quinta-feira, 3 de janeiro de 2019

Mário Quintana em Prosa e Verso 4


O MILAGRE

Dias maravilhosos em que os jornais vêm cheios de poesia... e do lábio do amigo brotam palavras de eterno encanto... Dias mágicos... em que os burgueses espiam, através das vidraças dos escritórios, a graça gratuita das nuvens...

EPÍGRAFE

As únicas coisas eternas são as nuvens...

OS VIRA-LUAS

        Todos lhes dão, com uma disfarçada ternura, o nome, tão apropriado, de vira-latas. Mas e os vira-luas? Ah! ninguém se lembra desses outros vagabundos noturnos, que vivem farejando a lua, fuçando a lua, insaciavelmente, para aplacar uma outra fome, uma outra miséria, que não é a do corpo...

O ESTRANHO CASO DE MISTER WONG

Além do controlado dr. Jekyll e do desrecalcado Mister Hyde, há também um chinês dentro de nós: Mister Wong. Nem bom, nem mau: gratuito. Entremos, por exemplo, neste teatro. Tomemos este camarote. Pois bem, enquanto o dr. Jekyll, muito compenetrado, é todo ouvidos, e Mister Hyde arrisca um olho e a alma no decote da senhora vizinha, o nosso Mister Wong, descansadamente, põe-se a contar carecas na plateia...

Outros exemplos? Procure-os o senhor em si mesmo, agora mesmo. Não perca tempo. Cultive o seu Mister Wong!

CHÃO DE OUTONO

Ao longo das pedras irregulares do calçamento passam ventando umas pobres folhas amarelas em pânico, perseguidas de perto por um convite-de-enterro, sinistro, tatalando, aos pulos, cada vez mais perto, as duas asas tarjadas de negro!

A VINGANÇA

Se eu fosse Deus, eu mandava os comendadores mortos (ah, como nos havíamos de rir, ó Walt Disney!), eu os mandava a todos, com as suas almas graves, encasacadas e de óculos, para o doido País das Sinfonias Coloridas.

PURÍSSIMA

As admiráveis instalações sanitárias que há na lua!

Tudo branco, tudo polido, tudo limpinho. Jorros d'água. Frescor. Alívio. Os anjos que o digam! Pois só aos anjos é permitido servirem-se do nosso higiênico satélite para as suas abluções e necessidades...

PROVÉRBIO

O seguro morreu de guarda-chuva.

HORROR

Com os seus OO de espanto, seus RR guturais, seu hirto H, HORROR é uma palavra de cabelos em pé, assustada da própria significação.

TRISTE ÉPOCA

Em nossa triste época de igualitarismo e vulgaridade, as únicas criaturas que mereceriam entrar numa história de fadas são os mestre-cucas, com os seus invejáveis gOrrOS brancos, e os porteiros dos grandes hotéis, com os seus alamares, os seus ademanes, a sua indiscutida majestade.

CRISE

Por causa dos ilusionistas é que hoje em dia muita gente acredita que poesia é truque...

Fonte:

Contos e Lendas do Mundo (China: A Lenda de Ch'ienniang)


(Um conto da dinastia Tang. Supõe-se que esta história tenha ocorrido em torno de 690 d.C.) 

Ch'ienniang era filha de Chan Yi, um oficial em Hunan. Tinha um primo chamado Wang Chou, rapaz inteligente e bonito. Tinham sido criados juntos desde a mais tenra idade e como seu pai gostasse muito do menino tinha dito que faria de Wang Chou seu genro. Ambos ouviram essa promessa e, como a menina fosse a única filha e estivessem sempre juntos, cada dia mais se afeiçoavam um ao outro. Já agora eram dois jovens e continuavam, entretanto, a se tratar como parentes íntimos. Infelizmente o pai da jovem era o único que nada percebia. 

Um dia, um jovem oficial veio pedir-lhe a mão da filha e ignorando, ou esquecendo sua promessa primitiva, ele consentiu fazendo com que Ch'ienniang, desesperada entre o amor e a piedade filial, quase morresse de dor, causando tal desgosto ao rapaz que ele resolveu sair para outras terras em vez de ficar ali e ver sua amada tornar-se a esposa de um outro. Assim, inventou um pretexto e informou o tio de que precisava ir para a capital. Como o tio não conseguisse persuadi-lo a ficar, deu-lhe dinheiro e presentes e preparou um banquete de despedida para ele. Wang Chou, triste por ter de separar-se da amada, pensou na partida durante toda a festa dizendo a si mesmo que era melhor partir do que viver ali vendo seus sonhos despedaçados. 

