quinta-feira, 2 de agosto de 2018

Carlos Drummond de Andrade (A Cabra e Francisco)

Madrugada. O hospital, como o Rio de Janeiro, dorme. O porteiro vê diante de si uma cabrinha malhada, pensa que está sonhando.

— Bom palpite. Veio mesmo na hora. Ando com tanta prestação atrasada, meu Deus.

A cabra olha-o fixamente.

— Está bem, filhinha. Agora pode ir passear. Depois você volta, sim? Ela não se mexe, séria.

— Vai, cabrinha, vai. Seja camarada. Preciso sonhar outras coisas. É a única hora em que sou dono de tudo, entende?

O animal chega-se mais perto dele, roça-lhe o braço. Sentindo-lhe o cheiro, o homem percebe que é de verdade, e recua.

— Essa não! Que é que você veio fazer aqui, criatura? Dê o fora, vamos. Repele-a com jeito manso, porém a cabra não se mexe, encarando-o sempre. 

— Aiaiai! Bonito. Desculpe, mas a senhora tem de sair com urgência, isto aqui é um estabelecimento público. (Achando pouco satisfatória a razão.) Bem, se é público devia ser para todos, mas você compreende… (Empurra-a docemente para fora, e volta à cadeira.)

— O quê? Voltou? Mas isso é hora de me visitar, filha? Está sem sono? Que é que há? Gosto muito de criação, mas aqui no hospital, antes do dia clarear… (Acaricia-lhe o pescoço.) Que é isso! Você está molhada? Essa coisa pegajosa… O quê: sangue?! Por que não me disse logo, cabrinha de Deus? Por que ficou me olhando assim feito boba? Tem razão: eu é que não entendi, devia ter morado logo. E como vai ser? Os doutores daqui são um estouro, mas cabra é diferente, não sei se eles topam. Sabe de uma coisa? Eu mesmo vou te operar!

Corre à sala de cirurgia, toma um bisturi, uma pinça; à farmácia, pega mercúrio cromo, sulfa e gaze; e num canto do hospital, assistido por dois serventes, enquanto o dia vai nascendo, extrai do pescoço da cabra uma bala de calibre 22, ali cravada quando o bichinho, ignorando os costumes cariocas da noite, passava perto de uns homens que conversavam à porta de um bar.

O animal deixa-se operar, com a maior serenidade. Seus olhos envolvem o
porteiro numa carícia agradecida.

— Marcolina. Dou-lhe este nome em lembrança de uma cabra que tive quando criança, no Icó. Está satisfeita, Marcolina?

— Muito, Francisco.

Sem reparar que a cabra aceitara o diálogo, e sabia o seu nome, Francisco prosseguiu:

— Como foi que você teve ideia de vir ao Miguel Couto? O Hospital Veterinário é na Lapa.

— Eu sei, Francisco. Mas você não trabalha na Lapa, trabalha no Miguel Couto.

— E daí?

— Daí, preferi ficar por aqui mesmo e me entregar a seus cuidados.

— Você me conhecia?

— Não posso explicar mais do que isso, Francisco. As cabras não sabem muito sobre essas coisas. Sei que estou bem a seu lado, que você me salvou. Obrigada, Francisco.

E lambendo-lhe afetuosamente a mão, cerrou os olhos para dormir. Bem que precisava.

Aí Francisco levou um susto, saltou para o lado:

— Que negócio é esse: cabra falando?! Nunca vi coisa igual na minha vida. E logo comigo, meu pai do céu!

A cabra descerrou um olho sonolento, e por cima das barbas parecia esboçar um sorriso:

— Pois você não se chama Francisco, não tem o nome do santo que mais gostava dos animais neste mundo? Que tem isso, trocar umas palavrinhas com você? Olhe, amanhã vou pedir ao Ariano Suassuna que escreva um auto da cabra, em que você vai para o céu, ouviu?

ESTRAMBOTE

Que um dia Francis Jammes abra
lá no alto seu azul aprisco.
Mande entrar Marcolina, a cabra,
e seu bom amigo Francisco.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas. 
São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

Concurso de Trovas da UBT/Santos (Prazo: 31 de Outubro de 2018)


Tema - Despedida (Lírica/Filosófica)

1 Trova (inédita)

Sistema de envelopes

Enviar:
a/c Carolina Ramos
Cx Postal, 52
CEP 11010-970 
Santos/SP

Remetente: Luiz Otávio
Endereço: O mesmo do concurso

Prazo: até 31/10/18 (data do carimbo)

Filemon F. Martins (Coisas do coração)


Hoje acordei contemplativo. O dia amanheceu escuro, chuvoso e triste. E enquanto chovia, observava as gotas de água que caíam na vidraça da janela e deslizavam mansamente. Uma saudade inexplicável bateu forte em meu coração. Lá fora, a chuva continuava fina, mas constante, ativando ainda mais este agridoce vazio que pesa no meu peito. 

