segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

Carlos Drummond de Andrade (Premonitório)



Do fundo de Pernambuco, o pai mandou-lhe um telegrama:
Não saia casa 3 outubro abraços.

O rapaz releu, sob emoção grave. Ainda bem que o velho avisara: em cima
da hora, mas avisara. Olhou a data: 28 de setembro. Puxa vida, telegrama com a nota de urgente, levar cinco dias de Garanhuns a Belo Horizonte! Só mesmo com uma revolução esse telégrafo endireita. E passado às sete da manhã, veja só; o pai nem tomara o mingau com broa, precipitara-se na agência para expedir a mensagem.

Não havia tempo a perder. Marcara encontros para o dia seguinte, e precisava cancelar tudo, sem alarde, como se deve agir em tais ocasiões. Pegou o telefone, pediu linha, mas a voz de d. Anita não respondeu. Havia tempo que morava naquele hotel e jamais deixara de ouvir o “pois não” melodioso de d. Anita, durante o dia. A voz grossa, que resmungara qualquer coisa, não era de empregado da casa; insistira: “como é?”, e a ligação foi dificultosa, havia besouros na linha. 

Falou rapidamente a diversas pessoas, aludiu a uma ponte que talvez resistisse ainda uns dias, teve oportunidade de escandir as sílabas de arma virumque cano, disse que achava pouco cem mil unidades, em tal emergência, e arrematou: “Dia 4 nós conversamos”. 

Vestiu-se, desceu. Na portaria, um sujeito de panamá bege, chapéu de aba larga e sapato de duas cores levantou-se e seguiu-o. Tomou um carro, o outro fez o mesmo. Desceu na praça da Liberdade e pôs-se a contemplar um ponto qualquer. Tirou do bolso um caderninho e anotou qualquer coisa. Aí, já havia dois sujeitos de panamá, aba larga e sapato bicolor, confabulando a pequena distância. Foi saindo de mansinho, mas os dois lhe seguiram na cola. 

Estava calmo, com o telegrama do pai dobrado na carteira, placidez satisfeita na alma. O pai avisara a tempo, tudo correria bem. Ia tomar a calçada quando a baioneta em riste advertiu: “Passe de largo”; a Delegacia Fiscal estava cercada de praças, havia armas cruzadas nos cantos. Nos Correios, a mesma coisa, também na Telefônica. Bondes passavam escoltados. Caminhões conduziam tropa, jipes chispavam. As manchetes dos jornais eram sombrias; pouca gente na rua. Céu escuro, abafado, chuva próxima.

Pensando bem, o melhor era recolher-se ao hotel; não havia nada a fazer. Trancou-se no quarto, procurou ler, de vez em quando o telefone chamava: “Desculpe, é engano”, ou ficava mudo, sem desligar. Dizendo-se incomodado, jantou no quarto, e estranhou a camareira, que olhava para os móveis como se fossem bichos. Deliberou deitar-se, embora a noite apenas começasse. Releu o telegrama, apagou a luz.

Acordou assustado, com golpes na porta. Cinco da manhã. Alguém o convidava a ir à Delegacia de Ordem Política e Social. 

“Deve ser engano.” 

“Não é não, o chefe está à espera.” 

“Tão cedinho? Precisa ser hoje mesmo? Amanhã eu vou.” 

“É hoje e é já.” 

“Impossível.” 

Pegaram-lhe dos braços e levaram-no sem polêmica. A cidade era uma praça de guerra, toda a polícia a postos. 

“O senhor vai dizer a verdade bonitinho e logo” — disse-lhe o chefe. — “Que sabe a respeito do troço?” “Não se faça de bobo, o troço que vai estourar hoje.” 

“Vai estourar?” 

“Não sabia? E aquela ponte que o senhor ia dinamitar mas era difícil?” 

“Doutor, eu falei a meu dentista, é um trabalho de prótese que anda abalado. Quer ver? Eu tiro.” 

“Não, mas e aquela frase em código muito vagabundo, com palavras que todo mundo manja logo, como arma e cano?” 

“Sou professor de latim, e corrigi a epígrafe de um trabalho.” 

“Latim, hem? E a conversa sobre os cem mil homens que davam para vencer?” 

“São unidades de penicilina que um colega tomou para uma infecção no ouvido.” 

“E os cálculos que o senhor fazia diante do palácio?” 

Emudeceu. 

“Diga, vamos!” 

“Desculpe, eram uns versinhos, estão aqui no bolso.” 

