domingo, 29 de julho de 2018

Contos e Lendas do Mundo (Inuit: Pássaro negro, Céu resplandecente)

Hoje, a terra dos esquimós canadianos (Inuit) tem luz do dia durante metade do ano e noite durante a outra metade. Porém, segundo um mito esquimó, não foi sempre assim. Era um lugar de noite eterna.

Outrora, na bruma do tempo, a terra dos esquimós era um lugar de completa escuridão. Era um local ermo de desertos gelados, onde o frio cortante trespassava as peles usadas pelos esquimós e cravava os seus dentes até ao tutano. Mas pior do que o frio era a interminável noite. Meia-noite ou meio-dia, o céu era negro como os vultos das focas a nadar por baixo do gelo.

Nesta escuridão, nasciam crianças, construíam-se iglus e caçavam-se animais. O tempo parecia não ter significado, porque não havia dias para contar. O povo deste deserto terrível tinha apenas as suas lamparinas de óleo de foca para iluminar a escuridão.

Para passar o tempo, os esquimós passavam a maior parte das suas vidas dentro dos iglus a contar histórias uns aos outros, mas um dos mais populares contadores de histórias não era um humano. Era um corvo.

Ao contrário dos esquimós, este pássaro viajara por toda a parte. Numa hora, as suas asas podiam levá-lo a uma distância que um homem ou uma mulher só conseguiam cobrir ao fim de um dia de caminhada sobre o gelo traiçoeiro sem a luz do Sol para os guiar. No entanto, as horas e os dias não significavam nada para os esquimós canadianos.

O Corvo falava-lhes de todas as outras terras que vira e de uma coisa chamada Luz do Dia.

–  O que é essa Luz do Dia de que falas? - indagou um jovem caçador. - Não compreendo.

–  E mais brilhante do que o relâmpago que ilumina o céu numa trovoada - disse o Corvo. - Porém, ao contrário do relâmpago, não desaparece num piscar de olhos.

–  Queres dizer que o céu fica brilhante? - perguntou o jovem caçador.

–  Sim - disse o Corvo. - Em vez do céu ser escuro como as pupilas dos teus olhos, é claro como o branco que as rodeia.

 –  Como é que isso é possível? - perguntou uma velhota. - Já vivi mais do que qualquer um que está sentado neste círculo, e nunca vi essa coisa a que chamas Luz do Dia.

 –  Nunca nenhum de nós viu algo com nitidez! - gritou o jovem caçador. - Vivemos num mundo de sombras... num mundo iluminado pelo brilho amarelado das nossas lamparinas de óleo de foca. Sem isso, seríamos completamente cegos.

 –  Então traz-nos um pouco dessa Luz do Dia, Corvo, para nos ajudar nas nossas vidas diárias - suplicou a velhota. - Não para provar a verdade do que dizes, pois não duvidamos da tua palavra, mas para nos ajudar.

 O Corvo estava sempre ansioso por ajudar os esquimós. Não tinha nenhum motivo para visitar a terra deles, mas eles eram seus amigos e era por isso que voltava sempre para eles.

 –  Sim - acrescentou o jovem caçador. - Importas-te de ir até ao mundo da Luz do Dia e de nos trazer um pouco dela?

 –  Vou tentar - disse o Corvo.

 Na manhã seguinte - embora ninguém pudesse afirmar que era manhã, pois o céu ainda estava negro - o Corvo partiu para a sua viagem. Uma multidão de pessoas juntara-se na escuridão para o ver partir.

 –  Boa sorte! - gritaram, mas no momento em que ele voou para o céu, deixaram de ver o seu amigo, pois as suas penas eram tão negras como o ar que o rodeava.

 Voou até avistar uma luz bruxuleante no horizonte. Chegara finalmente à terra da Luz do Dia e então - e só então - pousou, completamente esgotado, para dormir.

 Quando o Corvo acordou, pensou na missão que tinha pela frente. Os esquimós eram boas pessoas. Como a comida era escassa na sua terra, partilhavam sempre com prazer o pouco que tinham entre si. O Corvo sabia que nem todas as pessoas se comportavam assim, e que aqueles que possuíam a Luz do Dia não estariam dispostos a dar-lhe um pouco dela, por mais pequeno que fosse esse pouco. Teria de a roubar.