Nestes dias parece que a poesia adquire mais sabor e mais vida, transformando-se num lenitivo para o espírito. Munido de caneta e papel, começo a escrever. Escrevo com o coração uma palavra, uma frase, sobre um episódio, um fato, um sonho, uma esperança ou quem sabe a reminiscência de um amor. 

Aos poucos a chuva vai cessando e sinto uma vontade incontrolável de sair pelas ruas do bairro. Talvez, eu possa ir à barbearia conversar com as pessoas. Gosto de ouvir suas histórias, sonhos e segredos e tentar entendê-los. 

Por algum tempo, fico absorto, imaginando, como seria bom, se pudesse ser um pássaro. Poderia voar livre, como um beija-flor numa valsa delicada e bela em redor das flores. Poderia, ainda, cantar mavioso, como faz o sabiá nas laranjeiras. Porém, não sou pássaro e também não sei cantar, mas posso pensar. Meu pensamento é uma arma. Aliás, única arma do poeta. Com ele posso vencer obstáculos e transpor montes, rios e oceanos. Posso percorrer o Planeta Terra, porque meu pensamento não encontra barreiras na propagação da paz, da esperança e do amor. 

Depois destas conjeturas, levanto-me. Fico impaciente e ando de um lado para o outro, vou até à porta, mas vejo através da janela que a chuva volta a cair. Torna-se forte. A enxurrada se faz barulhenta. Não posso sair. Volto a sentar-me e meu coração se acalma. Emudeço. Ouço uma música e volto a escrever - coisas do coração.

Fonte:

quarta-feira, 1 de agosto de 2018

Jardim de Versos I


Alume Paixão
FLORAIS

No meio da dança,
Meu nariz em seu pescoço,
Aspiro e sinto.

A música mansa,
O perfume do moço,
Floral de Absinto…

Anna Maria Carneiro
FLOR FATAL

Presa à haste verde com espinhos
Protegida da dor – não bastou
Foi botão – aflorou
Flor colhida na luxúria
Usada, abusada, sofrida
Derramada no lixo, depois
Hoje, murcha, desprezada
Espera o lixeiro que passa
Para dar fim ao que começou.

Daniela Genaro
AS SUAS FLORES

As suas flores
não são pintadas,
não são bordadas.

As suas flores
não são de plástico.

As suas flores,
na verdade,
não são flores,
são sonhos.

Edweine Loureiro
FUNERAL

Quando o caixão
e as lágrimas descem,
rumo ao esquecimento,
até as velas ofertadas
são apagadas pelo vento.

O que fará, então, às flores
a implacável ação do tempo?

Francisco Ferreira

As vinhas produzem ira
num espírito inferior
mas, no coração caipira
até o brejo gera flor.

Gilmar Souza
BUQUÊ DE VERSOS

A Rosa oferece amor
E a Orquídea a pureza
O Lírio lhe dá doçura
Jacinto delicadeza
A Bromélia resistência
E a Begônia leveza.

A Tulipa esperança
A Margarida gentileza
O Cravo lhe traz talento
E o Jasmim a beleza
O Girassol felicidade
E a Camélia grandeza.

Joilson Portocalvo
SE AS FLORES 

tivessem de pedir licença
ao solo para retirar a seiva
implorar ao sereno orvalha-las
recusassem perfumar brisas
        embelezar cerimônias
se elas
não renascessem do nada
não se deixassem engravidar
não se rendessem ao colibri
orgulhosas
                  não despetalassem
               nem morressem
haveria apenas um jardim
de sempre-vivas
colorindo o mundo.

Maria Thereza Noronha
JARDIM

Pessoas há que são como as 
camélias.
Ao mais ligeiro toque
escurecem
(quando não caem do galho).
Mimosas sensitivas
se fazem de mortas, vivas,
cheias de malquerenças…
Esquecidas de que,
ao fim da tarde,
estaremos dissolvendo
nossas desavenças
ao pé do muro
junto às avencas.

Olga Savary
AS SUBTERRÂNEAS

Mais belas que estas flores
– mas muito mais – que florescem
atormentando mil verdes,
mais belas que estas vermelhas
incendiando o jardim,
onde mãos imprecisas
castigam querendo colher,
são as nunca nascidas,
são essas flores ocultas
em subterrâneo desejo.

Paulo Franco
CACTO

Vejo o mundo
como um caminheiro
no deserto vê um cacto.

Vejo esgoto escorrendo
sob nuvens que passeiam
e pessoas rastejando feito ratos.

Vejo a flor 
que brota desse esgoto
e a dor que, feito nuvem,
esgota a flor do rosto.

Vejo os restos
dos sentidos que ensinaram
se tornarem continência
e a flor secando pelo rosto
como cacto
em redor da ausência.

