sábado, 22 de dezembro de 2018

Trova 338 - Cícero Acayaba


Euclides da Cunha (Poemas Escolhidos) III



A CRUZ DA ESTRADA
A meu amigo E. Jary Monteiro

Se vagares um dia nos sertões,
Como hei vagado — pálido, dolente,
Em procura de Deus — da fé ardente
Em meio das soidões...

Se fores, como eu fui, lá onde a flor
Tem do perfume a alma inebriante,
Lá onde brilha mais que o diamante
A lágrima da dor...

Se sondares da selva e entranha fria
Aonde dos cipós na relva extensa
Noss'alma embala a crença.

Se nos sertões vagares algum dia...
Companheiro! Hás de vê-la.
Hás de sentir a dor que ela derrama
Tendo um mistério, aos pés, de um negro drama,
Tendo na fronte o raio de uma estrela!...

Que vezes a encontrei!... Medrando calma
A Deus, entre os espaços
No desgraçado, ali tombado, a alma
Que tirita, quem sabe? Entre os seus braços.

Se a onça vê, lhe oculta a asp'ra, ferrenha
Garra, estremece, pára, fita-a, roja-se,
Recua trêmula, e fascinada arroja-se,
Entre as sombras da brenha!...

E a noite, a treva, quando aos céus ascende
E acorda lá a luz,
Sobre os seus braços frios, frios, nus,
— Tecido de astros em brial estende...

Nos gélidos lugares
Em que ela se ergue, nunca o raio estala,
Nem pragueja o tufão... Hás de encontrá-la
Se acaso um dia nos sertões vagares...

A FLOR DO CÁRCERE 

Nascera ali — no limo viridente
Dos muros da prisão — como uma esmola
Da natureza a um coração que estiola —
Aquela flor imaculada e olente...

E 'ele' que fora um bruto, e vil descrente,
Quanta vez, numa prece, ungido, cola
O lábio seco, na úmida corola
Daquela flor alvíssima e silente!...

E — ele — que sofre e para a dor existe —
Quantas vezes no peito o pranto estanca!...
Quantas vezes na veia a febre acalma,

Fitando aquela flor tão pura e triste!...
— Aquela estrela perfumada e branca,
Que cintila na noite de sua alma...

AMOR ALGÉBRICO 
(Título anterior: "Álgebra lírica")

Acabo de estudar — da ciência fria e vã,
O gelo, o gelo atroz me gela ainda a mente,
Acabo de arrancar a fronte minha ardente
Das páginas cruéis de um livro de Bertrand.

Bem triste e bem cruel decerto foi o ente
Que este Saara atroz — sem aura, sem manhã,
A Álgebra criou — a mente, a alma mais sã
Nela vacila e cai, sem um sonho virente.

Acabo de estudar e pálido, cansado,
Dumas dez equações os véus hei arrancado,
Estou cheio de 'spleen', cheio de tédio e giz.

É tempo, é tempo pois de, trêmulo e amoroso,
Ir dela descansar no seio venturoso
E achar do seu olhar o luminoso X

SONETO
Dedicado a Anna da Cunha

"Ontem, quanto, soberba, escarnecias
Dessa minha paixão, louca, suprema,
E no teu lábio, essa rosa da algema,
A minha vida, gélida prendias...

Eu meditava em loucas utopias,
Tentava resolver grave problema...
— Como engastar tua alma num poema?
E eu não chorava quando tu te rias...

Hoje, que vives desse amor ansioso
E és minha, só minha, extraordinária sorte,
Hoje eu sou triste, sendo tão ditoso!

E tremo e choro, pressentindo, forte
Vibrar, dentro em meu peito, fervoroso,
Esse excesso de vida, que é a morte..."

D. QUIXOTE

Assim à aldeia volta o da "triste figura"
Ao tardo caminhar do Rocinante lento:
No arcabouço dobrado — um grande desalento,
No entristecido olhar — uns laivos de loucura...

Sonhos, a glória, o amor, a alcantilada altura
Do ideal e da Fé, tudo isto num momento
A rolar, a rolar, num desmoronamento,
Entre os risos boçais do Bacharel e o Cura.

Mas, certo, ó D. Quixote, ainda foi clemente
Contigo a sorte, ao pôr nesse teu cérebro oco
O brilho da Ilusão do espírito doente;

Porque há coisa pior: é o ir-se a pouco e pouco
Perdendo, qual perdeste, um ideal ardente
E ardentes ilusões — e não se ficar louco!

Fonte:
Euclides da Cunha. Onda e outros poemas esparsos. RJ, 1883.

Herman Hesse (O Jovem Apaixonado: Uma Lenda)


Esta história aconteceu no tempo de Santo Hilário. Na terra natal deste santo, em Gaza, vivia um casal humilde e crente, a quem o Senhor abençoara com uma linda e esperta menina. Para alegria de todos, a menina cresceu em recato, modéstia e temor a Deus, guiada pelos pais para a prática do Bem. Tanta pudicícia e suavidade de modos eram comparáveis às de um anjo do Senhor. Os cabelos escuros e sedosos esvoaçando em torno dos ombros, os olhos modestamente baixos, que longas pestanas sombreavam, caminhava ela sob as palmeiras com movimentos graciosos, esbelta e leve como uma gazela. Não tinha olhos para homem algum, pois aos catorze anos de idade, após grave doença, foi prometida por seus pais, no caso de salvar-se, como noiva de Deus. E Deus aceitara a oferenda.

