quarta-feira, 3 de abril de 2019

Fernando Sabino (Como dizia meu pai...)


Já se tornou hábito meu, em meio a uma conversa, preceder algum comentário por uma introdução: 

— Como dizia meu pai... 

Nem sempre me reporto a algo que ele realmente dizia, sendo apenas uma maneira coloquial de dar ênfase a alguma opinião. 

De uns tempos para cá, porém, comecei a perceber que a opinião, sem ser de caso pensado, parece de fato corresponder a alguma coisa que Seu Domingos costumava dizer. Isso significará talvez — Deus queira — insensivelmente vou me tornando com o correr dos anos cada vez mais parecido com ele. Ou, pelo menos, me identificando com a herança espiritual que dele recebi. 

Não raro me surpreendo, antes de agir, tentando descobrir como ele agiria em semelhantes circunstâncias, repetindo uma atitude sua, até mesmo esboçando um gesto seu. Ao formular uma ideia, percebo que estou concebendo, para nortear meu pensamento, um princípio que se não foi enunciado por ele, só pode ter sido inspirado por sua presença dentro de mim. 

— No fim tudo dá certo... 

Ainda ontem eu tranquilizava um de meus filhos com esta frase, sem reparar que repetia literalmente o que ele costumava dizer, sempre concluindo com olhar travesso: 

— Se não deu certo, é porque ainda não chegou no fim. 

Gosto de evocar a figura mansa de Seu Domingos, a quem chamávamos paizinho, a subir pausadamente a escada da varanda de nossa casa, todos os dias, ao cair da tarde, egresso do escritório situado no porão. Ou depois do jantar, sentado com minha mãe no sofá de palhinha da varanda, como namorados, trocando notícias do dia. Os filhos guardavam zelosa distância, até que ela ia aos seus afazeres e ele se punha à disposição de cada um, para ouvir nossos problemas e ajudar a resolvê-los. Finda a última audiência, passava a mão no chapéu e na bengala e saía para uma volta, um encontro eventual com algum amigo. Regressava religiosamente uma hora depois, e tendo descido a pé até o centro, subia sempre de bonde. Se acaso ainda estávamos acordados, podíamos contar com o saquinho de balas que o paizinho nunca deixava de trazer. 

Costumava se distrair realizando pequenos consertos domésticos: uma boia de descarga, a bucha de uma torneira, um fusível queimado. Dispunha para isso da necessária habilidade e de uma preciosa caixa de ferramentas em que ninguém mais podia tocar. Aprendi com ele como é indispensável, para a boa ordem da casa, ter à mão pelo menos um alicate e uma chave de fenda. Durante algum tempo andou às voltas com o velho relógio de parede que fora de seu pai, hoje me pertence e amanhã será de meu filho: estava atrasando. Depois de remexer durante vários dias em suas entranhas, deu por findo o trabalho, embora ao remontá-lo houvesse sobrado umas pecinhas, que alegou não fazerem falta. O relógio passou a funcionar sem atrasos, e as batidas a soar em horas desencontradas. Como, aliás, acontece até hoje. 

Tinha por hábito emitir um pequeno sopro de assovio, que tanto podia ser indício de paz de espírito como do esforço para controlar a perturbação diante de algum aborrecimento. 

— As coisas são como são e não como deviam ser. Ou como gostaríamos que fossem. 

Este pronunciamento se fazia ouvir em geral quando diante de uma fatalidade a que não se poderia fugir. Queria dizer que devemos nos conformar com o fato de nossa vontade não poder prevalecer sobre a vontade de Deus - embora jamais fosse assim eloquente em suas conclusões. Estas quase sempre eram, mesmo, eivadas de certo ceticismo preventivo ante as esperanças vãs: 

— O que não tem solução, solucionado está. 

E tudo que acontece é bom — talvez não chegasse ao cúmulo do otimismo de afirmar isso, como seu filho Gérson, mas não vacilava em sustentar que toda mudança é para melhor: se mudou, é porque não estava dando certo. E se quiser que mude, não podendo fazer nada para isso, espere, que mudará por si. 

Às vezes seus princípios pareciam confundir-se com os da própria sabedoria mineira: esperar pela cor da fumaça, não dar passo maior do que as pernas, dormir no chão para não cair da cama. Os dele eram mais singelos: 

— Mais vale um apertinho agora que um apertão o resto da vida. 

— Negócio demorado acaba não saindo. 

— Dinheiro bom em coisa boa. 

— Antes de entrar, veja por onde vai sair. 

Um dia me disse, ao me surpreender tentando armar um brinquedo qualquer com mãos desajeitadas: 

— Meu filho, tudo que é bem feito se faz com os dedos, não com as mãos. 

Tenho tido ocasião ao longo da vida de observar como é procedente este seu ensinamento. A mão é grossa, pesada, insensível. Se não fossem os dedos de nada serviria, a não ser para dar bofetadas. Os dedos são refinados, sensitivos, e a eles devemos tudo o que é bem feito e acabado: do mais requintado trabalho manual às mais complicadas operações, da mais fina sensação do tacto à mais terna das carícias. 

— Se o cafezinho foi bom, melhor não aceitar o segundo: será sempre pior que o primeiro. 