Roberto Massoni
A DONA DO JARDIM

Eu reconheço que não se trata assim
quem cuida de semente no jardim
é preciso por demais delicadeza
tratos triviais, mas de princesa.
Não se maltrata quem faz gerar a flor
compondo-a com sua alma de artista
a Arte Natural da florista.
Eu reconheço que não se fere assim
quem nos espinhos se fere tanto
esperando que ao final deste meu canto
esteja eu outra vez em paz
com a dona do jardim.

Sidney Sanctus
AMOR-PERFEITO

Eu querendo afogar os meus spleens
percorri vegetal, florida trilha,
aleia envolta de perfumes, ilha – 
bela difusa, luz de serafins…!

E eis que nesses oníricos confins,
esfuziante, vi linda flor, filha
com certeza da própria maravilha
a jorrar ouro em meus secos jardins!

Pétalas com miríades de cores
que espargem polens, néctar e os olores
a seduzir estrelas, rosicler…

E pelas borboletas foi eleito
supra-sumo; seu nome: Amor-Perfeito,
puro sentir entre o homem e a mulher!

Fonte:
Cláudia Brino e Vieira Vivo. Cabeça Ativa. Flores 41. 
São Vicente/SP: Costelas Felinas, mai/jun/jul 2018.

Malba Tahan (A Filha do Muezim)

Lenda árabe

Conta-se que o famoso califa Al-Mamum chamou um dia o seu grão-vizir, o fiel e bondoso Abdel-Terik, e lhe disse:

    — Quero casar amanhã com uma jovem muçulmana de espírito esclarecido e notável talento. Encarrego-te, meu caro vizir, de ir aos mais suntuosos palácios, como às mais humildes choupanas procurar a moça que pelos seus dotes intelectuais possa superar todas as suas companheiras!

    — Escuto-vos e obedeço-vos! — respondeu o vizir, inclinando-se respeitoso.

    E nesse dia, ao cair da tarde, quando o pacato vizir regressava, como de costume, a casa, causava-lhe sérias apreensões o delicado encargo que lhe dera o sultão.

    Como iria ele descobrir, entre tantas jovens de seu pais, a mais viva e inteligente! Como escolher, afinal, com segurança e acerto, uma esposa digna do Emir dos Crentes?

    Caminhava o velho Abdel-Terik tão preocupado e absorto em seus pensamentos, que não deu atenção a um viajante desconhecido que lhe vinha ao lado.

    Em meio do caminho avistou um homem a colher trigo no campo.

    O desconhecido, que se conservava sempre ao lado do vizir, deixando o mutismo em que até então estivera, observou, em voz alta:

    — Ai está um bom camponês a enfeixar o seu trigo! Queira Allah que ele já não tenha comido todo o trigo que está agora colhendo!

    Abdel-Terik voltou-se para o seu companheiro de jornada e fitou-o, cheio de espanto. Aquela observação inesperada e absurda era de fazer rir o árabe mais ingênuo do Islã. Como poderia um homem comer o trigo antes da colheita?

    — É um insensato — pensou o vizir desconfiado. — O melhor que faço é não lhe dar resposta nem atenção.

    Momentos depois encontraram um cortejo fúnebre que se dirigia ao cemitério muçulmano.

    A frente vários homens conduziam, em silêncio, um caixão mortuário. Três mulheres — que pareciam viúvas — choravam, cheias de desespero.

    Novamente o desconhecido observou, em voz alta, com a maior naturalidade:

    — Ali vai um enterro pelo caminho de Allah! Quem sabe se aquele morto não estará ainda vivo entre nós?

    Aquela segunda observação causou ao grão-vizir não menor surpresa. Só mesmo um louco poderia formular ideia tão absurda!

    — Não resta dúvida — refletiu o digno ministro. — Este infeliz que vem comigo é um demente, um pobre desequilibrado. Estou certo de que um homem, em seu juízo perfeito, seria incapaz de formular tão desconchavada tolice!

    Depois de caminharem ainda algum tempo juntos, chegaram os dois viajantes a uma encruzilhada.

    Voltou-se o desconhecido para o grão-vizir e disse-lhe:

    — Antes que nos separemos devo dizer-vos, meu amigo, que poderíamos ter vindo pelo mesmo caminho, gasto o mesmo tempo, andado do mesmo modo, fazendo, porém, uma viagem mais curta!

     E sem mais palavra, afastou-se lentamente, deixando o grão-vizir mergulhado em profundo pasmo.

     Dias depois, com grande pompa, realizou-se o casamento da jovem Nadima...

   — Infeliz! — murmurou o bom do ministro, sinceramente penalizado. — Desafortunado filho de Adão! Esta última observação veio provar, bem claramente, que és um louco! Como seria possível, vindo pelo mesmo caminho, andando do mesmo modo, gastando o mesmo tempo, fazer uma viagem mais curta? É positivamente uma parvorice!

    Ao chegar a casa contou o grão-vizir à esposa o que lhe ocorrera em caminho, repetindo-lhe as três observações do seu original companheiro de jornada.