 O Corvo voou até uma aldeia e procurou a casa do chefe, porque sabia que a pessoa mais importante da aldeia estaria encarregue da Luz do Dia. Pousou no peitoril da janela e viu uma criança a engatinhar em cima de um tapete de pele de urso, sob a vigilância do seu amado avô, o chefe.

 O Corvo viu pela expressão do chefe que adorava o seu neto e que faria tudo por ele. O rapaz poderia pedir qualquer coisa que o avô, para o fazer feliz, lha daria - o Corvo não tinha qualquer dúvida a esse respeito.

 Uns dizem que o Corvo se transformou num grão de poeira e entrou na orelha do rapazinho. Outros dizem que o Corvo falou com o rapaz quando o chefe saiu de casa para ajudar a filha a transportar um balde de água. Fosse como fosse, o Corvo suspirou para o rapaz:

 –  Pede ao teu avô um bocado de Luz do Dia... um bocadinho chegará, com um fio para a segurar.

 O rapaz, excitado, gritou:

 –  Vovô! Vovô! Deixe-me brincar com um bocadinho de Luz do Dia. Mas a Luz do Dia era demasiado preciosa para se poder brincar com ela, por isso o chefe tentou distrair o neto.

 –  Agora não, criança - disse ele. - Deixa-me contar-te a história de Nanook, o urso branco.

Pegou num pequeno urso feito de dente de morsa e pô-lo num tapete ao lado do rapaz. Depois, começou a contar ao neto a sua história favorita - o conto esquimó de como um urso-polar salvou a vida de um homem aquecendo-o com o seu corpo e pescando peixe para ele comer, e de como ele ensinou ao homem que os ursos e os homens eram irmãos.

Porém, pela primeira vez, a história perdeu a sua magia. O rapaz só pensava na Luz do Dia. Era só um bocadinho de Luz do Dia que ele queria para brincar e, depois de começar a chorar, foi um bocadinho de Luz do Dia que lhe foi dado - com um fio para a segurar.

–  Obrigado, vovô! - O rapaz sorriu, segurando a brilhante orbe.

Antes que alguém soubesse o que estava a acontecer, o Corvo bateu as asas desde o sítio onde estivera escondido e agarrou no fio.

Fugiu então pela porta que fora aberta pelo pai do rapaz, que regressava de uma caçada.

O Corvo voou em direção ao céu, esquivando-se a uma torrente de setas disparadas contra ele pelo chefe e os seus aldeões. Com ele, levava o bocado de Luz do Dia, brilhante como uma bola cor de laranja. Continuou a voar, sem nunca se atrever a parar, enquanto levava a Luz do Dia aos seus amigos, os esquimós.

Era apenas um bocadinho, naturalmente, porque o Corvo não teria conseguido transportar algo muito maior, mas era suficientemente grande para fornecer luz e calor aos seus amigos durante meio ano. Pela primeira vez, tinham luz natural. A velhota, o jovem caçador e todos os outros esquimós ficaram muito gratos por aquilo que o Corvo fizera, arriscando a vida para lhes trazer a Luz do Dia.

–  Obrigado - disseram. - Nunca esqueceremos o que fizeste por nós. As tuas façanhas serão contadas em histórias pelos nossos filhos e netos. O teu nome perdurará entre o nosso povo para sempre.

Numa terra onde a caça é ainda difícil e a comida é ainda escassa, os esquimós canadianos nunca matam corvos. São amigos dos pássaros, e agora sabeis porquê.

Fonte:

Os Inuit (Esquimós)

Durante séculos, os Inuit sempre foram chamados de "esquimós" por aqueles que não são Inuit. Os Inuit não mais consideram este termo aceitável. Preferem o nome pelo qual eles próprios sempre se identificaram, Inuit, que significa "povo" em seu próprio idioma, o inuktitut.

Os Inuit habitam vastas áreas em Nunavut, nos Territórios do Noroeste, na costa norte de Labrador e em aproximadamente 25% do norte de Quebec. Tradicionalmente, eles habitavam acima da área arborizada na região onde se encontra a fronteira com o Alasca, no oeste, a costa de Labrador à leste, a ponta sul da Baía de Hudson ao sul e as ilhas do alto Ártico ao norte.

Cerca de 55.700 Inuit vivem em 53 comunidades em todo o norte canadense. A população Inuit cresceu rapidamente nas últimas décadas. De acordo com a agência governamental de estatísticas "Statistics Canada", se a tendência continuar, haverá cerca de 84.600 Inuit no norte canadense por volta de 2016.

