sexta-feira, 5 de outubro de 2018

Vinicius de Moraes (A Casa Materna)


Há, desde a entrada, um sentimento de tempo na casa materna. As grades do portão têm uma velha ferrugem e o trinco se oculta num lugar que só a mão filial conhece. O jardim pequeno parece mais verde e úmido que os demais, com suas palmas, tinhorões e samambaias que a mão filial, fiel a um gesto de infância, desfolha ao longo da haste. 

É sempre quieta a casa materna, mesmo aos domingos, quando as mãos filiais se pousam sobre a mesa farta do almoço, repetindo uma antiga imagem. Há um tradicional silêncio em suas salas e um dorido repouso em suas poltronas. O assoalho encerado, sobre o qual ainda escorrega o fantasma da cachorrinha preta, guarda as mesmas manchas e o mesmo taco solto de outras primaveras. As coisas vivem como em prece, nos mesmos lugares onde as situaram as mãos maternas quando eram moças e lisas. Rostos irmãos se olham dos porta-retratos, a se amarem e compreenderem mudamente. O piano fechado, com uma longa tira de flanela sobre as teclas, repete ainda passadas valsas, de quando as mãos maternas careciam sonhar. 

A casa materna é o espelho de outras, em pequenas coisas que o olhar filial admirava ao tempo em que tudo era belo: o licoreiro magro, a bandeja triste, o absurdo bibelô. E tem um corredor à escuta, de cujo teto à noite pende uma luz morta, com negras aberturas para quartos cheios de sombra. Na estante junto à escada há um Tesouro da juventude com o dorso puído de tato e de tempo. Foi ali que o olhar filial primeiro viu a forma gráfica de algo que passaria a ser para ele a forma suprema da beleza: o verso. 

Na escada há o degrau que estala e anuncia aos ouvidos maternos a presença dos passos filiais. Pois a casa materna se divide em dois mundos: o térreo, onde se processa a vida presente, e o de cima, onde vive a memória. Embaixo há sempre coisas fabulosas na geladeira e no armário da copa: roquefort amassado, ovos frescos, mangas-espadas, untuosas compotas, bolos de chocolate, biscoitos de araruta - pois não há lugar mais propício do que a casa materna para uma boa ceia noturna. E porque é uma casa velha, há sempre uma barata que aparece e é morta com uma repugnância que vem de longe. Em cima ficam os guardados antigos, os livros que lembram a infância, o pequeno oratório em frente ao qual ninguém, a não ser a figura materna sabe por que, queima às vezes uma vela votiva. E a cama onde a figura paterna repousava de sua agitação diurna. Hoje, vazia. 

A imagem paterna persiste no interior da casa materna. Seu violão dorme encostado junto à vitrola. Seu corpo como que se marca ainda na velha poltrona da sala e como que se pode ouvir ainda o brando ronco de sua sesta dominical. Ausente para sempre da casa materna, a figura paterna parece mergulhá-la docemente na eternidade, enquanto as mãos maternas se fazem mais lentas e as mãos filiais mais unidas em torno à grande mesa, onde já agora vibram também vozes infantis.

Fonte:
Vinicius de Moraes. Para viver um grande amor.

quinta-feira, 4 de outubro de 2018

Luiz Damo (São Francisco de Assis em Trovas)

4 de Outubro - Dia de São Francisco de Assis


Neste mundo aonde os valores
se concentram sobre o ter,
sejam fontes de esplendores
as luzes que vêm do ser.

No caminho sempre andemos
sem pedras a nos ferir,
ou, nós dele as afastemos,
ou, não vamos prosseguir.

São Francisco, padroeiro,
dos poetas, trovadores,
deixaste no mundo inteiro
legiões de seguidores.

Grande mestre me permita
fazer sempre esta oração,
enquanto meu ser medita
vem guiar minha missão.

Ó Senhor! Fazei de mim,
um instrumento de paz,
nele o mundo sinta, enfim,
que sois Vós quem vida traz.

Aonde houver o desespero,
seja a esperança levada
e na dúvida, co’esmero,
a fé seja praticada.