Assim, Wang Chou saiu num barco da tarde, e antes de estar a algumas milhas de distância já a noite caíra. Disse ao barqueiro que amarrasse o barco na praia e descansasse a noite. 

Não conseguiu dormir e, por volta da meia-noite, ouviu passos ligeiros que se aproximavam. Em poucos minutos o som pareceu bem perto do barco. 

Ergueu-se e perguntou: - "Quem pode ser a esta hora da noite ?" 

- "Sou eu, Ch'ienniang," foi a resposta. 

Surpreso e encantado, levou-a para o barco e ali ela lhe contou que esperara ser sua esposa. que o pai não tinha procedido bem para com ele e que ela não suportava a separação. Receava, outrossim, que ele, só e viajando por terras estranhas pudesse ser tentado a suicidar-se. Eis porque recaíra na censura da sociedade e na cólera dos pais e viera segui-lo para onde quer que fosse. Assim ambos ficaram satisfeitos e continuaram a viagem juntos para Szechuen. 

Passaram-se cinco anos de felicidade e ela o presenteou com dois filhos. Porém não tinham notícias da família e diariamente ela pensava nos pais. Era essa a única coisa que lhes empanava a felicidade. 

Ele não sabia se os pais ainda viviam e quais as condições e, certa noite, começou a contar a Wang Chou como se sentia infeliz e, por ser a filha única, como se considerava culpada de grande impiedade filial por ter deixado os velhos pais dessa maneira. 

- "Tem um coração cheio de amor filial e estou de acordo com você," disse-lhe o marido. "Já se passaram cinco anos, certamente não nos guardam rancor. Voltemos para casa." 

Ch'ienniang exultou ao ouvir isso e assim fizeram todos os preparativos para voltar para casa com os dois filhos. 

Quando o bote chegou à cidade natal, Wang Chou disse a Ch'ienniang: 

- "Não sei qual o estado de ânimo de seus pais. Será melhor que eu vá para verificar." 

Seu coração palpitava ao aproximar-se da casa do sogro. Ao vê-lo, Wang Chou ajoelhou-se pedindo perdão. 

Ao ouvir isso, Chang Yi surpreendeu-se e disse: - "De quem esta falando? Ch'ienniang jaz inconsciente em sua cama nesses últimos cinco anos, desde que você nos deixou. Ela jamais abandonou o leito." 

- "Não estou mentindo," disse Wang Chou. "Ela está passando bem e esperando por mim no barco". 

Chan Yi não sabia o que pensar, por isso, mandou duas servas ver Ch'ienniang. Elas a viram sentada, bem vestida e feliz e até disse às servas para que falassem com seus pais o quanto os amava. 

Amedrontadas, as duas servas correram para casa para dar essas novas e Chang Yi ainda ficou mais intrigado. Nesse ínterim, aquela que estava na cama ouviu as novidades e parece que sua enfermidade desapareceu e os olhos brilharam. Levantou-se da cama e vestiu-se, ajeitando-se diante do espelho. Sorrindo e sem proferir uma palavra, encaminhou-se diretamente para o barco. 

A que estava no barco, preparava-se para tomar o caminho de casa e assim encontraram-se nas margens do rio. Quando as duas chegaram perto uma da outra seus corpos fundiram-se num só, com roupas em duplicatas, e surgiu a antiga Ch'ienniang tão jovem e encantadora como nunca. 

Os pais ficaram satisfeitíssimos, porém pediram aos servos que guardassem segredo e nada dissessem aos vizinhos a respeito do que acontecera, a fim de que não houvesse comentários. Eis porque ninguém, exceto os parentes mais chegados da família Chang, jamais soube desse estranho acontecimento. 

Wang Chou e Ch'ienniang viveram como marido e mulher durante mais de quarenta anos antes de morrerem. 

Fonte:

Concursos de Trovas com Inscrições Abertas


CONCURSO MUNICIPAL DE TROVAS DA UBT PORTO ALEGRE

PRAZO: 31.01.19 

Tema: ALDEIA (Lírica/Filosófica)

Uma trova, inédita, por autor. 