Foi por essa moça pura que um jovem da mesma terra se apaixonou. Também ele era formoso e  esbelto, filho de pais abastados que o haviam criado e educado com esmero. Mas desde que se apaixonara pela linda donzela não pensava em outra coisa senão buscar oportunidades para vê-la e dirigir-lhe olhares ansiosos. Mas nos dias em que não lograva encontrá-la ficava triste e pálido, recusando alimentos e passando horas a fio entre suspiros e lamentos.

O jovem recebera uma boa educação cristã, era de índole delicada e religiosa, mas essa paixão avassaladora tornara-se dona absoluta de sua alma. Já não conseguia rezar e, em vez de elevar o pensamento para as coisas santas, recordava apenas, obsessivamente, os longos cabelos pretos da donzela, seus belos e tranquilos olhos pestanudos, a cor e os contornos delicados de seu rosto e lábios, o alvo e fino colo, os pequenos e ágeis pés. Temia, porém, comunicar seu grande amor, pois bem sabia que ela não tencionava aceitar homem algum e pretendia devotar seu amor somente aos pais e a Deus.

Por fim, consumindo-se de desejo dirigiu-lhe extensa e fervorosa carta, na qual falava de seu grande amor e lhe implorava encarecidamente que o aceitasse para que, num futuro não muito distante, pudessem gozar uma vida conjugai feliz e abençoada por Deus. Perfumara essa missiva com finos pós da Pérsia, enrolara-a com um cordão de seda e ordenara que a entregassem à donzela, em segredo, por intermédio de uma velha criada.

Quando ela leu a carta, seu rosto fez-se escarlate, como se tivesse sofrido um ataque de rubéola. Em sua confusão inicial, inclinara-se a rasgar a carta ou mostrá-la imediatamente à mãe. Não o fez, porém, não só por conhecer o jovem desde criança e gostar dele mas também por notar que suas palavras eram repassadas de delicadeza e bondade. Decidiu então devolver a carta à velha, com as seguintes palavras:

— Devolve esta carta àquele que a escreveu e diz-lhe que nunca mais me dirija semelhantes palavras. Diz-lhe também que fui prometida a Deus por meus pais, não podendo jamais dar minha mão a um homem, e que devo e quero permanecer em meu estado virginal para servir e honrar a Deus, cujo amor é infinitamente superior e mais valioso do que qualquer afeto humano. E diz-lhe ainda que, enquanto eu não encontrar alguém cujo amor seja superior e mais valioso do que o amor a Deus, permanecerei fiel aos meus votos de castidade. A ele, porém, que escreveu esta carta, desejo que viva na paz do Senhor. E agora vai, e faz-lhe saber que nunca mais aceitarei mensagem alguma.

A criada, surpreendida por tanta firmeza, voltou a seu amo com a carta e lhe pôs a par de tudo o que a donzela lhe dissera. Apesar das palavras de consolo da velha, o moço apaixonado entregou-se a ruidosas lamentações, rasgando as roupas e espalhando cinza e terra sobre a cabeça. Não se atrevia mais a procurar a donzela, em seus passeios, limitando-se a segui-la com olhares à distância. À noite, em sua alcova, não conciliava o sono, murmurava o nome da amada e dirigia-lhe milhares de carinhosas e doces palavras, chamando-a de sua luz, sua estrela, sua gazela, sua palmeira, sua pérola e seu consolo... e quando despertava de tais fantasias, e via-se só em sua alcova, tinha acessos de raiva, maldizia o nome de Deus, rangia os dentes e batia com a cabeça nas paredes.

Por causa dessa paixão terrena, o temor a Deus toldara-se e acabara por se extinguir de seu coração, onde apenas o demônio tinha agora acesso, dominando o jovem ao sabor de seus desígnios tenebrosos. Foi assim que, certo dia, o tresloucado rapaz jurou que possuiria a donzela, nem que para tanto tivesse que recorrer à força. Viajou para Mênfis e ingressou na escola do sacerdote pagão Asclépio, tomando com ele lições de feitiçaria. Dedicou-se com afinco, durante um ano, a tais estudos e voltou em seguida a Gaza.

Começou então a gravar signos mágicos e palavras de sortilégio em placas de cobre com infalíveis poderes de feitiço. Durante a noite, ia furtivamente colocar essas placas sob a soleira da porta onde morava a donzela. Já no dia seguinte à aparição da primeira placa a donzela parecia mudada: seu recatado olhar cabisbaixo tornou-se mais franco, mais animado; soltou os cabelos, deixando-os ondear ao vento; desleixou as orações e serviços religiosos; e ouviram-na cantar uma serenata de amor que ninguém lhe ensinara. Esta conduta tornava-se mais escandalosa com o passar dos dias, e de noite, remexia-se nas almofadas do leito, gritando o nome do jovem, chamando-o de seu bem-amado e confessando desejos carnais.