Aonde apenas tem tristeza
possa levar a alegria
e na discórdia e frieza
o amor sempre aqueça o dia.

Aonde só trevas prosperam
que eu leve a luz e o calor
e aonde os erros preponderam
leve a verdade, Senhor!

Aonde houver ódio que eu leve
o amor puro e verdadeiro
e o perdão para quem deve,
sendo eterno mensageiro.

Ó Mestre, Deus e Senhor!
Fazei que eu procure mais,
consolar quem vive à dor
que buscar consolos tais.

Entender as diferenças
que vibrar nas semelhanças,
amar quem nas desavenças
me usurpar as esperanças.

Porque é dando, que se alcança,
pelo gesto, a recompensa,
quando posto na balança
e obtivermos a sentença.

É perdoando que vemos
crescer sob a luz fraterna
a vida e morrendo a temos
renovada, plena e eterna.

Fonte:
Luiz Damo. Celebrando com trovas. 
Caxias do Sul/RS: L.D., 2018.

Canteiro de Trovas do Riso n. 2



Ao ver uma triste cena,
quantos, sem vergonha alguma,
ficam dizendo: – que pena!
… sem terem pena nenhuma.
Antônio Aleixo

O inquérito começou
e o inspetor é interrogado:
– O cadáver, como o achou?
– Morto, senhor delegado!
Antônio Tortato

“Um só minuto, querido,
levarei a me aprontar!”
– E esse minuto comprido
como me custa esperar…
Aparício Fernandes

Certas noivas enfeitadas
com flores de laranjeiras
são pérolas cultivadas
que parecem verdadeiras!
Archimimo Lapagesse

“Nada se perde” – alguém disse,
mas essa frase é suspeita:
– perca você a burrice,
que a ninguém ela aproveita…
Ariston Teles

Há trovas tão engraçadas
e tão repletas de “humor”,
que, às vezes, damos risadas,
não delas, mas sim do autor…
Benny Silva

“Vamos dormir” – os nubentes
disseram aos convidados.
E passaram, tão contentes,
a noite inteira acordados…
Colbert Rangel Coelho

A confissão de Maria
teve soberbo arremate:
o confessor se benzia
vermelho como um tomate…
Durval Mendonça

Magro, triste, macerado,
frio, flácido, funéreo,
parece um feto barbado
nascido num cemitério.
Emílio de Meneses

Mulher que muito se pinta,
para ter boa aparência,
ou se casa antes do trinta
ou então – abre falência…
Francisco Madureira

Contraste fenomenal
na vida não vi jamais:
o avô está muito mal,
e a neta “boa” demais…
Heraldo Lisboa

Quem se julga muito grande,
vê-se através da vaidade.
Quem se julga pequenino,
é modéstia ou é verdade…
Hormino Lyra

Eis a donzela a passar,
exuberante e formosa.
E alguém, num tolo indagar:
– “Você está boa, Rosa?…”
Ildefonso de Paula

Os postes enfileirados,
muito negros, luzidios,
espreitam desconfiados,
os vira-latas vadios…
Iraci do Nascimento e Silva

– Vai nascer, meu Deus, compadre,
chame o médico ligeiro!
Não, diz o pai, chame o padre:
nós vamos casar primeiro!
Ivan Ribeiro da Conceição

Quem casa, por certo, pensa 
numa vida de ventura;
mas será que isto compensa
a sogra que a gente atura?
Ivo dos Santos Castro

A maioria das mulheres
vestem-se para exibir
suas formas provocantes,
e não para se encobrir…
Ivo Loiola

O cura de Santarém
é milagroso de fato:
os afilhados que tem 
são-lhe o perfeito retrato…
João Rangel Coelho

Ai de mim, se ela souber
porque raivoso acordei…
Era um sonho de mulher,
e mulher com que sonhei!
José Maria Machado de Araújo

“Cinquenta anos, seu doutor!”
– Eu lhe disse com coragem.
“Ajeite aqui o motor,
que eu cuido da lanternagem”.
Magdalena Léa

Tua sorte, companheiro,
à de mais ninguém se iguala:
Tens saúde, tens dinheiro…
e uma mulher que não fala!
Paulo Emílio Pinto

Existem colégios tais,
em que – justiça se faça – 
em vez das notas mensais,
quem tem mais nota é que passa…
Sérgio Fonseca

Milhões de verdades cabem
neste pensamento agudo:
– As mulheres nada sabem,
porém adivinham tudo!…
Vasco de Castro Lima 

Fonte:
Aparício Fernandes. A Trova no Brasil: história e antologia.