Remessa (sistema de envelopes) para: 
Rua Otto Niemeyer, 2460 
CEP. 91910-001 – Porto Alegre – RS.

Por e-mail: flaviorstefani@gmail.com

Os vitoriosos receberão medalhas, diplomas e finos brindes, no dia 08 de março/2019, data comemorativa dos 50 anos da UBT Porto Alegre.

Obs. 1: O presidente da UBT, por ser o fiel depositário, não participará do concurso, estando à disposição de todos para auxiliar na construção das trovas.

Obs. 2: Podem participar autores residentes no município de Porto Alegre, associados ou não da UBT.
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LX JOGOS FLORAIS DE NOVA FRIBURGO

PRAZO: 31.01.19 – Temas

Concurso Nacional/Internacional: 

- Veteranos

CIÚME (Lírica/Filosófica) e 
PREGUIÇA (Humorística)

Máximo de 3 trovas. 

Remessa:
a/c de Elisabeth Souza Cruz 
Caixa Postal 96.935 
CEP 28610-974 – Nova Friburgo – RJ.

- Novos Trovadores: 

CIÚME (Lírica/Filosófica) 

Máximo de 3 trovas. 

Favor escrever 'categoria novos'. 

Remessa:
a/c de Elisabeth Souza Cruz 
Caixa Postal 96.935 
CEP 28610-974 – Nova Friburgo – RJ.

Para a trova humorística (Preguiça) não há distinção entre Novos e Veteranos

- CONCURSO PARALELO (Homenagem aos 60 anos de Jogos Florais em NF): 

FESTA (Lírica/Filosófica) 

Uma trova por participante. 

Remessa:
a/c de Elisabeth Souza Cruz 
Caixa Postal 96.935 
CEP 28610-974 – Nova Friburgo – RJ.

- CONCURSO PARALELO LOCAL (Homenagem aos 60 anos de Jogos Florais em NF):

Mesmo tema e regras, enviando as trovas para 
a/c de Renato Alves 
Rua Flamínea, 596 – Vila da Penha 
CEP 21221-240 – Rio de Janeiro – RJ.

- CONCURSO LOCAL (Moradores de Nova Friburgo): 

AMOR (Lírica/Filosófica) e BRIGA (Humorística). 

Máximo de 3 trovas.

Remessa: 
a/c de Renato Alves 
Rua Flamínea, 596 – Vila da Penha 
CEP 21221-240 – Rio de Janeiro – RJ.

- MAGNÍFICOS TROVADORES 

Conjunto de Trovas
SAUDADE (Lírica/Filosófica) 
CONFUSÃO (Humorística). 

Remessa: 
a/c Clenir Neves
Rua Gustavo Lira 103 – Sobrado – Olaria 
CEP 28623-390 - Nova Friburgo - RJ 

ATENÇÃO: Todas as modalidades, enviar pelo sistema de envelopes.
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VIII JOGOS FLORAIS DE CAMPOS DOS GOYTACAZES/RJ

PRAZO: 30.03.19 

Temas:

1. Nacional/Internacional – PROGRESSO (Lírica/Filosófica)

2. Estadual/Municipal – PLANÍCIE (Lírica/Filosófica)

3. Novos trovadores – trovadores de todo o Brasil e do exterior - NATUREZA (Lírica/Filosófica)

4. Humorística – trovadores de todo o Brasil e de outros países - CLIMA

Remessa pelo sistema de envelopes: 
A/c de Talita Batista 
Rua Câmara Júnior, 35/403- Centro 
CEP 28035-135 - Campos dos Goytacazes/RJ

Remessa pelo sistema eletrônico:
E-mail: ra.renatoalves@gmail.com
Assunto: VIII Jogos Florais da UBT-Seção Campos dos Goytacazes/RJ -2019
Mencionar no corpo do e-mail: O tema e a modalidade a que concorre, as trovas, o nome e o endereço completo do autor com o CEP, o telefone e o e-mail para contato.
(Obs: não serão aceitos anexos).

LIMITE: Duas trovas para cada tema.
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XXV JOGOS FLORAIS DE PORTO ALEGRE

Previsto para julho/2019.