Essa mudança na donzela enfeitiçada não podia, evidentemente, passar despercebida a seus pais. Cientes de tão estranhos modos e palavras, ficaram vigilantes, espiavam-na discretamente e tanto se apavoraram com o que ouviram uma noite que o indignado pai logo quis expulsar de casa a depravada filha. A mãe, contudo, implorou paciência; era preciso examinar bem o caso e reconhecer que a filha fora levada a tão estranho comportamento certamente por algum feitiço.

Como a donzela continuasse possessa, proferindo até blasfêmias e gritando cm altas vozes que desejava seu amado, lembraram-se os pais de um santo eremita, Hilário, que vivia há longos anos fora da cidade, em pleno deserto, e tão perto de Deus que todas suas preces eram ouvidas. Curara tantos enfermos e exorcizara tantos demônios que bem podia ser tido na conta — ao lado de Santo Antônio — do mais poderoso agente de Deus daqueles recuados tempos. 

A donzela foi então  levada por seus pais a Hilário, a quem contaram tudo o que estava acontecendo e imploraram ajuda. Hilário acercou-se da donzela e assim falou:

— Quem fez de ti , serva de Deus, um receptáculo de maus desejos?

A moça, encarando aquele que tinha o corpo esquálido e a pele queimada, começou ridicularizando-o, chamando-o de espantalho sarnento e entoando em voz dolente:

— Vede minha pele branca e macia, meu corpo liso, meus apetitosos seios!

Aterrorizados, os pais caíram de joelhos e esconderam a cabeça entre as mãos, tomados de vergonha. Mas Hilário sorriu, e reconhecendo o Diabo que se apossara da donzela, fustigou-o tanto que, sentindo-se acossado por uma força superior à sua, acabou dizendo seu nome e confessando todas as suas artimanhas. O santo expulsou violentamente o demônio, que opunha a maior resistência na alma da donzela, e esta acabou tombando sem sentidos. Quando acordou, como de um sono febril, reconheceu e saudou os pais, que choravam, pediu a Hilário sua bênção e, dessa hora em diante, voltou a ser a boa serva de Deus.

Entrementes, o jovem esperava que os feitiços de amor fizessem efeito na donzela e a levassem a seus braços ávidos. Passava os dias acalentando essa esperança, certo de um desfecho propicio, ao mesmo tempo ern que a donzela, depois das provações acima narradas, reencontrava o caminho da virtude e, curada, voltava à cidade. O jovem, ao passar por uma rua, viu-a surgir ao longe e encaminhar-se na sua direção. Quando já estavam perto um do outro, ele viu que no rosto da donzela refulgia a antiga pureza e que toda ela irradiava uma beleza tranquila, como se tivesse acabado de descer do Paraíso. Surpreendido, o jovem estacou e, envergonhado de sua malfeitoria, teve um súbito impulso de afastar-se. Mas dominou-se e, como ela se acercasse bastante, presumiu que o feitiço tivera algum efeito. Chegou perto da donzela e, tomando-lhe as mãos, disse:

— É certo, pois, que me tendes amor?

A donzela, sem enrubescer, ergueu os olhos para que ele pudesse contemplá-los como se contempla uma estrela pura e distante. Uma indescritível bondade resplandecia em seu rosto suave. Reteve entre as suas mãos a mão do jovem e respondeu:

— Sim, meu irmão, eu vos amo. Amo a vossa pobre alma e vos rogo que a liberteis do Mal. Entregai-a a Deus para que readquira a pureza e a formosura de outrora.

Uma mão invisível tocou o coração do jovem. Seus olhos encheram-se de lágrimas e ele exclamou:

— Ah, devo então renunciar ao vosso amor para sempre? Pois ordenai-me que o faça. Quero unicamente fazer aquilo que for de vosso agrado.

Ela sorriu como um anjo e disse:

— Não deveis renunciar a mim para sempre. Chegará o dia em que todos estaremos irmanados diante do trono de Deus. Tratemos pois de proceder de modo a que possamos olhá-lo sem temor e passar em Seu Juízo. Quero ser vossa amiga. Será por pouco tempo que vivereis separado de mim.

Soltou lentamente suas mãos e, sorrindo, prosseguiu em seu caminho. O jovem ficou imóvel, como que fascinado. Depois dirigiu-se para casa, fechou-a e foi para o deserto servir a Deus. Sua formosura dissipou-se, emagreceu, a pele escureceu; dividia seu tugúrio com os animais do campo. Quando se sentia exausto e dúvidas o assaltavam, seu único consolo era repetir centenas de vezes as palavras da donzela: "Será por pouco tempo..."

Embora o tempo se alongasse, os cabelos encanecessem e ele ficasse neste mundo até à idade de oitenta anos, o eremita pensava: Que são oitenta anos? Os anos vêm e morrem como se tivessem as asas de um pássaro. A Eternidade me espera, após este voo breve pelo mundo. 