Isabel Furini (Sandoval)


Sandoval levantou a ponta da camisa vermelha, desabotoada, olorosa e limpou o suor da testa. Tocou uma música antiga no violão. As mesas  estavam vazias, menos uma. Os quatro fregueses aplaudiram com entusiasmo. O de chapéu marrom empurrou uma garrafa com o cotovelo enquanto aplaudia. A garrafa caiu no chão fazendo um estrondo. O dono do bar, que empilhava as cadeiras, parou o trabalho e disse: - “Vou fechar, senhores, voltem a noite. Abrimos as 20:00 horas.”

Sandoval guardou o violão e colocou o casaco. Havia bebido com o desespero de um beduíno depois de atravessar o deserto do Saara. Parecia um sedento. Uma verdadeira esponja jogando goela abaixo copos e mais copos de bebida  Primeiro foi a cervejinha, logo uma garrafa de vinho oferecida por amigos, e depois a caipirinha... Eram três da manhã, o bar fechou e o bêbado caminhava - entenda-se, cambaleava - para sua casa. 

Andou e andou. Passos lentos, movimentos desengonçados, ao virar a esquina tropeçou com  latas de lixo e caiu na calçada. Conseguiu levantar-se.  A Praça Rui Barbosa, pensou, estou perto de casa... Sentiu desejos de urinar. Apoiou-se numa árvore e começou a fazer xixi.

- “Ei! Você está me molhando.”

Sandoval abriu grandes os olhos. Não havia  ninguém por perto a não ser um pato. Por pura diversão começou a molhar o pato. Gritando: “Chuva, patinho! Tá chovendo,  chovendo.”

- “Seu safado, você deve estar bêbado para fazer isso!” - reclamou o pato.

– “Estou... sim.. sim...” - afirmou o Sandoval. “- Você fala, pato?”

O pato não respondeu. Começou a choramingar:

- “Ninguém gosta de mim. Assim não dá. Minha vida não vale um tostão. Eu sou um pobre pato sem família. Ninguém me ama.”

- “E eu com isso?” - perguntou o Sandoval.

- “Nada... você não tem nada com isso. Desculpe!”  - disse o pato. E começou a chorar. Era um choro de pato, mas dava para entender que estava triste. Era um choro longo, agudo, um quaaaaaac.... quaaaaaac.... entre lágrimas. 

- “Ei, camarada” - disse o Sandoval para o pato que afastava-se em pranto - “Quer uma cachacinha?” - E tirou uma garrafa pequena do casaco. - “É o que uso para apagar as mágoas.”

- “Obrigado!” disse o pato já tomando um trago, enquanto o homem segurava a garrafa – “Você é generoso...”

- “Que nada, compadre. Amigo é para essas coisas.”

- “Você é meu amigo??!!!” - gritou admirado o pato abrindo as asas e dando um pulo de alegria.

-  “Claro! Nós dois estamos na pior... temos que ser amigos” - o bêbado  parecia cuspir as palavras enquanto caminhava - “Prazer em conhecer-te, pato, eu sou o Sandoval, eu sou o rejei... rejitado. Isso. Sou rejeitado, rejeitado da sociedade. Sou um traste qualquer. Minha vida vale menos que a vida de um cachorro, de um... uau...” -  deu o nariz contra um poste de luz. Gritou. O pato riu. - “Minha vida vale menos que a vida de um... poste.”

- “Prazer. Eu sou o Patinho Feio da história de Andersen.”

- “Você é o Patinho Feio, aquele que no final da história se transforma num bonito Cisne?”