Os Inuit são um dos três povos aborígines do Canadá, conforme definido pela constituição canadense. Os outros dois povos aborígines são denominados "Primeiras Nações" e "Métis".

Uma cultura enraizada na terra

As origens dos Inuit no Canadá datam de pelo menos 4.000 anos atrás. Sua cultura é profundamente enraizada na vasta terra em que habitam. Por milhares de anos, os Inuit observaram atentamente o clima, as paisagens terrestres e marítimas, e os sistemas ecológicos de sua vasta pátria. Com base nesse conhecimento íntimo da terra e de suas formas de vida, os Inuit desenvolveram habilidades e tecnologias peculiares e adaptadas a um dos ambientes mais inóspitos e exigentes do planeta.

Os Inuit tratavam com o mesmo respeito os seres humanos, a terra, os animais e as plantas. Hoje, continuam tentando manter este relacionamento harmonioso. Tentam utilizar os recursos da terra e do mar com sabedoria para preservá-los para as gerações futuras.

Na caça, seguem tradições e regras rigorosas para ajudar a manter este equilíbrio.

Para os Inuit de Labrador, por exemplo, é proibido matar qualquer animal em sua época de reprodução.

Antes da criação das colônias permanentes nas décadas de 1940 e 1950, os Inuit migravam conforme as estações. Eles estabeleciam acampamentos de verão e de inverno, aos quais retornavam anualmente.

Estes campos sazonais permitiam que os Inuit usassem os recursos da terra e do mar nas épocas do ano em que eram mais abundantes.

Eram transmitidos de geração a geração os conhecimentos tradicionais sobre a história dos Inuit, suas terras e plantas, e sobre os animais selvagens.A família é o centro da cultura Inuit, e cooperação e compartilhamento são princípios básicos na sociedade Inuit.

Eles compartilham os alimentos que trazem da caça, e cada um faz a sua parte para ajudar aos necessitados.

A cultura Inuit foi exposta a muitas influências externas durante o último século. Entretanto, os Inuit conseguiram reter seus valores e cultura.O inuktitut ainda é falado em todas as comunidades Inuit. Ele é também o principal idioma utilizado em programas de rádio e televisão originados no norte canadense, e faz parte do currículo escolar.

Muitas comunidades Inuit continuam a praticar as danças e canções tradicionais, que incluem dança de tambores e canto gutural (canto tradicionalmente executado por mulheres Inuit, que produzem sons guturais). A tradição oral e a narração de estórias ainda permanecem bem vivas na cultura Inuit, com lendas passadas entre as gerações ao longo dos séculos. Tais estórias frequentemente falam de espíritos poderosos que habitam a terra e o mar, e têm sido uma contínua fonte de inspiração para artistas Inuit, cujas gravuras e esculturas são apreciadas por colecionadores e galerias de arte em todo o mundo.

Os primeiros contatos regulares entre os Inuit e os europeus começaram em meados do século XVII, quando os navios baleeiros europeus chegaram ao Ártico. No fim do século XVIII, a indústria da caça à baleia declinava, e foi substituída pelo comércio de peles. Nas décadas seguintes, um relacionamento econômico baseado no comércio de peles se desenvolveu entre os Inuit e os europeus.

Exceto pelos encontros com os negociantes de peles e alguns exploradores, os Inuit tiveram pouco contato com o resto do Canadá até a década de 1940. Nesta época, o governo canadense já havia começado a marcar presença no Ártico.

O governo encorajou os Inuit a morar em colônias permanentes, ao invés de em seus acampamentos sazonais. As colônias logo começaram a serem apoiadas por destacamentos da Polícia Montada do Canadá (RCMP, Royal Canadian Mounted Police), por serviços de saúde e de assistência social, e por um programa habitacional.

Na década de 1960, os Inuit começaram a formar cooperativas de mercado para facilitar a venda de produtos locais, incluindo gravuras artísticas e esculturas entalhadas que se tornariam famosas em todo o mundo. No fim da década de 1970, as novas colônias centralizadas haviam se tornado uma característica permanente na vida Inuit, com novas escolas e melhores instalações para assistência médica. As rotas aéreas regulares e as telecomunicações ajudaram a conectar as colônias umas às outras e ao resto do mundo.