Desde os recuados tempos em que viveu esse jovem, muitas centenas de anos já transcorreram e com que rapidez serão também esquecidos os nossos atos e os nossos nomes, e não ficará outro vestígio de nossa vida senão, talvez, uma pequena e incerta lenda...

Fonte:
Herman Hesse. O Livro das Fábulas. 

sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

Trova 337 - Therezinha Dieguez Brisolla


Mário Quintana em Prosa e Verso 3


DO IMPOSSÍVEL CONVÍVIO

O mais trágico dessas reuniões sociais é que elas são compostas unicamente de terceiros.

A ESFINGE

Na volta da esquina encontrei a Esfinge.

Petrifiquei-me. Ela me disse então, olhando-me nos olhos:

- Devora-me ou decifro-te!

ELA

Mas que haverá com a Lua, que, sempre que a gente a olha, é com um novo espanto?

SEU VERDADEIRO CRIME

O que eles jamais perdoaram a Oscar Wilde é que ele era profundo sem ser chato.

FATALIDADE

O que mais enfurece o vento são esses poetas inveterados que o fazem rimar com lamento.

CAMUFLAGEM

A esperança é um urubu pintado de verde.

SER E NÃO SER

Para algo existir mesmo - um deus, um bicho, um universo, um anjo... - é preciso que alguém tenha consciência dele. Ou simplesmente que o tenha inventado.

A ESCRITA

Um trouxe a mirra, o outro o incenso, o terceiro o ouro.

Incenso e mirra evaporaram-se... Mas e o ouro?

Os textos nada dizem quanto à aplicação do ouro.

NA SOLIDÃO DA NOITE

Os velhos espelhos adoram ficar no escuro das salas desertas. Porque todo o seu problema, que até parece humano, é apenas o seguinte: - reflexos? ou reflexões?

A MESTRA E OS ALUNOS

Dizem que a História é a mestra da vida. Mas como é que os seus protagonistas incorrem sempre nos mesmos erros? Não lhes aproveitou em nada o exemplo dos antecessores reprovados.

PEQUENA TRAGÉDIA BRASILEIRA

A Bem-Amada queria devorar o coração do Poeta.

- Não, - disse ele - só terás um pedacinho... Porque noventa por cento pertence aos Editores.

ÓPERA

"Diz isso cantando!" Lembram-se desse ditado? A Ópera levou esse ditado a sério.

EXAME DE CONSCIÊNCIA

Se eu amo a meu semelhante? Sim. Mas onde encontrar o meu semelhante?

DOS LIVROS

Há duas espécies de livros: uns que os leitores esgotam, outros que esgotam os leitores.

Fonte:
Mário Quintana. Caderno H. Porto Alegre/RS: Globo, 1973.

Lima Barreto (Cinco mulheres) IV - Carlota e Hortência


Uma fila de cinquenta carros com um coche fúnebre à frente dirigia-se para um dos cemitérios da capital.

O carro funerário conduzia o cadáver de Carlota Durval, senhora de vinte e oito anos, morta no esplendor da beleza.

Os que acompanhavam o enterro, apenas dois o faziam por estima à finada: eram Luís Patrício e Valadares.

Os mais iam por satisfazer a vaidade do viúvo, um José Durval, homem de trinta e seis anos, dono de cinco prédios e de uma dose de fatuidade sem igual.

Valadares e Patrício, na qualidade de amigos da finada, eram os únicos que traduziam no rosto a profunda tristeza do coração. Os outros levavam uma cara de tristeza oficial.

Valadares e Patrício iam no mesmo carro.

- Até que morreu a pobre senhora, disse o primeiro ao fim de algum silêncio.

- Coitada! murmurou o outro.

- Na flor da idade, acrescentava o primeiro, mãe de duas crianças tão bonitas, amadas por todos... Deus perdoe aos culpados!

- Ao culpado, que foi só ele. Quanto à outra, essa se não fora desinquietada...

- Tens razão!

- Mas ele deve ter remorsos.

- Quais remorsos! É incapaz de os ter. Não o conheces, como eu? Ri e zomba de tudo. Isto para ele foi apenas um acidente; não lhe dá maior importância, acredita.

Este pequeno diálogo dá já ao leitor uma idéia dos acontecimentos que precederam à morte de Carlota.

Como esses acontecimentos são o objeto destas linhas destinadas a apresentar o perfil desta quarta mulher, passo a narrá-los mui sucintamente.

Carlota casara com vinte e dois anos. Não sei por que se apaixonara por José Durval, e menos ainda no tempo de solteira, de que depois de casada. O marido era para Carlota um ídolo. Só a ideia de uma infidelidade da parte dele bastava para matá-la.

Viveram algum tempo no meio da mais perfeita paz, não que ele não desse à mulher motivos de desgosto, mas porque eram estes tão encobertos que nunca haviam chegado aos ouvidos da pobre moça.

Um ano antes Hortência B., amiga de Carlota, separava-se do marido. Dizia-se que era por motivos de infidelidade conjugal da parte dele; mas ainda que o não fosse, Carlota receberia a amiga em sua casa, tão amiga era dela.