Como tudo mais nessa vida: uma viagem, uma mulher: não repetir, pois a emoção jamais será a mesma da primeira vez. E não desanimar, pois se nascemos nus e estamos vestidos, já estamos no lucro. Nada neste mundo é cem por cento perfeito. Se contamos com mais de cinquenta por cento, também já estamos no lucro. Quando conseguimos o que é apenas bom, naturalmente devemos continuar aspirando o melhor, se possível - mas perfeição absoluta, só Deus. E creio que Seu Domingos, homem íntegro, reto e temente a Deus, hoje em Sua companhia, não consideraria sacrilégio comentar, naquele seu jeito ladino: 

— E assim mesmo, olhe lá... 

Seus conselhos eram de tamanha simplicidade que tinham a força de provérbios nascidos da voz do povo: nada como um dia depois do outro, um lugar para cada coisa e cada coisa em seu lugar, tudo tem seu tempo. Fosse ele influenciado por leituras piedosas, poderíamos mesmo detectar, aqui e ali, vestígios de inspiração bíblica: tempo de semear, tempo de colher... 

— É o que nos acontece. 

Há uma diferença sutil entre admitir que as coisas são como são, não como deviam ser, e reconhecer que é o que nos acontece. Aqui, o comentário não pretendia refletir a impossibilidade de modelar (com os dedos) os fatos de acordo com a nossa vontade, mesmo que esta esteja certa. Exprime antes a humilde aceitação da nossa precária condição humana, como frágeis criaturas de Deus. Procura se solidarizar com a desgraça alheia, como a dizer que também estamos sujeitos a ela, somos todos irmãos na mesma atribulação. É o que nos acontece. 

Portanto, alegremo-nos! Uma amiga minha, que não o conheceu, busca nele se inspirar quando afirma, sempre que se vê diante de algum contratempo: 

— Antes de mais nada, fica estabelecido que ninguém vai tirar o meu bom humor. 

Acabei levando esta disposição de minha amiga às últimas consequências: o mais importante é não perder a capacidade de rir de mim mesmo. Como Cartola e Carlos Cachaça naquele samba, às vezes dou gargalhadas pensando no meu passado.. . E cada vez acredito mais no ensinamento recebido não sei se de meu pai ou diretamente de Confúcio, segundo o qual há várias maneiras de realizar um desejo, sendo uma delas renunciar a ele. Como adverte outro sábio, se desejamos obstinadamente alguma coisa, é melhor tomar cuidado, porque pode nos suceder a infelicidade de consegui-la. 

Tudo isso que de uns tempos para cá vem me vem ocorrendo, às vezes inconscientemente, como legado de meu pai, teve seu coroamento há poucos dias, quando eu ia caminhando distraído pela praia. Revirava na cabeça, não sei a que propósito, uma frase ouvida desde a infância e que fazia parte de sua filosofia: não se deve aumentar a aflição dos aflitos. Esta máxima me conduziu a outra, enunciada por Carlos Drummond de Andrade no filme que fiz sobre ele, a qual certamente Seu Domingos perfilharia: não devemos exigir das pessoas mais do que elas podem dar. De repente fui fulminado por uma verdade tão absoluta que tive de parar, completamente zonzo, fechando os olhos para entender melhor. No entanto era uma verdade evangélica, de clareza cintilante como um raio de sol, cheguei a fazer uma vênia de gratidão a Seu Domingos por me havê-la enviado: 

Só há um meio de resolver qualquer problema nosso: é resolver primeiro o do outro. 

Com o tempo, a cidade foi tomando conhecimento do seu bom senso, da experiência adquirida ao longo de uma vida sem maiores ambições: Seu Domingos, além de representante de umas firmas inglesas, era procurador de partes — solene designação para uma atividade que hoje talvez fosse referida como a de um despachante. A princípio os amigos, conhecidos, e depois até desconhecidos passaram a procurá-lo para ouvir um conselho ou receber dele uma orientação. Era de se ver a romaria no seu escritório todas as manhãs: um funcionário que dera desfalque, uma mulher abandonada pelo marido, um pai agoniado com problemas do filho — era gente assim que vinha buscar com ele alívio para a sua dúvida, o seu medo, a sua aflição. O próprio Governador, que não o conhecia pessoalmente, certa vez o consultou através de um secretário, sobre questão administrativa que o atormentava. Não se falando nos filhos: mesmo depois de ter saído de casa, mais de uma vez tomei trem ou avião e fui colher uma palavra sua que hoje tanta falta me faz. 

Resta apenas evocá-la, como faço agora, para me servir de consolo nas horas más. No momento, ele próprio está aqui a meu lado, com o seu sorriso bom. 

30° Concurso Internacional de Poesias, Contos e Crônicas (Envio dos textos até 20 de Setembro)

Academia Internacional de Artes, Letras e Ciências 'A palavra do século 21' - ALPAS 21


Informações

Formatação do texto: A4, fonte 12, arial ou times.

Tema livre.

Modalidades:
Estudantes (até 24 anos)
Adultos

Solicitamos criteriosa correção gramatical.

Não há necessidade de pseudônimo, os textos receberão números.

Solicitamos breve currículo e fotografia (opcional).