“O senhor é esperto, mas saia desta. Vê este telegrama? É cópia do que o senhor recebeu de Pernambuco. Ainda tem coragem de negar que está alheio ao golpe?” 

“Ah, então é por isso que o telegrama custou tanto a chegar?” 

“Mais custou ao país, gritou o chefe. Sabe que por causa dele as Forças Armadas ficaram de prontidão, e que isso custa cinco mil contos? Diga depressa.” 

“Mas, doutor…” 

Foi levado para outra sala, onde ficou horas. O que aconteceu, Deus sabe. Afinal, exausto, confessou: 

“O senhor entende conversa de pai pra filho? Papai costuma ter sonhos premonitórios, e toda a família acredita neles. Sonhou que me aconteceria uma coisa no dia 3, se eu saísse de casa, e telegrafou prevenindo. Juro!”.

Dia 4, sem golpe nenhum, foi mandado em paz. O sonho se confirmara: realmente, não devia ter saído de casa.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas. 
São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

Contos e Lendas do Mundo (África: A Corrida para ser Rei)


Existem muitos mitos africanos acerca de animais. Nalguns, eles têm um comportamento animal. Noutros, parecem pessoas. Em certos mitos, até, são meio animais, meio gente. Neste mito Alur, há um sapo e um lagarto que são príncipes irmãos.

 Lagarto e Sapo, seu irmão, estavam sentados a olhar um para o outro. Lagarto deleitava-se ao sol do meio-dia, absorvendo os raios solares. Sorria de contentamento. A pedra macia e negra sobre a qual se encontrava era tão bonita e estava tão quente que ele era obrigado a levantar uma pata de cada vez. Deste modo, as quatro patas podiam esfriar um pouco antes de voltarem a ficar deliciosamente aquecidas sobre a sua pedra preferida.

Sapo mantinha-se à sombra, meio dentro, meio fora da água. Gostava de umidade, de se manter fresco. Se permanecesse ao sol demasiado tempo, ficaria esturricado.

Sapo tinha os enormes olhos redondos fixos em Lagarto.

 - Em que pensas, irmão? - perguntou-lhe. - Pareces muito satisfeito contigo mesmo.

- Estava a pensar que, quando o rei, nosso pai, morrer, eu assumirei o seu lugar - respondeu Lagarto.

- Quem o decide é o nosso pai - retorquiu Sapo, fazendo tremular a superfície da água da poça com o sopro da sua voz roufenha.

- Certamente não te passa pela cabeça ser o escolhido para ocupar o trono, pois não? - perguntou Lagarto, levantando uma das patas traseiras da pedra escaldante.

- É a ele que cabe a escolha - lembrou-lhe Sapo. - Mas está a ficar velho e já não deve tardar a fazer essa comunicação.

- Eu sou belo, rápido e forte - declarou Lagarto, agitando a língua. A minha voz é calma mas firme. Tu, no entanto, não possuis nenhuma destas qualidades.

- Tanto tu como eu somos filhos do mesmo pai - lembrou Sapo -, e, escolha ele quem escolher para o substituir, eu respeitarei a sua decisão.

- Mas tu és feio, pegajoso e andas aos pulos! - protestou Lagarto. A tua voz de cana rachada é feia e irritante. Nunca poderias ser rei.

Nesse momento chegou um mensageiro.

- Príncipe Lagarto - cumprimentou, fazendo uma vênia e pestanejando para o lagarto que se encontrava sob o sol brilhante. - Príncipe Sapo acrescentou, com nova mesura, franzindo os olhos para a zona sombreada. Vosso pai convoca-vos para vos deslocardes ao palácio real.

- Para me proclamar seu sucessor, sem dúvida - observou Lagarto, sorrindo.

- A sua mensagem diz que o primeiro a chegar ao palácio será o rei sucessor - acrescentou o mensageiro, retirando-se em seguida.

- Ora aí está! - exclamou Lagarto saltando da pedra ensolarada com a rapidez fantástica que era comum à sua espécie. - Bem te disse, Sapo, que é a mim que o pai quer para lhe suceder. Eu serei o próximo rei desta terra!

Sapo mergulhou dentro de água, a fim de molhar a pele, vindo ao de cima logo a seguir.

- O que te leva a fazer essa suposição, irmão? - perguntou.

- Porque sou capaz de correr muito mais depressa do que tu, com essas pernas bamboleantes e esse corpanzil gorducho - troçou Lagarto.

Dito isto, correu a enfiar-se mato adentro, de modo a preparar algumas coisas para levar consigo na viagem para o palácio real.