- Temas para os concursos

OURO (L/F) para o concurso nacional/internacional, 
e BRONZE (H); 

PRATA (L/F) para o concurso estadual (somente Rio Grande do Sul), 
e JÓIA (H); 

ORO (L/F) para as trovas de língua hispânica; 

HONRA (L/F) para o Concurso Brigadiano, 
e OURO (L/F) também para os novos trovadores. 

Na Edição do Boletim Calêndula Literária de fevereiro o regulamento completo dos XXV Jogos Florais de Porto Alegre, que, mais uma vez, deverá ter o apoio da LIC – Lei de Incentivo à Cultura do Estado do RS. 

Não esqueçam: valem derivados e palavras cognatas.

Fonte:
Calêndula Literária. n. 487 - janeiro 2019

quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

Alda Lara (Poemas Avulsos)



CIGANA

quem me dera ser vagabundo
de um mundo 
qualquer!...

quem me dera ir,
pelos caminhos,
com a única saia que tivesse p'ra vestir...,
(nem curta nem comprida...)
... uma saia fora de moda, desgraciosa,
mas forte e vistosa!...

quem me dera ir...,
a comer as amoras dos valados,
a dormir sobre a grama, sem telhados
que não fossem os do céu!...
ser "eu"...
acenar aos que trabalham nos campos,
e parar,
a ouvir as canções populares!...
seguir sempre sozinha, comigo
e com o sol...
ver nascer o arrebol,
e caminhar... sem destino...
ao som não sei de que hino...
mas livre... livre!...

livre de ter que dizer
"muito prazer"
 a toda hora!...
livre dos compromissos, 
das etiquetas,
e de todas as tretas
que me acorrentam
 e me lançam névoa sobre os ideais!...
livre das exposições,
das reuniões,
das aulas do forjaz 
e outros que tais!...
livre de tudo!...
sem a ambição de possuir um "canudo",
sem educação!...
poder lamber as mãos,
e rir de troça,
dos que passam nas estradas,
de óculos escuros,
e grandes "espadas"!...

ah!... ser simples!...
não pensar na modista, 
nem no dentista, 
nem nas unhas por polir...
nem pensar na guerra
nem na pobreza...
saber só que a naturez
é bela e igual para todos!...
saber só, que caminho sozinha,
feliz com a minha liberdade!...
não conhecer a saudades
do que ficou para trás!...
e saber que há sempre,
um fruto maduro,
e uma estrela brilhante
para cada caminhante!...
seguir... seguir sempre!...
sem um fito... sem um fim...
mas caminhar mesmo assim...com o vento a bater-me
nas tranças do cabelo, às lufadas,
e a deixar-me beijar
todas as noite
pelo luar das estrelas!...

quem me dera ir...
sem pátria, nem lei...
abraçada aos sonhos que sonhei!...

ah! cigana perdida,
a sorrir
nas estradas da vida!...

CÍRCULO

todo o caminho é belo se cumprido.
ficar no meio é que é perder o sonho.
é deixá-lo apodrecer, no resumido
círculo, da angústia e do abandono.

é ir de mãos abertas, mas vazias,
de coração completo, mas chagado.
é ter o sol a arder dentro de nós,
cercado,
por grades infindas...

culpa de quem, se fiz o que podia,
na hora dos descantes
e das lidas?

ah! ninguém diga que foi minha!
Ah! ninguém diga...

minha a culpa,
de ter dentro do peito, 
tantas vidas!...

MUTILAÇÃO

meu corpo, lancei-o ao mar,
para que o mar o levasse,
e matasse aos peixes belos,
a fome dos meus anelos...

meu olhos, joguei-os longe!
atirei-os às estrelas solitárias
de uma noite...

doei meus lábios vermelhos
à criança prostituída...
mais! entreguei os meus nervos
aos violinos da vida...

e daqueles longos cabelos,
fiz agasalhos de tiras,
com que embrulhei, ressequido
os troncos das árvores velhas...

hoje p'ra além do meu cansaço,
só me resta o coração,
que continua a bater 
transfigurado, no espaço!

INTERMEZZO

do cais, partiram os navios
onde eu quis ir sempre,
e nunca fui...

no jardim, morreram as flores
que o meu olhar só beijou
através das grades brancas...

e pelos caminhos, 
passaram por mim,
sem olharem para trás uma só vez,
todos que tinham pressa de chegar...

só eu fui devagar...
cada vez mais devagar
quanto mais perto estava.

a desejar, as flores que morriam
por detrás das grades brancas...
os navios que partiam
envolvidos na bruma,
e os caminhos, nunca percorridos...

só eu fui devagar...