Enviar para: gaya.rasia@hotmail.com

É indispensável o envio do texto juntamente com breve currículo

O autor poderá participar em todas as categorias, não é estipulado número de páginas

Vamos imprimir uma cópia dos textos para o Memorial da Cultura ALPAS com os dados do autor e três cópias para os jurados sem identificação.

Para divulgação dos textos classificados, será editada uma coletânea cooperativada internacional, autora homenageada Ieda Linck que será lançada em Novembro de 2019 em Porto Alegre/RS.

Certificados digitais - sem custos

Impressos R$ 40,00 - entrega presencial

Impresso + frete correio - R$ 45,00

Premiações:

14 de Novembro de 2019 em Porto Alegre/RS
Diploma para os três primeiros lugares e para os destaques literários em todas as categorias.

Idiomas: inglês, italiano, espanhol e francês .

Informações, dúvidas, envio de textos: gaya.rasia@hotmail.com

terça-feira, 2 de abril de 2019

Adelmar Tavares (1888 - 1963)


A imagem de nossas almas
está nas águas profundas,
quanto mais tristes, mais calmas;
quanto mais calmas, mais fundas.

A inveja tem seu castigo,
Deus mesmo é quem retribui;
enquanto o invejado cresce,
o invejoso diminui…

Alguém já disse, e é verdade,
que o sentimento do amor,
ou se faz eternidade,
ou então, não é amor…

A luz desse olhar tristonho
dos olhos teus, faz lembrar
essa luz feita de sonho
que a lua deita no mar.

A morte não é tristeza,
é fim, é destinação.
– Tristeza é ficar vivendo,
depois que os sonhos se vão.

Aos que me foram ingratos,
eu grato lhes hei de ser,
pelo bem que me fizeram
no bem que eu pude fazer.

A saudade é uma andorinha,
que ao morrer do sol a chama,
as asas tristes aninha
no coração de quem ama…

As penas em que hoje estou,
disse-as ao Sol, – fez-se triste.
Disse-as à noite – chorou.
Disse-as a ti, e sorriste…

Coração, fonte da Vida,
da vida a própria razão.
– E tanta gente eu conheço,
vivendo sem coração…

Dizer adeus nada custa,
alguém me mandou dizer.
Mas quem diz que nada custa,
queira bem e vá dizer.

Duvido que alguém no mundo,
olhe sem melancolia,
uma vela no horizonte,
lá longe… no fim do dia…

Encerram certos sorrisos
tristeza tão singular,
que, em se vendo tais sorrisos,
dá vontade de chorar…

É nossa alma uma criança,
que nunca sabe o que faz.
Quer tudo que não alcança,
quando alcança, não quer mais

Eu falei da “flor morena”
e entrou a rir quem me ouviu.
– Quem nunca viu flor morena,
foi porque nunca te viu…

Eu vi o rio chorando,
quando te foste banhar,
por não poder, te banhando,
dar-te um abraço, e parar. . .

Meu coração, pobre tonto,
que eu não entendo sequer,
fazes morrer quem te adora,
morres por quem não te quer!

Na janela do teu quarto,
a luz da manhã transborda.
Bem-te-vis estão gritando:
Preguiçosa, acorda, acorda!

Não quero na minha morte,
nem pompa, nem mausoléu.
Quero uma covinha rasa,
que abra os braços para o céu. . .

Não quero ouvir o teu nome,
nunca mais te quero ver!
– E passo a vida pensando,
a forma de te esquecer.

Neste mundo, a certas vidas,
a morte seria um bem,
mas até a própria morte
se esquece delas também.

Ninguém se queixe da Sorte,
que Deus de ninguém se esquece.
Cristo nasceu para todos,
cada qual, como o merece…

Do mundo quando te fores,
mais que outra glória qualquer,
deixa a sombra de tua alma,
num coração de mulher.

O laço de fita preta
dos teus cabelos, faceira,
parece uma borboleta
pousada numa roseira…

Ó meu amor! Ó saudade!
– E eu não sabia que amor
era uma felicidade
disfarçada numa dor.

Onde anda o corpo, é verdade,
vai a sombra pelo chão…
É assim também a saudade,
a sombra do coração.

O perfume do teu lenço
trago comigo na mão.
Mas o cheiro da tua alma,
dentro do meu coração.

Ora a Vida! … Deixa-a andar,
não queiras da vida ter
o que ela não possa dar,
nem tu possas merecer…

Os búzios guardam das águas
do mar, os fundos gemidos.
– Assim fossem minhas mágoas,
guardadas nos teus ouvidos…

Para definir o Poeta,
só mesmo em verso defino.
– É um homem que fica velho
com o coração de menino

Para esquecer-te, outras amo,
mas vejo, por meu castigo,
que qualquer outra que eu ame,
parece sempre contigo.

Para matar as saudades,
fui ver-te em ânsias, correndo …
– E eu que fui matar saudades,
vim de saudades morrendo.

Por que, pela humanidade,
só o eu, soa e ressoa? …
– É que há um sapo agachado,
dentro de cada pessoa.