As comunidades Inuit são governadas por conselhos municipais eleitos. Apoiando estes conselhos existem comitês que tratam de assuntos como caça, pesca, uso de armadilhas, saúde e educação. As escolas Inuit de hoje oferecem um sistema educacional moderno que inclui matérias culturais, como o ensino do idioma inuktitut.

Atualmente os Inuit trabalham em todos os setores da economia, incluindo mineração, petróleo e gás, construção, no governo e em serviços administrativos. Muitos Inuit ainda complementam suas rendas por meio da caça.

O turismo é uma indústria crescente na economia Inuit. Guias Inuit levam turistas em passeios com trenós puxados por cães e em expedições de caça, e trabalham em hospedarias para caçadores e pescadores. Cerca de 30% dos Inuit obtêm ganhos trabalhando meio período com suas esculturas, entalhes e gravuras.

A colonização de terras reivindicadas nos territórios do Nordeste canadense e norte de Québec resultaram em recursos financeiros para os Inuit e proveram uma estrutura para iniciar e expandir atividades de desenvolvimento econômico. Os novos negócios emergentes incluem imóveis, turismo, empresas aéreas e empresas pesqueiras em alto mar.

Desde meados da década de 1970, os Inuit negociaram várias reivindicações de terras de grande abrangência com o governo federal, com o governo dos Territórios do Nordeste e com o da província de Québec. Tais reivindicações incluem a Baía James e o Acordo do Norte de Québec, assinado em 1975, o Acordo Final de Inuvialuit, assinado em 1984 pelos Inuit do Ártico Ocidental, o Acordo de Reivindicações de Terras de Nunavut, concluído em 1993, e o Acordo de Reivindicações de Terras Inuit de Labrador, assinado em 2005. Cada um destes acordos atende as necessidades de uma região específica. Em todos os casos, o pacote de colonização inclui compensação financeira, direitos às terras, direitos de caça e oportunidades de desenvolvimento econômico. No Acordo de Reivindicações de Terras de Nunavut o governo federal também se comprometeu com a divisão dos Territórios do Nordeste e a criação do território de Nunavut em 1o de abril de 1999.

A empresa Makivik, que representa os Inuit do norte de Québec, rubricou o Acordo de Reivindicações de Terras Inuit de Nunavik com o governo de Nunavut e o governo do Canadá, em preparação às assinaturas.

Até a década de 1970, os Inuit não tinham organizações regionais nem nacionais para representá-los politicamente. Entretanto, nos primeiros anos da década de 1970, emergiu um grupo de novos líderes. Eles fundaram a organização Inuit Tapiriit Kanatami (ITK) em 1971. Os líderes da ITK trabalharam como lobistas para obter mudanças em políticas que afetavam os Inuit e seu papel no Canadá. O resultado de seus esforços foi que o governo federal forneceu financiamentos a longo prazo para ajudá-los a estabelecer organizações Inuit regionais e nacionais. Usando estes financiamentos, as organizações Inuit se concentraram em temas tais como governo autônomo, reconhecimento constitucional dos direitos de aborígines, questões ambientais e reivindicações de terras.

A Inuit Broadcasting Corporation é a organização nacional encarregada dos serviços de transmissão de rádio e TV dos Inuit. Por meio da Television Northern Canada, a organização transmite programas de televisão Inuit nas regiões de Nunavut, Territórios do Nordeste, Norte de Québec e Labrador, bem como no território Yukon.

Além das organizações nacionais e regionais Inuit, os Inuit do Canadá trabalham para apoiar grupos culturais Inuit que cruzam fronteiras internacionais. Em 1977 a Conferência Circumpolar Inuit foi criada para representar os interesses dos Inuit do Canadá, Groenlândia, Chukota (Rússia) e Alasca. A organização trabalha para fortalecer a união entre os Inuit nessas regiões e promove o desenvolvimento sustentável e os direitos e interesses dos Inuit em nível internacional.

A Conferência também dá aos Inuit do Canadá a oportunidade de participarem em projetos e parcerias de desenvolvimento econômico em toda a região circumpolar, e com povos indígenas em outras partes do mundo.

Fonte:

sábado, 28 de julho de 2018

Trova 315 - Mercedes L. Sutilo (Santos/SP)


Carolina Ramos (A Chance)


– Meia muzzarela, meia champignon. Das grandes.

Enquanto não servidos, os dois amigos punham os negócios em dia.