- “O mesmo.”

- “E voltou a ser Pato!” – gritou Sandoval

- “Eu me transformo em pato sempre que uma pessoa se transforma em algo feio e esquece tudo o bom que existe dentro dela.”

- “Dentro onde?” - pergunta o bêbado - “No estômago ou no coração?”

– “Não! Seu estômago só tem cachaça.” - disse o Pato  – “Eu falo de seu coração, cara. Eu falo daquele Sandoval alegre e cheio de entusiasmo. Aquele que sonhava com coisas boas, o amor, a amizade, o triunfo...”

- “Se é assim, você continuará sendo sempre um Pato, amigo, porque eu... eu sou um fracasso e dentro de mim só tenho cachaça. Eu tenho coração de cachaça. Não escutou a canção?” -  A saliva escorregava pelos cantos da boca.

- “Não! Que canção?” - perguntou o Patinho Feio.

O bêbado começou a cantar e dançar, uma mão apoiada na árvore.

“Coração de cachaça,/ Me dá um beijo, me abraça,/ Se você quer dançar,/ Só precisa escutar/ Esta música alegre./ Revolar..  revolar... /Coração de cachaça.../ Esta música arrasa/ A negona, o negão,/ A polaca também/ Todos podem dançar/ Ao som de minha canção.

Coração de cachaça...”

O bêbado parou. Cambaleou. Olhou fixamente ao pato e disse -  “Eu sei que você nunca escutou porque a inventei eu mesmo... ontem...  Eu era músico, compositor, poeta, boêmio. Todos me criticavam... todos... até minha mãe.” - deu um forte arroto.

- “Era um direito seu escolher sua vida” - disse o pato.

- “Vivia na boemia e todos me criticavam.” - enfatizou a palavra - Cri-ti-ca-vam. Minha mulher, a prefeita, a santinha, a chatinha... foi-se embora. Me abandonou. Disse que eu era um traste, que não prestava” - bebeu mais um gole de cachaça.  “Eu moro sozinho numa pensão. Quer passar a noite lá, pato?...” O pato aceitou. Não tinha mesmo onde ir.

O bêbado apertou os olhos e mexeu a cabeça, deu alguns passos para a direita e para a esquerda para equilibrar-se.

 - “Já sei! Eu moro do outro lado da praça!” - gritou. E lá foram os dois, o Sandoval e o Pato. Lado a lado. O Sandoval cambaleando, o Pato, mexendo o rabo para os lados. Os dois com esse andar desajeitado que assemelham bêbados e patos.

Sandoval colocou o Pato embaixo do casaco cinza, sujo e  desbotado para entrar na pensão. O dono não permitia animais.

Depois de várias tentativas, Sandoval conseguiu colocar a chave na fechadura e abrir a porta. Entrou no quarto. A cama estava desarrumada. Espalhadas no chão roupas, garrafas vazias. Os jornais velhos empilhados ao lado da mesa amarela, onde havia uma marmita que cheirava a podre e um prato sujo.

– “Esta é minha casa” - murmurou jogando o Pato em cima da cama.

- “Você precisa escrever essa música.”

- “Eu já não escrevo mais.” - disse o bêbado jogando-se sobre a cama.

- “Você vai voltar a escrever... pois eu estou cansado de ser o Pato Feio por sua causa. Não entende, Sandoval? Eu sou o rejeitado o marginal que vive em cada ser humano. Ou você acha que é o único marginal do mundo? Não! Homem, não. Cada vez que uma criança é rejeitada no jogo de futebol ou uma menina é chamada de feia, cada vez que uma pessoa fica desempregada ou um velho é jogado numa casa de repouso, cada vez que alguém é humilhado, cada vez que alguém erra ou se sente rejeitado... eu deixo de ser cisne e me transformo no Patinho Feio.”

- “Nesta época isso se chama falta de auto-estima.” Auto-estima... -  interrompeu o bêbado.

