sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Isabel Furini (O Nerd)


Todas as sextas-feiras, à tardinha, depois de sair do trabalho, a turma reunia-se no bar da esquina para beber e contar piadas. Arnaldo era o rei. Entre cervejinhas e batatas fritas divertia o grupo, contando piadas com o jeitinho de Ary Toledo.

Essa sexta-feira o escritório estava agitado. Na segunda-feira chegaria um cara novo, indicado pela diretoria. Um novo gerente, inteligente, jovem e inovador.

Segunda-feira de manhã, logo cedo, o estacionamento já estava lotado. 

Quando a porta do elevador abriu-se… - Meu Deus! Esse cara foi colega de escola… Nós o chamávamos de nerd… nerd… nerd Ental… “nerdental”!.. Porque era um verdadeiro nerd. Gostava de ler história, arqueologia, filosofia, sei lá, essas baboseiras… Esse cara vai ser o diretor da empresa? Quem diria!..

O dia passou rápido. Arnaldo percorreu todas as escrivaninhas falando: - Coitado do Zulmar, o novo diretor, tinha medo de falar com meninas. Coitado do Zulmar, o novo diretor…

Três dias depois, os funcionários foram chamados para falar com o diretor. Quando Zulmar foi dar-lhe a mão, Arnaldo esquivou-se e lhe deu dois soquinhos no ombro para mostrar que era o dono da situação. O diretor, em silêncio, pegou a ficha.

- Há cinco anos que você tem o mesmo cargo.

- Sim, mas se me quer nomear chefe estou disposto a chefiar a empresa - brincou.

- A empresa vai entrar um novo ritmo de trabalho. Lamentavelmente, você não se adapta bem a mudanças.

- Não, não é isso, “Nerdental”!.. falou rindo Arnaldo.

O diretor não riu. 

- Pode passar pelo RH.

- Não! Escute! Só falei Nerdental para lembrar dos velhos tempos. Não precisa… Não… 

O diretor, impassível, pediu para a secretária chamar outro funcionário. Teve que obedecer e falar com o gerente do RH. Lá começaram os problemas.

- Sabe por que está aqui? - perguntou a psicóloga.

- Sim! - gritou Arnaldo - porque esse nerd miserável, cretino, foi nomeado diretor e se acha o dono do mundo e… Arnaldo ficou quase uma hora falando mal do diretor. A psicóloga entendeu que Arnaldo tinha raiva reprimida, não apreciava o triunfo alheio e tinha problemas de relacionamento.

- Com a turma da cerveja, dou-me muito bem! - gritou o Arnaldo para defender-se.

A psicóloga olhou-o atrás de suas lentes grossas. “Predisposição para alcoolismo” - escreveu em seu caderno de notas.

Arnaldo foi rebaixado para auxiliar. Começou a frequentar o bar todos os dias, até que chegou ao trabalho bêbado, quase caiu sobre o computador, derrubou alguns papéis… O chefe do setor falou em despedi-lo, mas o novo diretor, com muita calma, explicou que alcoolismo é doença e pediu para o encarregado ser paciente e falar com o RH para achar uma solução.

A notícia se espalhou, e todos ficaram comovidos. Comentavam que o novo diretor era um homem justo e queria ajudar os funcionários problemáticos.

- Esse cara é um vitorioso, comentavam os funcionários.

Uma noite, Arnaldo chegou à casa de sua irmã, quase bêbado e gritou durante vinte minutos seu ódio contra o novo diretor da empresa.

Paulino, o cunhado, tranquilo, disse para Arnaldo aceitar a realidade. - Talvez o novo diretor o esteja sacaneando. Se o diretor tem um plano para prejudicá-lo, ele o está fazendo com tanta classe, que ninguém enxerga a verdade. Arnaldo, você deveria seguir o que falam as pessoas bem sucedidas. Não conhece essa frase do famoso empresário Bill G., que está rolando na Internet?

- Não!.. Qual frase?

- Bill G. disse para um grupo de estudantes: “Nunca zombe de um nerd, pois um deles será seu chefe”.

Fonte:

Trova 334 - JB Xavier


Contos Tradicionais Portugueses (Maria Mantela)



Na igreja matriz de Chaves existiu, em tempos, uma lápide, no colateral direito, com o seguinte epitáfio: 
«Aqui jaz Maria Mantela 
Com sete filhos ao redor dela».

Diz a lenda que rememora Maria Mantela que certa vez, era ela ainda menina, criticou severamente uma pobre que lhe pediu esmola, levando ao colo dois gêmeos. Anos mais tarde Maria Mantela casou e, passado tempo, engravidou.

Iniciado o trabalho do parto, quando a parteira lhe disse, depois de ter nascido o primeiro filho, que se esforçasse para sair o segundo, e o terceiro, e o quarto, e por aí fora até ao sétimo, a mulher ficou louca de vergonha.