Carlota compreendia as dores que podiam trazer a uma mulher as infidelidades do marido; por isso recebeu Hortência com os braços abertos e entusiasmo no coração.

Era o mesmo que se uma rosa abrisse o seio confiante a um inseto venenoso.

Daí a seis meses Carlota reconhecia o mal que tinha feito. Mas era tarde.

Hortência era amante de José Durval.

Quando Carlota descobriu qual era a situação de Hortência em relação a ela, sufocou um grito. Era a um tempo, ciúme, desprezo, vergonha. Se alguma coisa podia atenuar a dor que ela sentia, era a covardia do ato de Hortência, que tão mal pagava a hospitalidade que obtivera de Carlota.

Mas o marido? Não era igualmente culpado? Carlota avaliou de um relance toda a hediondez do proceder de ambos, e resolveu romper um dia.

A frieza que começou a manifestar a Hortência, mais do que isso, a repugnância e o desdém com que a tratava, despertou no espírito desta a ideia de que era preciso sair de uma situação tão falsa.

Todavia, retirar-se simplesmente seria confessar o crime. Hortência dissimulou e um dia recriminou a Carlota os seus modos recentes de tratamento.

Então tudo se clareou.

Carlota, com uma cólera sufocada, lançou em rosto à amiga o procedimento que tivera em casa dela. Hortência negou, mas era negar confessando, pois que nenhum tom de sinceridade tinha a sua voz.

Depois disso era necessário sair. Hortência, negando sempre o crime de que era acusada, declarou que sairia de casa.

- Mas isso não desmente, nem remedia nada, disse Carlota com os lábios trêmulos. É simplesmente mudar o teatro das suas loucuras.

Esta cena abalou a saúde de Carlota. No dia seguinte amanheceu doente. Hortência apareceu para falar-lhe, mas ela voltou o rosto para a parede. Hortência não voltou ao quarto, mas também não saiu da casa. José Durval impôs essa condição.

- Que dirá o mundo? perguntava ele.

A pobre mulher foi obrigada a sofrer mais essa humilhação.

A doença foi rápida e benéfica, porque no fim de quinze dias Carlota expirava.

Os leitores já assistiram ao enterro dela.

Quanto a Hortência, continuou a viver em casa de José Durval, até que se passassem os primeiros seis meses do luto, no fim dos quais casaram-se perante um concurso numeroso de amigos, ou pessoas que se davam por isso.

Supondo que os leitores terão curiosidade de saber o que sucedeu depois, aqui termino com uma carta escrita, depois de dois anos da morte de Carlota, por Valadares a L. Patrício.

"Meu amigo. Corte, 12 de... -- Vou dar-te algumas notícias que te hão de alegrar, como a mim, posto que a caridade evangélica nos manda lastimar as desgraças alheias. Mas há certas desgraças que parecem um castigo do céu e a alma sente-se satisfeita quando vê o crime punido.

Lembras-te ainda da pobre Carlota Durval, morta de desgosto pela traição do marido e de Hortência? Sabes que esta ficou a viver em casa do viúvo, e que no fim de seis meses casaram-se à face da Igreja, como duas criaturas abençoadas do céu? Pois bem, ninguém as faça que as não pague; Durval está mais do que nunca arrependido do passo que deu.

Primeiramente, ao passo que a pobre Carlota era uma pomba sem fel, Hortência é um dragão de saias, que não deixa o marido pôr pé em ramo verde. São exigências de toda a casta, exigências de luxo, exigências de honra, porque a fortuna de Durval não podendo resistir aos ataques de Hortência, foi-se desmoronando a pouco e pouco.

Os desgostos envelheceram o pobre José Durval. Mas se fosse apenas isso, era de agradecer a Deus. O caso, porém, tornou-se pior; Hortência, que traíra a amiga, não teve dúvida em trair o marido: Hortência tem hoje um amante!

É realmente triste semelhante coisa, mas eu não sei por que esfreguei as mãos de contente quando soube da infidelidade de Hortência. Parece que as cinzas da Carlota deviam estremecer de alegria debaixo da terra... Perdoe-me Deus a blasfêmia, se acaso o é.

Julguei que estas notícias te seriam agradáveis, a ti que estimastes aquela pobre mártir.

Ia acabando sem contar a cena que houve entre Durval e a mulher.

Um bilhete mandado por H. (o amante) caiu nas mãos de José Durval, não sei por que terrível acaso. Houve explosão da parte do marido; mas o infeliz não tinha forças para manter-se na sua posição; dois gritos e dois sorrisos da mulher puseram-lhe água fria na cólera.

Daí em diante, Durval anda triste, cabisbaixo, taciturno. Emagrece a olhos vistos. Pobre homem! afinal de contas começo a ter pena... 

Adeus, meu caro, vai cultivando, etc..."

