sábado, 28 de julho de 2018

Trova 315 - Mercedes L. Sutilo (Santos/SP)


Carolina Ramos (A Chance)


– Meia muzzarela, meia champignon. Das grandes.

Enquanto não servidos, os dois amigos punham os negócios em dia.

– É… os tempos não estão para brincadeira. Viste o que aconteceu com a Companhia onde trabalhava o Neco? Vinha ruim… balançou, balançou e vai mesmo pra cucuia. Nem a concordata deu certo. Não conseguiram se levantar. A falência rondou, rondou que nem mouro na costa até que deu o bote. Não deu jeito mesmo!

- É isso, os negócios não vão bem para ninguém – concordou Marcelo, esmagando a ponta do cigarro no cinzeiro.

A pizza chegou, roubando atenções, fumegante e cheirosa a orégano. O queijo elástico, a escorregar em fios pelas bordas das fatias apetitosas.

Marcelo, armado de garfo e faca, atacou. Detestava falar em negócios durante as refeições. Assunto indigesto! Bastavam as horas intermináveis de um dia de trabalho pouco rentável.

O amigo insistia, entre as garfadas.

– Sabes quem falou em ti, no outro dia?

– Quem?

– O Joel Figueiredo.

– O empresário?

– Esse aí.

– Aquele de Santa Catarina?

– Esse mesmo, cara. Esse mesmo. 

Marcelo interrompeu o ataque à pizza.

– E o que ele queria comigo?! Nem me conhece! E eu só o conheço de nome, é claro!

– Por isso mesmo. Ele quer te conhecer. Tem planos.

– Planos? E eu com isso?!

– Aí é que está. Ele anda à procura de alguém. E este alguém tem as tuas exatas medidas. Pelo menos, foi isso o que o Chefe lhe disse, um dia destes, por telefone. Ao que parece, os dois estão unindo forças e o que vem por aí é coisa de vulto!

– Opa! Nada mau… Minha chance a caminho! Também, já estava mais que na hora de tirar o pé da lama!

O segundo pedaço de pizza ganhou sabor especial.

– Outra cerveja, por favor… e bem geladinha, hein!…

Quando afinal cruzaram os talheres, a hora ia alta e a pizzaria já cerrava portas.

Eufórico, Marcelo fez questão de pagar a despesa. Pelo que soubera, o abastado empresário, em breve, entraria em contato com ele e, possivelmente, sua vida financeira daria aquele salto há muito esperado.

Despediu-se do amigo, grato pela notícia que lhe prenunciava sono relaxante, e uma noite repleta de sonhos bons.

O domingo amanheceu afinado com a disposição e o bom humor de Marcelo. Sol lá fora e sol no interior do pequeno apartamento.

Preparava-se para ir à praia, quando o interfone tocou. Atendeu.

– O senhor Joel está aqui embaixo e quer falar com o senhor.

Pasmo total! Marcelo, perplexo, não acreditava no que ouvira. Poderia esperar por todo mundo, naquele momento. Jamais, pelo famoso empresário, figurão do mundo das finanças! Joel Figueiredo, em pessoa, viera procura-lo em sua casa! Era demais! Isto dava cunho de maior solidez ao projeto, fosse qual fosse!… Inacreditável!

– Por favor, faça-o subir.

Desligou rapidamente o interfone. No espaço de tempo dispendido pelo elevador do térreo ao décimo andar, trocou as bermudas pelas calças novas e os chinelos de praia por sapatos esporte, ainda não usados.

O coração pulsava em ritmo acelerado.

Joel Figueiredo merecia os cuidados extras. Não poderia recebe-lo com tanta informalidade. Afinal, seu futuro ganhava uma chance. Ter o nome ligado à cadeia de empresas lideradas por Joel Figueiredo estava além da imaginação! E a chance literalmente lhe batia à porta! Todo e qualquer esforço para agarra-la seria sempre mínimo.