Assim que recuperou o ânimo, pagou muito bem à parteira para que escondesse o fato de ter tido sete filhos gêmeos e entregou os recém-nascidos à serva que assistira aos nascimentos para que os deitasse ao rio. A criada, cheia de pena dos meninos, meteu-os num cesto e pôs-se a caminho do rio para cumprir o que lhe tinha sido ordenado. Não replicou ante a desumanidade do seu mandado porque bem sabia que isso só lhe podia valer aborrecimentos. Além de que a ama, no estado de espírito em que se encontrava, não lhe daria ouvidos, sendo provável até que lhe desse o mesmo fim que aos meninos.

Perto das Caldas de Chaves, assim entregue a estes pensamentos e com a asa do cabaz enfiada no braço, a serva encontrou o marido da sua senhora Maria Mantela, o qual lhe perguntou o que levava no cesto. Apanhada de surpresa, a pobre rapariga, depois de titubear umas palavras incompreensíveis, acabou por achar a solução:

- São cachorrinhos que eu vou deitar ao rio, senhor.

O amo, ou por curiosidade ou por já desconfiar de qualquer coisa, levantou a cobertura e percebeu. Pegou no cesto, pô-lo sobre o cavalo e disse à rapariga que fosse dizer à ama que estava cumprida a ordem.

Dali partiu com os filhos em busca de amas que os criassem. Deixou cada um em sua aldeia e durante muito tempo Maria Mantela não desconfiou que os meninos estavam vivos e se iam criando e educando.

Diz a lenda, ao mesmo tempo que especifica os nomes das igrejas, que estes sete meninos foram ordenados padres e viveram a sua vida em sete aldeias circunvizinhas de Chaves. E Maria Mantela viveu o resto da sua vida grata ao marido por ter aceite aqueles sete filhos de um só parto. E tanto os amou que exigiu descansar juntamente com os sete, no seu leito de eternidade:

«Aqui jaz Maria Mantela 
Com sete filhos ao redor dela.»

Poderá parecer estranho ao nosso entendimento de homens do século XX o problema posto nesta lenda em que se fala de gêmeos que por serem devem morrer. Creio não errar ao dizer que o problema se funda em antigas crenças segundo as quais as mulheres honestas só podiam, e deviam, ter um filho de cada vez do seu marido. O fato de lhes nascer mais do que um filho no mesmo parto deveria pressupor desonestidade no seu comportamento e consequente desonra do marido.

Fonte:
Lendas Portuguesas da Terra e do Mar, Fernanda Frazão, disponível em Estúdio Raposa

quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

Domingos Freire Cardoso (Poemas Escolhidos) II


COMO QUEM NÃO TEM MAIS ONDE IR
(verso de Ana Margarida da Silva Ferreira)

Como quem não tem mais para onde ir
Fui buscar nas palavras o acalanto
Que lavem as poeiras do quebranto
Que me deram os anos de existir.

Qual bálsamo, poção ou elixir
As palavras trouxeram-me o encanto
Que eu havia perdido num recanto
Do canteiro que não chegou a abrir.

As palavras me envolvem como um véu
E do chão levam-me ao azul do céu
Num crescendo de sons e de magia.

E os dias, em fortuna, tão avaros
Fazem-se mais ridentes e mais claros
Quando me beija a sombra da Poesia.

O QUE SOMENTE UM LOUCO HÁ-DE SONHAR
(Verso de Fernando Valente Sobrinho)

O que somente um louco há-de sonhar
Uma criança alegre há-de sorrir
Um pobre velho e triste há-de pedir
E um gênio criativo há-de inventar.

Só o que um braço forte há-de alcançar
Uma vontade férrea há-de exigir
Um coração fraterno há-de servir
E a Virgem milagrosa há-de escutar.

Só irei confiar ao meu poema
O brilho puro que há num diadema
E o bem maior que houver dentro do peito.

Mas como é grande a minha pequenez
E de engenho é maior inda a escassez
O poema nunca há-de ser perfeito.

CAÍRAM, UMA A UMA, PELO CHÃO
(Verso de Glória Merreiros)

Caíram, uma a uma, pelo chão
As perlas que eu chorei e tu choraste
Nessa hora em que, triste, me abraçaste
Fugindo ao mundo vil da solidão.

Tão frágil, a sofrer, teu coração
Batia no teu peito feito haste
Ao vento dessa dor que recusaste
E punha o teu olhar na escuridão.

De amor puxei teu corpo contra o meu
E quando a força usada me doeu
Eu cri que os nossos braços deram nó.

Mais forte do que nunca o nosso abraço
Deixou entre nós dois tão pouco espaço
Que eu soube que no amor somos um só.

SINTO O SANGUE GELAR-SE-ME NAS VEIAS
(Verso de José Barreto)

Sinto o sangue gelar-se-me nas veias
Quando no peito morre uma esperança
Ou se solta um cabelo de uma trança
Onde o ouro brilhava sem ter peias;

E quando a luz que havia nas ideias
Se extingue sem deixar qualquer herança
Que no futuro seja uma lembrança
Dos povos que cantaram epopeias.

E o meu corpo minado pelo frio
Ganha a dureza gélida de um rio
A que os polos dão alma de glaciar.

Sou branca massa de água deslizando
Que sobre um mar de mágoa abominando
Onde eu não sou capaz de me afogar.