Esta carta era dirigida a Campos, onde se achava L. Patrício. A resposta deste foi a seguinte:

"Muito me contas, meu amigo Valadares, acerca dos algozes da Carlota. É uma pagã, não deixes de crê-lo, mas no que fazes mal, é em mostrares alegria por essa desgraça. Nem devemos tê-la, nem as cinzas de Carlota se regozijaram no outro mundo. Os maus, no fim de conta, são dignos de lástima, por serem tão fracos que não possam ser bons. E basta a punição para ficarmos já condoídos do pobre homem.

Falemos de outra coisa. Sabes que os cafezais..."

Não interessa aos leitores saber dos cafezais de L. Patrício. O que interessa saber é que Durval morreu de desgosto dentro de pouco tempo, e que Hortência procurou na devoção de uma velhice prematura a expiação dos erros passados.

Fonte:
Publicado originalmente em Jornal das Famílias, 1865.

Coletânea “Contos Sombrios” (Prazo: 6 de Maio de 2019)



(Temática sugerida por: M. A. Thompson; Rodrigo Cesar Picon de Carvalho; Maurilio Alves Rocha Junior; Thais Verlhertz e Marcelo de Azevedo Oliveira)

Para esta Coletânea buscamos Contos que falem sobre situações e personagens que habitam nossa imaginação e criam um mundo sobrenatural de mistério, suspense, terror e etc. Esta é uma coletânea eminentemente de Contos.

Objetivo:

Estimular a produção literária brasileira, valorizar novos talentos e dar visibilidade aos Escritores, Poetas, Contistas, Cronistas e etc. 

Considerando que a participação é Gratuita, objetivamos ter uma grande quantidade de inscrições de modo a podermos fazer uma seleção de obras com altíssima qualidade.

Inscrições:

- As inscrições deverão ser feitas única e exclusivamente através do preenchimento do formulário, mais abaixo, nesta página. 

- Veja no Cronograma abaixo a data limite para as inscrições.

Regulamento de Participação (quem e como participar):

- Poderão participar Escritores, Poetas, Contistas e Cronistas maiores de 18 anos de qualquer nacionalidade, residentes no Brasil ou no exterior com documentação brasileira, e seus trabalhos deverão ser obrigatoriamente escritos em língua portuguesa (o que não impede o uso de termos estrangeiros no texto). 

- Os participantes farão seus cadastrados no formulário de inscrição abaixo, nesta página. 

- Selecionaremos um mínimo de 25 participantes para esta Coletânea e esse número variará em função da qualidade de obras inscritas. 

- Autor deverá usar seu nome legítimo (verdadeiro) no cadastro, entretanto, se desejar, poderá utilizar seu nome artístico ou pseudônimo na publicação da Coletânea, para isso deverá colocá-lo junto ao texto enviado. 

- Cada participante poderá inscrever uma única Obra por Coletânea, podendo participar de outras. 

- A temática da Obras deverá estar em linha com o tema da Coletânea com o objetivo acima definido, sendo que a criatividade e imaginação do escritor darão o toque e estilo ao trabalho. 

- Não há exigência de que a Obra (poesia, conto, crônica, etc.) seja inédita, podendo já ter sido publicada, exceto em outra Coletânea do Projeto Apparere. 

- É de inteira responsabilidade do Autor a correção ortográfica/revisão do texto ou textos enviados para esta Coletânea, sendo este inclusive um dos critérios de seleção. Desta forma não será feita nova revisão do texto. 

- As Obras (poesia, conto, crônica, etc.) deverão conter título, sendo que a não observância dessa exigência excluirá a Obra da avaliação. 

- As obras inscritas serão analisadas e selecionadas mediante avaliação de profissionais nomeados pelo Projeto Apparere, cujas decisões serão soberanas e irrecorríveis. 

- O envio do texto será feito única e exclusivamente através desta página, através do formulário abaixo. 

- A obra deverá estar em arquivo Word(.doc ou .docx) fonte Times New Roman ou Arial, tamanho 11.

Custos de Participação:

- A participação nesta Coletânea não ensejará em nenhum custo aos participantes, portanto será Gratuita. 

- Também não há nenhuma obrigatoriedade de aquisição nem de exemplares e nem de serviços oferecidos pela Apparere e/ou pela PerSe.

Divulgação e Lançamento da Coletânea:

- O Lançamento da Coletânea será Online, com uma data para início das vendas dos livros. 

- Antes do Lançamento será feita campanha de divulgação, contendo: 
    . E-mail Marketing para a Base de clientes da Apparere e da PerSe. 
    . Banners e nosso site. 
    . Divulgação através de nossas Redes Sociais. 
    . Assessoria de Imprensa. 
    . Envio de Material de Divulgação aos Participantes para que esses divulguem em suas Redes Sociais e através de e-mail aos conhecidos.

Direitos Autorais:

- Não haverá cessão de Direitos Autorais, ou seja, os trabalhos continuarão pertencendo a seus autores, entretanto os Escritores/Autores/Poetas autorizam a comercialização de sua obra através da Coletânea, abdicando de qualquer remuneração sobre sua obra. 

- Os Escritores/Autores/Poetas participantes responderão legalmente e individualmente sobre plágio, publicação não autorizada, calúnia, difamação e não autoria, isentando a PerSe e o Projeto Apparere de qualquer responsabilidade sobre o conteúdo enviado para a Coletânea. 