- “Isso mesmo!” - confirmou o Patinho Feio. - “Quando as pessoas têm pouca autoestima. Quando se deixam vencer, decidem não lutar, decidem não tentar por medo do fracasso. Quando um homem ou mulher ou criança ou velho, aceitam a rejeição ou a humilhação  ou se sentem  limitados, eu me transformo de novo em pato.” Fez uma pausa, fitou o Sandoval com olhos brilhantes e continuou: “Por favor, cansei de ser pato. Eu quero ser um cisne. Escreva essa canção..   Escreva Sandoval. Faça-o por seu amigo Pato.”

Sandoval pensou. Já  tinha  perdido seu amor próprio e o amor pela vida, o que mais poderia perder?  Começou a cantar e dançar: “Coração de cachaça, me dá um beijo, me abraça...” O Pato também começou a dançar em cima da cama. E tinha ginga. Movimentava  as alas para os lados rapidamente e depois as recolhia, deixava o corpo quieto e só mexia as penas da cauda. Era uma graça! Sandoval, entusiasmado, cantou mais alto.

Alguém que estava no quarto ao lado bateu na parede e gritou: “Silêncio!! Silêncio!!” Fez a maior barulheira. O dono da pensão bateu na porta. O Sandoval e o pato ficaram calados, olhando-se como duas crianças sapecas depois de uma brincadeira.

- “Eu vou dormir” - disse o Pato e deitou sobre o travesseiro.

Sandoval não disse nada. Sentou-se pegou um caderno e escreveu muitos poemas e compôs muitas músicas.  Músicas alegres e tristes. Música de samba e de rock.  Algumas davam esperanças, outras entristeciam, outras ainda alegravam. Toda emoção, todo sentimento, eram transformados em música e em poesia pelo Sandoval.

Dormiu quando a cidade começava a acordar e as pessoas iam para o trabalho. O ruído da rua se intensificou.  Pela janela entreaberta entrava ruído de  motores e  buzinas. Fumaça dos carros. Nada atrapalhava o sono profundo de Sandoval.

Sandoval acordou quatro da tarde. Lembrou do Pato. Procurou-o pelo quarto. Não estava. Só achou os poemas e as músicas que havia escrito na madrugada. E numa das folhas havia uma pegada...  podia-se ver claramente o pé de um pato.

Ninguém acreditou na sua história. Coisas de bêbado, “patos não falam”, disse seu amigo Joaquim. O Sandoval não se importou. Era ele quem necessitava acreditar, não os outros. Nos dias seguintes registrou sua música e levou-a para gravadoras e estações de rádio. No começo poucos se interessaram, mas ele não desistiu. E de repente as coisas começaram acontecer. Alguém gostou. Um conjunto gravou “Coração de Cachaça”. Ficou primeira nas paradas.  Sua vida mudou. Suas canções tornaram-se populares. Foi entrevistado várias vezes na Televisão. Dois meses depois mudou para um apartamento. Comprou alguns móveis, mas levou sua cama, essa cama onde o pato tinha deitado. Fez um desenho do pato, o pato branquelo, com lágrimas nos olhos e o bico para baixo, o que dava um ar de tristeza. Colou a figura parede do quarto.

Essa noite, antes de dormir,  fixou seu olhar no  pato  triste colado na parede. Percebeu uma luz dourada em forma de espiral saltitar sobre a figura. E viu o pato que havia desenhado, o pato marginalizado, o pato desprezado, o patinho feio, transformar-se num belo cisne. Num cisne  triunfante.

Fonte:

Anthero de Quental (Livro D’Ouro da Poesia Portuguesa vol. 8) II



A FADA NEGRA

Uma velha de olhar mudo e frio,
De olhos sem cor, de lábios glaciais,
Tomou-me nos seus braços sepulcrais.
Tomou-me sobre o seio ermo e vazio.

E beijou-me em silêncio, longamente,
Longamente me uniu à face fria...
Oh! como a minha alma se estorcia
Sob os seus beijos, dolorosamente!

Onde os lábios pousou, a carne logo
Mirrou-se e encaneceu-se-me o cabelo,
Meus ossos confrangeram-se. O gelo
Do seu bafo secava mais que o fogo.