Fonte: 
CARDOSO, Domingos Freire. Por entre poetas. 
Aveiro/Portugal: Edição do autor, 2016
(livro gentilmente enviado pelo poeta)

Júlio Brandão (Lenda de Natal)

Certo homem, já velho, viu chegar o Natal, e pôs-se a pensar na melancolia, no desamparo da sua vida. Dos filhos, uns tinham-lhe morrido, outros tinham-no abandonado... Estava só no mundo, com os pés para a cova, e cheio de desilusões, de ingratidões e de pobreza. Entretanto não havia ambições vis nem rancores no seu coração. Tinha saudades. Por esse lento caminho da vida, hoje ermo de afetos, algumas consolações tivera a sua alma.

Recordava-se, às vezes com os olhos orvalhados, postos no horizonte esfumado do dia triste. Agora era um farrapo, que tinham de levar os redemoinhos da morte. À noite (era a nostálgica noite de Consoada) sentiu duas longas lágrimas a molharem-lhe o rosto. Ele mesmo foi fazer um caldo para a ceia. Os piornos ardiam na lareira do casebre esburacado. O velho encolheu-se ao lume, com os olhos fixos na labareda avermelhada.

Todos estavam, àquela hora, nos lares amorosos. Ele lembrava-se do riso das crianças, desse amoroso e cândido florir de venturas; avivava-se-lhe o passado, claro e benéfico, cuja árvore do Natal era cheia de estrelas, cantada de esperanças, e agora, há quantos anos, um negro e frio cipreste! Para ali estava, sem uma fala amiga, sem um rosto amado, ouvindo a ventania nos soutos (bosques). E pensava que era como esses troncos velhos e partidos, por cima dos quais o enxurro (enxurrada) espumava, e onde nunca mais nasceria flor, ou cantaria ave...

Fez um exame de consciência: fora bom, fora simples. A mulher morrera-lhe ainda na flor da vida; a filha fugira-lhe para a mãe, quando estava noiva. Antes assim, pensava. A filha era uma santa, e o mundo era ruim... Mais tarde, já trôpego, dois filhos roubaram-no, e nunca mais apareceram. Como ele se lembrava! Fora numa noite como aquela, negra e ventosa. Os dois, quando ele dormia, arrombaram-lhe a arca, e levaram-lhe a meia dúzia de peças que tinha guardadas no escaninho, para algum ano sáfaro (improdutivo, agreste), de mais negra fome. Afinal tudo era para os filhos, dizia consigo; os filhos lho levaram... Mas nem roupa lhe deixaram, no Inverno impiedoso, para o cobrir. Tinham sido perversos, os filhos que ele tanto amara! Depois começou de entrevar; os braços não podiam; e onde o trabalho míngua, vai crescendo a miséria. Ficou com uma horta, donde comia o caldo, onde colhia uma cesta de fruta. Pouco lhe bastava, afinal. O compadre, a quem ele tanto ajudara, por quem tantos sacrifícios fizera, fora para o Brasil. Por lá acabara, certamente...

Estava escorraçado como um cão, pobre como Job. Apesar disso, na consciência não se apagara a claridade que sempre lha iluminara. Ela era semelhante a um suave rio bucólico, cuja transparência deixa ver na areia loira a sombra de um cardume prateado. Ele sentia-se bem naquela miséria, naquele abandono — com essa leveza e essa graça dos que olhando para a vida inteira não têm nunca a desviar os olhos de uma torpeza ou de uma mentira.

Curvado sobre as brasas crepitantes, o velho lançou os olhos para o banco chamuscado, que lhe ficava em frente. E de repente ficou estático. O queixo  tremia-lhe fortemente. Santo Deus! Que via ele?! Era inacreditável! A filha e a mulher, a fiarem nas suas rocas, com um sorriso tão suave, uma serenidade tão bela! Jesus, Jesus, eram elas! Que alegria a sua! O velho estremeceu, o coração bateu-lhe como quando era jovem, balbuciou:

— Ó Maria, ó Luísa, vocês vieram?!

Elas sorriram-se mais docemente, sempre a fiar nas suas rocas. E o velho, com os olhos pregados nelas, sentia as pálpebras umedecidas de uma felicidade sobre humana.

— Ó Maria, ó Luísa!...

Assim correram alguns instantes celestes. Ele olhava-as embevecido. Elas resplandeciam, como envoltas num vago luar. Nunca as vira tão lindas, com mais lindo sorriso. E como não falavam, o velho calou-se também num êxtase.

Elas continuavam a sorrir, continuavam a fiar. O vento, fora, soprava rijo nos sobros, assobiava. A noite ia passando a uivar, feia e longa; mas as horas voavam para aquele velho embelezado nas visões. As duas já tinham espiado as rocas. A porta ouviram-se três pancadas.

Truz, truz, truz!

— Quem me procura?! — tartamudeou o velho, como despertando de um sonho imenso.

Truz, truz, truz!

Arrastou-se trôpego, abriu a porta. As duas tinham desaparecido. Na treva espessa e lúgubre, distinguiu a figura doutro velho de grandes barbas, com uma sacola ao ombro.