Pouco me dá que se diga
meu verso fora da moda,
meu verso é apenas cantiga
de cirandas, e de roda …

Proclamas teu amor-próprio,
se alguém te diz minha dor.
– Essa questão de amor-próprio,
é muito imprópria no amor…

Quando eu morrer, levo à cova
dentro do meu coração,
o suspiro de uma trova,
e o gemer de um violão.

Quando vejo teu sorriso,
tudo se doira e aligeira.
Teu sorriso é na minha alma,
como o sol numa roseira.

Quanto amor me prometeste!
– Nas tuas cartas, que ardor!
Depois … tudo isto esqueceste,
– Coisas de cartas de amor…

Quem dera que minhas trovas
andassem pelos caminhos,
consolando os desgraçados,
dando pão para os ceguinhos…

Quem ri do poeta, não sabe,
o consolo que ele tem.
E o dia em que fosse triste,
faria versos também.

Quem tiver amor, esconda
faça por muito esconder,
que as coisas da alma da gente,
ninguém carece saber…

Que tens tu, que és tão sombrio,
e hoje a rir, alegre, assim? …
– Mal sabem que só me rio,
porque riste para mim .

Saudade – doce transporte
da alma adejante e ferida…
– É viver dentro da morte!
– É morrer dentro da vida!

Se eu pintasse minha infância,
pintava: num sol de estio,
a sombra de uma ingazeira,
debruçada sobre um rio.

Só peço o dia em que eu morra,
faça uma noite de lua,
todo troveiro descante,
todo violão saia à rua!

Sou nesta tarde da vida,
cheio de saudades minhas,
como um telhado de igreja,
todo cheio de andorinhas.

Todo rio na corrente,
busca um lago, um rio, um mar…
Mas o destino da gente,
quem sabe onde vai parar?

Trovas, trovas da minha alma!
Da vida quando eu me for,
sede o humilde travesseiro,
do sono de um sonhador.

Tu censuras de minha alma,
este alvoroço, este ardor…
Quem tem amor e tem calma,
tem calma… não tem amor…

Tu vais passando, orgulhosa!…
Nunca vi soberba assim.
– Ai de ti, por tanto orgulho.
Por tanto amar-te, ai de mim! …

Um cego me disse um dia,
que Poesia, inspiração,
era uma lua nascendo,
de dentro do coração.

Vivo triste, triste, triste,
que mesmo nem sei dizer.
– Desconfio que é saudade,
que é vontade de te ver.

Contos e Lendas do Mundo (Celta: A História da Caveira)


Era uma vez um granjeiro que tinha apenas um filho. Este filho morreu e o pai não quis ir ao enterro porque antes houve uma briga entre eles. Passado um tempo, morreu um vizinho e ele foi ao seu enterro. Depois da cerimônia e ainda estando o granjeiro no cemitério, olhando distraído ao redor viu uma caveira.

Juntou-a e disse, pensativo:

- Gostaria de saber alguma coisa sobre ti...

E a caveira falou:

- Amanhã irei passar a noite contigo, se vieres passar outra noite comigo.

- Assim farei - disse o granjeiro.

No caminho de volta, encontrou um sacerdote e comentou o que tinha ocorrido. O sacerdote lhe disse que deveria ter sonhado, posto que as caveiras não falam. O granjeiro lhe contou que na noite seguinte seria visitado pela caveira, e o sacerdote concordou em ir.

Assim, na noite seguinte, estavam o granjeiro e o sacerdote conversando quando, em seguida, chamaram à porta e apareceu a caveira. Ela subiu à mesa e comeu tudo que nela havia. Depois, saiu e desapareceu.

- Por que não falaste nada? inquiriu o granjeiro ao sacerdote.

- Por que TU não falaste? - respondeu o outro.

Na noite seguinte, como dia combinado com a caveira, o granjeiro foi até o cemitério e, não vendo nada, desceu os três degraus que estavam junto à  Igreja. De pronto se encontrou no meio de um campo, cheio de homens que lutavam entre si. Ao ver o granjeiro, perguntaram-lhe se procurava o crânio. Ao assentir, eles disseram:

- Acaba de ir para o campo ao lado.

No outro campo viu homens e mulheres que lutavam entre si. 

- Estás procurando um crânio? - perguntaram. Pois bem, acaba se ir ao campo do lado.

O granjeiro se foi ao campo do lado e viu uma grande casa. Ao entrar viu que era a habitação de uma dama e uma criada. A dama caminhava de um lado a outro da casa, e cada vez que chegava perto do fogo para se aquecer, a criada a empurrava. Também lhe perguntaram se buscava um crânio e que se era isso, que saíra pela porta esquerda da casa e por ali saiu o granjeiro.

Ao entrar na casa contígua, encontrou a caveira e esta lhe perguntou se queria cear, com o que assentiu o granjeiro. A caveira o conduziu à cozinha onde estavam três mulheres. A caveira pediu a uma delas que servisse a ceia, e esta serviu pão preto e uma jarra d'água, o que ele não conseguiu comer. Em seguida pediu à segunda mulher que fizesse o mesmo, e ela serviu pior ao granjeiro do que a primeira. Por fim a caveira pediu à terceira mulher, e esta serviu uma deliciosa refeição, com uma profusão de pratos e excelentes vinhos.