Quase tenso, abriu a porta no momento exato em que o elevador também se abria, apresentando-o ao recém chegado.

– Senhor Marcelo?

– Sim, sou eu. – gaguejou. – Entre, por favor, a casa é sua, Senhor Joel.

Viu logo que exagerava no trajo, uma vez que o visitante se apresentava completamente despojado de qualquer requinte.

Entendeu, sem esforço: – Gente importante é assim mesmo. Quanto mais poderosa, mais simples e descontraída se apresenta. Estratégia, talvez, para despistar. Aliás, só os inteligente agiam assim. Por conseguinte, sabia-se perante um homem inteligente.

Quebrado o constrangimento inicial, falaram de tudo, menos de negócios. Marcelo não queria ser o primeiro a tocar no assunto chave. Precisava não demonstrar avidez. Era ir com demasiada sede ao pote.

Mais admirou o visitante ao constatar sua absoluta falta de pose, e a descontração com que atacava assuntos, os mais banais, sem a preocupação de intelectualiza-los ou exibir a cultura que naturalmente seria das mais ricas. Isto acentuava a cordialidade entre ambos.

O uísque, ganho de presente, e reservado para as grandes ocasiões, correu farto, animando o diálogo. A hora do almoço se aproximava, e o convite impunha-se, inadiável. Forçou a barra:

– Bem, senhor Joel, ou melhor, Joel – a esta altura as formalidades de tratamento estavam superadas, por iniciativa do próprio visitante. Nada de senhor. Entre amigos, isto não existia.

– Bem, Joel, hoje, almoço em casa de minha noiva. Quer nos dar o prazer da companhia? Sei que sua presença seria muito festejada.

– Agradeço o convite, mas… fica para outra vez. O “papo” está bom, mas, tenho de ir.

Joel ergue-se. Marcelo começou a preocupar-se. Impaciente, arriscou:

– Espere, meu caro. Não se despeça antes de me dizer o porquê da honrosa visita.

– Ah! sim… quase que ia me esquecendo!

Os olhos de Marcelo se iluminaram à espera da revelação.

O visitante prosseguiu, com um sorriso convencional.

– O amigo esteve, ontem, com outro, na Pizzaria Veneza, não foi?

Ávido, Marcelo nem disse coisa alguma, Apenas assentiu com a cabeça, vendo aproximar-se a chance aguardada, e amarelando em seguida ao ouvir, quase incrédulo:

– Pois, é… eu trabalho lá na Veneza e me pediram para dar um pulinho até aqui, porque o amigo esqueceu de assinar o cheque…

Fonte:
Carolina Ramos. Interlúdio: contos. 
São Paulo/SP: EditorAção, abril 1993.

Gonçalves Dias (Caldeirão Poético)


NÃO ME DEIXES!

Debruçada nas águas dum regato
A flor dizia em vão
À corrente, onde bela se mirava:
"Ai, não me deixes, não!

"Comigo fica ou leva-me contigo
"Dos mares à amplidão;
"Límpido ou turvo, te amarei constante;
"Mas não me deixes, não!"

E a corrente passava; novas águas
Após as outras vão;
E a flor sempre a dizer curva na fonte:
"Ai, não me deixes, não!"

E das águas que fogem incessantes
À eterna sucessão
Dizia sempre a flor, e sempre embalde:
"Ai, não me deixes, não!"

Por fim desfalecida e a cor murchada,
Quase a lamber o chão,
Buscava inda a corrente por dizer-lhe
Que a não deixasse, não.

A corrente impiedosa a flor enleia,
Leva-a do seu torrão;
A afundar-se dizia a pobrezinha:
"Não me deixaste, não!”

OLHOS VERDES

Eles verdes são:
E têm por usança, 
na cor esperança, 
E nas obras não.
Cam. Rim.

São uns olhos verdes, verdes, 
Uns olhos de verde-mar, 
Quando o tempo vai bonança;
Uns olhos cor de esperança, 
Uns olhos por que morri;
Que ai de mim!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!