- É de total responsabilidade dos participantes a veracidade dos dados fornecidos à organização. 

- Todos os participantes de antemão ficam cientes e dão permissão e autorização para a publicação e comercialização de sua Obra (poesia, conto, crônica, etc.), e a veiculação na mídia de seus nomes, imagens e textos, em sites, pela PerSe e pela Apparere, desde que dentro do contexto das Coletâneas do Projeto Apparere e para benefício da maior visibilidade da obra e seu alcance junto ao leitor.

Sobre as Características e as Vendas dos Livros:

- A Coletânea será composta dos textos selecionados e de minibiografia dos participantes. 

- Para a Capa da Coletânea faremos um concurso com designers que desejarem participar, e quem escolherá a capa da Coletânea serão os Autores que estiverem participando. 

- Esta será impressa em Livro com as seguintes características: Brochura Formato 14x21; Miolo em Papel Polem 80g, impresso em uma cor; Capa Cartão 250g com orelhas impressa a 4 cores e laminação brilho/fosco. 

- A Comercialização do livro impresso da Coletânea se dará através da Loja Online da Perse. 

- Os participantes poderão adquirir os livros impressos por valor sempre inferior ao Preço de Venda da Loja Online, desde que em volume mínimo de 10 exemplares. Para isso deverá solicitar orçamento, através do e-mail do Projeto. 

- Os participantes poderão adquirir os livros impressos por valor sempre inferior ao Preço de Venda da Loja Online, desde que em volume mínimo de 10 exemplares. Para isso deverá solicitar orçamento, através do e-mail do Projeto. 

- Os participantes poderão adquirir os livros impressos por valor sempre inferior ao Preço de Venda da Loja Online posteriormente divulgado. 

- A Comercialização da Coletânea também será feita no formato eBook (PDF e ePub) através da Loja OnLine da PerSe e também através da Plataforma de Terceiros parceiros da PerSe 

- O livro impresso da Coletânea poderá ser colocado em comercialização nas Feiras e Bienais, em estande da própria PerSe, quando esta vier a participar. 

- O livro terá registro no ISBN.

Cronograma Geral da Coletânea:

- Final das inscrições: 06/05/2019 

- Divulgação aos selecionados: 20/05/2019 

- Data de Lançamento e Início das Vendas: 07/06/2019

Observações Gerais:

- Dúvidas relacionadas a esta Coletânea e seu regulamento poderão ser enviados para o e-mail: apparere@perse.com.br 

- Todos os contatos entre o Projeto Apparere e os Participantes serão realizados através de e-mail. Portanto os participantes devem ficar atentos. 

- Todas as dúvidas e casos omissos neste regulamento serão analisados por uma equipe da PerSe e do Projeto Apparere, e sua decisão será irrecorrível. 

- O Projeto Apparere, reserva-se o direito de alterar qualquer item desta Coletânea, bem como interrompê-la, se necessário for, fazendo a comunicação expressa para os participantes. 

- Não é permitida a participação nas Coletâneas de funcionários da PerSe e do Projeto Apparere. 

- A participação nesta Coletânea implica na aceitação total e irrestrita de todos os itens deste regulamento. 

- As obras não selecionadas para a Coletânea serão destruídas e apagadas das bases de dados do Projeto Apparere, para fins de segurança.

Acesse o Formulário de Inscrição AQUI 

Fontes:
Isabel Furini
Projeto Apparere

quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

Trova 336 - Fabiano Wanderley


Isabel Furini (O Terminal Guadalupe e as Sombras)


nota do blog: Terminal Guadalupe é um Terminal Metropolitano de ônibus que há em Curitiba, inaugurado em 1958 pelo prefeito Ney Braga. 
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18 horas - Cai o sol de inverno, pálido, sem forças.

19 horas - Escurece mesmo.

Os operários da construção civil, trabalhadores domésticos, pessoal da limpeza, vendedores alguns camelôs, professores, poetas e sonhadores, saem de seus trabalhos e correm até o terminal.

Mariazinha, está na fila do Vila Zumbi quando escuta seu nome: "Mariazinha" - alguém acena para ela. 

- Que bom! - murmura a Mariazinha - O gerente vai me dar carona de novo.

- Não faça isso senhora, é pecado! - diz uma mulher com saia e cabelos longos (muito longa a saia, muito longo o cabelo).

Uma mulher de olhos azuis observa de cima para baixo a mulher de saia comprida e solta uma gargalhada: - Cale a boca, sua vadia! E cuide de sua vida! - fala com autoridade.

Minutos depois chega Aparecida, Cida para os amigos: - Estou pensando em fotografar esses dois e ganhar uma grana extra.

- Boa ideia! - fala a mulher dos olhos azuis.

Um casal de idosos olha para elas e comenta algo sobre falta de ética. 

- O mundo mudou, meu velho. - fala a idosa.

Duas mulheres olham para a igreja do Guadalupe e fazem o sinal da cruz. Um pai fala para seus filhos "é o triunfo do mal, um sinal do fim do mundo". "Idiotas!", pensa uma professora, tira um livro da bolsa e começa a ler. Várias pessoas da fila comentam o fato de o ônibus estar demorando mais que outros dias.