Depois de comer, perguntou ao crânio o que tinha sido aquilo.

- Os homens que viste no primeiro campo se dedicavam a lutar entre si enquanto estavam vivos, porque tinham terras próximas e se acostumavam a mover as estacas e agora precisam lutar entre si para sempre. Os homens e mulheres que viste eram casais casados que viviam a brigar e agora devem seguir eternamente em brigas. A senhora que viste na casa e que a criada não deixava se aquecer fez o mesmo com a criada, que um dia chegou molhada e com frio, e agora a criada faz o mesmo com ela, até o dia do Juízo Final. As três mulheres na cozinha foram minhas três esposas. Quando pedia à primeira que me preparasse a ceia, me oferecia pão preto e água, a segunda ainda coisa pior mas a terceira me servia o banquete que ceaste.

A caveira então olhou lugubremente o lavrador e disse:

- E quanto a ti? Foste trazido a este lugar por não querer ir ao funeral do teu filho, apesar de teres ido ao de um vizinho. Assim, sugiro que, se queres te salvar, vá onde enterraram teu filho e pede-lhe perdão e, caso o obtenhas, saiba que desde o dia que saíste de casa até chegar aqui se passaram 700 anos.

O lavrador ficou petrificado e, como despertando de um sonho, se viu caminhando pelos campos, por lugares que antes ele havia passado mas que haviam mudado de forma pelo tempo transcorrido. Ao fim chegou ao cemitério e conseguiu localizar a tumba do filho . Ali se ajoelhou e pediu perdão. O perdão a seu filho.

Por fim surgiu uma mão da tumba, que tomou a sua e ambos, pai e filho, subiram juntos ao céu.

Fonte:

Leon Eliachar (O Segredo da Propaganda é a Propaganda do Segredo)


Depois de tantos anos vendo televisão diariamente, chego a uma conclusão definitiva: é muito mais divertido e mais prático ver os anúncios. Enquanto as outras pessoas ficam aflitas tentando decorar os horários das novelas, das paradas de sucesso e dos chamados programas humorísticos, eu não tenho problema: ligo a televisão em qualquer canal e vejo os anúncios sem preocupação de horário.

Vocês talvez achem que é loucura ver os mesmos anúncios diversas vezes, mas posso garantir que os anúncios variam muito mais que as piadas e as músicas que são servidas todos os dias. Pelo menos os anúncios são bem bolados, alguns até inteligentes. A técnica é chatear tanto até ficarem em nosso subconsciente — se é que alguém consegue ter subconsciente assistindo televisão.

Os refrigerantes, por exemplo: quase todos fazem as garrafas dançar na nossa frente e tocam uma musiquinha que chega a dar sede. Aí a gente não resiste: vai à geladeira e bebe um copo de água.

Mas bom mesmo é anúncio de sabonete: aparece cada moça bonita que vou te contar. E com uma grande vantagem, as moças não falam, só aparecem, ligam o chuveiro e ficam noivas dentro da espuma. Por mais que a gente saiba que aquilo é anúncio de sabonete, fica sempre aquela dúvida se um dia eles não vão resolver dar o nome daquele chuveiro ou, quem sabe, o telefone da moça.

Geniais mesmo são as geladeiras que duram toda a vida. Mas muito mais geniais são os textos garantindo que cabe tudinho dentro delas, mas acho que não têm tanta certeza, pois fazem questão de botar uma moça bem bonita pra mostrar a geladeira — e a gente tem é vontade de comprar a moça, mesmo sem o "certificado de garantia".

E as televisões, baratíssimas, cada vez mais vendidas, dentro dos novos planos de venda. Ao invés de bolarem uma televisão mais perfeita, ficam é bolando planos de venda. No dia em que inventarem uma televisão que focalize a cara de um sujeito com menos de três orelhas, não precisam nem fazer anúncio: é só exibir, que esgota no mesmo dia.

Existe anúncio de todo tipo: tecidos que não amarrotam, tecidos que dão prêmios, tecidos que dão desconto, tecidos coloridos que são apresentados em preto-e-branco, tecidos brancos que ficam cada vez mais brancos à medida que vai surgindo um novo sabão em pó. Mas é o que eles pensam: o branco deles, lá em casa, todo mundo tá vendo que é cinza. O mais engraçado são os anúncios de inseticidas que matam todos os insetos, menos as moscas do estúdio.

Anuncia-se também muita banha, muito pneu, muito perfume, muito sapato, muito automóvel, muita calça, muita bebida e muita pílula pra dor de cabeça. Parece até que um anúncio depende do outro — é como se fosse uma novela, com a vantagem de a gente sempre saber qual o final de cada anúncio. E não pensem que sou o único a achar os anúncios mais interessantes que os programas: os donos das emissoras também acham — senão não ocupavam a maior parte do tempo com anúncios. Nos intervalos é que colocam alguns programinhas — por absoluta falta de mais anúncios.