Sapo mirou-se na superfície do lago. Seu irmão, Lagarto, tinha razão. Ele, que era um sapo, levaria muito mais tempo a chegar ao palácio real. Lagarto estava tão determinado em ser o primeiro que nada o desviaria desse objetivo.

 Nada, exceto um pouco de chuva, refletiu Sapo.

 Sapo, como era um animal que vivia tanto na terra como na água, sabia o dobro sobre o mundo, ao contrário de Lagarto, seu irmão. O que também significava que Sapo conhecia duas vezes mais tudo o que se relacionava com magia.

Sapo, em vez de se lançar na corrida para o palácio real - a qual, à partida, sabia que perderia -, foi à procura de uma árvore chamada yatkot.

Assim que encontrou a árvore, partiu-lhe um ramo e enterrou-o num pó mágico que depois regou com água. Enquanto isso, o príncipe Sapo foi murmurando umas palavras secretas e o feitiço começou imediatamente a fazer efeito.

Primeiro caiu um pingo de água numa folha em forma de coração, que tinha ao lado... depois outro... e outro... e mais outro. Não tardou que o tamborilar da chuva a cair enchesse o ar e começasse a cheirar a terra molhada. A seguir, o céu abriu-se e começou a chover torrencialmente.

- O tempo ideal para sapos - observou Sapo alegremente, iniciando a sua jornada, aos saltos, para o palácio real.

Entretanto, Lagarto sentia-se todo orgulhoso de si mesmo. Já ia bem adiantado no seu caminho para o palácio.

- Só não percebo por que razão meu pai não anunciou, simplesmente, o meu nome como seu sucessor - disse de si para si. - Para quê propor esta corrida para decidir a sua escolha? Todos sabem que o verde e repugnante do meu irmão Sapo jamais conseguirá competir comigo... além disso, morrerá esturricado com este calor infernal.

Nesse instante, uma enorme nuvem escura tapou o Sol, e a chuva começou a cair abundantemente. Lagarto correu a abrigar-se sob uma pedra alta.

 – “Esperarei aqui até a chuva parar”, pensou. “Nesta altura do ano não durará muito e como estou muito mais adiantado do que Sapo, ele nunca será capaz de me alcançar.”

Lagarto, porém, enganava-se, pois Sapo alcançou-o e até o ultrapassou. Claro que Lagarto não percebeu do fato, porque Sapo tomara outro caminho.

 A certa altura, a chuva parou e o Sol voltou a brilhar, quente, outra vez, pois o feitiço de um ramo de yatkot enterrado no chão dura pouco.

Lagarto apressou-se a sair debaixo da sua pedra e lançou-se, de novo, ao caminho.

- Em breve chegarei ao palácio real - disse, reparando na sua imagem refletida numa poça de água. - Que rei esplêndido darei com as minhas magníficas escamas de lindas cores.

 Mais à frente, o príncipe Sapo chegara já ao portão que dava acesso ao palácio real. À esquerda, sob o sol escaldante, via-se uma fila de lagartos de cores garridas. Eram os arautos de seu irmão, prontos para saudar a chegada de Lagarto com um toque de trombetas. À direita, na sombra fresca, estava uma fila de sapos, que eram os arautos de Sapo. Não precisavam de trombetas porque eram senhores de vozes fortes e coaxantes.

 Ao verem o seu senhor, ergueram a cabeça e anunciaram sonoramente a chegada do seu príncipe e o seu triunfo como vencedor da corrida.

O velho rei aproximou-se rapidamente do portão para saudar o filho.

 - Muito bem, Sapo - elogiou. - Vejo que deves ter usado a inteligência para ganhar esta corrida, e um bom rei está sempre a precisar de recorrer a ela. Quando eu morrer, ocuparás o meu lugar com brio.

 As palavras do rei foram abafadas pelas trombetas dos arautos lagartos a anunciar a chegada do seu senhor. Lagarto entrou no palácio com ar pomposo e de cabeça erguida.

 - Viestes saudar-me, senhor meu pai? - perguntou Lagarto, com ar vagamente convencido. - Estou certo de que ireis dar uma festa especial para celebrar a minha vitória. Além disso, acho que nem valerá a pena esperarmos pelo feioso daquele meu irmão. Nesta altura ainda só deve vir...

 Lagarto não pôde continuar a falar. Olhou, pestanejou e olhou de novo. Não, os seus olhos não o enganavam. Ali, na sombra refrescante do palácio real, estava o pegajoso e feio do seu irmão saltitante. Tal só poderia ter um significado: o de que o pegajoso e feio do seu irmão saltitante o vencera na corrida, o que queria dizer que... que o príncipe Sapo um dia seria o rei Sapo.

- Ora viva - cumprimentou-o Sapo. - Por onde tens andado?

E por essa razão que, sempre que ouvires sapos a coaxar, deves preparar-te para a chuva. Significará que Sapo saiu para fora dos portões do palácio real e anda a fazer a sua magia com os ramos de yatkot... Porque sabes bem como ele aprecia o tempo úmido!

Fonte:

domingo, 13 de janeiro de 2019

Fortuna (Como deixar de fumar)


Assim que entro num táxi acendo um cigarro. Acho que é pra me desforrar de quando entro num elevador e fico a viagem toda sem fumar. Antes de tirar um cigarro estendi o maço aberto para o motorista. Ele fez que não com a cabeça e vi um cigarro no outro canto da boca.

— Não reparei que já estava fumando.

— O cigarro está apagado.

Estendi o isqueiro.

— Obrigado. Deixei de fumar.

Quase guardei o isqueiro aceso no bolso.

— Fumar cigarro apagado não prejudica a saúde — ele explicou.

— Rê rê — eu ri com toda a naturalidade. E quantos cigarros apagados o sr. fuma por dia?

— Três ou quatro. 

— Poucos, não?

— Quando eu fumava cigarro aceso eram dois três maços.

— É preciso muita força de vontade pra jogar fora um cigarro apagado.

— Isso é verdade.

— E quando é que um cigarro apagado acaba? 

— Quando molha.

— Igual um cigarro aceso.

— Não, é quando molha a ponta que tá na boca. Aí eu jogo o cigarro apagado molhado fora e pego um cigarro apagado seco.

Acendi o meu cigarro e depois é que me lembrei de perguntar:

— A fumaça não incomoda?

— Pelo contrário, até me dá vontade de experimentar dessa marca. Agora aceito um cigarro apagado dos seus.

— Cigarro apagado com filtro deve prejudicar ainda menos a saúde, não?

Ele pegou um cigarro do maço e botou na boca, sem tirar o outro. Dois cigarros apagados com filtro devem fazer menos mal ainda.

Fonte:
Reginaldo Fortuna. Acho tudo muito estranho (já o prof. Reginaldo, não).  
São Paulo: Ed. Anita Garibaldi, 1992.

Fortuna (1931 - 1994)


Reginaldo José de Azevedo Fortuna nasceu em São Luís/MA, em 1931 e faleceu em São Paulo, em 1994. 

Caricaturista e jornalista. 

Em 1947, muda-se para o Rio de Janeiro, onde inicia sua carreira publicando trabalhos nas revistas infantis Sesinho, Vida Infantil, Vida Juvenil e Tico-Tico. Usa na época o pseudônimo de Chico Forte.

Na década de 1950 realiza desenhos para a revista A Cigarra. 

Em 1957, obtém o primeiro prêmio de desenho humorístico em concurso organizado pela Copa Aeroclube de Bordighera em San Remo, na Itália.

Em 1959, desenha para a revista Senhor, em que conhece o cartunista Jaguar (1932). 

Na primeira metade da década de 1960 edita, com Ziraldo (1932), a seção de humor publicada na revista O Cruzeiro, intitulada O Centavo. 

No ano de 1964, trabalha como diretor de arte na revista Pif-Paf, dirigida por Millôr Fernandes (1923). 

Entre 1965 e 1968, edita o caderno de charges políticas O Manequinho, no jornal Correio da Manhã. 

Depois de dirigir a equipe editorial da Enciclopédia Barsa, integra, em 1969, o grupo de fundadores do jornal O Pasquim. 

No início dos anos 1970 a barra pesou e Fortuna mudou-se do Rio para São Paulo e assumiu o posto de diretor de redação da revista Cláudia, onde passou a dar conselhos às leitoras sob o pseudônimo Ana Maria. Em seguida tornou-se editor de arte e capista da Veja, onde ficou até 1975.

Em 1975, edita pela Codecri a revista O Bicho, em suas páginas, Fortuna lançou o quadrinho mais surreal já produzido por aqui, “Madame e seu bicho muito louco”, onde uma matrona histérica contracenava com o absurdo cachorro de bigodes em diálogos do mais puro nonsense. O Bicho teria vida curta. Muda-se para São Paulo, onde dois anos depois trabalha com Tarso de Castro (1941 - 1991), no suplemento Folhetim, publicado pelo jornal Folha de S.Paulo. 

Ainda sob a direção de Tarso de Castro, trabalha no semanário Enfim (1979) e na revista Careta (1980). 

Em 1988, torna-se diretor de arte no jornal Softpress, onde permanece até 1990. 

Como escritor, publica os livros Hay Gobierno! (1968); Aberto para Balanço (1980), em que apresenta uma seleção de seus trabalhos no jornal Correio da Manhã; Diz, Logotipo (1990); e Acho Tudo muito Estranho (Já o Prof. Reginaldo, Não), em 1992. 

Para o estudioso Herman Lima, na maior parte de seus trabalhos e como acontece com os desenhos dos humoristas brasileiros atuais, Fortuna não utiliza legendas, deixando que a imagem expresse seu conteúdo. Em suas composições ocorre um humor espontâneo, marcado também por um pouco de sarcasmo. Lima ressalta o fato de que o artista não ficava antecipadamente elaborando seus desenhos, gostava de criá-los de improviso, quase no momento do fechamento da matéria no jornal.

Para o jornalista e cartunista Gilberto Maringoni, o desenho de Fortuna mantém diálogo com o trabalho da geração de cartunistas europeus surgidos na esteira do pós-guerra, como Saul Steinberg (1914 - 1999),  Jean Jacques Sempé (1932) e André François (1915). Para Maringoni, o rompimento com a caricatura clássica, quase acadêmica, e a aproximação do desenho de humor com as artes plásticas seduziu os humoristas brasileiros dessa geração, como, por exemplo, além de Fortuna, Millôr Fernandes, Ziraldo, Jaguar, Claudius (1937) e Borjalo (1925-2004).

Reginaldo José de Azevedo Fortuna morreu aos 63 anos de um fulminante ataque cardíaco, em 5 de setembro de 1994, em São Paulo.

No 22º. Salão de Humor de Piracicaba, realizado em 1995, foi criada e concedida a Medalha "Reginaldo Fortuna" aos maiores destaques do humor da cultura do país, entre eles os cartunistas Jaguar, Claudius, Ziraldo e Millôr Fernandes; o palhaço Arrelia e a comediante Dercy Gonçalves.

Fontes:

Vinicius de Moraes (Apelidos)


O gênio do apelido é virtude brasileira, diria quase carioca. Não conheço, em outros povos, uma tal espontaneidade na caracterização de tipos através de apelidos. Aqui no Rio, então, se o sujeito não tiver sido muito bem-feitinho, a régua e compasso, dificilmente o seu defeito ou modo peculiar de ser passará despercebido ao olho do carioca. Aliás, também não adianta muita perfeição, haja vista o excesso de linha daquele indivíduo sempre ultra-engomado, que lhe valeu para sempre o apelido de Carretel. 

Há entre nós homens e mulheres com apelidos absolutamente notáveis. Não vou, é claro, revelar a identidade de seus portadores, muitos dos quais não conheço, porque em geral apelidos desse gênero obedecem a uma crítica um tanto cruel, a uma caricatura em palavras de defeitos ou peculiaridades. Chamar gente de nariz chato de Nariz na Vidraça pode ser muito engraçado, mas não para o possuidor do dito, seus parentes e amigos mais íntimos. Aquele rapaz, por exemplo, que cresceu demais e ficou lá em cima, com um rosto garbo e infantil, é para todos os efeitos Menino Desce do Muro. Apelido cruel, convenhamos. Aliás, para caracterizar homens altos com um certo ar oligofrênico, há outros apelidos bastante bons: Espanador da Lua, Jóquei de Elefante, Água-Furtada. Sujeito alto, de pescoço comprido, já se sabe: é Garrafa. Há um homem magro, moreno e triste, conhecido meu, que tem o apelido de Pavio. Um outro, esquelético e muito louro, de Batata Palha. Este provavelmente não gostaria de ser identificado. 

Minha amiga Danusa Leão não liga a mínima (até gosta!) que a chamem Girafinha, devido ao seu lindo pescocinho espichado. E está certo, o apelido é terno. Mas coisa diferente é ser apelidado Bagaço de Cana ou Unha Encravada, como aconteceu com dois homens públicos, notórios no Brasil pela sua feiura. Ou 1001, pela falta de dois dentes na frente, ou Ovos Nevados, por causa de manchas brancas na pele. Ou Azeitona Triste, devido a uma fisionomia verdoenga, coroada por uma melancólica careca; ou Puxa a Válvula, violento apelido para um homem sujo e de mau hálito, de quem eu fujo como da peste. 