— Sou eu, compadre, sou eu!

— Será possível! Que felicidade!

E abraçaram-se, num antigo e comovente abraço. O viandante pousou a sacola, sacudiu a neve do capote, e foi-se esquentar ao lume.

— Hás de vir gelado, Manuel!

Vinha, na verdade. Tinha andado muito, a noite estava má, nevava. Mas há quantos anos ele tinha querido vir passar ali o Natal! E contou, ao estalar das raízes secas no lume, naquela paz religiosa e bíblica, a sua crua sorte. 

Os velhos sentaram-se um em frente do outro. Enquanto o caminheiro espalmava as mãos sobre o braseiro, ia narrando a sua vida dura, por terras longínquas e ásperas, à busca de fortuna. Trabalhara muito, sofrera muito. E sempre, através de tormentos, a saudade do seu velho amigo lhe aparecia... A vida tinha-lhe ensinado muitas coisas; mas sobretudo que a felicidade está dentro de nós, vive conosco, e que todo aquele que semeia o bem, há de colher o bem...

O outro escutava-o silencioso, com a vista úmida.

— Acredita que toda a minha pena, compadre, era não poder abraçar-te!

— E eu julgava que tu, por tão longe, nunca mais te lembrarias...

— Pode lá esquecer quem é santo, compadre!

E contou que na volta, mar alto, começou, em pleno dia, a escurecer o céu. A marujada adivinhara a tormenta. Amainaram as velas, fecharam escotilhas, preveniram tudo. Minutos depois o vento rugia, o mar bramia. O navio dançava nos abismos revoltos, fulgentes de relâmpagos. Andaram perdidos, com o leme despedaçado, na água brava. Tiveram fome e sede — e a tempestade a jogar com eles, como com um grão de areia. Nos lábios das crianças, das mulheres, de todos, abrira a flor divina de uma oração. E a dele pedia a Deus que o deixasse vir à sua terra, para ver ainda o seu velho companheiro sem arrimo.

— E Deus ouviu-me. Aqui estou.

O velho atiçou o braseiro, deitou mais lenha ao fogo. O viajante ergueu-se, abriu a sacola, e foi tirando, para cima da masseira velha e carunchosa, os víveres que trazia, as ameixas, as passas, uma garrafa de vinho loiro.

— Não me esqueci da ceia, compadre.

— Assim vejo, Manuel. Deus te pague!

E cearam, como tantos anos antes, quando na aldeia havia alegria e fartura. Foram conversando, pela noite dentro, com a alma abrindo numa inflorescência misteriosa. Depois o viandante perguntou por todos, por tudo. E vieram as tristezas, as recordações pungentes: os filhos maus, a filha amada, a mulher morta!...

De novo o velho olhou para o banco da lareira, e manteve-se estático, com os olhos iluminados.

— Que tens, compadre?

— Olha, estão ali!

— Ah!... — disse o outro, sem surpresa, olhando em torno.

— Também vieram, Manuel, também vieram!...

De feito, o velho lá via de novo as duas, sorrindo-lhe angelicamente, cheias de graça. Uma trança de lírios luminosos tocava-as, o mesmo luar de há pouco as envolvia, como se emergissem, pálidas, de um grande sonho místico.

— A Maria, a Luísa, tão lindas!... — balbuciou o velho. 

O viandante respondeu simplesmente:

— Os que se amam nunca nos abandonam. Estão dentro de nós, vivem conosco.

O velho nem comia, enlevado nas aparições suaves. Via os cabelos loiros da filha, o seu ar virgem e esbelto; a mulher, como no dia em que partira, com os fundos olhos tristes, a boca airosa, onde jamais houvera o veneno da mentira.

— Vê tu que de mais longe vieram elas fazer-te companhia; não fui eu só, compadre.

A cara do viandante estava aureolada agora de uma irradiação magnética. Seguiu-se um diálogo de velhos que padeceram, que nobremente souberam amar, e que em certa hora suprema dizem, num murmúrio de almas, as suas confissões. Parábolas que lembram o mar, lembram estrelas... Belas e tristes como sepulcros, onde puseram flores, à lua cheia. É a lenda dos homens — sombras vagas, que uma luz vaga para sempre desfaz...

— Agora, compadre, vamos descansar. Venho quebrado de fadiga. Dormiremos juntos.

— Pois sim, eu não tenho outra enxerga (colchão).

As visões tinham fugido. E os dois adormeceram, noite alta, quando um galo cantava, como arauto da luz.
* * *

Mas de madrugada, quando pelas frestas entrava um fulgor dourado, o velho perguntou:

— Onde estás, compadre?

Ninguém respondeu. Uma grande paz enchia a casa. O velho procurou com os olhos, sentou-se na cama. Ninguém! Apenas na enxerga e no travesseiro de estopa ficara resplandecendo docemente a figura do compadre, como se fosse um brilho de nebulosas...

O velho ergueu-se, rezou de mãos postas. O dia de festa alvoreceu sem nuvens. Um sol pálido e terno enchia toda a terra de ouro. Da horta emperolada de orvalho reluzente, o velho veio ainda contemplar longamente a concha azul do céu misterioso e plácido...