    Mal terminara o grão-vizir a sua narrativa, ouviu-se no aposento contíguo, alegre e viva risada feminina.

    — Quem está aí? — perguntou, intrigado, o ministro.

    — É uma pobre rapariga chamada Nadima — respondeu a esposa. — É a filha do muezim (1), veio hoje, casualmente, à nossa casa oferecer-me alguns trabalhos e bordados que pretende vender.

    — Quero falar a essa jovem — replicou o grão-vizir.

    Atendendo a esse chamado, surgiu a moça com o rosto coberto por espesso véu.

    — Minha filha — disse-lhe, carinhoso, o grão-vizir — por que motivo achaste tanta graça no caso extravagante que acabei de contar?

    — Allah que vos conserve, ó vizir! — replicou a jovem com humildade e respeito. — Notei (perdoai a minha audácia!) que muito vos iludistes, julgando louco o original muçulmano que foi vosso companheiro de viagem!

    — Como assim? Não reparaste nas observações descabidas que ele fez?

    — Reparai, sim, ó cheique venerável! — continuou Nadima com calma e modéstia. — A meu ver o vosso companheiro de jornada é um homem judicioso e de grande talento!

As três observações feitas revelam claramente uma inteligência invejável, um raciocínio claro e um juízo equilibrado e perfeito!

    E sem dar atenção ao grande espanto que invadia completamente a fisionomia do grão-vizir, a jovem assim falou:

    — A primeira observação: “Queira Allah que ele já não tenha comido o trigo que está colhendo!”, significa que podia acontecer já ter o camponês vendido antecipadamente a colheita e gasto o dinheiro assim obtido. Teria, portanto, comido o trigo que estava colhendo. Quanto à segundo observação, explica-se ainda mais facilmente. Ao dizer ele: “Quem sabe se aquele morto não está vivo ainda entre nós?”, quis significar que muitas vezes uma pessoa, pelas obras notáveis que deixa, continua, mesmo depois de morta, na recordação e no pensamento de todos, como se na verdade estivesse entre nós!

    — E a terceira observação? — interrogou o ministro. — Não vejo como justificar tão desarrazoada ideia.

    — É muito fácil — acrescentou, com um encantador sorriso, a filha do muezim. — Que disse o desconhecido ao chegar à encruzilhada? Que a viagem poderia ser mais curta, muito embora fosse feita durante o mesmo tempo, do mesmo modo e pelo mesmo caminho! E isso teria, realmente acontecido, se tivessem tido a felicidade de encontrar um terceiro companheiro que fosse capaz, em agradável palestra, de contar histórias e lendas maravilhosas que os distraíssem durante a jornada, suavizando-a!

Ao ouvir tão hábil e sensata explicação, exclamou o grão-vizir:

— Allah seja louvado! Encontrei na pessoa desta jovem a esposa ideal para o grande e generoso califa Al-Mamum, nosso amo e senhor!

Dias depois, com grande pompa, realizou-se o casamento da jovem Nadima, filha do muezim, com o poderoso Abdala III — Al-Mamum — Emir dos Crentes, califa de Bagdá e senhor do grande império muçulmano!
__________________
Nota:
1- Muezim — Pregoeiro. O muezim chama do alto das almenaras (minaretes) os fiéis à oração. Os muezins, em geral são cegos.

Fonte:
Malba Tahan. Minha Vida Querida.

terça-feira, 31 de julho de 2018

Trova 317 - Paulo Walbach (Curitiba/PR)