– É… os tempos não estão para brincadeira. Viste o que aconteceu com a Companhia onde trabalhava o Neco? Vinha ruim… balançou, balançou e vai mesmo pra cucuia. Nem a concordata deu certo. Não conseguiram se levantar. A falência rondou, rondou que nem mouro na costa até que deu o bote. Não deu jeito mesmo!

- É isso, os negócios não vão bem para ninguém – concordou Marcelo, esmagando a ponta do cigarro no cinzeiro.

A pizza chegou, roubando atenções, fumegante e cheirosa a orégano. O queijo elástico, a escorregar em fios pelas bordas das fatias apetitosas.

Marcelo, armado de garfo e faca, atacou. Detestava falar em negócios durante as refeições. Assunto indigesto! Bastavam as horas intermináveis de um dia de trabalho pouco rentável.

O amigo insistia, entre as garfadas.

– Sabes quem falou em ti, no outro dia?

– Quem?

– O Joel Figueiredo.

– O empresário?

– Esse aí.

– Aquele de Santa Catarina?

– Esse mesmo, cara. Esse mesmo. 

Marcelo interrompeu o ataque à pizza.

– E o que ele queria comigo?! Nem me conhece! E eu só o conheço de nome, é claro!

– Por isso mesmo. Ele quer te conhecer. Tem planos.

– Planos? E eu com isso?!

– Aí é que está. Ele anda à procura de alguém. E este alguém tem as tuas exatas medidas. Pelo menos, foi isso o que o Chefe lhe disse, um dia destes, por telefone. Ao que parece, os dois estão unindo forças e o que vem por aí é coisa de vulto!

– Opa! Nada mau… Minha chance a caminho! Também, já estava mais que na hora de tirar o pé da lama!

O segundo pedaço de pizza ganhou sabor especial.

– Outra cerveja, por favor… e bem geladinha, hein!…

Quando afinal cruzaram os talheres, a hora ia alta e a pizzaria já cerrava portas.

Eufórico, Marcelo fez questão de pagar a despesa. Pelo que soubera, o abastado empresário, em breve, entraria em contato com ele e, possivelmente, sua vida financeira daria aquele salto há muito esperado.

Despediu-se do amigo, grato pela notícia que lhe prenunciava sono relaxante, e uma noite repleta de sonhos bons.

O domingo amanheceu afinado com a disposição e o bom humor de Marcelo. Sol lá fora e sol no interior do pequeno apartamento.

Preparava-se para ir à praia, quando o interfone tocou. Atendeu.

– O senhor Joel está aqui embaixo e quer falar com o senhor.

Pasmo total! Marcelo, perplexo, não acreditava no que ouvira. Poderia esperar por todo mundo, naquele momento. Jamais, pelo famoso empresário, figurão do mundo das finanças! Joel Figueiredo, em pessoa, viera procura-lo em sua casa! Era demais! Isto dava cunho de maior solidez ao projeto, fosse qual fosse!… Inacreditável!

– Por favor, faça-o subir.

Desligou rapidamente o interfone. No espaço de tempo dispendido pelo elevador do térreo ao décimo andar, trocou as bermudas pelas calças novas e os chinelos de praia por sapatos esporte, ainda não usados.

O coração pulsava em ritmo acelerado.

Joel Figueiredo merecia os cuidados extras. Não poderia recebe-lo com tanta informalidade. Afinal, seu futuro ganhava uma chance. Ter o nome ligado à cadeia de empresas lideradas por Joel Figueiredo estava além da imaginação! E a chance literalmente lhe batia à porta! Todo e qualquer esforço para agarra-la seria sempre mínimo.

Quase tenso, abriu a porta no momento exato em que o elevador também se abria, apresentando-o ao recém chegado.

– Senhor Marcelo?

– Sim, sou eu. – gaguejou. – Entre, por favor, a casa é sua, Senhor Joel.

Viu logo que exagerava no trajo, uma vez que o visitante se apresentava completamente despojado de qualquer requinte.

Entendeu, sem esforço: – Gente importante é assim mesmo. Quanto mais poderosa, mais simples e descontraída se apresenta. Estratégia, talvez, para despistar. Aliás, só os inteligente agiam assim. Por conseguinte, sabia-se perante um homem inteligente.

Quebrado o constrangimento inicial, falaram de tudo, menos de negócios. Marcelo não queria ser o primeiro a tocar no assunto chave. Precisava não demonstrar avidez. Era ir com demasiada sede ao pote.