Fonte:
Vários Autores. Contos de Natal Portugueses

terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Trova 333 - Carolina Ramos

Imagem de fundo: Deusa Flora, de autoria desconhecida

Janske Niemann (Poemas Escolhidos)



A PETRÓPOLIS

És minha! Com tuas manhãs muito frias,
com montes e céu, confundindo-se além.
És minha nas mais infantis alegria
se és minha na lágrima triste que vem...

És minha! com toda a balbúrdia dos dias
e com toda a calma das noites também.
Às vezes te encontro nas minhas poesias
e às vezes em sonhos que os outros não têm...

És minha, quando eu te contemplo e, sozinha,
escrevo o que sinto. Que felicidade
olhar-te e dizer o que mais ninguém diz!

Mas nesta alegria de ter-te tão minha,
ocorre-me às vezes (estranho em verdade)
que eu tenho vergonha... de ser tão feliz!

CANTA! 
Para Oswaldo Montenegro

Canta para mim! Canta a tristeza,
canta a solidão e canta o mar!
Quero acompanhar-te no teu canto...
... mas eu não sei cantar...

Toca o violão, toca bem alto
para que não me ouçam soluçar.
Amo o violão contra o teu peito...
... mas eu não sei tocar...

Canta para mim, enquanto escrevo
versos que, talvez, ninguém vá ler.
Ouço-te cantar e escrevo versos:
é só o que sei fazer...

Canta para mim! Grita Poesia!
Canta pela boca, as mãos, o olhar!
Vou cantar também, cantar contigo...
... mas eu só sei chorar...

CONVITE PARA O CAFÉ

Observo a mesa posta. Com cuidado
coloco cada coisa em seu lugar:
a xícara mais bela deste lado
e logo poderemos nos sentar.

O pão quentinho (o aroma paira no ar...)
o guardanapo limpo, bem dobrado.
Colho um botão de rosa; meu olhar
se alegra ao ver chegar o convidado.

Esta manhã de inverno, um pouco fria,
parece que aumentou minha alegria
e me aqueceu enquanto eu esperei.

O filho chega - alegre e desatento -
(não vê que eu esperava este momento)
e apenas diz:"Café? Eu já tomei...”

DEIXA-ME RIR

RIR, como se fosse eterna a primavera...
... como se eu pudesse adormecer
entre flores

RIR, como se eu não te amasse...
... como se não houvesse adeus
e eu fosse livre
qual na planície uma rajada de vento...

RIR, embriagada pelo amor
até me tornar uma nuvem branca 
solta no espaço contra o azul do céu

... como se o rugido da tempestade
me perseguisse
sem me alcançar

RIR, como se o clamor pela paz fosse ouvido...
... como se a vida fosse um poema

RIR, louca, desvairadamente,
e viver num riso interminável
... como se Poesia não fosse dor…

D O R

Não me verão, no dia que amanhece,
a voz que treme, o passo que vacila
e nem, na face, a lágrima que desce:
sorrindo chegarei, quase tranquila...

Conseguirei, no rosto que padece,
a máscara moldar, qual fosse argila.
A boca esconde a dor: até parece
não a sentir... ou finge não senti-la...

Não me ouvirão palavras de revolta,
o grito angustiado não se solta,
a estranha solidão não se revela.

Da dor, nasce a poesia quase feita:
- a rima bela, a métrica perfeita! -
Amas a dor, poeta! Vives dela...

LIVRE

Julguei que eu fosse livre:
livre como uma nuvem é livre
como uma borboleta é livre
como é livre o vento...

Julguei-me bela:
bela como uma flor é bela
como o crepúsculo é belo
e como é belo o luar...

Pensei ter encontrado o amor:
aquele amor que é sempre amor
que é ternura e afago
aquele que não existe...

(De repente quero ficar só:
preciso chorar um pouquinho...)

MINHA CASA

Conheço-te tão bem! A sala, o quarto,
a vista da janela escancarada!
Na mesa da cozinha, o almoço farto,
o som de cada porta ao ser fechada...

Conheço-te demais! No entanto, parto...
De tudo o que era meu, não fica nada:
na sala, nada... e nada no meu quarto,
só o vento na varanda ensolarada...

E deixo a antiga casa na ladeira:
risadas quantas! quanta brincadeira!
Mas parto... e minha casa deixo aqui.

Horrível ver-te assim: fria e despida...
Nem fecho a porta: saio pela vida,
avaliando o quanto empobreci!

SER SÍLABA

Não me ouvirás queixume nem lamento
(só o frio da manhã me reanima...)
e mesmo estando triste de momento,
não me ouvirás chorar, pois choro em rima.

Não me verás a dor, pois mostro apenas
a mão que apara os golpes mais adversos.
Um lânguido sorriso esconde as penas:
não me verás chorar, pois choro em versos.

Ser frágil como pétala intocada
e ainda assim ser símbolo da paz;
ser luz... ser sombra... e se não for mais nada,
ser sílaba, que em versos se desfaz…

Fontes:
Facebook e Blog da poetisa

Janske Niemann


Janske Niemann Schlenker nasceu em Amsterdã, Holanda, e veio para o Brasil ainda muito jovem, residindo primeiramente em Petrópolis-RJ e, desde 1957, em Curitiba-PR. 