Prof. Garcia (Trovas do Meu Cantar) I


1
A infância, já tão distante,
não me angustia a distância,
ao reviver cada instante
da primavera da infância!
2
Algo que em ti, me seduz,
que às vezes, me faz sonhar,
são ternas gotas de luz
que há na luz do teu olhar!
3
Em meio a tantas esperas
e esse silêncio dos sós…
Vi passar muitas quimeras,
dizendo adeus entre nós!
4
Em tons vermelhos, me acena
o sol da tarde morrente,
mostrando a pele morena
do entardecer do poente!
5
Enquanto a mamãe cantava,
a rabeca, por magia…
Nas mãos do cego chorava,
com dó do cego de guia!
6
Essa luz enfraquecida
que, ao pôr do sol, ainda aquece,
tem a cor da despedida,
mas o fervor de uma prece!
7
Nada tem mais luz, mais brilho…
Dos dois, não sei quem mais ama:
Se a mãe que amamenta o filho
ou o filho amado que mama!
8
Não lamente por ser pobre,
quem ama, não se maldiz…
Ser feliz não é ser nobre;
nobre é ser pobre e feliz!
9
Numa foto, em preto e branco,
tão antiga!… E, mesmo assim…
Mamãe, teu sorriso franco,
é fonte de amor sem fim!
10
Num mundo de desiguais
onde há tantos desenganos…
Perdem-se, cada vez mais,
os sentimentos humanos!
11
O pão, sem amor, não cura,
nem mata a fome e o cansaço!…
Melhor que o pão, sem ternura,
é a ternura de um abraço!
12
O poeta encontra meios
de ser feliz onde for!…
Quem planta o bem, sem receios,
enche os celeiros de amor!
13
O rancor sempre me diz,
num tom de quem não caçoa:
Se quem se vinga é feliz,
mais feliz é quem perdoa!
14
Plantei, no lar onde eu vivo,
tua semente!… Ó, Senhor!
E até hoje, ainda cultivo
esta semente de amor!
15
Quando um jardim perde as flores,
a mão de Deus recupera…
Pintando as mais lindas cores
nas flores da primavera!
16
Quantas lições primorosas,
num pequeno beija-flor,
que oscula todas as rosas
com, beijos puros de amor!
17
Que tristeza e desencanto,
naquele instante do adeus:
Ao ver dobrado o meu pranto,
no pranto dos olhos teus!
18
Se há uma luz que se defende,
que te ilumina e te afaga,
é a luz que o destino acende
e o próprio destino apaga!
19
Se o destino deu-me as costas,
resoluto, eu me defino,
mesmo não tendo as respostas
para o meu próprio destino!
20
Sinto-Te tanto, ó, meu Deus,
na fé, no sinal da cruz…
Que as sombras dos dias meus
têm ternas gotas de luz!
21
Suspira a fonte sofrida,
já sem voz, ao pé do monte!
Que pena!… A musa da vida,
chorando a morte da fonte!
22
Tatuei com tintas da alma,
nas cordas do coração…
Teu olhar, mãe!… Que me acalma,
nas horas de solidão!

Fonte:
Francisco Garcia de Araújo. Cantigas do meu cantar.
Natal/RN: CJA Edições, 2017.

Olivaldo Júnior (Sobre um velho escritor)

(Para 25 de julho: Dia do Escritor)

Homem, velho e inevitável, impensável, irremediavelmente sozinho. Sim, era um velho escritor. Alguém a quem o Tempo, a Vida ou Deus tocou e concedeu a capacidade de enxergar e de escrever o que via, sem se importar se as visões eram reais ou não. Afinal, o que é que é mesmo realidade? Não sei, pois acredito que a vida é dentro. Vivemos alguns poucos anos e, como se fosse apertado um botão, desligam-nos do corpo e aterrissamos em outro lugar. Será que podemos pensar que a tal realidade é mesmo algo para se levar a sério? Não, um velho escritor também não poderia acreditar nisso. E, de fato, não acreditava mesmo. Era livre.

Liberdade. Eis um substantivo abstrato que o velho escritor sempre quis concreto. Assim, ao fim da vida, a cada dia mais perto do voo para o cerne do azul, o velho escritor se questionava se a liberdade a que tanto almejara lhe tinha sido conquistada em algum momento da vida. Pensou, meditou, repensou e, num átimo, numa espécie de vislumbre, de um só golpe, viu que nunca havia sido livre e que nenhum homem poderia jamais ser livre de verdade.

A verdade. Será que o velho escritor tinha encontrado a verdade? Para além da verdade cristã e de qualquer outra verdade filosófico-religiosa, nosso amigo descobriu que a verdade é sempre relativa a algum fato que a contradiz. E o peso de um e de outro podem sempre variar. Dessa forma, recolheu-se à significância de sua própria verdade e descreveu o mundo conforme os olhos da peregrina essência que o animava. Foram textos e mais textos sobre a estrada.

Sobre a estrada, diria que lhe fora até suave demais. Jamais tivera uma doença grave. Conhecera o amor, mesmo que mal ou nunca correspondido. Não, não tivera nenhum filho, nem plantara nenhuma árvore. Mas escrevera livros, lançara folhas dentre as folhas já lançadas e que permeiam a penumbra das bibliotecas, o sem-fim dos sebos, dos sites e dos blogs da internet, sua casa mais profícua ultimamente. Aliás, ultimamente, comunicava-se bastante por e-mail, via web, sem rostos familiares, só palavras com as quais se relacionava como se as conhecesse melhor do que as pessoas que encontrava todo dia pela rua. Rua... Qual seria mesmo a Rua dos Cataventos que o mestre Quintana cantou e que tanto o comovera? Era escritor.

Fonte: O Autor

segunda-feira, 30 de julho de 2018

José Feldman (Álbum de Trovas) 29


Vinícius de Moraes (Contemplações do poeta ao cair da noite)


Ainda há pouco, a reler a página admirável de frei Luís de Sousa, cujo título, possivelmente dado pelos antologistas Álvaro Lins e Aurélio Buarque de Holanda, é (se em vez de poeta ler-se arcebispo) o mesmo desta crônica, tive a alegria de verificar quão parecidas eram as minhas noites de solidão em Montevidéu, com as de frei Bertolameu dos Mártires, mais de três séculos antes. Como o santo arcebispo, também eu passava o dia todo dando expediente, quiçá de menos hierarquia, pois enquanto ele devia andar às voltas com despachos celestiais, tinha eu a meu cargo despachos marítimos e terrestres, além da firmação de passaportes e faturas e da contagem diária dos emolumentos consulares. 

