareciam almofadas de alfinetes.

— E se me armasse dum espinho?

Mas como arrancar um espinho daqueles? Nem com a força de cem Emílias, quanto mais com a de uma só. E ficou de nariz para o ar, namorando aquele tremendo arsenal de lanças, até que lhe veio uma ideia.

"Impossível que aqui pelo chão não haja algum espinho velho de alguma folha caída", e pôs-se a procurar. Foi feliz. Encontrou uma palmatória já desfeita pelo apodrecimento, mas com os espinhos em muito bom estado. Escolheu o menor e pronto.

— Estou um D. Quixote, com esta tremenda lança — disse, pondo a arma debaixo do braço, tal qual fazia D. Quixote.

Logo adiante estava uma aranha quase do seu tamanho, encorujada na leia, à espera de bichinhos incautos. Vendo aproximar-se aquele inseto desconhecido a aranha armou o bote; mas Emília de lança em riste, não lhe deu importância — foi chegando. Ao atirar-se contra ela, a aranha cravou o ventre no espinho. Esperneou, berrou, mas não teve remédio senão ir encolhendo as pernas e morrendo.

A primeira vitória de Emília em pleno "mundo biológico" encheu-a de orgulho. Estava demonstrando aos seus colegas o valor da inteligência. Já se utilizara de vários como cavalinhos e agora vencera uma aranha em combate. Uma coisa a assustava mais que tudo: as aves. Percebeu logo que estavam ali os piores inimigos da nova gente pequenina. 

O Visconde havia contado que grande número de passarinhos eram onívoros, isto é, comem de tudo — e portanto comeriam a ela também e a quantos homens– bichinhos encontrassem. Felizmente batera meio–dia, hora em que os pássaros, já de papo cheio, descansam à sombra das árvores. As horas mais perigosas deviam ser as da manhã, enquanto eles almoçavam.

Pouco antes de chegar ao "violetal", Emília tinha assistido a uma tragédia dolorosa. Um gafanhoto verde, ainda criançola e bobo, caíra na asneira de afastar-se da grama, com cujo verdor ele tão bem se confundia.

Dera-lhe na cabeça brincar de pula-pula na areia branca. Mas a areia branca tornava-o visibilíssimo. Uma corruíra avistou-o, veio e zás! — papo.

— Que coisa horrível o papo das aves! — filosofou Emília. — Verdadeiros barris sem fundo. Elas passam a vida inteira a botar bichinhos ali dentro e não os enchem nunca.

A lembrança do almoço da corruíra fê-la lembrar-se do estômago. Ainda não tinha comido coisa nenhuma. Que poderia comer naquele jardim?

Se fosse ave, nada mais simples, porque não faltavam insetos; mas era gente e gente não come insetos — isto é, só come içá torrado e gafanhotos. Dona Benta havia dito que São João no deserto se alimentava de gafanhotos e mel.

— Mel, mel, mel — murmurou Emília lembrando-se das borboletas e abelhas que vivem só de mel. E as flores dali deviam ter mel, já que eram tantas as borboletas. Sim, mas as flores andam lá pelos altos, boas só para os insetos de asas. Esperem! Há também flores baixas — as violetas do "violetal". E Emília voltou para aquela mata virgem em procura das violetas baixinhas. Encontrou três com os cachos pendidos e as pétalas encostadas no chão.

Foi ali que fez o seu primeiro lanche na vida nova, com o mel tirado das três violetas pendidas — mas o perfume deu-lhe dor de cabeça. Muito forte para ela.

— E água?

Mel causa sede; e água nos jardins, só de manhã, antes que o sol evapore as gotas de orvalho. Mas não há jardim sem torneira de irrigação. Emília tratou de descobrir a torneira daquele. Se tivesse a sorte de a encontrar pingando, o problema da água não era problema.

Para descobrir a torneira tinha de trepar a uma "árvore", do alto da qual pudesse "devassar os horizontes". Emília pôs-se a escolher uma árvore "trepável", isto é, que tivesse os galhos bem pertinhos uns dos outros.

O melhor que achou foi um pé de samambaia, e por uma folha trepou até à pontinha. Com facilidade pôde ver a dois metros de distância a calçada, e na parede do palacete uma enormíssima torneira com um tremendo regador em baixo.

— Que regador colossal, meu Deus! — exclamou Emília fazendo cálculos. — Devia ter 40 vezes a sua altura, equivalente a qualquer coisa de 72 metros de altura para o Coronel Teodorico. Em suas comparações ela se lembrava sempre desse homem famoso no bairro de Dona Benta por causa do tamanho.

continua…

Fonte:
Monteiro Lobato. A Chave do Tamanho.

terça-feira, 12 de dezembro de 2017

Samuel da Costa (Poemas Escolhidos) III

Iconoclasta 

Foi de repente...
Depois de muito tempo,
Ela decidiu voltar para casa...
Sem qualquer explicação aparente
Sem dizer uma palavra sequer...
Sem dar motivos para sua partida
Ou mesmo do seu retorno...
E eu afinal de contas
Sem dizer nada
Uma palavra ao menos...
Sem saber o que fazer
Acabei aceitando-a de volta
Como se eu não fosse nada
Uma mera figura decorativa
Bem ali parada
Disponível
Dispensável & artificial
Contudo
Já não poderia viver sem sua doce presença
Na minha vida...
Tão inconstante & breve
Não tinha como não aceitar
As coisas são assim inexplicáveis...
Inconstantes
Irreais
Surreais...
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Rainha Victória (navego pelo mar da tranquilidade)
Para Victória Butler Rodríguez

Navego pelo mar da tranquilidade
Eu tenho esperanças
Renovadas 

Pois tenho pensamentos probos 
Pensamentos bons
Mesmo sabendo 
Que tenho um longo 
E difícil caminho para percorrer

A minha abstrata arte
Já não conhece mais limites
Criou asas 
Voo para além do cosmo infindo 

Tenho um longo 
E tortuoso caminho
Pela frente bem sei
Mas sei também 
Que ela vai estar lá
A minha espera 
Tão linda e prefeita 
Como só ela sabe ser

Já não dói mais... 
A minha negra arte tão carregada 
De dor e sofrimento 
Não existe mais 

A minha negra dor se foi 
Dobrou a esquina e desapareceu 
Por completo em meio
A massa dissoluta 

O crepúsculo eviterno
Já não cega mais 
Meus quasímodos olhos
Não temo a negra noite eterna 
Com seus mistérios infindos 

Tenho o sono tranquilo 
Pois sei que ela estará
Ao meu lado 
Quando eu acordar pela manhã 
_________________

Selene
Para negra Valquíria 

És para mim um mistério!
Um sonhar acordado...
Um perpétuo vagar...
Entre o real 
E o abstrato!
Um trespassar... 
Entre a materialidade estéril! 
E o devaneio absoluto!
Um eviterno dormir. 
Para um nunca mais acordar.

És para mim
Um peregrinar no imaginário! 
Um vagar 
Entre terras ignotas...

És para mim...
Um negro universo infindo!
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Em violetas paixões 
Para Izabella Silva 

Não! Não quero mais ser sua 
Não quero mais 
Os teus ternos carinhos 
Nem tão pouco os beijos teus 

Não! Eu não vou ficar 
Mais ao lado teu 
E quando eu sair pela porta afora 
Não me peça para voltar

Não me procures mais
Nunca mais
Nem fiques de joelhos
Implorando o meu amor
Para que volte
Para a nossa solidão a dois

Não! Não me traga inexatas flores
Não! Não me peça perdão
Em violetas paixões 

Não! Não acredito mais
No teu amor 

Fonte: O Poeta