Como duas esmeraldas, 
Iguais na forma e na cor, 
Têm luz mais branda e mais forte, 
Diz uma — vida, outra — morte;
Uma — loucura, outra — amor.
Mas ai de mim!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!

São verdes da cor do prado, 
Exprimem qualquer paixão, 
Tão facilmente se inflamam, 
Tão meigamente derramam
Fogo e luz do coração
Mas ai de mim!
Nem já sei qual fiquei sendo
depois que os vi!

São uns olhos verdes, verdes, 
Que podem também brilhar;
Não são de um verde embaçado, 
Mas verdes da cor do prado, 
Mas verdes da cor do mar.
Mas ai de mim!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!

Como se lê num espelho, 
Pude ler nos olhos seus!
Os olhos mostram a alma,
Que as ondas postas em calma
Também refletem os céus;
Mas ai de mim!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!

Dizei vós, ó meus amigos, 
Se vos perguntam por mim, 
Que eu vivo só da lembrança
De uns olhos cor de esperança, 
De uns olhos verdes que vi!
Que ai de mim!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!

Dizei vós: Triste do bardo!
Deixou-se de amor finar!
Viu uns olhos verdes, verdes, 
uns olhos da cor do mar:
Eram verdes sem esp’rança,
Davam amor sem amar!
Dizei-o vós, meus amigos, 
Que ai de mim!
Não pertenço mais à vida
Depois que os vi!

SOBRE O TÚMULO DE UM MENINO
25 de outubro de 1848.

O invólucro de um anjo aqui descansa, 
Alma do céu nascida entre amargores, 
Como flor entre espinhos! — tu, que passas,
Não perguntes quem foi. — Nuvem risonha
Que um instante correu no mar da vida;
Romper da aurora que não teve ocaso, 
Realidade no céu, na terra um sonho!
Fresca rosa nas ondas da existência, 
Levada à plaga eterna do infinito, 
Como of’renda de amor ao Deus que o rege;
Não perguntes quem foi, não chores: passa.

O QUE MAIS DÓI NA VIDA

I cannot but remember such things were,
And were most dear to me.
SHAKESPEARE

O que mais dói na vida não é ver-se
Mal pago um benefício,
Nem ouvir dura voz dos que nos devem
Agradecidos votos,
Nem ter as mãos mordidas pelo ingrato,
Que as devera beijar!

Não! o que mais dói não é do mundo
A sangrenta calúnia,
Nem ver como s'infama a ação mais nobre,
Os motivos mais justos,
Nem como se deslustra o melhor feito,
A mais alta façanha!

Não! o que mais dói não é sentir-se
As mãos dum ente amado
Nos espasmos da morte resfriadas,
E os olhos que se turvam,
E os membros que entorpecem pouco e pouco,
E o rosto que descora!

Não! não é ouvir daqueles lábios,
Doces, tristes, compassivas,
Sobre o funéreo leito soluçadas
As palavras amigas,
Que tanto custa ouvir, que lembram tanto,
Que não s'esquecem nunca!

Não! não são as queixas amargadas
No triunfar da morte;
Que, se se apaga a luz da vida escassa,
Mais viva a luz rutila;
Luz da fé que não morre, luz que espanca
As trevas do sepulcro.

O que dói, mas de dor que não tem cura,
O que aflige, o que mata,
Mas de aflição cruel, de morte amara,
É morrermos em vida
No peito da mulher que idolatramos,
No coração do amigo!

Amizade e amor! — laço de flores,
Que prende um breve instante
O ligeiro batel à curva margem
De terra hospitaleira;
Com tanto amor se enastra, e tão depressa,
E tão fácil se rompe!

À mais ligeira ondulação dos mares,
Ao mais ligeiro sopro
Da viração — destrançam-se as grinaldas;
O baixel se afasta,
Veleja, foge, até que em plaga estranha
Naufragado soçobre!