E como fazia ele, com relação às coisas divinas, eu, ao fechar-se a noite sobre o cerro que provocou no descobridor a exclamação nominativa da cidade, depois de um curto trajeto de automóvel até o bairro de Pocitos, onde tenho meu apartamento num sétimo andar "pagava-me o peso do dia, e do trabalho com um passatempo mal conhecido no mundo, e ao menos buscado de poucos (e ainda mal, que se muitos o buscaram fora melhor ao mundo)". Entregava-me a uma profunda contemplação da bem-amada ausente. Esta era a maneira de vencer a distância irremediável que se estendia diante dos meus olhos voltados para o norte e que às vezes buscavam, na linha descendente de Alfa e Beta de Centauro, o ponto exato onde ela, de sua janela sobre o parque, devia também pensar em mim. 

E não se maravilhe ninguém de que eu, tal o arcebispo, passasse com tanta facilidade dos negócios à contemplação. Não tinha, é claro, "dês da primeira idade feito hábito neste santo exercício". Mas o que me faltava em penitências, sobrava-me em ternura e querer-bem. E se nele "este antigo costume lhe trazia a viola do espírito tão temperada sempre, que em qualquer conjunção que largava o negócio, logo a achava prestes para sem detença entoar as músicas da Celestial Jerusalém, e ficar absorto nos prazeres do divino ócio", eu por mim tinha sempre bem afinado o meu violão Del Vecchio, e me comprazia em machucar-me as saudades com os doridos acordes de tantas canções feitas para a bem-amada. E assim não me era por nada difícil passar de faturas a doçuras, e desligar-me da rotina do trabalho para a comunhão com a amiga distante, num lento evolar-se do meu ser empós sua adorável imagem, que às vezes parecia corporificar-se na lua que estava no céu. E não era incomum ficarmos, eu e a lua de Montevidéu, em doce conúbio, ela dilatando os espaços com os raios de seu amor, eu esvaindo-me de amor em seu luar. Pois era aquele o luar do meu bem no seu pungente exílio, a segredar-me que, mesmo ausente, ali estava para iluminar as minhas horas; e eu tivesse paciência e a esperasse dentro e fora de mim, que ela se vestira toda de luz para o nosso futuro encontro; e não me desesperasse, pois estava próximo o dia em que nunca mais nos haveríamos de separar. 

De outros turnos - como no caso de frei Bertolameu, que dessem-lhe azo os negócios, "subia sobre tarde a um eirado que mandou fazer em uma casa das mais altas do Paço; e como o passarinho, que depois de andar todo o dia ocupado na fábrica de seu ninho, quando vai caindo o Sol, e as sombras crescendo, estende as asas pelo ar, dando umas voltas alegres, e desenfadadas, que parece não bole pena, ou posto sobre um raminho canta descansadamente", - também eu deixava-me estar no terraço de meu apartamento, um dos mais altos de Pocitos: e feito ele que, à imagem da avezinha, "depois de alargar os olhos pelas serras e outeiros, que do alto se descobriam, estendia os de sua alma às maiores alturas do Céu, voava com a consideração por aquelas eternas moradas, desabafava, e em voz baixa entoava de quando em quando alegres Hinos" - eu por minha vez, ante a ideia de compartilhar com a bem-amada a visão dos amplos espaços crepusculares do estuário do rio da Prata, e de rodeá-la, com meus braços dentro das iluminações do poente oriental, punha-me, tal um menino que, ai de mim, já não sou mais, a tamborilar com os dedos e a cantar com ela alegres sambas do meu Rio, que não é da Prata nem do Ouro, mas que é cidade de muito instante, e em hoje mora, em casa única, o meu antes triste e multifário coração.

Fonte:
Vinícius de Moraes. Para viver um grande amor.

Alvarenga Peixoto (Caldeirão Poético)


A MARIA IFIGÊNIA
Em 1786, quando completava sete anos.

Amada filha, é já chegado o dia,
em que a luz da razão, qual tocha acesa
vem conduzir a simples natureza,
é hoje que o teu mundo principia.

A mão que te gerou teus passos guia,
despreza ofertas de uma vã beleza,
e sacrifica as honras e a riqueza
às santas leis do filho de Maria.

Estampa na tua alma a caridade,
que amar a Deus, amar aos semelhantes,
são eternos preceitos da verdade.

Tudo o mais são ideias delirantes;
procura ser feliz na eternidade,
que o mundo são brevíssimos instantes.

“AO MUNDO ESCONDE O SOL SEUS RESPLENDORES”

Ao mundo esconde o Sol seus resplendores,
e a mão da Noite embrulha os horizontes;
não cantam aves, não murmuram fontes,
não fala Pã na boca dos pastores.