DE LONGE

Não chores Mãe... Faz como eu, sorri!
Transforma as elegias de um momento
em cânticos de esperança e incitamento.
Tem fé nos dias que te prometi.

E podes crer, estou sempre ao pé de ti,
quando por noites de luar, o vento,
segreda aos coqueirais o seu lamento, 
compondo versos que eu nunca escrevi...

Estou junto a ti nos dias de braseiro,
no mar... na velha ponte... no Sombreiro,
em tudo quanto amei e quis p'ra mim...

Não chores, mãe!... A hora é de avançadas!...
Nós caminhamos certas, de mãos dadas
e havemos de atingir um dia, o fim..

REVOLTA

Quero, e não quero!...
Creio... e desespero!...
Renego, mas aspiro,
E em cada viravolta,
Mais grito e mais me firo!...
Aonde esperei, não espero!...
Aonde desejei, já não desejo,
E se algum dia vi,
Hoje não vejo!...

Deus... Ó Deus!...
Para que lado ficam os teus céus?!…

Carlos Drummond de Andrade (A Cápsula)



Todo mundo foi ver a Gemini V no Passeio Público (até a enchente esteve lá, uma noite). Todo mundo, menos ele. Não que se colocasse fora da era espacial ou abominasse os Estados Unidos. Deixou de ir por preguiça. É daqueles que, para participarem de um acontecimento histórico, exigem que o acontecimento se verifique no bairro, de preferência na rua onde moram. Em horário cômodo. Mas chegou o neto de longes plagas, doido de vontade de ver a cápsula, e sem condições para ir sozinho ao centro da cidade. Pediu ao avô que o levasse.

— Nunca! Está um calor de lascar.

— A gente toma uns sorvetes e vai em frente.

— Sem um pingo d’água em casa!

— E daí? Pra ver a Gemini não precisa de água. Astronauta é que precisa de muita, pra não desidratar no espaço.

— Amanhã nós vamos, menino.

— Amanhã a cápsula sobe pra Petrópolis e não volta mais ao Rio. Você parece que não lê jornal!

Impossível resistir. Os dois se mandaram para o centro. Lá estava, no jardim, convidativa como um circo, a barraca de plástico encerrando a supermáquina.

“Que chateação!” — pensou o velho. O neto pensava exatamente o contrário. Tanto que, mal avistou a barraca, acelerou o passo, deixando o avô à distância. 

Em disparada entrou no recinto.

A progressão nas duas escadinhas laterais era lenta, porque os visitantes queriam ver bem a cápsula; alguns o faziam com ar entendido, de quem já entrou em órbita e é íntimo do Schirra e do Cooper. Certamente, para o garoto o ideal seria que todos fossem embora e ele tomasse posse da cápsula. Mal subiu o primeiro degrau, estendeu as mãos para o plástico da cobertura, alisou-o como quem faz carícia. Depois, os dedos passaram ao revestimento metálico. Apalpava a matéria com força, para testá-la, talvez para comunicar-lhe toda a sua emoção.

— Olhe para dentro, repare no painel, nos assentos do piloto e do co-piloto — sugeriu o visitante de trás, vendo que o garoto não desatava.

Mas ele não tinha tanto olhos de ver quanto mãos de pegar. O tato procurava convencer-se da materialidade da cápsula, esgotar a percepção; depois, a vista que entrasse com seu jogo. Meteu a unha no casco de titânio, querendo tirar uma lasquinha que fosse. Conseguiu uns fiapos, recolhidos imediatamente ao bolso da camisa. Depois arranhou a bandeira norte-americana pintada na fuselagem. Sem a menor intenção de desacato: para conseguir uns grânulos de tinta vermelha das listras, que serviriam, com os fiapos, de eterna recordação e comprovação do encontro, se os colegas duvidassem.

Pressionado pela fila, teve de descer do outro lado, mas avisou: “Vou subir muitas vezes”. E subiu e desceu tantas vezes, contornando a barraca, que mais parecia a própria cápsula, dando voltas à Terra. Já agora, eram os olhos que desfrutavam a viagem. Tiravam fotos retinianas de cada instrumento, cada botão, cada partícula prestigiosa do prestigioso conjunto.