Talvez permite Deus que tão depressa
Estes laços se rompam,
Por que nos pese o mundo, e os seus enganos
Mais sem custo deixemos:
Sem custo assim a brisa arrasta a planta,
Que jaz solta na terra!

sexta-feira, 27 de julho de 2018

Trova 314 - Marylland Faillace (Santos/SP)



Camilo Pessanha (Caldeirão Poético)


CAMINHO I

Tenho sonhos cruéis; n'alma doente 
Sinto um vago receio prematuro. 
Vou a medo na aresta do futuro, 
Embebido em saudades do presente... 

Saudades desta dor que em vão procuro 
Do peito afugentar bem rudemente, 
Devendo, ao desmaiar sobre o poente, 
Cobrir-me o coração dum véu escuro!... 

Porque a dor, esta falta d'harmonia, 
Toda a luz desgrenhada que alumia 
As almas doidamente, o céu d'agora, 

Sem ela o coração é quase nada: 
Um sol onde expirasse a madrugada, 
Porque é só madrugada quando chora. 

ESTÁTUA

Cansei-me de tentar o teu segredo: 
No teu olhar sem cor, - frio escalpelo, 
O meu olhar quebrei, a debatê-lo, 
Como a onda na crista dum rochedo. 

Segredo dessa alma e meu degredo 
E minha obsessão! Para bebê-lo 
Fui teu lábio oscular, num pesadelo, 
Por noites de pavor, cheio de medo. 

E o meu ósculo ardente, alucinado, 
Esfriou sobre o mármore correto 
Desse entreaberto lábio gelado... 

Desse lábio de mármore, discreto, 
Severo como um túmulo fechado, 
Sereno como um pélago quieto.

PAISAGENS DE INVERNO I

Ó meu coração, torna para trás. 
Onde vais a correr, desatinado? 
Meus olhos incendidos que o pecado 
Queimou! - o sol! Volvei, noites de paz. 

Vergam da neve os olmos dos caminhos. 
A cinza arrefeceu sobre o brasido. 
Noites da serra, o casebre transido... 
Ó meus olhos, cismai como os velhinhos. 

Extintas primaveras evocai-as: 
- Já vai florir o pomar das maceiras. 
Hemos de enfeitar os chapéus de maias.- 

Sossegai, esfriai, olhos febris. 
-E hemos de ir cantar nas derradeiras 
Ladainhas...Doces vozes senis...-

PAISAGENS DE INVERNO II

Passou o outono já, já torna o frio... 
- Outono de seu riso magoado. 
Álgido inverno! Oblíquo o sol, gelado... 
- O sol, e as águas límpidas do rio. 

Águas claras do rio! Águas do rio, 
Fugindo sob o meu olhar cansado, 
Para onde me levais meu vão cuidado? 
Aonde vais, meu coração vazio? 

Ficai, cabelos dela, flutuando, 
E, debaixo das águas fugidias, 
Os seus olhos abertos e cismando... 

Onde ides a correr, melancolias? 
- E, refratadas, longamente ondeando, 
As suas mãos translúcidas e frias…

MADALENA

...e lhe regou de lágrimas os pés e os enxugou com os cabelos da sua cabeça. 
Evangelho de S. Lucas. 

Ó Madalena, ó cabelos de rastos, 
Lírio poluído, branca flor inútil... 
Meu coração, velha moeda fútil, 
E sem relevo, os caracteres gastos, 

De resignar-se torpemente dúctil... 
Desespero, nudez de seios castos, 
Quem também fosse, ó cabelos de rastos, 
Ensanguentado, enxovalhado, inútil, 

Dentro do peito, abominável cômico! 
Morrer tranquilo, - o fastio da cama... 
Ó redenção do mármore anatômico, 

Amargura, nudez de seios castos!... 
Sangrar, poluir-se, ir de rastos na lama, 
Ó Madalena, ó cabelos de rastos!