Estudou música e foi organista. 

Por seu domínio em holandês e alemão, sobretudo no inglês, trabalhou como tradutora e, por dez anos, como secretária bilíngue. 

Publicou textos em diversos jornais de São Paulo (O Fanal e Movimento Poético Nacional) e de Petrópolis e, desde 2006, publica poemas no Festival de Sonetos, promovido pela Academia Jacarehyense de Letras. 

Conquistou o primeiro lugar no Programa Poesia Viva aos 18 anos e seu primeiro livro recebeu um prêmio-publicação pelo programa Chamada Geral. 

Integra a Academia de Letras José de Alencar, a União Brasileira de Trovadores, o Centro de Letras do Paraná, o Centro Paranaense Feminino de Cultura e a Academia Paranaense de Poesia (Cadeira nº 16).

Livros publicados:

Deixa que eu chore. (Biblioteca Pública do Parana´, Secretaria de Estado da Cultura e do Esporte, 1985), poesias.

Deixa que eu fale (Centro de Letras do Paraná, 1999), poesias.

Deixa que doa. (Edição da autora, s.d.), poesias.

Fonte:

Contos e Lendas do Mundo (Estados Unidos: O Homem que semeava árvores)


Para os primeiros colonos europeus que viajaram de carroça até ao Oeste desconhecido, as macieiras forneciam abrigo, comida e um cheirinho a casa. A lenda diz que a maioria das árvores foi plantada por John Chapman, recordado hoje como Johnny Appleseed (Appleseed: semente de maçã).

Johnny Appleseed era feliz onde estava. Ouvira histórias do Oeste um lugar selvagem de planícies sem fim, montanhas enormes e densos pinhais - e não vislumbrava nenhuma boa razão para abandonar a segurança da sua amada quinta de macieiras no Massachusetts. A quinta de Johnny era um pomar imenso de centenas de macieiras que davam bonitas flores na Primavera e deliciosas maçãs no Verão.

Como aqueles que o rodeavam, Johnny Appleseed era uma pessoa simples, temente a Deus. Trabalhava seis dias por semana e ia à igreja ao sétimo. Era feliz com a vida e por estar num país onde havia terra suficiente para partilhar. Adorava as pessoas, a língua e a comida - e a que mais adorava era tarte de maçã, feita com maçãs da sua própria quinta. Que a comida favorita de Johnny fosse torta de maçã não era surpresa para ninguém. O que foi surpresa foi um dia anunciar que ia para o Oeste.

- Mas por que razão é que te vais embora? - perguntou um amigo quando ouviu a notícia.

- Porque um anjo me pediu - disse Johnny. - Apareceu de trás de um arbusto e incumbiu-me de uma missão na vida.

- A ti? - disse o amigo, sorrindo, surpreso. - Porquê a ti, Johnny? A única coisa de que entendes é de maçãs!

 - Foi essa a razão da minha escolha - disse Johnny. - A minha missão é encaminhar-me para o Oeste e semear macieiras à medida que caminho.

E foi exatamente o que ele fez. Não levou nem cavalo nem mula. Não levou qualquer arma - apenas alguns víveres, as suas preciosas sementes de macieira e uma pá para escavar o solo - e foi assim que ele ficou com o nome de Johnny Appleseed.

Johnny Appleseed não se limitou a semear apenas macieiras na sua incrível caminhada para o Oeste. Semeou também muita boa vontade. Preocupava-se tanto com os animais como com as pessoas. Uma vez, preferiu passar uma noite fria de Inverno ao relento, na neve, a expulsar uma mãe ursa e os seus filhos de dentro de um tronco de árvore que seria um abrigo ideal para si.

Para onde quer que fosse, era bem-vindo. Quando chegou a velho já semeara macieiras pelas planícies. Alguns dizem que se não fosse Johnny Appleseed, não existiria a expressão «tão americano como uma torta de maçã».

Um dia, o anjo apareceu a Johnny uma segunda vez.

- O teu trabalho aqui está terminado - disse ele ao ancião. - Vem semear macieiras no Céu.

E assim Johnny e o anjo partiram juntos, deixando atrás de si um país coberto de bonitos pomares cheios de maçãs deliciosas.

Fonte:

segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Trova 332 - Prof. Garcia


D. João da Câmara (O Presépio)


Havia quase um ano que estava na loja, mercearia num bairro escuro, em que mal entrava de esguelha, como espreitando a medo, um raio de sol, entre as casarias muito altas da rua tortuosa.

Com doze anos, que saudades tinha da aldeia, da família, dos antigos companheiros de escola, dos cães amigos que ladravam de noite a vigiar a casa!

Tudo lá tão longe! Ah! Se ele soubesse!...