Gente chata, essa tem apelidos que se vão tornando clássicos: Bolha, Pereba, Calo, Ferrinho de Dentista, Pingo D'água, Sapato Apertado, Valha-me Deus. Pode-se apontá-los na via pública; como também àquela vulcânica moça a quem apelidaram Estragalares e aquela grande fã de escritores e jornalistas, que ficou conhecida como Gruta da Imprensa; e mais aquela jovem leviana que, por muito pegada, tomou a pecha de Maçaneta; e ainda aquelas outras duas bem vulgares, vampes, que passaram a ser Minhoca de Lajedo e Que Modos São Esses. 

Houve um tempo em que havia aqui no Rio três lindas Elzas, excelentes moças, grandes amigas de nosso grupo. A uma, por excesso de "bondade", o carioca Lúcio Rangel apelidou de Elza Pudim Carnal; e o cronista Rubem Braga, que é de Cachoeiro de Itapemirim, mas também um bom carioca, chamou às outras duas, Elza Quisera Eu e Elza Simpatia é Quase Amor. A caracterização, como se vê, nada fica a dever à biotipologia.

Chamar moça gostosa, de andar trançado, de Tico-Tico no Fubá não é nada mau. Como também me parece um achado o apelido de Festa na Cumeeira, dado aos rapazes de Copacabana, da geração coca-cola, pelo topete que usam na cabeleira. A propósito de penteados, há outros bons como Rabo de Peixe, para negrinhas de cabelos esticados a ferro, ou Rompe-Fronha, para quem tem cabelo cortado rente e espetado.

Gente pernóstica tem merecido, também, apelidos, mais que justos, como aquele crioulo de linguagem rebuscadíssima, a quem chamaram Noite Ilustrada; ou aquele branco do mesmo teor, que ficou conhecido Bolas de Ouro. 

Ninguém escapa nesta desvairada metrópole. Capenga pode eventualmente ser chamado Pneu Furado ou Pé no Visgo. Gente de pele escalavrada, Cocada Preta; mentirosos, Palavra de Honra; pessoas com crânios e orelhas de abano, Feijoada Completa; homens corpulentos e balofos, Bolo Fofo; homossexuais muito altos, Jaca (porque é fruta grande). Sujeitos ricos e pequenininhos, Banana Ouro; carecas totais, Ponto de Referência. Elegantes desses que usam berloques de ouro e relógios-pulseira, alfinete ou pregador de gravata e anel no minguinho, Árvore de Natal. Tipos albinos, ou muito ruivos, Tijolo ou Pinga-Fogo. 

Há um amigo meu a quem apelidaram Mal Necessário. Um bom sujeito. Há um outro, que um dia, nu, foi se olhar no espelho sobre uma penteadeira, que tinha uma gaveta aberta e perdeu o equilíbrio (contam seus amigos que o berro que deu foi tremendo!), a quem só chamam de Gaveta. 

Como se vê, tudo é pretexto para um bom apelido.

Fonte:
Vinicius de Moraes. Para uma menina com uma flor. 
Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1966.

sábado, 12 de janeiro de 2019

Cego Aderaldo (Cantorias)



Relata o Cego Aderaldo:

"Em Belém do Pará eu conheci muitos cantadores. Mas o mais afamado, que emendou a camisa comigo, foi o índio Azuplim. Nossa batida foi a que se segue..."

Eu saí do Ceará
Deixei meu triste mocambo,
Com medo do dezenove,
Este pesadelo bambo.
Vinha o coronel Monturo
Junto com doutor Molambo...

A dona fome na frente,
Na cadeira do trapiche,
Dizendo: No Ceará
Tudo é fofo e nada é fixe.
Juro que aqui nesta terra
Não vinga mais nem maxixe...

A dona Fome me olhou
E disse a mim: — Eu pego!
Eu disse: — Não senhora!
Eu sei por onde navego,
Quem tem vista corre logo,
Quanto mais eu sendo cego...

Segui para Fortaleza,
Dei uma viagem além.
O barco era o "Maranhão",
E até corria bem,
Com três dias e três noites
Chegando nós em Belém...

Quando eu cheguei em Belém,
Me encostei naquele cais.
— Aonde vai esta linha?
Eu perguntei a um rapaz
Ele disse: — Nesta linha
Passa um trem para São Brás...

Eu parti para São Brás,
Para casa de Gaudêncio
Que já conhecia bem,
Ele, Salina e Merêncio;
Junto estes amigos
Não pude guardar silêncio...