FONÓGRAFO

Vai declamando um cômico defunto. 
Uma plateia ri, perdidamente, 
Do bom jarreta... E há um odor no ambiente. 
A cripta e a pó, - do anacrônico assunto. 

Muda o registo, eis uma barcarola: 
Lírios, lírios, águas do rio, a lua... 
Ante o Seu corpo o sonho meu flutua 
Sobre um paul, - extática corola. 

Muda outra vez: gorjeios, estribilhos 
Dum clarim de oiro - o cheiro de junquilhos, 
Vívido e agro! - tocando a alvorada... 

Cessou. E, amorosa, a alma das cornetas 
Quebrou-se agora orvalhada e velada. 
Primavera. Manhã. Que eflúvio de violetas!

SONETO

Desce em folhedos tenros a colina: 
- Em glaucos, frouxos tons adormecidos, 
Que saram, frescos, meus olhos ardidos, 
Nos quais a chama do furor declina... 

Oh vem, de branco, - do imo da folhagem! 
Os ramos, leve, a tua mão aparte. 
Oh vem! Meus olhos querem desposar-te, 
Refletir virgem a serena imagem. 

De silva doida uma haste esquiva. 
Quão delicada te osculou num dedo 
Com um aljôfar cor de rosa viva!... 

Ligeira a saia... Doce brisa impele-a... 
Oh vem! De branco! Do imo do arvoredo! 
Alma de silfo, carne de camélia…

OLVIDO

Desce por fim sobre o meu coração 
O olvido. Irrevocável. Absoluto. 
Envolve-o grave como véu de luto. 
Podes, corpo, ir dormir no teu caixão. 

A fronte já sem rugas, distendidas 
As feições, na imortal serenidade, 
Dorme enfim sem desejo e sem saudade 
Das coisas não logradas ou perdidas. 

O barro que em quimera modelaste 
Quebrou-se-te nas mãos. Viça uma flor... 
Pões-lhe o dedo, ei-la murcha sobre a haste... 

Ias andar, sempre fugia o chão, 
Até que desvairavas, do terror. 
Corria-te um suor, de inquietação…

Lima Barreto (Quase ela deu o “sim” ; mas...)


JOÃO CAZU era um moço suburbano, forte e saudável, mas pouco ativo e amigo do trabalho. Vivia em casa dos tios, numa estação de subúrbios, onde tinha moradia, comida, roupa, calçado e algum dinheiro que a sua bondosa tia e madrinha lhe dava para os cigarros. Ele, porém, não os comprava; “filava-os” dos outros. “Refundia” os niqueis que lhe dava a tia, para flores a dar às namoradas e comprar bilhetes de tômbolas, nos vários “mafuás”, mais ou menos eclesiásticos, que há por aquelas redondezas.

O conhecimento do seu hábito de “filar” cigarros aos camaradas e amigos, estava tão espalhado que, mal um deles o via, logo tirava da algibeira um cigarro; e, antes de saudá-lo, dizia:

– Toma lá o cigarro, Cazu.

Vivia assim muito bem, sem ambições nem tenções. A maior parte do dia, especialmente a tarde, empregava ele, com outros companheiros, em dar loucos pontapés numa bola, tendo por arena um terreno baldio das vizinhanças da residência dele ou melhor: dos seus tios e padrinhos.

Contudo, ainda não estava satisfeito. Restava-lhe a grave preocupação de encontrar quem lhe lavasse e engomasse a roupa, remendasse as calças e outras peças do vestuário, cerzisse as meias, etc., etc. Em resumo: ele queria uma mulher, uma esposa, adaptável ao seu jeito descansado.

Tinha visto falar em sujeitos que se casam com moças ricas e não precisam trabalhar; em outros que esposam professoras e adquirem a meritória profissão de “maridos da professora”; ele, porém, não aspirava a tanto. Apesar disso, não desanimou de descobrir uma mulher que lhe servisse convenientemente. Continuou a jogar displicentemente, o seu futebol vagabundo e a viver cheio de segurança e abundância com os seus tios e padrinhos.