Reparem só: os programas de humor mostram o lado negativo das pessoas, os personagens são quase todos fossilizados, gagos, surdos, cegos, velhos borocochôs ou sem sexo definido. As novelas exploram seres anormais dentro de um mundo de misérias e lágrimas. Já os anúncios apresentam um mundo de otimismo, onde tudo é bom e saudável, não quebra, dura toda a vida e qualquer um pode adquirir quase de graça, pagando como puder, no endereço mais próximo da sua casa. O único detalhe que nos deixa um pouco frustrados é que a moça que dá os endereços fala tão preocupada em não errar que a gente não consegue decorar nenhum endereço. Em compensação, sabe de cor a moça todinha.

segunda-feira, 1 de abril de 2019

A. A. de Assis (Trovas Brincantes) I


01
Meu nome é Assis. Brasileiro.
Setenta e tantos completos.
A profissão?… jardineiro:
cultivo trovas e netos!

02
Quando, à noite, o Sol se deita,
a Lua, em grande escarcéu,
chama a poetada e aproveita:
Faz uma farra no céu!

03
Bate-papo de mulher,
nem mesmo seu Freud entende.
– Um assuntinho qualquer
vira um filme sem the end…

04
Que saudade, companheiro,
do tempo em que eu era bobo…
– Pensava que era cordeiro
quem não passava de lobo!

05
Antiguidade, doutor,
é coisa muito engraçada:
algo que cresce em valor
quando não vale mais nada…

06
Sobremesa preferida?…
Eu vos respondo, ora vede:
– é após a farta comida
me desmaiar numa rede…

07
“Feliz quem feliz se julga”,
diz um ditado antigão.
– Felicidade da pulga
é andar montada no cão…

08
Diz à macaca o macaco
logo ao café da manhã:
– Ou paras de encher-me o saco,
ou te devolvo ao Tarzã!

09
Tão boa é aquela senhora,
tão generosa e tão pura,
que nem passando a ter nora
perdeu jamais a ternura…

10
De biquini ou minissaia,
a verdade se revela…
Não há mentira na praia:
feia é feia, bela é bela!

11
Tenho um galo gozador,
que canta de madrugada…
Troco por despertador
que toque às dez a alvorada!

12
Vingança é coisa de gente
tresloucada ou matusquela…
– A lei do dente por dente
faz tempo ficou banguela!

13
Verde, amarelo, vermelho…
bi-bi… fon-fon… ron-ron-ron…
Mulher, sem pressa, ao espelho,
na esquina ajeita o batom…

14
Pipilam os pintainhos,
que terna a galinha afaga.
“Vamos fazer mais unzinhos?”,
o galo safado indaga…

15
“Filho de peixe é peixinho”,
é o que se diz por aí.
A menos que no escurinho
se entregue a peixa ao siri…

Continua…
Fonte:
José Fabiano & A. A. De Assis. Trovas brincantes. 2007.

Vinícius de Moraes (O delírio do óbvio)


Conheci-a num coquetel no seu apartamento em Roma: uma mulherzinha intensa, minúscula, arredondada. Pensei imediatamente em dar-lhe um lugar de destaque na coleção de gnomos humanos de jardim, que venho selecionando há um ano e já vai bem adiantada. Devia andar pelos 45, mas 45 bem cuidados, a julgar pelo fundo da pele, pelo dorso das mãos e pelo colo almofadado, dando apenas a entender. Um colo arfante, naturalmente.

Olhou-me com olhos úmidos e sua boca rasgada abriu um sorriso à anúncio. O tom com que me falou foi de um recolhimento quase religioso :

- Ah, é o poeta

Fiquei com vontade de engrossar de saída e responder: "Não, é o cobrador da Light!", mas me contive. Ela suspirou fundo - coisa que, aliás, deveria fazer num crescendo assustador - e sem mudar de tom, mas endurecendo ligeiramente as pupilas, voltou-se para minha mulher :

- Que coisa divina ser a companheira de um poeta, a sua musa inspiradora! E que responsabilidade... Porque os poetas, em geral, são pródigos de amor: não é, poeta?

Quis reagir, mas inutilmente. Sorrimos aquele sorriso, e enquanto minha mulher fingia procurar qualquer coisa na bolsa, eu balbuciei um "É!" que merecia ser gravado, pois jamais ouvi nada tão alvar. Ela acertou o vestido nas ancas, num gesto muito característico das mulheres que ainda não desistiram de todo, e aproximando o rosto do meu, segredou-me conivente:

- Aposto que já fez sofrer muitos corações femininos...

Assumi, sem saber bem o que dizer, um ar modesto de "mais ou menos", e já meio baratinado pela ação irradiante de tanto óbvio, respondi sem tirar nem pôr o que aqui vai:

-Qual nada ... A senhora está exagerando... São seus bons olhos... Eu até não sou disso ...

Ela fixou-me ardentemente, numa expressão só-eu-sou-capaz-de-compreender- a-alma-dos-poetas e logo, desviando o olhar do meu para ir perdê-lo na distância, arrematou:

- Dizer que os cientistas estudaram tanto para enviar ao espaço os cosmonautas... E estas mãos (ela tomou-me uma com infinita delicadeza) num simples dedilhar de algumas cordas, nos transportam logo ao céu!

Fiquei com vontade de protestar, de dizer-lhe que estava havendo um erro de pessoa, que ela queria provavelmente se referir a Baden ou Bonfá; mas ela num súbito arroubo que conseguiu elevar-lhe a estatura de dois centímetros, dirigiu-se a minha mulher não sem uma ameaça velada na voz:

- Você sabe a responsabilidade que tem, menina? ser a companheira de um poeta, de um compositor? Você sabe que ele não se pertence, é um patrimônio de todos nós? Você sabe o que é ser musa de um poeta?

Minha mulher, que é muito mais Manuel Bandeira, e tal já me fez ver, chegou a olhar-me com uma certa surpresa enquanto eu, no auge da covardia, procurava abrandar a sagrada cólera da Begum do Lugar-Comum, como a passamos a chamar depois:

- Ela é boazinha, ouviu...

E sem saber mais o que fazer, ofereci-lhe um cigarro, que ela declinou com seca compunção:

- O poeta vai me perdoar, mas uma mulher (e fuzilou a minha com os olhos) deve ter na boca um gosto de amor e não de fumo...

- Falou pouco, mas bem...

Era a rendição. Ela sorriu deliciada:

- Ah! poeta... As mulheres como eu só falam a linguagem do coração...

Na despedida tomou-me familiarmente o braço até a porta, sem dar a menor importância à "minha musa".

- Agora que já sabe o caminho, volte sempre. O ninho é pequeno mas o afeto é grande. Eu serei sempre... toda ouvidos...

A porta fechada, descendo as escadas para a rua, eu me surpreendi com horror dizendo à minha "companheira`.

- Que tal se fôssemos ao Alfredo, comer um fettuccini al triplo burro?

Geir de Campos (Poemas Escolhidos)


ANISTIA

Tantos lustros depois de tantos feios
eventos, volto a perlustrar as francas
paisagens a que afiz os meus passeios
num tempo sem arbítrios e sem trancas,

mas de várzeas macias que nem ancas
e outeiros caroáveis que nem seios
e oásis penteando areias brancas
e olhos d'água a servir cântaros cheios.

Limpos de culpa, os céus não choram mais
e é música de arcanjos que se faz
a cada novo som de pé na estrada:

revivo itinerários da lembrança
— como aos braços da mãe torna a criança
e o homem torna aos da mulher amada.

ANUNCIAÇÃO

De pássaros cadentes como estrelas
a amplidão de repente se povoa
e cada qual é uma notícia boa
da madrugada que vem vindo pelas

quebradas cordilheiras de uma espera
tanto procrastinada quão doída
entre pedaços de espelhos da vida
onde já a hora clara reverbera;

e são asas mais asas convidando
a crer nelas e a ir com elas quando
ruflam assim tão rente ao nosso rosto,

e ponto algum é perto ou longe, e há só
por horizonte uma nuvem de pó
que o sol espana ao retomar seu posto.

ENQUANTO O ESTRÔNCIO CAI

Estranho é estarmos todos sossegados
— o mineral, a planta, o bicho, o homem:
brincam boatos no ar, mas logo somem
sem mutação nos fatos — só nos fados.

Diz que no empíreo os numes aterrados,
sem atinar qual providência tomem,
em sobre-humana angústia se consomem
rolando o azar em seu copo de dados.

Enquanto isso, espantosos cogumelos
giganteiam nas nuvens e tão belos
que homem nem deus nenhum pensa impedi-los;

só na chuva é que vêm frias do alto
as cinzas do hidrogênio e do cobalto
sobre nós tão alheios e tranquilos.

ESPERA

De infinitas esperas confinadas
em angras de iminência, torço os fios
e vou tecendo para o meu navio
bujarronas de auroras almejadas,

contando o tempo de vê-las içadas
aos mastaréus de proa mais esguios,
ao vento panejando o desafio
de quem soubera tudo por um nada

trocar, quando de nada fora a vez
e de palavra ancorada na voz,
para não ir com afoitezas vãs

— por mais brilhantes, mais fáceis talvez —
turvando as águas em coalhos de nós
contra a navegação dos amanhãs.

INVENTÁRIO

Esta epiderme há muitos muitos anos
me cobre: guarda algumas cicatrizes,
outras não lembra mais, e até mistura
uns carinhos da infância a outros de agora.

As unhas não direi que são as mesmas
com que o seio nutriz terei vincado:
são mais duras, mais feias e mais sujas
— pois nem sempre de amor e entrega foi
o chão em que plantei, colhi nem sempre.

Se os dentes não gastei, gastei meus olhos
entrevendo paisagens, vendo coisas,
cegando-me ante sésamos de sombra.

A alma apanhou demais e vai pejada,
mas vão leves as mãos cheias de nada.

SONETO FABRIL

Parques, sim, mas parques industriais:
neles é que passeia o nosso amor
em bairros pouco residenciais
onde ronrona a máquina a vapor.

Das chaminés das fábricas saem mais
nuvens (claras, escuras) de vapor
e de fumaça, com a cor das quais
o azul do céu muda-se noutra cor.

Pairando entre esse céu assim mudado
e a terra onde prossegue a mesma a vida
com seu esquema aceito mas errado

retém-se o nosso olhar em bagatelas
— que de pequenas coisas é tecida
a glória de viver e achá-las belas.

SONETO DE PEQUIM

Cidade com milênios de abandono
fixa o presente acima do passado,
o olhar oblíquo vagamente inchado
de quem teve mau sonho em vez de sono.