O Apolinário olha as pessoas apinhadas e fala:

Foi tão difícil a estrada!
meus pés estão cansados,
minhas mãos, calejadas,
minha boca muda e sem vida
minha vida sem esperanças.

Ninguém olha para ele. Que indiferença. "Ninguém vai dizer nada? Gente! Eu declamei um poema!"

Chega o ônibus. 

- Por fim! - exclama um idoso. 

As pessoas começam a subir e ocupar os assentos. Alguns viajam de pé, outros preferem esperar o próximo. A fila parece uma cobra gigantesca. Cresce rapidamente.

Apolinário repete:

Foi tão difícil a estrada!
meus pés estão cansados,
minhas mãos, calejadas,
minha boca muda e sem vida
minha vida sem esperanças. 

- Parece que ninguém gostou do poema. - fala o Apolinário.

- Não adianta, - comenta Tiago, um amigo dele - eles não conseguem te enxergar.

- Um momento. Veja essa criança! Ela escutou. Sim, ela escutou e está olhando para os lados.

- Olhe, mamãe. Esse cara engraçado, lá no teto.

- Querido, esse é seu amiguinho invisível? - Pergunta a mãe sorridente, curvando-se sobre a criança e dando-lhe um beijo na bochecha.

- Ele não é meu amigo! - fala a criança.

De repente uma forte luz ilumina o lado direito do terminal, mas ninguém repara.

Do lado esquerdo, as sombras crescem. Do lado direito um homem com roupas brancas tem um sorriso iluminado.

Do lado esquerdo, um homem com roupas cinzas tem um olhar terrível. Do lado direito, para um ônibus, as pessoas começam a subir. O Zecão abre a carteira. O homem do sorriso iluminado grita:

- Não faça isso, Zecão! Falei tantas vezes para não fazer isso, meu amigo.

Do lado esquerdo três homens correm. O rapaz de óculos empurra o Zecão, outro tenta pegar a carteira. O Zecão, aperta a carteira. Um dá um soco no nariz dele. Mas o Zecão não solta. O terceiro, passa a navalha pela garganta do Zecão.

O Zecão não solta a carteira. As pessoas gritam. O sangue encharca o terminal. As pessoas pegam os celulares e tiram fotografias do Zecão morrendo. Ninguém chama uma ambulância. É mais importante registrar o momento. "Não adianta, esse cara vai morrer mesmo.", fala o rapaz de camiseta amarela. "Vamos tentar vender essas fotos para algum jornal", murmura o amigo dele.

Uma moça solicita a uma mulher vestida com casaco preto, de olhos esbugalhados, para tirar uma foto dela ao lado do morto. A mulher está a ponto de chorar.

- Por favor, senhora, implora a moça. Uma coisa como esta é difícil de acontecer - fala enquanto penteia o cabelo - Minhas amigas não vão acreditar. Preciso de uma foto.

A mulher seca uma lágrima com o dorso da mão e pega a câmara fotográfica.

- Tem que apertar aqui! - fala a moça mostrando um botão prateado na parte direita da câmara. A mulher, indecisa, demora um pouco, mas consegue tirar a foto. Na frente a moça, no chão o homem ensanguentado.

- Preciso de várias fotos, por favor, alguma delas vai ficar boa. - fala a moça muito empolgada como se o momento fosse de festa.

Perto dela um rapaz com seus fones de ouvido faz movimento de dança com a cabeça, mas o corpo permanece rígido no lugar.

O homem sorridente que faz parte do globo de luz da direita grita:

- Ei, Zecão! Venha para este lado, homem! Não vai para as sombras, não! Venha!

Os outros seres que estão a seu lado também gritam: - Venha, Zecão, venha!

- Zecão, você está em nossa lista! - grita o homem de olhar terrível que chefia as sombras.

- Está na lista! - grita o coro de sombras desafinado.

O Zecão está confuso. Lembra da esposa e dos filhos, ele quer voltar para casa. Sentar no sofá, assistir TV., comer o arroz com feijão.

O homem de olhar terrível do lado esquerdo mostra partes da vida do morto. O homem sorridente do lado direito, também mostra partes da vida do morto.

O Zecão sente medo. Impulsivamente, corre para a luz.

O poeta vê a cena e declama um poema:

Essa luz que agora acende,
com milhares de lembranças,
é de um túnel que surpreende.
Quem caminha além do túnel
reencontrará a esperança.

O homem sorridente da bola de luz que está do lado direito grita:

- Poeta, você vai entrar na luz ou vai continuar declamando no terminal?

- Eu também morri neste terminal. - fala o poeta. - Mas foi de problema cardíaco, há 8 anos. Acho que vou ficar por aqui mesmo. Sempre encontro amigos.

- Sim! Vamos ficar mais um pouco! - disse o amigo de Apolinário. Os dois pulam sobre o teto de ônibus amarelo que está saindo do terminal e acenam repetidamente com a mão direita.

Fonte: