terça-feira, 26 de março de 2019

Vivaldo Terres (Poemas Escolhidos) VIII


ALMA ILUDIDA

Como é bela a juventude,
Nos áureos tempos da vida.
Enche-nos de esperanças,
E nos deixa a alma iludida.

Pensando que essa alegria,
E plena felicidade...
Seguira por toda vida,
Sem tristeza e sem saudade.

Pobres jovens desconhecem.
O transcorrer da existência,
Depois de muita alegria.

Dos amores do passado,
Vem-nos a melancolia...
A angústia e o desagrado.

Ah! Se a vida nos fosse sempre,
O fulgor da juventude.
De alegria e felicidade,
Sem tristeza e sem saudade.

AO VÊ-LA MENINA

Ao vê-la menina naquele salão,
Cantando e dançando, fiquei comovido,
Lembrando-me de alguém que há tempos já era esquecido

Lembrei-me daquela que faz muito tempo,
Garota imponente e determinada,
Que enciumada ficou quase louca,
Gritando zangada entre nós não existe mais nada.

Simplesmente porque alguém desumano,
Na certa um tirano, invejoso também,
Por não ser amado o pobre diabo,
Inventou uma calúnia
Para que entre nós tudo fosse terminado,
E por ela eu não fosse amado.

Eu esqueci que era calúnia
E se ela me amasse em mim teria acreditado,
Pois eu não tinha motivo nenhum para traí-la
E tinha certeza que se isso o fizesse!
Ela jamais voltaria a amar-me

Mas em mim não acreditou!
Somente chorou lágrimas sentidas...
Indo embora como eu também.
Destruindo um amor, destruindo duas vidas.

CHEIA DE ILUSÕES

Quando ela passa vaidosa,
 Mostrando o seu charme cheia de ilusões.
Pensando que a vida lhe será sempre cheia,
De muitas alegrias...
E sem decepções.

Não olha pros lados só olha pra frente...
Digitando no celular.
Mandando mensagens ou recebendo-as,
E às vezes cheia de satisfação.
Um belo sorriso dos seus lindos lábios sai,
Para ela mesma encantar.

Que dias felizes que momentos divinos,
Como seria bom se assim continuassem.
Mas infelizmente não é sempre assim,
Cheia de encantos e satisfações.
Quando menos se espera,
Vêm as adversidades...
Ferindo-nos almas e corações.

POR QUE DIZES NÃO ME AMAR?

Não sei por que dizes não me amar?
Se todo mundo vê esta verdade,
Quando passas por mim...
Teus olhos exprimem,
Um misto de amor e lealdade.

Por que não declarar de uma vez!
Este amor que trazes na alma,
E no peito entrincheirado.
Por que não dizer eu te amo,
Até porque amar não é pecado!

Como seria maravilhoso se um dia,
Esta verdade fosse por ti declarada...
Então seriamos felizes, pois tenho certeza.
Desde quando cruzamos nossos olhos!
Tu sabes que por mim és amada.

QUE DATA MARAVILHOSA

Que noite bela e serena!
O céu coberto de estrelas...
A lua se desfazia em amor,
Com todo seu esplendor.

E tu estavas tão bela num elegante vestido
E ao te ver sorrindo...
Encantado ainda estou!

Como foi bela essa noite...
Em que nós nos conhecemos
Pois ao te conhecer...
Eu aprendi a sonhar!
Pensava que no meu peito
Coração não existia!
E que nunca em minha vida.
Iria me apaixonar!

Hoje em dia estou preso!
Nas correntes dos teus braços.
Prefiro que esta pena...
Eu nunca possa pagar!

Não contrato advogado.
Pra me livrar da prisão...
Pois diz o meu coração.
Que devo continuar!

TE AMO

Tu és uma mulher meiga e bonita,
Teus carinhos são tão grandes como a tua calma,
Às vezes quando não estas contente...
É porque motivos outros te feriram a alma.

Alma tão boa de bondade eterna,
Bondade esta que a todos encanta,
Te amo tanto, que quero que um dia,
Tu sejas minha, muito minha, oh Santa.

Vives no mundo com objetivo...
De acabar com a senda da maldade,
Nascestes mesmo para praticar o amor,
Para mostrar a tua dignidade.

És para todos nós que te rodeiam.
O anjo bom, a fada da bondade,
Isto porque em toda tua vida,
O que mais fizestes foi à caridade.

Fonte: O Autor

Carolina Ramos (“Colégio São José” de Santos – 95 Anos)


Quem passa pela av. Ana Costa, frente ao “Colégio São José”, sabe que seus olhos contemplam um cofre sagrado que guarda augustas recordações. Sabe, também, que, pelos portões daquele prédio, que ocupa quase um quarteirão, já passaram várias gerações de santistas, em busca do tesouro do saber, resguardado por detrás daqueles nobres muros.

Dezenove de março de 1924, Dia de São José! Nesse mesmo lindo dia, nascemos - tu,  meu querido Colégio  e  quem emocionada escreve estas  linhas.

Vai longe o tempo em que, saia azul marinho e blusa branca, atravessei por longos e felizes anos teus corredores, na procura  inconsciente de um dia chegar a ser  gente. O percurso estendeu-se do Jardim da Infância à Escola Normal, sem esquecer, entre eles, o Secretariado.  Ambos crescemos, caro Colégio, ao embalo do Hino Nacional que Nina Mazagão nos ensinou a cantar -  cartilha do amor à Pátria!

Quanta saudade daquele tempo bom, distante sonho... da querida Irmã Margarida,  doce “ma mère”, a Superiora. De Irmã Filomena, tão amiga e de Irmã Virgínia, sempre austera na iniciação da língua francesa, enquanto o sorriso de Irmã Edith captava simpatias para o idioma inglês.

Como não lembrar Zulmira Campos? Ao comando do idioma pátrio, tão brava quanto eficiente, fez tremer de susto àquela aluna tímida, que, aos 11 anos de idade, recebeu de volta o seu primeiro trabalho de redação, “A morte do sabiá”, devolvido à autora (que  se derramara  poeticamente), com nota  insignificante e a reprimenda:- “ Isto foi feito com a mão do gato! Uma criança não escreve assim! Nunca mais faça uma coisa dessas!”-  O que levou a apavorada aluna a, infantilmente, anular-se  até o final do curso, a escrever frases secas e curtas, para que ninguém duvidasse da sua autoria. E, quem diria! – a mesma mestra, posteriormente, iria incentivar bastante a poesia daquela ex-aluna, sem saber que a sua reprimenda inicial fora na verdade não só um grande elogio, mas, também, o primeiro prêmio de literatura que ela recebera!

Minhas filhas  passaram por essa grande mestra e têm certeza do quanto devemos ao rigorismo de Zulmira Campos! E, também, à simpatia dos professores, João Papa Sobrinho (Física), Isolino (Química), Marieta Garcia (História da Civilização) sempre assídua às festinhas de ex-alunas.

E quanto poderia ser dito sobre o querido Prof. Domingos Aulicino, hoje nome de Praça, paraninfo da turma de 1940, quase extinta. Distinção em pessoa, nosso professor de Latim apenas errou ao afirmar: - “O mundo só tomará jeito quando for governado por mãos ternas de uma mulher”. Prof. Aulicino não chegou aos tempos atuais, quando a realidade o desdiria.

Luiz Carranca substituiu Zulmira Lambert, no ensino da temível Matemática, área em que esta ex-aluna era redondo zero à esquerda! E ele bem conhecia as alergias das alunas à matéria da qual era mestre! Era também crítico literário de A Tribuna, e, dele, guardo duas cartas nas quais comenta meus livros de contos e poesias, com palavras que sempre me emocionam.

Do Curso Normal, saltam os nomes de Irmã Maria Imaculada (Psicologia), tão fina e amiga e de Zeny Goulart, primeira vereadora de Santos, (Fisiologia e Sociologia). Tive o prazer de entronizar seu nome como Patrona de uma Cadeira no IHGS.

Benditos mestres! Nem todos citados, mas todos sempre muito queridos! – Saudades, no coração de cada aluna. Crescemos juntos, querido “Colégio São José”.

Eu partirei... mas, tu, sempre jovem, hás de seguir de pé - marco honroso e indelével do ensino santista! Cercado sempre  de muito amor, provarás o que, feliz, afirmei na letra do teu  Hino: -“Jamais teu nome há de ser esquecido/ pois quem te ama há de sempre te amar! “

Fonte: A autora

segunda-feira, 25 de março de 2019

Raul Poli (1946 - 2004)


A coragem é virtude

que enobrece o coração,

e mais atinge amplitude,

ao defender-se um irmão.



A façanha mais bonita

que alguém pode realizar,

é alegrar-se na desdita,

e sem pedir, ofertar.



Ancião, por que tens no olhar

dor profunda, sem igual?

- Só estou saudoso a lembrar

dos meus tempos de Natal…



A vida que nós amamos,

não passa de uma ilusão,

pois nela nos encontramos,

envoltos na escuridão.



A vida sempre a passar

arrasta todos com ela,

despeja prata o luar,

banha o beiral da janela.



Era pequeno e custava

pôr-me de pé a caminhar,

só percebi quando estava

aos pés da cruz a rezar...



Escritor sem dicionário

não atinge a perfeição.

Qual caneta é necessário,

igual os dedos da mão.



Estrela rica e brilhante

explode, dentro de mim,

como se fosse um diamante

com mescla de carmesim.



Eu sinto a vida enfadada

e tão inúteis meus dias...

– Não precisas fazer nada,

basta apenas que sorrias...



Eu tenho a chave da vida

que fecha a porta da dor.

Cura males e a ferida,

a excelsa chave do amor.



Fulge a lua prateada,

é pura voz da razão,

ouvir-se a boca fechada,

é o cantar do coração.



Lá nas paragens do Além,

no renascer verdadeiro,

a flauta doce do Bem,

há de soar por inteiro.



Lutava tanto por fama

que veio a tê-la de fato.

Por sossego agora clama,

busca refúgio no mato.



Na clara noite estrelada,

só valem letras escritas,

na campina ensolarada,

pedras também são bonitas.



Não preciso e não careço

ir ao encontro de um jardim

pois o mais belo adereço

se encontra dentro de mim.



Nesse mundo degradante

o decente perde espaço.

Rotulado a todo instante

com o timbre de palhaço...



No plano em que nós vivemos,

estamos mortos, ao certo,

por isso é que apenas vemos

dores e angústias por perto.



No rico pampa gaúcho

sento num toco no chão

mas sou um monarca de luxo

quando eu sorvo o chimarrão.



Olho pro céu, me parece

a cor de lá esmorecer,

talvez estrelas em prece

pela ventura de ver.



O que chamamos de morte,

e tanto nos faz chorar,

na verdade é a grande sorte,

glorioso retorno ao Lar.



Os rudes nossos avós

que eram sábios também,

legaram ditos pra nós

vermos das brumas além.



Quando o trabalho me cansa

ao chegar o fim do dia,

a minh’alma então descansa

nos acordes da poesia.



Quem não puder entender,

não se importe co’a demora.

O mais prudente é saber:

pra tudo há tempo e hora...



Quero-quero, sentinela,

no meio da noite grita,

espalhando que é por ela

que minha alma anda proscrita...



Sala nobre e iluminada,

partiu-se a mais fina taça,

tradição longa quebrada,

resta diamante com jaça.



Se me persegue um ladrão,

busco do guarda a perícia.

Agora, pergunto, então:

– Quem me salva da polícia?



Tangem, solenes, os sinos,

um monge canta, distante.

Na sinfonia dos dois hinos,

faço uma prece, exultante.



Todo mundo arruma um jeito

de eleger sua mãe, rainha.

Mas no reino do meu peito,

tenho um trono só pra minha.



Tudo tem igual valor,

no meu tranco de solteiro:

– Caso com o último amor,

mas lembrando do primeiro...



Um brilho fraco e distante,

do mais suave fulgor,

me acena muito lá adiante

pois era a estrela do amor.



Vamos fazer o correto,

de nossa vida um resumo:

tu serás meu objeto,

eu serei o teu consumo...



Vida, suprema magia,

hino de canto e louvor,

é luz que vibra e irradia

a plenitude do amor.
 ___________________________________
Raul Poli nasceu no município de Coronel Pilar/RS, no ano de 1946. Coronel Pilar se tornou independente em 2001, e os coronelpilarenses se orgulham e veem em Raul Poli, mais que um filho, um expoente literário.

Deixou sua terra, ainda jovem, transferindo-se para Caxias do Sul,  onde ingressou na UCS, Universidade de Caxias do Sul, no curso de Bacharelado em Direito.

Além de sua profícua atuação profissional, de forma incondicional, contribuiu na difusão e elevação da Trova Literária, em todos os segmentos sociais.

Ainda que meteórica, também deixou suas marcas inscritas nas páginas da Academia Caxiense de Letras-RS, aonde ocupou a cadeira 23, cuja antecessora fora, coincidentemente, a primeira presidente da UBT, seção local, Eloy Maria de Oliveira Fardo.

Raul Poli faleceu no dia 21 de dezembro de 2004, numa terça-feira, no Pio Sodalício Damas de Caridade, Hospital Pompeia, de Caxias do Sul e o sepultamento ocorreu na sua própria cidade natal.

Procuramos resgatar dos anais trovadorescos, parte de um vasto legado do homenageado, num átimo de júbilo e reconhecimento do seu notório talento linguístico e poético a ressoar no universo literário, pelos séculos sem fim.

Raul Poli é autor das obras literárias, Cristal Cósmico, editada em 1997, Alquimia da Vida, editada em 2000, e Dança dos Girassóis, editada em 2003, formando assim uma trilogia, todas através da Gráfica da Universidade de Caxias do Sul.

O insigne autor também foi condecorado com várias premiações em diversos concursos literários, além de integrar inúmeras antologias, como o foi em “A Trova Literária em Caxias do Sul – II”, e tantas outras.

Raul Poli se caracterizou por sua disponibilidade em atuar, incentivando a arte literária, ainda que por vezes, não teve seu trabalho devidamente valorizado.

Muito estudioso e pesquisador, possuía dois trabalhos literários em vias de conclusão. Num deles abordava, em detalhes, o tradicional Chimarrão. Desde o plantio da erva-mate, até o desfolhamento e transformação em pó para o consumo. Além da secagem, moagem e envasamento, as regras básicas que norteiam o preparo do chimarrão, bebida tipicamente gaúcha.

A outra obra versava sobre Pedras Preciosas (ou semipreciosas). Da sua extração na natureza, sua constituição, sua coloração e suas formas até a sua prospecção no solo , a classificação e lapidação. Conforme o autor, uma verdadeira obra didática, de inquestionável valor.

Infelizmente, o próprio autor, quiçá por mera insatisfação, ausência de apoio ou de estímulo a editá-las, simplesmente destruiu-as. Não pactuava com a mediocridade humana. Quanto mais rente à perfeição mais preenchia as lacunas deixadas pelo decurso da história. Seu pensamento percorria os mais diversos meandros do comportamento humano.

Num estilo próprio e peculiar, suas descrições literárias refletiam a realidade de forma sutil e descomplicada. Acessível na abordagem e profundo em suas essências. Percorria com fluidez as veredas cósmicas e sem alunissar redarguia com altivez aos questionamentos antropológicos, ecleticamente destronados à luz de estereótipos hodiernos. Sondava o infinito dos entes, na amplitude da perenidade, sem se distanciar da finitude da peregrina humanidade. Raul Poli fez da Alquimia da Vida, à sombra do cotidiano, num exuberante palco de valores humanos, um vasto canteiro florido a aspergir suas essências em forma de aromas na dialética existencial.

Mas, foi na Dança dos Girassóis e à cítara do congraçamento, que lapidara, com afinco e determinação em suas noites enluaradas, o mais excelso Cristal Cósmico, baluarte indeclinável dos anseios, projetos e aspirações.


Fonte:
União Brasileira de Trovadores Porto Alegre - RS. Trovas. Luiz Damo e Raul Poli. Coleção Terra e Céu vol. XXXV. Cachoeirinha/RS: Texto Certo, 2016.

Ariano Suassuna (A Morte do Touro Mão de Pau)


"Ariano Suassuna escreveu esse poema em memória de seu pai, assassinado em 1930"

Corre a Serra Joana Gomes
galope desesperado:
um touro se defendendo,
homens querendo humilhá-lo,
um touro com sua vida,
os homens em seus cavalos.

Cortava o gume das pedras
um bramido angustiado,
se quebrava nas catingas
um galope surdo e pardo
e os cascos pretos soavam
nas pedras de fogo alado,
enquanto o clarim da morte,
ao vento seco e queimado,
na poeira avermelhada
envolvia os velhos cardos.

Rasgavam a serra bruta
aboios mal arquejados
e, nas trilhas já cobertas
pelo pó quente e dourado,
um gemido de desgraça,
um gemido angustiado:

- "Adeus, Lagoa dos Velhos!
adeus, vazante do gado!
adeus, Serra Joana Gomes
e cacimba do Salgado!
O touro só tem a vida:
os homens têm seus cavalos"!

O galopar recrescia:
brilhavam ferrões farpados
e algemas de baraúna
para o touro preparados.
Seu Sabino tinha dito:
- "Ele há de vir amarrado"!