Fui para Madre de Deus,
Terra de um povo fiel,
Ali ganhei qualquer cousa
Tomei açaí com mel,
De manhã peguei o trem,
Fui para Santa Isabel...

Depois fui para Americana,
Cantei lá no Apéu,
Do sitio de São Luís
Eu fui pra Jambuaçu;
Eu cantei no Castanhal,
E no Igarapeaçu...

No primeiro Caripi
Eu cantei, lá fui feliz,
No segundo Caripi
Cantei tudo quanto quis,
E ali tomei o trem,
Fui cantar em São Luís....

Ali chegou um convite,
Eu para Muricizeira,
Depois, cantei no Burrinho
Cantei no Açaí Teuã...
Fui cantar no Timboteuã...

Segui para Capanema
Com coragem e esperança.
Passei uns dois ou três dias
E segui para Bragança,
Dizendo sempre comigo:
— Quem espera em Deus não cansa...

Quando eu cheguei em Bragança,
Não quis ir no Benjamim,
Não encontrando hospedagem,
Me hospedei num botequim,
Que era coberto e cavaco
E circulado a capim...

O dono do botequim
Veio a mim e perguntou:
— Cego de onde tu és?
Me diga se é cantador.
Me diga se não tem medo
De Azuplim trovador...

Me perguntei: — Não senhor!
Será algum rio-grandense
Ou mesmo um paraibano,
Ou um cantador cearense?
Ele disse: — Não senhor,
É um cantor paraense...

Quando findei a palavra
Vi o paraense chegar,
Ele trazia consigo
Uma viola e um ganzá,
E trazia um tamborim,
Que é instrumento de lá...

Ele afinou a viola,
Quando bateu no ganzá,
Deu um tom no tamborim
Para o baião entoar,
Eu tirei a rabequinha
E fiz a prima chorá...

Cego -
— Eu lhe disse: — Oh! Paraense,
És uma ninfa de fada,
Teu cântico me parece
A deusa da madrugada.
Eu lhe peço, amicíssimo,
Que cante a sua toada...

Azuplim - 
— Cego, minha toada é,
Um trabalhador garantido.
Você pra cantar mais eu
Precisa ser aprendido,
Queira Deus tu me acompanhe, ai ai!
Pra cantar nesse gemido...

Cego -
Meu amigo, o teu gemido,
Tem destacado valor,
Canta bem perfeitamente,
Já vi que é bom cantador,
Mas amigo, esse gemido,
Me desculpe, que eu não dou...

Azuplim — 
Se num dás um só gemido
Também não és cantador,
Vá cobrar logo o dinheiro.
Do mestre que lhe ensinou, ai, ai!
O cego já apanhou...

Cego — 
Se gemer foi cantoria,
Você é bom cantador,
Pois gemes perfeitamente,
No gemido tem valor,
Mas geme com grande dor...

Azuplim — 
Ou que gema ou que não gema,
A boa palavra encerra,
Cego, cante aqui mais eu,
Que eu vim lhe fazer guerra,
Quero que você me diga, 
ai, ai!
A linguagem da minha terra...

Cego — 
A linguagem da tua terra,
Não é linguagem mesquinha,
É toda no guarani
Estudada, é bonitinha!
Para que não perguntaste
A linguagem da terra minha?...

Azuplim — 
Eu quero é que diga da minha
Por que muda de figura:
Cego, diga para mim
O que nós chama mucura,
Quero que você me diga, ai, ai!
O que é saracura...

Cego — 
É verdade, essa linguagem
Muda mesmo de figura,
O que nós chama casaco
Vocês só chamam mucura
E o que nós chama sericóia
Vocês chamam saracura...

Azuplim — 
Cego, diga para mim:
O que é jamaru?
Queira Deus você me diga
O que é jacuraru,
O que é macuracar ai, ai!
O que nós chama jambu...

Cego — 
É o que nós chama cabeça,
Vocês chama jamaru,
O que nós chama tejo,
Vocês chama jacuraru,
Tipi é mucuracar,
E agrião chamam jambu...

Azuplim — 
Cego, diga para mim
O que nós chama jibóia,
Quero que você me diga
O que é tiranabóia,
Diga aí pra eu saber, ai, ai!
O que é "pegando a bóia"...

Cego — 
No Piauí tem um besouro
De nome tiranabóia,
Nossa cobra-de-veado
Cresce aqui, chamam jibóia,
Em minha terra almoço e janto,
... tanto aqui só "pego a bóia"...