Certo dia, passando pela porteira da casa de uma sua vizinha mais ou menos conhecida, ela lhe pediu:

– “Seu” Cazu, o senhor vai até à estação?

– Vou, dª Ermelinda.

– Podia me fazer um favor?

– Pois não.

– É ver se o “Seu” Gustavo da padaria “Rosa de Ouro”, me pode ceder duas estampilhas de seiscentos réis. Tenho que fazer um requerimento ao Tesouro, sobre coisas do meu montepio, com urgência, precisava muito.

– Não há dúvida, minha senhora.

Cazu, dizendo isto, pensava de si para si: “É um bom partido. Tem montepio, é viúva; o diabo são os filhos!” dª Ermelinda, à vista da resposta dele, disse:

– Está aqui o dinheiro.

Conquanto dissesse várias vezes que não precisava daquilo – o dinheiro – o impenitente jogador de football e feliz hóspede dos tios, foi embolsando os nicolaus, por causa das dúvidas.

Fez o que tinha a fazer na estação, adquiriu as estampilhas e voltou para entregá-las à viúva.

De fato, dª Ermelinda era viúva de um contínuo ou coisa parecida de uma
repartição pública. Viúva e com pouco mais de trinta anos, nada se falava da sua reputação.

Tinha uma filha e um filho que educava com grande desvelo e muito sacrifício. Era proprietária do pequeno chale onde morava, em cujo quintal havia laranjeiras e algumas outras árvores frutíferas. Fora o seu falecido marido que o adquirira com o produto de uma “sorte” na loteria; e, se ela, com a morte do esposo, o salvara das garras de escrivães, escreventes, meirinhos, solicitadores e advogados “mambembes”, devia-o à precaução do marido que comprara a casa, em nome dela.

Assim mesmo, tinha sido preciso a intervenção do seu compadre, o capitão Hermenegildo, a fim de remover os obstáculos que certos “águias” começavam a pôr, para impedir que ela entrasse em plena posse do imóvel e abocanhar-lhe afinal o seu chalezito humilde.

De volta, Cazu bateu à porta da viúva que trabalhava no interior, com cujo rendimento ela conseguia aumentar de muito o módico, senão irrisório montepio, de modo a conseguir fazer face às despesas mensais com ela e os filhos.

Percebendo a pobre viúva que era o Cazu, sem se levantar da máquina, gritou:

– Entre, “Seu” Cazu.

Estava só; os filhos ainda não tinham vindo do colégio. Cazu entrou. Após entregar as estampilhas, quis o rapaz retirar-se; mas foi obstado por Ermelinda nestes termos:

– Espere um pouco, “Seu” Cazu. Vamos tomar café.

Ele aceitou e, embora, ambos se serviram da infusão da “preciosa rubiácea”, como se diz no estilo “valorização”.

A viúva, tomando café, acompanhado com pão e manteiga, pôs-se a olhar o
companheiro com certo interesse. Ele notou e fez-se amável e galante, demorando em esvaziar a xícara. A viuvinha sorria interiormente de contentamento. Cazu pensou com os seus botões: “Está aí um bom partido: casa própria, montepio, renda das costuras; e além de tudo, há de lavar-me e consertar a roupa. Se calhou, fico livre das censuras da tia...

Essa vaga tensão ganhou mais corpo, quando a viúva, olhando-lhe a camisa, perguntou:

– “Seu “ Cazu, se eu lhe disser uma coisa, o senhor fica zangado?

– Ora, qual, dª Ermelinda?

– Bem. A sua camisa está rasgada no peito. O senhor traz “ela” amanhã, que eu conserto “ela”.

Cazu respondeu que era preciso lavá-la primeiro; mas a viúva prontificou-se em fazer isso também. O jogador dos pontapés, fingindo relutância no começo, aceitou afinal; e doido por isso estava ele, pois era uma “entrada”, para obter uma lavadeira em condições favoráveis.