Miguel e Antônio Rodrigues,
de guarda-peito e encourados,
na frente do grupo vinham,
montados em seus cavalos
de pernas finas, ligeiras,
ambos de prata arreados.
E, logo à frente, corria
o grande touro marcado,
manquejando sangue limpo
nos caminhos mal rasgados,
cortadas as bravas ancas
por ferrões ensanguentados.

A Serra se despenhava
nas asas de seus penhascos
e a respiração fogosa
dos dois fogosos cavalos
já requeimava, de perto,
as ancas do manco macho
quando ele, vendo a desonra,
tentando subjugá-lo,
mancando da mão preada
subiu num rochedo pardo:

Num grito, todos pararam,
pelo horror paralisados,
pois sempre, ao rebanho, espanta
que um touro do nosso gado
às teias da fama-negra
prefira o gume do fado.
E mal seus perseguidores
esbarravam seus cavalos,
viram o manco selvagem
saltar do rochedo pardo:

-"Adeus, Lagoa dos Velhos!
Adeus, vazante do gado!
Adeus, Serra Joana Gomes
e cacimba do Salgado!
Assim vai-se o touro manco,
morto mas não desonrado"!

Silêncio. A Serra calou-se
no poente ensanguentado.
Calou-se a voz dos aboios,
cessou o troar dos cascos.
E agora, só, no silêncio
deste sertão assombrado,
o touro sem sua vida,
os homens em seus cavalos.

Arthur de Azevedo (A Ritinha)


 Naquela noite o Flores entrou em casa oprimido por um sentimento penoso, que não podia definir.

Tinham-lhe dito que estava no Rio de Janeiro a Ritinha, aquela interessante menina que há trinta anos, lá na província, fora o seu primeiro amor e a sua primeira mágoa.

Andou morto por vê-la, não que lhe restasse no coração nem no espírito outra coisa senão a saudade que todos nós sentimos da infância e da adolescência, - queria vê-la por mera curiosidade.

Satisfizera o seu desejo naquela noite, quando menos o esperava, num teatro. Ela ocupava quase um camarote inteiro com a sua corpulência descomunal.

Mostrou-lha um comprovinciano e amigo:

- Não querias ver a Ritinha? Olha! Ali a tens!

- Onde?

- Naquele camarote.

- Quê! aquela velha gorda?...

- É a Ritinha!

- Virgem Nossa Senhora! - E aquele homem de óculos azuis, que está de pé, no fundo do camarote? É o marido!

- Qual marido! É o genro, casado com a filha, aquela outra senhora muito magra que está ao lado dela. O marido é o velhote que está quase escondido por trás do enorme corpanzil da tua ex-namorada.

O Flores, estupefato, contemplou e analisou longamente aquela mulher, que fora o seu primeiro amor e a sua primeira mágoa.

Não podia haver dúvida: era ela. O olhar tinha ainda coisa do olhar de outrora. Com aqueles destroços ele foi reconstituindo mentalmente, peça por peça, a estátua antiga. Tinha a visão exata do passado.

Representava-se uma comédia. Ritinha ria-se de tudo, de todas as frases, de todos os gestos, de todas as jogralices dos atores com uma complacência, de espectadora mal-educada e por isso mesmo pouco exigente.

Aquelas banhas flácidas, agitadas pelo riso, tremiam convulsivamente dentro da seda do vestido, manchado pelo suor dos sovacos.

O genro, que se conservava sério e imperturbável, lançava-lhe uns olhos repreensivos e inquietos através dos óculos azuis. Ela não dava por isso.

- Que diabo vieram eles fazer ao Rio de Janeiro? perguntou o Flores.

- Nada... apenas passear.. . estão de passagem para a Europa.

E aí está por que o Flores entrou em casa oprimido por um sentimento que não sabia definir.

Quando ele se espichou na cama estreita de solteirão, e abriu o livro que o esperava todas as noites sobre o velador, não conseguiu ler uma página. Todo o seu passado lhe afluía à memória.

Ele e Ritinha foram companheiros de infância. Eram vizinhos, - brincaram juntos e juntos cresceram. Tinham a mesma idade.

Depois de dezessete anos, aquela afeição tomou, nele, nela não, um caráter mais grave: transformou-se em amor.

Mas Ritinha era já uma senhora e Flores ainda um fedelho.

Como o desenvolvimento fisiológico da mulher é mais precoce que o do homem, raro é o moço que ao desabrochar da vida não teve amores malogrados.

Foi o que sucedeu ao nosso Flores. Ritinha não esperou que ele crescesse e aparecesse: tendo-se-lhe apresentado um magnífico partido, fez-se noiva aos dezoito anos.

O desespero do rapaz foi violento e sincero. Ele era ainda um criançola, mas tinha a idade de Romeu, a idade em que já se ama.

Um pensamento horroroso lhe atravessou o cérebro: assassinar Ritinha e em seguida suicidar-se.

Premeditou e preparou a cena: comprou um revólver, carregou-o com seis balas, e marcou para o dia seguinte a perpetração do atentado.

Deitou-se, e naturalmente passou toda a noite em claro.

Ergueu-se pela manhã, vestiu-se, apalpou a algibeira e não encontrou a arma.

- Oh!

Procurou-a no chão, atrás do baú, por baixo da cômoda: nada!

 - Para que precisas tu de um revólver, meu filho? perguntou a mãe do rapaz, entrando no quarto.

- Está com a senhora?

- Está.

- Mas como soube...?

- As mães adivinham.

Flores não disse mais nada: caiu nos braços da boa senhora, e chorou copiosamente. -

Ela, que conhecia os amores do filho, deixou-o chorar a vontade; depois, enxugou-lhe os olhos com os seus beijos sagrados, e perguntou-lhe:

- Que ias tu fazer, meu filho? Matar-te?

- Sim, mas primeiro mata-la-ia também!

- E não te lembraste de mim?... não te lembraste de tua mãe?...

- Perdoe.

E nova torrente de lágrimas lhe inundou a face.

- Ouve meu filho: na tua idade feliz um amor cura-se com. outro. O que neste momento se te afigura uma desgraça irremediável, mais tarde se converterá numa recordação risonha e aprazível. Se todos os moços da tua idade se matassem por causa disso, e matassem também as suas ingratas, há muito tempo que o mundo teria acabado. Raros são os que se casam Com a sua primeira namorada. O que te sucedeu não é a exceção, é a regra. O mal de muitos consolo é.

- Eu quisera que Ritinha não pertencesse a nenhum outro homem!

- Matá-la? Para quê? Ela desaparecerá sem morrer... nunca mais terá dezoito anos... A idade transforma-nos tal qual a morte. Não imaginas como tua mãe foi bela!

O velho Flores, pai do rapaz, informado por sua mulher do que se passara, e receoso de que o filho, impulsivo por natureza, praticasse algum desatino, resolveu mandá-lo para o Rio de Janeiro, onde ele chegou meses antes do casamento de Ritinha.

Naquela noite o Flores, quase quinquagenário, chefe de repartição, lembrava-se das palavras maternas e reconhecia quanta verdade continham.

Ainda naquele momento sua mãe, que há tantos anos estava morta, parecia falar-lhe, parecia dizer-lhe:

- Não te dizia eu?

- E que impressão receberia Ritinha se me visse? pensou ele. Também eu sou uma ruína...

O Flores apagou a vela, adormeceu e sonhou com ambas as Ritinhas, a do passado e a do presente.

Dali por diante, todas as vezes que encontrava esta última, dizia consigo:

- Olhem se eu a tivesse matado!

J. G. de Araújo Jorge (Inspirações de Amor) II



A VIDA QUE EU SONHEI... 

Eu sonhei para mim, uma vida discreta
num lugar bem distante, a sós, tendo-te ao lado
- num castelo que fiz lá num reino encantado,
nesse reino que eu chamo o coração de um poeta…

Sonhei... Vi-me feliz na solidão de  asceta,
bem longe deste mundo, a rir, despreocupado…
- acordando a escutar no arvoredo o trinado
das aves, e a dormir fitando a lua inquieta…

Vivia na ilusão daquele que ainda crê,
na vida, e o meu amor, eu o tinha idealizado
no romance de um lar coberto de sapê…

- Mentiras que eu sonhei!... No entanto hoje me ponho
muita vez a pensar no tal reino encantado
e sinto uma saudade imensa do meu sonho!…

A VOZ DA CONSCIÊNCIA

Não pares, caminheiro!... É longa esta jornada!...
Avante! Avante sempre! - e hás de vencer um dia.
A estrada onde hoje vais é a estrada da agonia
da vida, e vai findar na imensidão do nada...

Que importa, porém, morrer... (Já me esquecia
de que devo exortar-te apenas à avançar...)
Anda! Segue a cantar! Não deixes que, cansada,
tua alma, da descrença, habite a moradia...

Avante!... Hás de trazer no peito a flor da glória,
flor de espinhos, talvez, do teu Calvário
cujo ponto final vai terminar na história...

Conquista teu viver... embora de um segundo!...
O segundo que tens, é o direito usuário
que o destino te deu de visitar o mundo!.…

ADIVINHA-SE
Quando tu passas, sob o teu vestido
na ousadia das formas
adivinha-se
- o desejo incontido,
- essa vontade,       
da carne que se sente prisioneira
e que arrogantemente se rebela
em ânsias de liberdade....

Adivinha-se o desejo
da carne que não tarda a ser mulher...
- da semente que quer romper o chão...
- da flor que abre a corola ao sol          
a esperança  
do louro pólen da fecundação!…

ADORAÇÃO SUPREMA

Quando cerro os meus olhos, na minha grande noite
eternamente vejo a tua imagem,
tua doce figura
como uma silhueta de luz a recordas a sombra...

Se eu cerrasse os meus olhos neste instante a derradeira vez,
na última tarde da vida
e mandassem revelar depois minhas retinas,
veriam tua imagem refletida...

Por que eu hei de levar comigo essa imagem de luz
que ilumina a minha alma triste e enche o meu pensamento
quando cerro os meus olhos e medito...

Hei de levar-te dentro dos meus olhos tristes
quando a morte os vidrar,
e eles serão talvez para a tua imagem adorada e querida
o caixão de vidro da Branca de Neve morta, entre os anões da lenda,
que moram muito longe, muito alto,
num longínquo planalto,
num bosque encantado e feliz sobre uma rocha imensa de granito...

Hei de levar-te comigo, para que possas guiar meus passos
por entre as sombras que despencarão sobre as nossas cabeças
para além do infinito!

AMARGURA

Só podes me ofertar o silêncio  e a amargura,
- meu pobre amor de ti só espera a indiferença...
Perdoa o meu amor... perdoa-me a loucura
que quem tem, como eu tenho, um coração, não pensa...

Há muito pela vida eu seguia à procura
de alguém que viesse encher de luz minha descrença...
Foi então que te vi... e julguei que a ventura
pudesse ainda encontrar nesta jornada imensa...

E foi assim que um dia eu fui sentimental...
Acreditei no amor... E, talvez por castigo
fizeste-me sofrer - mas não te quero mal...

Quem amou, fui eu só... Eu nunca fui amado!...
Mereço a minha dor, e este sofrer bendigo
na amargura cruel de me julgar culpado!

AMEAÇA…

Os teus olhos estão cheios de umidade
meus olhos sentem frio quando encontram os teus...

Se aperto tua mão, sinto-a muda, distraída
como se estivesse sozinha,
-ah! Nunca pudeste compreender
a íntima razão por que os meus dedos trêmulos
procuram demorá-la um pouco mais na minha!

Os teus lábios me falam de amor
como se tratassem
de algum tema banal sem emoção, nem cor...
Por isso, não compreendes que os meus lábios tratem
de um tema banal qualquer
te falando de amor!

As vezes, receio
que a tua indiferença mate o meu orgulho
e a paixão que domino a custo, se liberte
louca!
-e eu te tome em meus braços como alucinado
e deixando o amor-próprio ferido de lado
numa febre cruel machuque a tua boca!

Não importa, depois, que te revoltes
e até me esbofeteies!
Prefiro esse ódio, sim, eu quero que me odeies!
Quero que ao me encontrares, os teus olhos brilhem
mais, ardendo contra mim
de indignação!

Quero tudo de ti! Não quero indiferença
que me castiga assim, e é martírio
e é doença
e faz da minha angústia uma alucinação

E guarda o que te digo
neste instante:
– eu nasci para ser teu inimigo
ou teu amante
mas nunca um teu amigo
ou teu irmão!

Está, pois, como vês, nas tuas mãos
escolher
o que queres que eu seja
ou o que terei de ser!

AMO!

     Amo a terra! Amo o sol! Amo o céu! Amo o mar!
Amo a vida! Amo a luz! Amo as árvores! Amo
a poesia que escrevo e entusiasta declamo
aos que sentem como eu a alegria de amar!

Amo a noite! Amo a antiga palidez do luar!
A flor presa aos cabelos soltos de algum ramo!
Uma folha que cai! Um perfume no ar
onde um desejo extinto sem querer inflamo!

Amo os rios! E a estranha solidão em festa,
dessa alma que possuo multiforme e inquieta
como a alma multiforme e inquieta da floresta!

Amo a cor que há nos sons! Amo os sons que há na cor!
E em mim mesmo - amo a glória de sentir-me um Poeta
e amar imensamente o meu imenso amor!.

AQUARELA

  Pelo jardim ( será o jardim dos poetas ?)
andam sombras aos pares enlaçadas,
- no alto, trançam-se todas as ramadas
cheias de flores, de botões repletas...

Ainda se ouvem das aves atrasadas
um ruflar de asas trêmulas e inquietas,
- andam faunos e ninfas nas estradas
à procura das sombras mais discretas...

Vivem beijos pelo ar: morrem suspiros !
e a criança, pés descalços, corre o vento
na quietude amorosa dos retiros...

Todos se amam, meu Deus ! E eu só, sozinho !
Quem me dera afinal neste momento
vê-la cruzar adiante em meu caminho !

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 1. SP: Ed. Theor, 1965.

domingo, 24 de março de 2019

Daniel Maurício (Poemas Avulsos) II


Acreditei quando dissestes
Que o teu coração era meu
Mas que pena
Pois o coração era apenas
Uma tatuagem de henna
Que o tempo apagou.
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Ainda ecoam na memória
Os cânticos, preces e sermões
Vindos da singela igrejinha
Que já há muito não existe mais.
Ardem as lembranças
Sangra o peito com os ais...
Entre o sono e os sonhos
Aconchega-se a criança
Cheia de esperança
Nos braços que pareciam eternos
Da agora saudosa mãe.
___________________________

A linha do tempo
Filtra os sonhos
Longínquas
As imagens borradas da aquarela
Na visão míope
De quem olha pela janela
Finalmente ganham contorno.
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Depois que ganhei teu beijo
Mora em mim
Um gostinho de quero mais.
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Enquanto tu não vens
Guardo minhas vontades
Em pequenas caixas de veludo
E não me iludo
Pois na hora certa
Uma a uma vou poder te dar.
Dentro dos olhos
Trago a face oculta da lua
No abre e fecha
Das janelas da rua
Tento descobrir em qual delas estás.
Nas costas das mãos
Ensaio mil beijos
Olhando o jardim
Disfarço meus desejos
Repetindo os mantras
Dos velhos irmãos.
Se o sol se cansa
Desmaiando atrás dos montes
Tiro luz de outras fontes
E em vigília sonha meu coração.
________________________________

Entre as árvores
O sol transpassa
Deixando na calçada da praça
Flores e folhas
Tecidas em renda.
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Nas folhas do outono
A aranha tece o seu sonho
Viajar para Paris
Foi sempre tudo
O que ela mais quis.
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No bailar das ondas
Meus pensamentos
Vem e vão,
Mas não em vão.
Nas reticências do teu olhar
Saboreio devagar
O doce encontro
Dos nossos corpos.
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O teu abraço
Desatou minhas asas
Tão feliz,
Como quem volta pra casa
No azul,
Minh'alma envolvi.
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Quanto mais
Em mim mergulho
Mais descubro
Você em mim.
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Rimam nossos lábios
Em estalados beijos
Bebo da tua água
Sem me cansar
Comes do meu pão
Há tanto tempo
E o tempo só tempera
O nosso amar.
_______________________

Sonhando com o paraíso
Na paineira florida
Descanso o meu olhar.

Contos e Lendas do Mundo (África: Os Pequenos Acrobatas do Rio)


Na aldeia de Sakata, os meninos brincam à  volta da árvore. Mas isso não os impede de estarem atentos a qualquer pequeno ruído que venha do Congo, o grande rio que corre perto dali. Estão à  espera de que o barco passe.

- Ei! Olha o barco! Já lá vem o barco-correio! 

Para Kembo é um dia importante. Quando o barco que transporta tantas mercadorias maravilhosas abrandar a velocidade, ele vai aproximar-se e pôr as mãos no casco. Até há de subir a bordo. A manobra é arriscada, mas Kembo está decidido.

- Mido, Eloni, vamos! Temos de ser os primeiros a acostar! 

Enquanto Mido e Eloni pegam nos remos do pangaio, Kembo grita:

- Cuidado! A piroga vai meter água! Vejam que tem um buraco à frente!

Kembo tapa o buraco com um pouco de barro.

- Agora podemos ir. A minha mãe quer que lhe traga sabão e uma camiseta.

As folhas dos nenúfares agitam-se à passagem deles. Escondido debaixo da copa de um cogumelo, um sapo está quase a apanhar um inseto. Que sossego! Mas, de repente, o sapo esconde-se, e os pássaros levantam voo com grande alarido. O que terá causado toda aquela agitação, pregando um susto de morte às crianças? A serpente negra que assombra o rio. Ela acaba de escapulir por entre as ervas altas. Kembo começa então a entoar a canção de Sakata, a Nossa Aldeia, uma canção que dá coragem.

No rio agitado, eh! eh!
É preciso remar com força eh!
No rio agitado
É preciso remar com força.

Ao longe, outras crianças pescadoras retomam o refrão. Kembo e os amigos voltam a subir a corrente com mais vigor. Em breve, a piroga sai das águas calmas da floresta e entra nas do rio. No sítio em que os dois braços de água se encontram, as ondas fervilham, formam um turbilhão. Mido e Eloni gritam:

- Temos medo! Kembo, voltamos para trás!

- Nem pensar - diz Kembo. - Não vamos desistir!

Um vento forte arrasta a piroga. O pânico apodera-se dos amigos de Kembo. Mas Kembo sabe desviar-se dos perigos, ultrapassar as armadilhas da água, e diz:

- Quietos! Nada de fazer força. Temos de nos deixar levar pela corrente. 

A piroga é sacudida por todos os lados. E depois, de repente, ei-la que sai do turbilhão. Kembo e os amigos esperam com impaciência a aproximação do barco, que abranda mas não pára.

Os passageiros olham para as crianças, admirados. Alguns gritam:

- Afastai-vos! Os redemoinhos são perigosos

Á primeira onda, a piroga sobe até a crista. Os passageiros do barco ficam embasbacados perante a destreza de Kembo e dos amigos, que, certos do sucesso da sua proeza, cantam com toda a força.

Da margem, os pais seguem o espetáculo.

- Oh! Que habilidade! Que acrobatas corajosos! Será que vão conseguir encostar o barco? Eu nem me atrevo a olhar!

Alguns pais gritam, manifestando o seu medo.

- Os nossos filhos trazem os amuletos, consigo ver daqui as fitas vermelhas!

Os rapazes não conseguiram a acostagem. O choque contra o flanco do barco foi duro e a emoção forte quando as crianças ouviram rebentar o pedaço de barro que tapava o buraco da piroga. Mas Kembo e os amigos mantiveram o sangue-frio.

- Depressa, a outra piroga - grita Kembo.

A outra piroga pertence, seguramente, a um pescador que já entrou no barco-correio. Kembo salta para dentro, pega numa amarra e atira-a para as mãos que se agitam acima dele. De repente, a corda estica.

- Consegui! - grita Kembo, que já está a bordo.

Mas Eloni e Mido têm menos sorte, a piroga volta-se e ei-los na água. Falharam.

A bordo do barco-correio era um autêntico mercado. Vendia-se lá de tudo. Vê-se uma coisa amarela e preta a brilhar na penumbra. Será um brinquedo? Kembo aproxima-se. O produto à  venda é uma jiboia.

- Nioka! Nioka! (Serpente!Serpente!) - grita Kembo, cheio de medo. E foge a correr.

Cheira muito bem debaixo do telhadilho de madeira. Os passageiros saboreiam mandioca que as mulheres acabam de fritar em óleo de palma. Fazem-se trocas e conversa-se. Os habitantes ribeirinhos acabam de acostar, trazem peixe e banana para fritar. Mas Kembo não pode atrasar-se, tem compras a fazer. 

Kembo escapa-se por entre as mercadorias. Chega diante da exposição de conservas, de vestidos e de tangas, onde, finalmente encontra o que procurava. Enquanto espera que o sabão e a tee-shirt sejam embrulhados, Kembo vê, ao fundo do barco, um carro carregado de caixotes. São medicamentos para um hospital da Cruz-Vermelha, explica o comerciante.

- Pega! Aqui estão as compras para a tua mãe!

A sirene apitou. Rápido, rápido! Temos de sair depressa, que o barco vai ganhar velocidade! Kembo esconde o embrulhinho com segurança dentro do calção e, splash!, mergulha. Nada como um peixe até chegar junto de Eloni e Mido, que estão na água.

O barco afasta-se. Balançado pelo turbilhão dos redemoinhos, as crianças disputam entre si a agilidade para saltarem para a piroga virada. Mido e Eloni estão desiludidos. Mas não passa de uma oportunidade perdida. Da próxima vez que o barco-mercado passar, subirão a bordo com o Kembo. Dessa vez, é certo que vão conseguir.

Fonte: 

sexta-feira, 22 de março de 2019

Sarau Literário em Belo Horizonte/MG, em 29 de Março


Dia 29/03/18, às 17 Horas

- Honre-nos com sua presença e participação!

A Exposição no Mural acontece de 08 a 29/03/19. Visite-nos! Divulgue.

Aguardamos todos.

Paulo José - Pajo
Presidente do Clube Literário Marconi Montoli - CLMM
Coordenador do COLECULT Atelier das Artes e das Ongs
Coordenador da Central Movimentos Populares de Formiga - CMP/Fga.
Diretor Presidente da Academia Formiguense de Letras - AFL
Diretor Secretário da Federação das Academias de Letras e Entidades Culturais de Minas Gerais - FALEMG
Membro da Federação Brasileira de Alternativos Culturais - FEBAC e outras.
Formiga – MG – Brasil

Fonte: Pajo

Yehuda Amichai (Poemas Escolhidos)


DEUS CHEIO DE MISERICÓRDIA

Deus cheio de misericórdia
Se não fosse por Deus ser cheio de misericórdia 
Haveria misericórdia no mundo,
não só nele.
Eu, que colhi flores nas montanhas contemplando os vales. 
Eu, que carreguei corpos morro abaixo, 
Posso lhes dizer que o mundo não é vazio de misericórdia.