Pois nem uma lágrima lhe viera anuviar o último adeus, quando a diligência dera volta na estrada e ele vira sumirem-se os choupos da ribeira e o lenço que mão saudosa sacudia no alto da cabeça. É que o deslumbrava a ideia de Lisboa, de que tantas maravilhas grandes lhe contavam. Ainda agora partia, e já se via de volta na aldeia, de relógio e cadeia de ouro, a falar de alto, a puxar o bigode, a dar enchente, como o Januário, que lhe arranjara o lugar.

Com o seu examezinho de instrução primária, marçano* de uma tenda... Não, que os pais não o queriam para cavador. Tinham sido consultados o mestre-escola, o prior, o senhor Freitas, lavrador muito importante que arrastava tudo nas eleições, o Custódio, velhote de muito bom conselho, e todos se tinham mostrado de acordo: não havia como Lisboa para fazer um homem. Era ver o Januário que tinha casado com a viúva do patrão. A loja era de um cunhado dele, bom homem, áspero mas bom homem. Os olhos baixos do Manuelzito, fitos no chão, viam no tijolo resplandecer auréolas, que giravam como o fogo de vistas pelas festas.

Ah estava, havia quase um ano; e no desvão da escada, onde às dez horas o mandavam deitar, a morrer de calor no Verão, no Inverno a morrer de frio, punha-se a rever os campos e a casa deixados sem as lágrimas, que lhe corriam agora em grossos fios pelas faces.

Os primeiros dias tinham passado muito lentos. A conselho do Januário, um biscoito ou outro da mão papuda e oleosa do merceeiro tinham-no ajudado na tarefa. Assim é que ele havia de ser homem, um dia. Mas o patrão mostrava maior pressa. Pai, mãe e mestre-escola nunca lhe tinham batido. Atreveu-se uma vez a declará-lo. Foi pior. 

Chegou o Verão. As festas de São João e São Pedro aumentaram-lhe a tristeza. Reviu nesses dias mais intensamente a alegria da aldeia, os bailes à noite em volta da fogueira, a ida à fonte pela manhã, o sino a tocar à missa, e ele a pensar que, quando fosse crescido, havia de ter uma namorada por quem queimasse uma alcachofra, a quem cantasse umas quadras falando de estrelas e de flores.

A bulha nas ruas, nessas noites, não o deixara dormir. Cada bomba era uma pancada no coração. Um sol-e-dó que passou tocando arrancou-lhe lágrimas de imensa saudade.

Pelos Santos, com a melancolia do tempo, ainda foi pior. Depois veio o Inverno, começaram os dias de chuva. O mau tempo irritava o patrão, porque lhe afugentava fregueses. Na loja, com recantos muito negros, acendiam-se muito cedo os candeeiros, e o Manuelzito tinha pena da sombra em que se acolhia com maior amor. Pasmava os olhos, fugia com o pensamento para muito longe.

— Acorda, moleque! — gritava-lhe o patrão.

Estava a chegar o Natal. Que lindo era o Natal lá na aldeia! Andavam na rua a abrir um cano; quase ninguém ali passava; os passeios eram cheios de lama. O patrão andava furioso. Então o pequeno teve uma ideia.
* * *

Lembrou-se de fazer muito misteriosamente um presépio. O segredo em que havia de trabalhar mais o animava na tarefa. Todos os dias, muito a medo, enquanto o patrão almoçava ou saía da loja algum instante, vinha à porta, se não havia freguês a servir, espreitava, corria, apanhava um nadinha de barro nas escavações do cano. Escondia-o, e debaixo do balcão, quase às apalpadelas, ia fazendo as figurinhas. Assim modelou o menino Jesus, que deitou num berço de caixa de fósforos, Nossa Senhora de mãos postas, São José de grandes barbas, os três Reis Magos a cavalo, e os pastores, um a tocar gaita de foles, outro com um cordeirinho às costas, e uma mulher com uma bilha. Não se pareceriam lá muito; mas ele deu provas de que sabia puxar pela imaginação. Sempre lhe faltava alguma coisa. Havia problemas difíceis de resolver. 

Um dia, engraxando as botas do patrão, lembrou-se de engraxar um dos reis, e pôs-lhe depois umas bolinhas brancas, de papel a fingir os olhos. Aos anjos fez asas com as penas de uma galinha que depenou para um jantar de festa que não comeu. Moeu vidro para fingir as águas do rio, e no papel de embrulho recortou um moinho que só havia de armar à última hora. Levou nisso parte de Novembro e Dezembro todo, até ao Natal. Escondia os materiais debaixo da enxerga e, de vez em quando, revia-se na obra.

O que mais o encantava era o menino Jesus, com a cabeça do tamanho de um grão de milho, com buraquinhos a fingirem olhos, ouvidos, nariz e boca. Tinha mãos com cinco dedos riscados a canivete e dois pezinhos que ele achava um encanto. Com tiras de papel azul havia de fazer o céu e, como o não tinha dourado onde recortasse a estrela, fez em papel branco uma meia Lua; vinha quase a dar na mesma

Aquele mês passou correndo.