Houve reis, mandarins... Agora o dono
de tudo é todo o povo despertado
que o seu trabalho enfim tem compensado
como quem troca o inverno pelo outono.

Os velhos bairros curvam-se em contraste
junto aos quarteirões novos que o guindaste
vai empinando além do antigo muro.

Não há pressa de máquina ou de gente:
quem mais corre é talvez o mais paciente
a contar com o presente do futuro.

UTOPIA

Abro meus olhos vagamente e vaga
mais do que meu olhar meu pensamento
num mapa que se acende e que se apaga
nas dobras dos palimpsestos do vento

parado ou disparado desdobrando
em cavaletes de ar à minha frente
paisagens de não sei onde nem quando
entre a ilha que sou e o continente

de uma fraternidade que procuro
e que sinto esboçar-se em minha espera
de alguma espécie nova de futuro

com os homens irmãos e companheiros
além do pão repartindo a quimera
que os últimos põem junto dos primeiros.

Mário Quintana em prosa e verso 9


Mentiras

Lili vive no mundo do Faz-de-conta... Faz de conta que isto é um avião. Zzzzuuu... Depois aterrissou em piquê e virou trem. Tuc tuc tuc tuc... Entrou pelo túnel, chispando. Mas debaixo da mesa havia bandidos. Pum! Pum! Pum! O trem descarrilou. E o mocinho? Onde é que está o mocinho? Meu Deus! onde é que está o mocinho?! No auge da confusão, levaram Lili para a cama, à força. E o trem ficou tristemente derrubado no chão, fazendo de conta que era mesmo uma lata de sardinha.
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Mentira?

        A mentira é uma verdade que se esqueceu de acontecer.
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Topografia

Meu bonde passa por ali. Pela sua esquina, apenas. É uma ruazinha tão discreta que logo faz uma curva e o olhar não pode devassá-la. Não lhe sei o nome, nem nunca andei por ela. Mas faz anos que me vem  alimentando de mistério. Se eu fosse lá, encontraria alguns poetas: o Marcelo, o Wamosy, o Juca... todos mortos de há muito, todos no mesmo bar. Ah! ruazinha... ruazinha que leva à Babilônia, eu sei... au porto inventado de Stargiris... a regiões entressonhadas a medo.
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Cruel amor

Um dia, da ponta daquela mesa comum de hóspedes, dona Glorinha me interpelou:

- Seu Mario, o senhor ainda não leu o CRUEL AMOR?

Não, eu nunca tinha lido o CRUEL AMOR!... Pois tudo o que falta à minha vida, toda a imperfeição em que ainda me debato, vem de eu nunca ter lido o CRUEL AMOR... de ter achado ridículo o título… de ter achado ridícula a transcendental pergunta de dona Glorinha...
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As falsas recordações

Se a gente pudesse escolher a infância que teria vivido, com que enternecimento eu não recordaria agora aquele velho tio de perna de pau, que nunca existiu na família, e aquele arroio que nunca passou aos fundos do quintal, e onde íamos pescar e sestear nas tardes de verão, sob o zumbido inquietante dos besouros...
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Noturno da viação férrea

Ora, os fantasmas são viajantes noturnos. Se aboletam nos carros vazios e ficam (por que será que os fantasmas não fumam?) a olhar o mundo que desliza...

Mas sucede que as máquinas estavam manobrando apenas. E voltam todas para a gare deserta.        

E depois vem a luz crescente, a luz cruel, situando e ambientando as coisas.

É quando surgem, cabalísticos, os primeiros letreiros:

-        HOTEL SAVÓIA - Ao PENTE DE OURO - SAÚDE DA MULHER - os fantasmas, puídos de claridade, soltam um pífio suspiro e se desvanecem...

sábado, 30 de março de 2019

Odenir Follador (Ponta Grossa, Princesa dos Campos Gerais)


Salve, salve, oh! Querida Ponta Grossa,
 Princesa encantada dos Campos Gerais!
Das verdes campinas és a alma nossa.
Brancas asas, o início... Esquecer jamais!

De seus prédios e casarões alvissareiros,
das ruas seminuas no entorno da praça.
Onde havia até transporte de passageiros;
a Estação Saudades e a Maria Fumaça!

Havia também outro meio de transporte:
quatro linhas de ônibus no Ponto Azul
que ligava todos os bairros dando suporte,
num irrequieto vai e vem, de Norte a Sul.

E muito próximos, com porte magistral:
a fonte da Praça Barão do Rio Branco,
o Coreto e a nossa imponente Catedral;
magia dourada de um momento franco.

Indústrias Wagner com chaminé altaneiro,
da Cia. Adriática e da cerveja Original!
Nas ruas: cavalos, carroças e carroceiro
movendo e agitando o centro comercial.

As muitas lojas, comerciais e industriais
foram demolidas, sequer preservadas!
Só lembranças...  Hoje não existem mais!
Pela moderna construção, foram trocadas.

Oh! Querida Princesa dos Campos Gerais;
que saudades... Recordação e Nostalgia!
Lembranças que não apagarão jamais,
da candura e doçura que tivemos um dia.

Fonte: O poeta