E não descansou. Concluído o voo orbital, aterrissou junto ao funcionário incumbido de dar explicações a quem quisesse. Crivou-o de perguntas, discutiu pontos técnicos da próxima alunissagem. A certa altura, o funcionário coçou a cabeça:

— Isso eu não sei informar, me faltam dados… Desculpe.

Ao voltarem para casa, confidenciou ao avô:

— Soprei em cima do vidro, para deixar o meu hálito. E risquei como pude minhas iniciais.

De sorte que o avô regressou sem ter visto propriamente a Gemini V, mas ainda a está observando, perfeita, em pleno voo, na fisionomia grave do garoto, que ainda não regressou do cosmo.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas. 
São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

Contos e Lendas do Mundo (África: A Batalha contra a Morte)

No Sul da África, a chuva pode significar a vida ou a morte. Sem ela, as plantações secam e morrem, deixando as pessoas com pouca ou nenhuma comida. Esta história, que se baseia num mito do povo Kói, fala da luta que um homem travou para salvar a sua tribo de morrer à fome.

 Em tempos idos, quando a terra foi dominada por uma fome terrível, viveu um homem cujo nome já foi, há muito, esquecido. Tornou-se conhecido por Tsui’goab, mas não era assim que se chamava quando a história começou.

 Tsui’goab andava preocupado com o futuro da sua aldeia.

 - Quando é que a chuva virá? - interrogava-se, preocupado, protegendo os olhos do sol enquanto procurava, desesperado, uma nuvem no céu límpido. - A maior parte do nosso gado já morreu, as nossas plantações não vingam e, a cada dia que passa, mais pessoas morrem de sede. Quando é que este pesadelo chegará ao fim?

 De todos os poços das redondezas, somente um ainda não secara, mas não se sabia até quando esse ficaria com água. A cada dia que passava, o balde tinha de descer mais fundo até encontrar água.

 Mas como deveriam os aldeões utilizar aquela porção preciosa? Se fossem eles mesmos a bebê-la, o pouco gado que restava morreria. Se a dessem a este, não poderiam regar as plantações. Sem gado nem colheitas não haveria comida, e eles próprios, sem água, morreriam numa questão de dias.

 Tsui’goab, ao olhar para o céu, perguntava a si mesmo como era possível algo tão belo ser tão mortífero...

 O Sol era um amigo que trazia calor e luz, fornecendo às plantas energia para crescer. No entanto, também podia transformar-se num inimigo, espalhando a morte sobre a terra. Sem nenhuma chuva, podia queimar o solo, transformando uma zona de terra arável num torrão seco.

 Até que, um dia, apareceu um desconhecido na aldeia. Recebeu guarida na casa dos mais velhos. Com ou sem seca, todo o forasteiro ainda era bem recebido. Apesar de ter a cabeça oculta por um capuz e o corpo disfarçado por uma capa, Tsui’goab - que, recorde-se, nesse tempo ainda não era tratado por esse nome - não teve dificuldade em reparar que era uma criatura saudável. Tinha os braços e as pernas musculosos, não se lhe viam ossos sob a pele, e esta, ao contrário do que acontecia com Tsui’goab e os outros aldeões, não tinha um aspecto encarquilhado e ressequido.

 - Vieste de muito longe? - perguntou-lhe Tsui’goab.

- De perto e de longe - respondeu o viajante.

- A seca está muito espalhada? Viste muita morte ao longo do caminho?  - quis saber Tsui’goab.

 - Deparei com a morte por todo o lado em que passei - retorquiu o viajante.

 - Mas pelo pouco que vejo em ti, pareces bastante saudável - observou Tsui’goab. - Qual é o teu segredo?

 - Segredo? - admirou-se o viajante. - Que queres dizer?

 - Creio que sabes do que falo - disse Tsui’goab, olhando-o atentamente.

 - Já alguma vez estiveste nesta aldeia?

 - Sim e não - respondeu o viajante num sussurro que mal se ouvia.

 - Tira o capuz - ordenou Tsui’goab. - Não vale a pena ocultares o rosto. Não admira que digas que és de perto e de longe, pois a morte está em todo o lado. Assim como não surpreende que a tenhas visto por onde quer que tenhas passado, pois tu és a Morte.

 O viajante tirou então a capa e o capuz.

 - Sim, sou Gaunab - admitiu. - Há quem me chame Morte.