Atam as Ninfas, em lugar de flores,
mortais ciprestes sobre as tristes frontes;
erram chorando nos desertos montes,
sem arcos, sem aljavas, os Amores.

Vênus, Palas e as filhas da Memória,
deixando os grandes templos esquecidos,
não se lembram de altares nem de glória.

Andam os elementos confundidos:
ah, Jônia, Jônia, dia de vitória
sempre o mais triste foi para os vencidos!

“EU VI A LINDA JÔNIA E, NAMORADO”

Eu vi a linda Jônia e, namorado,
fiz logo voto eterno de querê-la;
mas vi depois a Nise, e é tão bela,
que merece igualmente o meu cuidado.

A qual escolherei, se, neste estado,
eu não sei distinguir esta daquela?
Se Nise agora vir, morro por ela,
se Jônia vir aqui, vivo abrasado.

Mas ah! que esta me despreza, amante,
pois sabe que estou preso em outros braços,
e aquela me não quer, por inconstante.

Vem, Cupido, soltar-me destes laços:
ou faze destes dois um só semblante,
ou divide o meu peito em dois pedaços!

“DE AÇUCENAS E ROSAS MISTURADAS”

De açucenas e rosas misturadas
não se adornam as vossas faces belas,
nem as formosas tranças são daquelas
que dos raios do sol foram forjadas.

As meninas dos olhos delicadas,
verde, preto ou azul não brilha nelas;
mas o autor soberano das estrelas
nenhumas fez a elas comparadas.

Ah, Jônia, as açucenas e as rosas,
a cor dos olhos e as tranças d'ouro
podem fazer mil Ninfas melindrosas;

Porém quanto é caduco esse tesouro:
vós, sobre a sorte toda das formosas,
inda ostentais na sábia frente o loiro!

“EU NÃO LASTIMO O PRÓXIMO PERIGO”

Eu não lastimo o próximo perigo,
Uma escura prisão, estreita e forte;
Lastimo os caros filhos, a consorte,
A perda irreparável de um amigo. 

A prisão não lastimo, outra vez digo, 
nem o ver iminente o duro corte, 
que é ventura também achar a morte 
quando a vida só serve de castigo. 

Ah, quão depressa então acabar vira 
este enredo, este sonho, esta quimera, 
que passa por verdade e é mentira! 

Se filhos, se consorte não tivera 
e do amigo as virtudes possuíra, 
um momento de vida eu não quisera.

domingo, 29 de julho de 2018

Trova 316 - Octávio Serrano (João Pessoa/PB)


Laurindo Rabelo (Caldeirão Poético)


ÚLTIMO CANTO DO CISNE

Quando eu morrer, não chorem minha morte,
Entreguem meu corpo à sepultura;
Pobre, sem pompas, sejam-lhe a mortalha
Os andrajos que deu-me a desventura.

Não mintam ao sepulcro apresentando
Um rico funeral d'aspecto nobre:
Como agora a zombar me dizem vivo,
Digam-me também morto - aí vai um pobre!

De amigos hipócritas não quero
Públicas provas de afeição fingida;
Deixem-me morto só, como deixaram-me
Lutar contra a má sorte toda a vida.

Outros prantos não quero, que não sejam
Esse pranto de fel amargurado
De minha companheira de infortúnios,
Que me adora apesar de desgraçado.

O pranto, açucena de minh'alma,
Do coração sincero, d'alma sã,
De um anjo que também sente meus males,
De uma virgem que adoro como irmã.

Tenho um jovem amigo, também quero
Que junte em minha Essa os prantos seus
Aos de um pobre ancião que perfilhou-me
Quando a filha entregou-me aos pés de Deus

Dos meus todos eu sei que terei preces,
Saudades, lágrimas também;
Que não tenho a lembrança de ofendê-los
E sei quanta amizade eles me têm.

E tranquilo, meu Deus, a vós me entrego,
Pecador de mil culpas carregado:
Mas os prantos dos meus perdão vos pedem,
E o muito que também tenho chorado.

A MINHA RESOLUÇÃO

O que fazes, ó minh'alma!
Coração, por que te agitas?
Coração, por que palpitas?
Por que palpitas em vão?
Se aquele que tanto adoras
Te despreza, como ingrato,
Coração, sê mais sensato,
Busca outro coração!

Corre o ribeiro suave
Pela terra brandamente,
Se o plano condescendente
Dele se deixa regar;
Mas, se encontra algum tropeço
Que o leve curso lhe prive,
Busca logo outro declive,
Vai correr noutro lugar.

Segue o exemplo das águas,
Coração, por que te agitas?
Coração, por que palpitas?
Por que palpitas em vão?
Se aquele que tanto adoras
Te despreza, como ingrato,
Coração, sê mais sensato,
Busca outro coração!