Mais admirou o visitante ao constatar sua absoluta falta de pose, e a descontração com que atacava assuntos, os mais banais, sem a preocupação de intelectualiza-los ou exibir a cultura que naturalmente seria das mais ricas. Isto acentuava a cordialidade entre ambos.

O uísque, ganho de presente, e reservado para as grandes ocasiões, correu farto, animando o diálogo. A hora do almoço se aproximava, e o convite impunha-se, inadiável. Forçou a barra:

– Bem, senhor Joel, ou melhor, Joel – a esta altura as formalidades de tratamento estavam superadas, por iniciativa do próprio visitante. Nada de senhor. Entre amigos, isto não existia.

– Bem, Joel, hoje, almoço em casa de minha noiva. Quer nos dar o prazer da companhia? Sei que sua presença seria muito festejada.

– Agradeço o convite, mas… fica para outra vez. O “papo” está bom, mas, tenho de ir.

Joel ergue-se. Marcelo começou a preocupar-se. Impaciente, arriscou:

– Espere, meu caro. Não se despeça antes de me dizer o porquê da honrosa visita.

– Ah! sim… quase que ia me esquecendo!

Os olhos de Marcelo se iluminaram à espera da revelação.

O visitante prosseguiu, com um sorriso convencional.

– O amigo esteve, ontem, com outro, na Pizzaria Veneza, não foi?

Ávido, Marcelo nem disse coisa alguma, Apenas assentiu com a cabeça, vendo aproximar-se a chance aguardada, e amarelando em seguida ao ouvir, quase incrédulo:

– Pois, é… eu trabalho lá na Veneza e me pediram para dar um pulinho até aqui, porque o amigo esqueceu de assinar o cheque…

Fonte:
Carolina Ramos. Interlúdio: contos. 
São Paulo/SP: EditorAção, abril 1993.

Gonçalves Dias (Caldeirão Poético)


NÃO ME DEIXES!

Debruçada nas águas dum regato
A flor dizia em vão
À corrente, onde bela se mirava:
"Ai, não me deixes, não!

"Comigo fica ou leva-me contigo
"Dos mares à amplidão;
"Límpido ou turvo, te amarei constante;
"Mas não me deixes, não!"

E a corrente passava; novas águas
Após as outras vão;
E a flor sempre a dizer curva na fonte:
"Ai, não me deixes, não!"

E das águas que fogem incessantes
À eterna sucessão
Dizia sempre a flor, e sempre embalde:
"Ai, não me deixes, não!"

Por fim desfalecida e a cor murchada,
Quase a lamber o chão,
Buscava inda a corrente por dizer-lhe
Que a não deixasse, não.

A corrente impiedosa a flor enleia,
Leva-a do seu torrão;
A afundar-se dizia a pobrezinha:
"Não me deixaste, não!”

OLHOS VERDES

Eles verdes são:
E têm por usança, 
na cor esperança, 
E nas obras não.
Cam. Rim.

São uns olhos verdes, verdes, 
Uns olhos de verde-mar, 
Quando o tempo vai bonança;
Uns olhos cor de esperança, 
Uns olhos por que morri;
Que ai de mim!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!

Como duas esmeraldas, 
Iguais na forma e na cor, 
Têm luz mais branda e mais forte, 
Diz uma — vida, outra — morte;
Uma — loucura, outra — amor.
Mas ai de mim!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!

São verdes da cor do prado, 
Exprimem qualquer paixão, 
Tão facilmente se inflamam, 
Tão meigamente derramam
Fogo e luz do coração
Mas ai de mim!
Nem já sei qual fiquei sendo
depois que os vi!

São uns olhos verdes, verdes, 
Que podem também brilhar;
Não são de um verde embaçado, 
Mas verdes da cor do prado, 
Mas verdes da cor do mar.
Mas ai de mim!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!

Como se lê num espelho, 
Pude ler nos olhos seus!
Os olhos mostram a alma,
Que as ondas postas em calma
Também refletem os céus;
Mas ai de mim!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!

Dizei vós, ó meus amigos, 
Se vos perguntam por mim, 
Que eu vivo só da lembrança
De uns olhos cor de esperança, 
De uns olhos verdes que vi!
Que ai de mim!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!