 - Fico satisfeito por estares aqui em forma humana - disse Tsui’goab, vendo, finalmente, que talvez houvesse alguma possibilidade de tentar salvar o seu povo.

 - Satisfeito? - surpreendeu-se Gaunab. - Parece-me que a falta de água e alimento já começou a afetar a tua mente.

- Enganas-te - declarou Tsui’goab. - O meu povo é orgulhoso. Não temos medo de enfrentar a Morte cara a cara. No entanto, é a primeira vez que nos mostras um rosto humano.

- Achas o meu rosto belo? - quis saber Gaunab.

- O teu rosto tem a aparência de ventres vazios e inchados, de lábios ressequidos e de grande aglomeração de moscas - respondeu Tsui’goab. - É um rosto de sol ardente e poças de água secas. Como poderá semelhante rosto ser belo?

- Não tens medo de mim, pois não? - perguntou Gaunab.

- Não - respondeu Tsui’goab. - Se não tivesses vindo até aqui em forma humana, teria ido à tua procura.

- Desejas morrer? - admirou-se Gaunab. - Não acredito. Preocupas-te demasiado com aqueles que te cercam para desejares tal.

- O que eu quero é desafiar-te para um duelo - disse Tsui’goab. - Um duelo justo e leal que, se eu ganhar, fará com que prometas partir daqui para sempre e deixar o meu povo em paz.

- Pretendes banir-me? Queres banir a Morte?

- Quero - respondeu Tsui’goab.

- E se perderes? - perguntou Gaunab, depois de refletir um pouco.

 - Nesse caso, levarás contigo a minha vida e a daqueles que nos rodeiam - retorquiu Tsui’goab.

 - Não é grande prêmio, já que em breve ficarei com as vidas de todos vós - observou Gaunab.

 - Queres dizer que não aceitas o desafio que te lancei? - perguntou Tsui’goab.

 - Confias que lutarei com lealdade? - perguntou Gaunab.

 - Confio - assegurou Tsui’goab.

 - Porquê? - quis saber Gaunab.

 - Porque tu és a Morte, e o único adversário que tens é a Vida. És o que és - observou Tsui’goab. - Não existe aí nenhuma deslealdade. Não podes ser diferente.

 - Então, aceito o teu desafio! - acedeu Gaunab.

 Antes que Tsui’goab tivesse possibilidade de se preparar, Gaunab atirou-se a ele e os dois rolaram por terra, sob o sol abrasador.

Não tardou que a notícia se espalhasse pela aldeia.

 - Tsui’goab está a lutar pessoalmente com a Morte! - gritaram os aldeões, embora, convém não esquecer, não o tratassem por esse nome na altura.

 Os doentes e os moribundos foram tirados das suas cabanas pelos mais saudáveis, embora ninguém estivesse muito bem devido à seca terrível. Não houve aldeão, com força para tal, que não viesse lançar gritos e vivas de encorajamento a Tsui’goab, enquanto este media forças com a Morte. Sabiam que se batia pelas vidas deles, além da sua.

 Gaunab e Tsui’goab parecia igualarem-se em força. Gaunab estava mais bem preparado fisicamente, mas Tsui’goab era mais rápido nos seus golpes e parecia conhecer mais truques. A luta ora parecia pender para um lado, ora para o outro...

 Tsui’goab, no entanto, tinha razões mais fortes para lutar. Enquanto se debatia com Gaunab, recordou os seres amados que a morte já lhe levara no decorrer da vida e pensou naqueles que morreriam se perdesse, o que lhe deu forças para continuar, caso contrário seria derrotado.

 Ninguém se recorda do tempo que a luta durou. Uns dizem que levou muitas horas, outros, que foram muitos dias. Houve, ainda, quem afirmasse que se arrastou por semanas. No entanto, uma coisa é certa, ou seja, o desfecho final. Depois de uma luta acesa e violenta, Gaunab acabou por cair sobre a terra poeirenta e não se levantou.

 - Estou a morrer - disse, com uma expressão de espanto estampada no rosto. - Tu derrotaste a Morte.

Tsui’goab, exausto e coberto de pó e sangue, cambaleou até junto do seu adversário.

 - Isso só foi possível porque foste honesto e lutaste com lealdade disse. - Eu...