Era a véspera do Natal. As dez e meia, o patrão mandou-o deitar e saiu. Que alegria estar só! Não lhe deixavam luz; mas que importava? Às escuras armaria o presépio. E logo começou. Enrolou o moinho, pôs-lhe as velas; esticou o papel azul que fingia o céu e pregou nele com um alfinete a meia Lua; espalhou o vidro moído, num S em volta das palhas; dispôs as figurinhas, suspendeu os anjos. Depois fez uma carreira de fósforos de cera, que todos se tinham de acender ao mesmo tempo, num deslumbramento, quando desse meia noite.

Deram onze e três quartos. Ajoelhou. Batia-lhe o coração, que lhe parecia que deviam de ser milagrosas as figurinhas, que delas lhe viria algum bem, consolação da sua vida triste. Que seria quando ele iluminasse o desvão da escada e os santinhos se pusessem todos a luzir quase tanto como os verdadeiros? Rezava-lhes... Rezava-lhes... Àquela hora, lá na aldeia, tocavam os sinos alegres e iam ranchos contentes a caminho da igreja. Lá dentro reluzia o trono, e o sacristão muito atarefado ia, vinha...

Meia noite!

Acendeu os fósforos e ficou embasbacado! Nunca assim vira coisa tão perfeita. Os anjos voavam deveras, os cavalos dos reis galopavam, o rio corria, as velas giravam no moinho e os pontinhos do Menino Jesus sorriam-lhe no rosto a São José e a Nossa Senhora!

Pôs-se a cantar, como lá na aldeia:

Andava nessas campinas,
Esta noite, um querubim.

Tão enlevado cantava, que nem ouviu o patrão abrir a porta, entrar na loja, chegar ao desvão. Acordou-o do êxtase um pontapé.

— Isso... Agora larga-me fogo à escada!... Varre-me já esse lixo!

E ele, a chorar, levantou-se, foi buscar a vassoura.

O bruto continuava aos pontapés.

— Vá?... Vá!

Mas quando se deitou, encontrou na enxerga uma figurinha. Apalpou-a, conheceu-a logo: era a do Menino Jesus. Beijou-a muito. Pior vida levara do que ele... Sentiu de repente um dó muito grande do patrão, que não vira nada, nem que era tão bonito aquele Menino, com um olhar tão meigo nos seus olhinhos picados.
____________________
Nota:
* Marçano: aprendiz de caixeiro, esp. de loja de gêneros alimentícios; 
por extensão: novato em qualquer ocupação; principiante.

Fonte:
Vários Autores. Contos de Natal Portugueses

Caldeirão Poético XVIII



ELOGIOS
                                
Teus olhos têm momentos desiguais;
sua luz ora é plácida, ora é ardente,
é o suave fluir da água corrente
ou o relampejar de dois punhais.

Estranhos pirilampos de savanas
brilhando nos meus céus tão desolados,
são dois negros diamantes resguardados
por tuas magníficas pestanas.

Únicos olhos que hão por mim chorado,
únicos olhos que hão interpretado
toda a minha alma lutadora e forte;

quero que sejam, com sua luz querida,
os únicos a rir em minha vida,
os únicos que chorem minha morte.

(Tradução de Othon Costa)



A PROMESSA 

... E todo o ouro do mundo parecia
diluído na tarde luminosa.
Apenas um crepúsculo de rosa
a alta copa das árvores tingia.

Súbito amor, a minha mão unia
à tua mão morena, carinhosa...
Éramos Booz e Ruth ante a formosa
terra que aos nossos olhos se estendia.

- Me amarás? perguntaste. Lenta e grave
veio-me aos lábios a promessa suave
da amante moabita, tão querida;

e foi como um “Amém!”  que neste instante
se ouviu, num toque de oração, vibrante
bater o sino da pequena ermida!

(Tradução de J. G. de Araujo Jorge)


EXPLOSÃO

Se a vida é amor, bendita seja então!
Quero mais vida, se esse amor aumento;
que não valem mil anos de razão
um só minuto azul de sentimento.

Meu coração morria triste e lento
e hoje é uma flor de luz em combustão!
A vida canta como um mar violento
quando a mão de um amor a agita em vão!

Esfuma-se na noite triste, fria,
de asas rotas - minha melancolia;
como a indelével mancha de uma dor

que na sombra distante já perdi...
A vida toda canta, beija, ri,
numa explosão como uma boca em flor!

(Tradução de J. G. de Araujo Jorge)


SÚPLICA 

Sê franca uma só vez! Desfaz o engano
se teus olhos me dizem que tu mentes,
- se nunca amor sentiste, e se o não sentes
por que juntar a farsa ao desengano?

Tratas-me como estranho... É desumano!
Por piedade, confessa! Não aumentes
com promessas que querem ser ardentes
este sonho que a mim só causa dano.

Se pudesses saber quanto te quero!
Fugir, mil vezes tento e não consigo,
meu querer faz-se pranto, e eu desespero...

Maldigo a sorte então, e um tal encanto,
pois me tens a teus pés... E te maldigo
e até te odeio. . . mesmo a amar-te tanto!

(Tradução de J. G. de Araujo Jorge)

Fonte:
J G de Araujo Jorge. Os Mais Belos Sonetos Que O Amor Inspirou. 
vol. III (Poesia Universal - Européia e Americana), 1966.