Dizei vós: Triste do bardo!
Deixou-se de amor finar!
Viu uns olhos verdes, verdes, 
uns olhos da cor do mar:
Eram verdes sem esp’rança,
Davam amor sem amar!
Dizei-o vós, meus amigos, 
Que ai de mim!
Não pertenço mais à vida
Depois que os vi!

SOBRE O TÚMULO DE UM MENINO
25 de outubro de 1848.

O invólucro de um anjo aqui descansa, 
Alma do céu nascida entre amargores, 
Como flor entre espinhos! — tu, que passas,
Não perguntes quem foi. — Nuvem risonha
Que um instante correu no mar da vida;
Romper da aurora que não teve ocaso, 
Realidade no céu, na terra um sonho!
Fresca rosa nas ondas da existência, 
Levada à plaga eterna do infinito, 
Como of’renda de amor ao Deus que o rege;
Não perguntes quem foi, não chores: passa.

O QUE MAIS DÓI NA VIDA

I cannot but remember such things were,
And were most dear to me.
SHAKESPEARE

O que mais dói na vida não é ver-se
Mal pago um benefício,
Nem ouvir dura voz dos que nos devem
Agradecidos votos,
Nem ter as mãos mordidas pelo ingrato,
Que as devera beijar!

Não! o que mais dói não é do mundo
A sangrenta calúnia,
Nem ver como s'infama a ação mais nobre,
Os motivos mais justos,
Nem como se deslustra o melhor feito,
A mais alta façanha!

Não! o que mais dói não é sentir-se
As mãos dum ente amado
Nos espasmos da morte resfriadas,
E os olhos que se turvam,
E os membros que entorpecem pouco e pouco,
E o rosto que descora!

Não! não é ouvir daqueles lábios,
Doces, tristes, compassivas,
Sobre o funéreo leito soluçadas
As palavras amigas,
Que tanto custa ouvir, que lembram tanto,
Que não s'esquecem nunca!

Não! não são as queixas amargadas
No triunfar da morte;
Que, se se apaga a luz da vida escassa,
Mais viva a luz rutila;
Luz da fé que não morre, luz que espanca
As trevas do sepulcro.

O que dói, mas de dor que não tem cura,
O que aflige, o que mata,
Mas de aflição cruel, de morte amara,
É morrermos em vida
No peito da mulher que idolatramos,
No coração do amigo!

Amizade e amor! — laço de flores,
Que prende um breve instante
O ligeiro batel à curva margem
De terra hospitaleira;
Com tanto amor se enastra, e tão depressa,
E tão fácil se rompe!

À mais ligeira ondulação dos mares,
Ao mais ligeiro sopro
Da viração — destrançam-se as grinaldas;
O baixel se afasta,
Veleja, foge, até que em plaga estranha
Naufragado soçobre!

Talvez permite Deus que tão depressa
Estes laços se rompam,
Por que nos pese o mundo, e os seus enganos
Mais sem custo deixemos:
Sem custo assim a brisa arrasta a planta,
Que jaz solta na terra!

sexta-feira, 27 de julho de 2018

Trova 314 - Marylland Faillace (Santos/SP)



Camilo Pessanha (Caldeirão Poético)


CAMINHO I

Tenho sonhos cruéis; n'alma doente 
Sinto um vago receio prematuro. 
Vou a medo na aresta do futuro, 
Embebido em saudades do presente... 

Saudades desta dor que em vão procuro 
Do peito afugentar bem rudemente, 
Devendo, ao desmaiar sobre o poente, 
Cobrir-me o coração dum véu escuro!... 

Porque a dor, esta falta d'harmonia, 
Toda a luz desgrenhada que alumia 
As almas doidamente, o céu d'agora, 

Sem ela o coração é quase nada: 
Um sol onde expirasse a madrugada, 
Porque é só madrugada quando chora. 

ESTÁTUA

Cansei-me de tentar o teu segredo: 
No teu olhar sem cor, - frio escalpelo, 
O meu olhar quebrei, a debatê-lo, 
Como a onda na crista dum rochedo. 

Segredo dessa alma e meu degredo 
E minha obsessão! Para bebê-lo 
Fui teu lábio oscular, num pesadelo, 
Por noites de pavor, cheio de medo. 

E o meu ósculo ardente, alucinado, 
Esfriou sobre o mármore correto 
Desse entreaberto lábio gelado... 