Dito e feito: daí em diante, com jeito e manha, ele conseguiu que a viúva se fizesse a sua lavadeira bem em conta.

Cazu, após tal conquista, redobrou de atividade no football, abandonou os biscates e não dava um passo, para obter emprego. Que é que ele queria mais? Tinha tudo...

Na redondeza, passavam como noivos; mas não eram, nem mesmo namorados declarados. Havia entre ambos, unicamente um “namoro de caboclo”, com o que Cazu ganhou uma lavadeira, sem nenhuma exigência monetária e cultivava-o carinhosamente.

Um belo dia, após ano e pouco de tal namoro, houve um casamento na casa dos tios do diligente jogador de football. Ele, à vista da cerimônia e da festa, pensou: “Porque também eu não me caso? Porque eu não peço Ermelinda em casamento? Ela aceita, por certo; e eu...”

Matutou domingo, pois o casamento tinha sido no sábado; refletiu segunda e, na terça, cheio de coragem, chegou-se à Ermelinda e pediu-a em casamento.

– É grave isto, Cazu. Olhe que sou viúva e com dois filhos!

– Tratava “eles” bem; eu juro!

– Está bem. Sexta-feira, você vem cedo, para almoçar comigo e eu dou a
resposta.

Assim foi feito. Cazu chegou cedo e os dois estiveram a conversar; ela, com toda a naturalidade, e ele, cheio de ansiedade e apreensivo. Num dado momento, Ermelinda foi até à gaveta de um móvel e tirou de lá um papel.

– Cazu – disse ela, tendo o papel na mão – você vai à venda e à quitanda e compra o que está aqui nesta “nota”. É para o almoço.

Cazu agarrou trêmulo o papelucho e pôs-se a ler o seguinte:
1 quilo de feijão..................600 rs.
1/2 de farinha.....................200 ”
1/2 de bacalhau............. 1$200 ”
1/2 de batatas.................... 360 ”
Cebolas.............................. 200 ”
Alhos................................. 100 ”
Azeite................................ 300 ”
Sal..................................... 100 ”
Vinagre............................ 200 ”
__
 3$260 rs.
Quitanda:
Carvão............................ 200 rs.
Couve............................. 200 ”
Salsa............................... 100 ”
Cebolinha....................... 100 ”_
Tudo.......................... 3$860 rs.

Acabada a leitura, Cazu não se levantou logo da cadeira; e, com a lista na mão, a olhar de um lado a outro, parecia atordoado, estuporado.

– Anda Cazu, fez a viúva. Assim, demorando, o almoço fica tarde...

– É que...

– Que há?

– Não tenho dinheiro.

– Mas você não quer casar comigo? É mostrar atividade, meu filho! Dê os seus passos... Vá! Um chefe de família não se atrapalha... É agir!

João Cazu, tendo a lista de gêneros na mão, ergueu-se da cadeira, saiu e não mais voltou...

Fonte:
Lima Barreto. Contos.

quinta-feira, 26 de julho de 2018

Florilégio de Trovas n. 23 (lançamento)


Já saiu o número 23 da revista Florilégio de Trovas.

Em suas 68 páginas:
105 Trovadores de Ontem e de Hoje
 A. A. de Assis: Francisco, o poeta
Trovas do sergipano Julimar Andrade Vieira
Nei Garcez: Eclipse (em trovas)
Trovas Premiadas do I Concurso Nacional de Trovas da UBT/ES
Trovas Premiadas do XI Jogos Florais da UBT/Juiz de Fora
Aparício Fernandes: Plágios, Coincidências e “Homenagens” (Parte final)
Baú da Memória com foto de trovadores
15 Concursos de Trovas com Inscrições Abertas

Se ainda não possui, solicite a revista (em pdf), em florilegiodetrovas@vivaldi.net

Alphonsus de Guimaraens (Caldeirão Poético)


I

Mãos de finada, aquelas mãos de neve,
De tons marfíneos, de ossatura rica,
Pairando no ar, num gesto brando e leve,
Que parece ordenar, mas que suplica.