Nasce a planta, a planta cresce,
Vai contente vegetando,
Só por onde vai achando
Terra própria a seu viver;
Mas, se acaso a terra estéril
Às raízes lhe é veneno,
Ela vai noutro terreno 
As raízes esconder. 

Segue o exemplo da planta,
Coração, por que te agitas?
Coração, por que palpitas?
Por que palpitas em vão?
Se aquele que tanto adoras
Te despreza, como ingrato,
Coração, sê mais sensato,
Busca outro coração!

Saiba a ingrata que punir
Também sei tamanho agravo:
Se me trata como escravo,
Mostrarei que sou senhor;
Como as águas, como a planta,
Fugirei dessa homicida;
Quero dar a um'alma fida
Minha vida e meu amor.

MODINHAS

Foi em manhã de estio
De um prado entre os verdores,
Que eu vi os meus amores
Sozinha a cogitar.

Cheguei-me a ela,
Tremeu de pejo...
Furtei-lhe um beijo,
Pôs-se a chorar.

Eram-lhe aquelas lágrimas
Na face nacarada
Per'las da madrugada
Nas rosas da manhã.

Santificada
Naquele instante,
Não era amante,
Era uma irmã.

Dobrados os joelhos
Os braços lhe estendia,
Nos olhos me luzia
Meu inocente amor.

Domina a virgem
Doce quebranto,
Seca-se o pranto,
Cresce o rubor.

Nestes teus lábios
De rubra cor,
Quando tu ris-te
Sorri-se amor.

Dos lindos olhos,
Tens o fulgor,
Se pra mim olhas
Raios de amor.

De teus cabelos
De negra cor,
Forjam cadeias
Brincando amor.

Neles pra sempre,
Servo ou senhor,
Viver quisera
Preso de amor.

Rosas que tingem
Fresco rubor
Nas tuas faces
Espalha amor.

Se de minh'alma
Com todo o ardor,
Chego a beijá-las
Morro de amor.
Tua alma é pura
Celeste flor,
Só aquecida
Por sóis de amor.

Já em ternura,
Já em rigor,
Dá vida e morte,
Ambas de amor.

Quando a perturba
Casto pudor,
Encolhe as asas
Tremendo amor.

Se do ciúme
Sente o fulgor,
Em mar de chamas
Se afoga amor.

Se me concedes
Terno favor
Terei por lume
Somente amor.

Porém no templo
Mandarei pôr
O teu retrato
Em vez de amor.

AS DUAS REDENÇÕES
Ao batismo e liberdade de uma menina

Inda uma vez tanjamos
A lira, e mais um hino
Consinta-me o destino
Erguer nos cantos meus;
Que vá, de sons profanos
Despido e desquitado
Em voo arrebatado,
Voando aos pés de Deus.

Da liberdade a estrela
No berço da inocência 
Derrama a providência
De duas redenções;
Mostrando um'alma limpa
Do crime primitivo
No corpo de um cativo
Que quebra os seus grilhões.

Que assunto mais merece
Um hino de poesia?
Que dia tem mais dia?
Que feito tem mais Luz?
Do cativeiro um anjo
Quebrando infames laços,
À cruz estende os braços
E os braços lhe abre a cruz.

Perfilha Deus o anjo
Na filiação da graça,
E o ser que o crime embaça
Puniu a redenção!
E o homem, dissipando
Do berço insano agravo,
Em menos um escravo
Abraça um novo irmão!

Que foras, inocente,
Que foras, nesta vida,
Da escravidão perdida
No bárbaro bazar!?
Pobre rola ferida
Da infâmia pelo espinho,
Em que ramo, em que ninho
Te havias de aninhar?

Infante, sem afagos,
Temendo-te altiveza,
Querendo-te a vileza
Plantar no coração,
Dariam-te nos gestos,
Nas vestes, no aposento,
Na mesa, no alimento,
Somente - escravidão!

Donzela (oh! sacrilégio!)
Amor, qual flor sem viço,
Mil vezes é serviço
Que fero senhor quer!
É dor que o fel requinta,
Que a ímpia sorte agrava
Daquela que é escrava
Depois de ser mulher!

Se mãe (é mãe escrava!)
Quem sabe se verias
Teu filho mãos ímpias
Do seio te arrancar?
E surdos ao teu pranto
Mandarem-te com calma
Do seio da tua alma
A outro alimentar?!

Criança mas sem veres
Da infância as verdes cores,
Donzela sem amores,
Talvez alam sem Deus!
Não foras arrastada
Da vida pelos trilhos,
Nem tu, e nem teus filhos
Seriam filhos teus. 

Ó vós que hoje lhe destes
O dom da liberdade,
Que junto à divindade
Matais a escravidão,
Ao trovador propícios
De ação tão excelente
Em culto reverente...
Guardai esta canção.

Eu sei que haveis guardá-la,
Que em tão santa amizade
Não vem a variedade
Deitar veneno atroz.
Sou vosso desde a infância:
Da vida até o fim
Sereis tanto por mim
Como serei por vós!