 Porém, Gaunab ainda não se considerava derrotado. Num golpe derradeiro, atirou um pontapé contra o joelho de Tsui’goab, partindo-lhe a rótula com um som terrível. Tsui’goab gritou com a dor e caiu por terra. Depois, desmaiou.

Quando Tsui’goab voltou a si, ouviu vozes mas deixou-se ficar mais um pouco de olhos fechados. Sentia-se muito esquisito.

- Tsui’goab pode ter derrotado Gaunab - disse uma voz -, mas o certo é que a morte tem muitas formas e ainda anda por aí a percorrer a Terra.

- Mas desta vez Tsui’goab salvou o seu povo - disse uma outra. Tsui’goab sentiu curiosidade em saber quem seria aquele «Tsui’goab» de quem falavam, pois ainda não sabia que passara a ser conhecido por outro nome.

- Mas nunca nenhum ser humano lutou com a Morte daquela maneira disse a primeira voz. - Mostrou a sua bravura, e as prendas que lhe daremos irão permitir-lhe salvar o seu povo.

Tsui’goab abriu os olhos. Estava sozinho, mas percebeu o que ouvira, pois não se encontrava deitado numa cama ou em chão firme, mas sim no céu. Ao longe, bem abaixo dele, via a sua aldeia. Estendeu os braços com energia renovada e, ao aproximar as mãos do corpo, dos dedos saiu-lhe água.

Viu, maravilhado e cheio de alegria, a cor do solo, lá em baixo, ficar cada vez mais escura, à medida que ia ensopando a terra com a chuva - chuva que ele próprio criara. Viu os aldeões - os seus aldeões - correrem para fora de suas casas e erguerem o rosto para o céu. O seu povo estava salvo!

Tsui’goab transformara-se num deus da chuva, passando a morar no céu. Como os deuses novos precisam de nomes novos, ele ficou a ser conhecido por Tsui’goab, o que significa «joelho ferido».

Fonte:

segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

Agradecimento

Mais um ano se encerra. 

O blog mantém-se ativo há 11 anos, desde 25 de dezembro de 2007.

Até o momento possuímos 12.534 postagens, sendo dezenas de milhares de trovas, de poemas, centenas de contos, além de folclore, notícias, lançamentos, resumos de livros, concursos com inscrições abertas, resultados dos mesmos, biografias, artigos, crônicas, etc.

Ao longo destes anos, 1.821.780 leitores do blog, 182 seguidores e 264 assinantes.

Meus agradecimentos aos trovadores, poetas e literatos em geral que me enviaram seus livros para minha apreciação (nenhum deles fica na estante criando teias de aranha, são aproveitados para divulgação de seu conteúdo neste blog). Um agradecimento especial pelos seus livros: 
Carolina Ramos (Santos/SP), Prof. Garcia (Caicó/RN), Luiz Damo (Caxias do Sul/RS), Domingos Freire Cardoso (Ilhavo/Portugal), Jessé Nascimento (Angra dos Reis/RJ), Nilsa Alves de Melo (Maringá/PR), Wanda de Paula Mourthé (Belo Horizonte/MG) 
pelos Boletins de Trovas que me enviam mensalmente:
Flávio R. Stefani (Porto Alegre/RS) e Selma Spinelli (São Paulo/SP)
e tantos outros que gentilmente me enviaram, sendo que alguns infelizmente não se encontram mais entre nós.

Meus agradecimentos a todos que me enviam seus textos e/ou versos periodicamente para publicação, além de notícias de lançamentos de livros e eventos literários, entre tantos ressalto alguns que me enviam sempre material para publicação: 
Olivaldo Junior (Mogi-Guaçu/SP), Vivaldo Terres (Itajaí/SC), Samuel da Costa(Itajaí/SC), Francisco José Pessoa (Fortaleza/CE), Ialmar Pio Schneider (Porto Alegre/RS), Nei Garcez (Curitiba/PR), Amilton Maciel Monteiro (São José dos Campos/SP), João Batista Xavier Oliveira (Bauru/SP), Paulo Roberto O. Caruso (Rio de Janeiro/RJ), A. A. de Assis (Maringá/PR).

Meus agradecimentos, enfim, a todos que contribuíram, direta ou indiretamente para o sucesso do blog.

Abraços e um novo ano com muita saúde, harmonia, e literatura.
José Feldman

Carolina Ramos (Ano Novo)