Erguem-se ao longe como se as eleve 
Alguém que ante os altares sacrifica:
Mãos que consagram, mãos que partem breve, 
Mas cuja sombra nos meus olhos fica...

Mãos de esperança para as almas loucas, 
Brumosas mãos que vêm brancas, distantes, 
Fechar ao mesmo tempo tantas bocas...

Sinto-as agora, ao luar, descendo juntas,
Grandes, magoadas, pálidas, tateantes,
Cerrando os olhos das visões defuntas...

II

Celeste... É assim, divina, que te chamas.
Belo nome tu tens, Dona Celeste...
Que outro terias entre humanas damas,
Tu que embora na terra do céu vieste?

Celeste... E como tu és do céu não amas: 
Forma imortal que o espírito reveste
De luz, não temes sol, não temes chamas, 
Porque és sol, porque és luar, sendo celeste.

Incoercível como a melancolia,
Andas em tudo: o sol no poente vasto
Pede-te a mágoa do findar do dia.

E a lua, em meio à noite constelada,
Pede-te o luar indefinido e casto
Da tua palidez de hóstia sagrada.

IV

Vagueiam suavemente os teus olhares
Pelo amplo céu franjado em linho:
Comprazem-te as visões crepusculares...
Tu és uma ave que perdeu o ninho.

Em que nichos doirados, em que altares 
Repoisas, anjo errante, de mansinho?
E penso, ao ver-te envolta em véus de luares, 
Que vês no azul o teu caixão de pinho.

És a essência de tudo quanto desce
Do solar das celestes maravilhas...
- Harpa dos crentes, cítola da prece...

Lua eterna que não tivesse fases,
Cintilas branca, imaculada brilhas,
E poeiras de astros nas sandálias trazes…

X

Hirta e branca... Repousa a sua áurea cabeça 
Numa almofada de cetim bordada em lírios. 
Ei-la morta afinal como quem adormeça
Aqui para sofrer Além novos martírios.

De mãos postas, num sonho ausente, a sombra espessa
Do seu corpo escurece a luz dos quatro círios:
Ela faz-me pensar numa ancestral Condessa
Da Idade Média, morta em sagrados delírios.

Os poentes sepulcrais do extremo desengano 
Vão enchendo de luto as paredes vazias, 
E velam para sempre o seu olhar humano.

Expira, ao longe, o vento, e o luar, longinquamente, 
Alveja, embalsamando as brancas agonias
Na sonolenta paz desta Câmara-ardente…

XIX

Hão de chorar por ela os cinamomos,
Murchando as flores ao tombar do dia.
Dos laranjais hão de cair os pomos,
Lembrando-se daquela que os colhia.

As estrelas dirão: - "Ai! nada somos, 
Pois ela se morreu, silente e fria... " 
E pondo os olhos nela como pomos,
Hão de chorar a irmã que lhes sorria.

A lua, que lhe foi mãe carinhosa,
Que a viu nascer e amar, há de envolvê-la
Entre lírios e pétalas de rosa.

Os meus sonhos de amor serão defuntos...
E os arcanjos dirão no azul ao vê-la,
Pensando em mim: - "Por que não vieram juntos?”

LXXV

Como se moço e não bem velho eu fosse
Uma nova ilusão veio animar-me.
Na minh'alma floriu um novo carme,
O meu ser para o céu alcandorou-se.

Ouvi gritos em mim como um alarme.
E o meu olhar, outrora suave e doce,
Nas ânsias de escalar o azul, tornou-se
Todo em raios que vinham desolar-me.

Vi-me no cimo eterno da montanha,
Tentando unir ao peito a luz dos círios
Que brilhavam na paz da noite estranha.

Acordei do áureo sonho em sobressalto:
Do céu tombei aos caos dos meus martírios, 
Sem saber para que subi tão alto…