Com seu olhar sem cor, que me fitava,
A Fada negra me coalhou o sangue.
Dentro em meu coração inerte e exangue
Um silencio de morte se engolfava.

E volvendo em redor olhos absortos,
O mundo pareceu-me uma visão,
Um grande mar de névoa, de ilusão,
E a luz do sol como um luar de mortos...

Como o espectro dum mundo já defunto,
Um farrapo de mundo, nevoento,
Ruína aérea que sacode o vento,
Sem cor, sem consistência, sem conjunto...

E quanto adora quem adora o mundo,
Brilho e ventura, esperar, sorrir,
Eu vi tudo oscilar, pender, cair,
Inerte e já da cor dum moribundo.

Dentro em meu coração, nesse momento,
Fez-se um buraco enorme – e nesse abismo
Senti ruir não sei que cataclismo,
Como um universal desabamento...

Razão! Velha de olhar agudo e cru
E de hálito mortal mais do que a peste!
Pelo beijo de gelo que me deste,
Fada negra, bendita sejas tu!

Bendita sejas tu pela agonia
E o luto funeral daquela hora
Em que eu vi baquear quanto se adora,
Vi de que noite é feita a luz do dia!

Pelo pranto e as torturas benfazejas
Do desengano... pela paz austera
Dum morto coração, que nada espera,
Nem deseja também... bendita sejas!

IGNOTO DEO

Que beleza mortal se te assemelha,
Ó sonhada visão desta alma ardente,
Que refletes em mim teu brilho ingente,
Lá como sobre o mar o sol se espelha?

O mundo é grande – e esta ânsia me aconselha
A buscar-te na terra: e eu, pobre crente,
Pelo mundo procuro um Deus clemente,
Mas a ara só lhe encontro... nua e velha...

Não é mortal o que eu em ti adoro.
Que és tu aqui? olhar de piedade,
Gota de mel em taça de venenos...

Pura essência das lagrimas que choro
E sonho dos meus sonhos! se és verdade,
Descobre-te, visão, ao céu ao menos!

LAMENTO

Um diluvio de luz cai da montanha:
Eis o dia! eis o sol! O esposo amado!
Onde ha por toda a terra um só cuidado
Que não dissipe a luz que o mundo banha?

Flor a custo medrada em erma penha,
Revolto mar ou golfo congelado,
Aonde ha ser de Deus tão olvidado
Para quem paz e alivio o céu não tenha?

Deus é Pai! Pai de toda a criatura:
E a todo o ser o seu amor assiste:
De seus filhos o mal sempre é lembrado...

Ah! se Deus a seus filhos dá ventura
Nesta hora santa... e eu só posso ser triste...
Serei filho, mas filho abandonado!

A M.C. (I)

Pôs-te Deus sobre a fronte a mão piedosa:
O que fala o poeta e o soldado
Volveu a ti o olhar, de amor velado,
E disse-te: «Vai, filha, sê formosa!»

E tu, descendo na onda harmoniosa,
Pousaste neste solo angustiado,
Estrela envolta num clarão sagrado,
Do teu límpido olhar na luz radiosa...

Mas eu... posso eu acaso merecer-te?
Deu-te o Senhor, mulher! O que é vedado,
Anjo! Deu-te o Senhor um mundo á parte.

E a mim, a quem deu olhos para ver-te,
Sem poder mais... a mim o que me ha dado?
Voz, que te cante, e uma alma para amar-te!

A SANTOS VALENTE

Estreita é do prazer na vida a taça:
Largo, como o oceano é largo e fundo,
E como ele em venturas infecundo,
O cálix amargoso da desgraça.

E contudo nossa alma, quando passa
incerta peregrina, pelo mundo,
Prazer só pede à vida, amor fecundo,
É com essa esperança que se abraça.

É lei de Deus este aspirar imenso...
E contudo a ilusão impôs à vida.
E manda buscar luz e dá-nos treva!

Ah! se Deus acendeu um foco intenso
De amor e dor em nós, na ardente lida,
Porque a miragem cria... ou porque a leva?