ESTATÍSTICAS

Por cada homem enfurecido 
há sempre dois ou três que o acalmam com palmadinhas nas costas,
por cada chorão, muitos mais limpadores de lágrimas,
por cada homem feliz, uma profusão de infelizes
a querer aquecer-se no calor da sua alegria.

E todas as noites pelo menos um homem
não consegue encontrar o caminho de casa
ou a sua casa mudou-se para outro lugar
e ele vagueia pelas ruas,
supérfluo.

Uma vez estava com o meu filho pequeno na estação
e um autocarro vazio passou por nós. 
O meu filho disse:
“Olha, um autocarro cheio de gente vazia.”

EU, QUE EU POSSA DESCANSAR EM PAZ

Eu, que eu possa descansar em paz 
- Eu, que ainda estou vivo, digo,
Que eu possa ter paz no que tenho de vida.
Eu quero paz agora mesmo, enquanto ainda estou vivo.
Não quero esperar como aquele piedoso que almejava uma perna
do trono de ouro do Paraíso, 
quero uma cadeira de quatro pernas aqui mesmo,
uma cadeira simples de madeira. 
Quero o resto da minha paz agora.
Vivi minha vida em guerras de toda espécie: 
batalhas dentro e fora,
combate cara a cara, a cara sempre a minha mesmo,
minha cara de amante, minha cara de inimigo.
Guerras com velhas armas, paus e pedras, 
machado enferrujado, palavras,
rasgão de faca cega, amor e ódio,
e guerra com armas de último forno metralham, 
míssil, palavras, minas terrestres explodindo, amor e ódio.
Não quero cumprir a profecia de meus pais de que vida é guerra.
Eu quero paz com todo meu corpo e em toda minha alma.
Descansem-me em paz.

HOMEM COM MOCHILA

Homem com mochila no mercado, Irmão,
Como você, sou homem burro, homem camelo,
Homem anjo. Sou como você.
Nossos braços são livres como asas.
Comparados conosco, todos os que carregam cestas
São escravos de escravos, sujeitos e humilhados.

Nós trocamos moedas por verduras frescas,
E para o esquecimento de nossas vidas compramos
Frutas e suas memórias, memória de campo e jardim,
Memória de cheiro da terra e do zumbir de abelhas em dia de calor.

Nós vimos uma mulher num vestido leve de verão
Antes de um amor longo e intenso,
Que determinará a sua vida. Ela não sabe ainda.
Nós sabemos. Em nossas costas
Carregamos o fruto da árvore da sabedoria.

Homem com mochila, você vive onde?
Eu sou como você, vivemos nas distâncias
Entre o prêmio e a punição.
E como nós vivemos? E quando à noite nós dormimos,
Em que sonhamos? Os que você ama,
Ainda vivem nos mesmos lugares?

Nossas mochilas, como para-quedas fechados
Em nossas costas, abrem de noite
pra podermos saltar, e pairar
Sobre a fragrância de lembrar e de esquecer.

NOSSA HISTÓRIA

Na história de nosso amor, um foi sempre
Uma tribo nômade, outro uma nação em seu próprio solo.
Quando trocamos de lugar, tudo tinha acabado.
O tempo passará por nós, como paisagens
Passam por trás de atores parados em suas marcas
Quando se roda um filme.
As palavras
Passarão por nossos lábios, até as lágrimas
Passarão por nossos olhos.
O tempo passará
Por cada um em seu lugar.
E na geografia do resto de nossas vidas,
Quem será uma ilha e quem uma península.
Ficará claro pra cada um de nós no resto de nossas vidas
Em noites de amor com outros

O LUGAR EM QUE TEMOS RAZÃO

Do lugar em que temos razão
jamais crescerão
flores na primavera.

O lugar em que temos razão
está pisoteado e duro
como um pátio.

Mas dúvidas e amores
escavam o mundo
como uma toupeira, como a lavratura.
E um sussurro será ouvido no lugar
onde houve uma casa
que foi destruída.

O QUE APRENDI NAS GUERRAS

O que eu aprendi nas guerras
A marchar no ritmo de braços e pernas
Como bombas bombeando um poço vazio.

A marchar numa fila e sozinho no meio,
A enterrar em travesseiros,
Colchões de penas,
O corpo de uma mulher amada.
E a gritar “mamãe”
Quando ela não pode ouvir,
E a gritar por “deus”
Quando eu não creio nele,
E mesmo que acreditasse nele,
Eu não lhe falaria sobre a guerra,
Como a uma criança não se fala
Dos horrores adultos.

Que mais eu aprendi…
Aprendi
A reservar um caminho para a retirada.
Em terras estrangeiras,
Alugar um quarto em hotel
Perto do aeroporto ou da estação de trem.
E mesmo em cerimônias nupciais
Ficar sempre de olho na pequena porta
Com o sinal “exit” em letras vermelhas.

Uma batalha começa
Como tambores rítmicos para dança e termina
Com uma “retirada ao amanhecer”.
Amor proibido
Algumas vezes também começa e acaba assim.

Mas acima de tudo,
Aprendi a sabedoria da camuflagem,
Não ficar visível, não ser reconhecido,
Não me distinguir daquilo que me cerca,
Nem mesmo de quem amo.
Que pensem que sou uma moita
Ou um carneiro,
Uma árvore, a sombra de uma árvore,
Uma cerca viva, uma pedra morta,
Uma casa, o canto de uma casa.

Se eu fosse um profeta
Teria diminuído o brilho da visão
Escurecido minha fé com papel negro

E quando chegar meu tempo,
Endossarei a camuflagem de gala do meu fim:
Com branco de nuvens, bastante azul de céu
E estrelas infinitas.