Desse lábio de mármore, discreto, 
Severo como um túmulo fechado, 
Sereno como um pélago quieto.

PAISAGENS DE INVERNO I

Ó meu coração, torna para trás. 
Onde vais a correr, desatinado? 
Meus olhos incendidos que o pecado 
Queimou! - o sol! Volvei, noites de paz. 

Vergam da neve os olmos dos caminhos. 
A cinza arrefeceu sobre o brasido. 
Noites da serra, o casebre transido... 
Ó meus olhos, cismai como os velhinhos. 

Extintas primaveras evocai-as: 
- Já vai florir o pomar das maceiras. 
Hemos de enfeitar os chapéus de maias.- 

Sossegai, esfriai, olhos febris. 
-E hemos de ir cantar nas derradeiras 
Ladainhas...Doces vozes senis...-

PAISAGENS DE INVERNO II

Passou o outono já, já torna o frio... 
- Outono de seu riso magoado. 
Álgido inverno! Oblíquo o sol, gelado... 
- O sol, e as águas límpidas do rio. 

Águas claras do rio! Águas do rio, 
Fugindo sob o meu olhar cansado, 
Para onde me levais meu vão cuidado? 
Aonde vais, meu coração vazio? 

Ficai, cabelos dela, flutuando, 
E, debaixo das águas fugidias, 
Os seus olhos abertos e cismando... 

Onde ides a correr, melancolias? 
- E, refratadas, longamente ondeando, 
As suas mãos translúcidas e frias…

MADALENA

...e lhe regou de lágrimas os pés e os enxugou com os cabelos da sua cabeça. 
Evangelho de S. Lucas. 

Ó Madalena, ó cabelos de rastos, 
Lírio poluído, branca flor inútil... 
Meu coração, velha moeda fútil, 
E sem relevo, os caracteres gastos, 

De resignar-se torpemente dúctil... 
Desespero, nudez de seios castos, 
Quem também fosse, ó cabelos de rastos, 
Ensanguentado, enxovalhado, inútil, 

Dentro do peito, abominável cômico! 
Morrer tranquilo, - o fastio da cama... 
Ó redenção do mármore anatômico, 

Amargura, nudez de seios castos!... 
Sangrar, poluir-se, ir de rastos na lama, 
Ó Madalena, ó cabelos de rastos!

FONÓGRAFO

Vai declamando um cômico defunto. 
Uma plateia ri, perdidamente, 
Do bom jarreta... E há um odor no ambiente. 
A cripta e a pó, - do anacrônico assunto. 

Muda o registo, eis uma barcarola: 
Lírios, lírios, águas do rio, a lua... 
Ante o Seu corpo o sonho meu flutua 
Sobre um paul, - extática corola. 

Muda outra vez: gorjeios, estribilhos 
Dum clarim de oiro - o cheiro de junquilhos, 
Vívido e agro! - tocando a alvorada... 

Cessou. E, amorosa, a alma das cornetas 
Quebrou-se agora orvalhada e velada. 
Primavera. Manhã. Que eflúvio de violetas!

SONETO

Desce em folhedos tenros a colina: 
- Em glaucos, frouxos tons adormecidos, 
Que saram, frescos, meus olhos ardidos, 
Nos quais a chama do furor declina... 

Oh vem, de branco, - do imo da folhagem! 
Os ramos, leve, a tua mão aparte. 
Oh vem! Meus olhos querem desposar-te, 
Refletir virgem a serena imagem. 

De silva doida uma haste esquiva. 
Quão delicada te osculou num dedo 
Com um aljôfar cor de rosa viva!... 

Ligeira a saia... Doce brisa impele-a... 
Oh vem! De branco! Do imo do arvoredo! 
Alma de silfo, carne de camélia…

OLVIDO

Desce por fim sobre o meu coração 
O olvido. Irrevocável. Absoluto. 
Envolve-o grave como véu de luto. 
Podes, corpo, ir dormir no teu caixão. 

A fronte já sem rugas, distendidas 
As feições, na imortal serenidade, 
Dorme enfim sem desejo e sem saudade 
Das coisas não logradas ou perdidas. 

O barro que em quimera modelaste 
Quebrou-se-te nas mãos. Viça uma flor... 
Pões-lhe o dedo, ei-la murcha sobre a haste... 

Ias andar, sempre fugia o chão, 
Até que desvairavas, do terror. 
Corria-te um suor, de inquietação…