Azuplim — 
Cego, diga para mim
O que é a sacupema,
Veja se você me diz
O que é piracema,
Diga aí rapidamente, ai, ai!
O que nós chama panema...

Cego — 
O que nós chama raiz
Vocês chama sacupema,
O que nós chama peixe muito
Vocês chamam piracema;
A um sujeito preguiçoso
Chega aqui chamam panema...

Azuplim — 
Cego, diga para mim
A língua dos Tupinambá,
A língua dos Aimoré,
Ou dos índios Caetá,
Ou sobre os índios Tamoios
Ou índios Tamaracá...

Cego — 
Sobre as gírias dos índios,
Desde o Norte até o Sul,
Pixueira é coisa fria,
Um beijo chama meiru,
Tacioca é uma casa,
Morada de caititu...

Azuplim — 
Agora o cego Aderaldo
Me respondeu muito bem,
Vi que gírias dos índios,
Ele segue mais além,
Pelo jeito que estou vendo
Você é índio também...

Cego — 
Meu amigo eu não sou índio,
Nasci num pobre lugar:
Que é tão propenso a seca
Que obriga a gente emigra
Sol danado de Iracema,
Terra de Zé de Alencar...

Azuplim — 
Cego, deixa de mentira,
Tua terra não tem nome,
Tua terra é uma miséria,
É lugar que não se come,
De lá veio cinco mil,
Tudo pra morrer de fome...

Cego — 
Dos cinco mil que vieram
Algum era meu parente,
Um era tio, outro primo,
Conterrâneo e aderente,
Mais esse povo só come
Massa de figo de gente...

Azuplim — 
Saí daí, cego canalha,
Com a sua poesia,
Nesta minha carretilha
Você hoje se esbandalha,
Teu cântico tem grande falha,
Quer cantar mais não convém...
Você somente o que tem
É entrar no bacalhau;
Apanhar de peia e pau
Cearense aqui não vai bem...

Cego — 
De onde tu vens contrafeito,
Cabeça de onça mancho,
Bote o matulão abaixo
E conte a história direito,
Me diga o que aqui tem feito
Por estes mundos além,
Se você matou alguém
Ou então se fez barulho,
Vai muito mau seu embrulho,
Paraense aqui não vai bem...

Azuplim — 
Quando eu pego um cantador
Dou três tacada danada,
Lhe deixo a cara inchada
De relho e chiquerador,
É o café que lhe dou,
É isto que lhe dou,
E não diz nada a ninguém,
Apanha e fica calado,
Triste e desmoralizado
Cearense aqui não vai bem...

Cego — 
Disse uma velha na rua
Que em outros tempos atrás
Você e um seu rapaz
Lhe roubaram uma perua;
Veja que moda esta sua
Roubando quem vai, quem vem,
Como tu não tem ninguém
Mais ladrão do que você.
Tome lá meu parecer:
Paraense aqui não vai bem...

Azuplim — 
O cantador que eu pegar
Pelo meio da travessa
Nem Padre lhe confessa
Enquanto eu não lhe soltar,
Dou-lhe arrocho de lhe quebra,
Osso e costela também,
Quebro tudo que ele tem,
Deixo-lhe o corpo em bagaço,
Tudo quanto eu digo eu faço,
Cearense aqui não vai bem...

Cego — 
Até as moças donzelas
Pediram aos cabras da feira
Para meter-lhe a madeira
E arrebentar-lhe as costelas.
Você abra o olho com elas,
Boa surra você tem,
Neste dia também vem
A velhinha da perua
Quebrar-lhe a cara na rua,
Paraense aqui não vai bem...

Azuplim — 
Também não quero brigar,
Não sou homem de intriga,
Eu não nasci para briga
E não vivo de pelejar;
Também não quero teimar
Porque isso não convém,
Lhe venero e quero bem,
Digo isso pode crer;
Não quero lhe aborrecer,
Cearense aqui vai bem...

Cego — 
Amigo, como mudou,
Que coisa misteriosa!
Tens o perfume da rosa
Que há pouco desabrochou.
Por isso tem o maior verdor
Do que lá no bosque tem.

O anjo lá de Belém
Ouviu nossa cantoria,
Entrarmos em harmonia,
Paraense aqui vai bem...
Havia quatro cervejas
Que um coronel apostou
Dizendo que todas quatro
Pertencem ao vendedor
Nós dois bebemos as cervejas
Nem um nem outro apanhou...

(Estado do Pará, junho de 1919)