TORMENTO DO IDEAL

Conheci a Beleza que não morre
E fiquei triste. Como quem da serra
Mais alta que haja, olhando aos pés a terra
E o mar, vê tudo, a maior nau ou torre,

Minguar, fundir-se, sob a luz que jorre:
Assim eu vi o mundo e o que ele encerra
Perder a cor, bem como a nuvem que erra
Ao pôr do sol e sobre o mar discorre.

Pedindo à forma, em vão, a ideia pura,
Tropeço, em sombras, na matéria dura.
E encontro a imperfeição de quanto existe.

Recebi o batismo dos poetas,
E assentado entre as formas incompletas
Para sempre fiquei pálido e triste.

ASPIRAÇÃO

Meus dias vão correndo vagarosos
Sem prazer e sem dor, e até parece
Que o foco interior já desfalece
E vacila com raios duvidosos.

É bela a vida e os anos são formosos,
E nunca ao peito amante o amor falece...
Mas, se a beleza aqui nos aparece,
Logo outra lembra de mais puros gozos.

Minh'alma, ó Deus! a outros céus aspira:
Se um momento a prendeu mortal beleza,
É pela eterna pátria que suspira...

Porém do pressentir dá-me a certeza.
Dá-ma! e sereno, embora a dor me fira,
Eu sempre bendirei esta tristeza!

A FLORIDO TELLES

Se comparo poder ou ouro ou fama,
Venturas que em si têm oculto o dano,
Com aquele outro afeto soberano,
Que amor se diz e é luz de pura chama,

Vejo que são bem como arteira dama,
Que sob honesto riso esconde o engano,
E o que as segue, como homem leviano
Que por um vão prazer deixa quem ama.

Nasce do orgulho aquele estéril gozo
E a gloria dele é cousa fraudulenta,
Como quem na vaidade tem a palma:

Tem na paixão seu brilho mais formoso
E das paixões também some-o a tormenta...
Mas a glória do amor... essa vem d'alma!

SALMO

Esperemos em Deus! Ele ha tomado
Em suas mãos a massa inerte e fria
Da matéria impotente e, num só dia,
Luz, movimento, ação, tudo lhe ha dado.

Ele, ao mais pobre de alma, ha tributado
Desvelo e amor: ele conduz á via
Segura quem lhe foge e se extravia,
Quem pela noite andava desgarrado.

E a mim, que aspiro a ele, a mim, que o amo,
Que anseio por mais vida e maior brilho.
Há de negar-me o termo deste anseio?

Buscou quem o não quis; e a mim, que o chamo,
Há de fugir-me, como a ingrato filho?
Ó Deus, meu Pai e abrigo! Espero!... eu creio!

A M.C. (II)

No Céu, se existe um céu para quem chora.
Céu, para as magoas de quem sofre tanto...
Se é lá do amor o foco, puro e santo,
Chama que brilha, mas que não devora...

No céu, se uma alma nesse espaço mora.
Que a prece escuta e encharca o nosso pranto...
Se há Pai, que estenda sobre nós o manto
Do amor piedoso... que eu não sinto agora...

No céu, ó virgem! Findarão meus males:
Hei de lá renascer, eu que pareço
Aqui ter só nascido para dores.

Ali, ó lírio dos celestes vales!
Tendo seu fim, terão o seu começo.
Para não mais findar, nossos amores.

A JOÃO DE DEUS

Se é lei, que rege o escuro pensamento,
Ser vã toda a pesquisa da verdade,
Em vez da luz achar a escuridade,
Ser uma queda nova cada invento;

É lei também, embora cru tormento,
Buscar, sempre buscar a claridade,
E só ter como certa realidade
O que nos mostra claro o entendimento.

O que há de a alma escolher, em tanto engano?
Se uma hora crê de fé, logo duvida:
Se procura, só acha... o desatino!

Só Deus pode acudir em tanto dano:
Esperemos a luz duma outra vida,
Seja a terra degredo, o céu destino.

Fonte:
Anthero de Quental. Sonetos Completos.