quinta-feira, 2 de maio de 2019

Electra, de Eurípides, Sófocles e Ésquilo



Excerto do artigo de Antonio Jardim: Electra: Mito e Tragédia

1. ELECTRA DE EURÍPEDES

1.1 O assassinato de Agamêmnon. A cena é aberta com o trabalhador, esposo imposto à Electra, narrando a trajetória que precede os acontecimentos que se estão por iniciar. Retornando vitorioso da guerra de Tróia, Agamêmnon chega a Argos onde é recebido por Tíndaris (Clitemnestra). Esta o atrai para uma cilada onde Egisto, seu amante, o mata. Orestes escapa de ser morto ao ser salvo por um velho que havia sido preceptor de seu pai. Electra é dada em casamento ao trabalhador como uma forma de evitar que pudesse gerar uma descendência nobre que viesse tomar a si a vingança de Agamêmnon.

1.2 O encontro de Orestes e Electra. Orestes nota a aproximação de Electra, toma-a por uma escrava. O coro comunica a Electra que algumas festividades deverão se realizar e apela no sentido de que ela participe das festividades, quando dois homens se aproximam, são Orestes e Pílades ainda incógnitos. Orestes aproxima-se e sabe de Electra que esta está casada com um trabalhador que, em verdade, não a toma por esposa por não reconhecer o direito de quem a deu a ele, por esposa, de o fazer. Electra afirma que mesmo que visse Orestes seria incapaz de reconhecê-lo, e que só o velho que o salvou da morte o reconheceria. O trabalhador, esposo de Electra retorna e é enviado por esta a chamar o velho preceptor de Orestes para que este também tenha notícias dele através do desconhecidos. O velho ao chegar informa ter visto no túmulo de Agamêmnon um sacrifício em sua homenagem  e  madeixas de cabelo louro e exorta Electra a fazer um reconhecimento das pegadas comparando-as aos seus pés. Orestes se junta a eles e reconhecido pelo velho, e o encontro se converte em reconhecimento.

1.3 A morte de Egisto. A conselho do velho, Orestes vai ao encontro de Egisto no campo. Lá chegando segundo o plano pré-concebido, mata Egisto quando este sacrificava os bois. Electra é informada por um mensageiro da morte de Egisto quando já está a ponto de se desesperar pela incerteza do sucesso da empresa de Orestes.

1.4 Orestes retorna do campo. Orestes chega à casa de Electra trazendo o corpo de Egisto. Electra faz um longo discurso insultando o cadáver que é transportado para o interior da casa.

1.5 A dúvida de Orestes. Orestes hesita ante a iminência de ter que matar sua própria mãe. Electra insiste na necessidade de que a vingança se complete, invocando o oráculo de Apolo.

1.6 A morte de Clitemnestra. Clitemnestra atraída pela notícia de que Electra teria dado à luz chega à casa de Electra. À sua chegada num diálogo com esta, tenta justificar o assassinato de Agamêmnon. Electra contesta seus argumentos. Electra solicita de Clitemnestra que esta cumpra os ritos de praxe. Ao entrar na casa Clitemnestra é morta por Orestes.

1.7 Aparecem os Dióscuros. Em meio às lamentações de Orestes e Electra, surgem os Dióscuros. que reordenam as coisas, recomendando que Orestes dê Electra como esposa a Pílades, e que Orestes se vá de Argos para Atenas, para se por a salvo das Eríneas que se aproximam. Os dioscuros preveem a absolvição de Orestes no Aerópago e atribuem às culpas ancestrais a desgraça dos dois.

2. COÉFORAS DE ÉSQUILO

2.1 O retorno de Orestes. Orestes e Pílades chegam ao túmulo de Agamêmnon. Orestes rende homenagem ao pai, e percebe a aproximação de algumas mulheres que vêm trazer libações. Entre estas reconhece Electra, sua irmã e apela a Zeus que lhe conceda a ventura de vingar a morte do pai.

2.2 Electra vai ao túmulo de Agamêmnon. Ao derramar as libações sobre o túmulo do pai Electra se depara com uma mecha de cabelo que lhe faz pressentir a presença de Orestes. Percebe também um segundo indício nas pegadas encontradas junto ao túmulo.

2.3 O encontro de Orestes e Electra. Orestes aparece seguido por Pílades e o reconhecimento de Orestes por Electra ocorre depois que Orestes apresenta à Electra o manto por ela tecido.

2.4 O sonho de Clitemnestra. Corifeu narra a Orestes o sonho em que Clitemnestra pare uma víbora, e esta fere seu seio quando da amamentação. É em função desse sonho com tonalidade oracular que Clitemnestra manda oferecer as libações de que Electra e o coro são portadoras.

2.5 A simulação. Orestes, de acordo com o plano previamente traçado, se apresenta como um estrangeiro vindo da Fócida, que traz notícias de Orestes. É recebido por Clitemnestra que toma conhecimento da morte de Orestes. Clitemnestra envia a antiga ama de Orestes até Egisto pedindo a este que retorne para tomar conhecimento das notícias. Ao sair do palácio a ama é abordada por Corifeu e é por esta persuadida a recomendar a Egisto que venha só de modo a não assustar os estrangeiros.

2.6 A morte de Egisto. Egisto retorna ao palácio e é morto por Orestes. Um criado informa Clitemnestra, através de um enigma, sobre o ocorrido com Egisto.

2.7 A morte de Clitemnestra. Mesmo com os apelos da mãe, Orestes, após alguma indecisão, lembrado por Pílades do oráculo de Apolo, obriga Clitemnestra a entrar no palácio e, confirmando o sonho premonitório da mãe, a mata.

2.8 A fuga de Orestes. Depois de travar um longo diálogo com o coro, Orestes foge perseguido pelas Eríneas.

3. ELECTRA DE SÓFOCLES.

3.1 Orestes chega ao palácio. Acompanhado por Pílades e pelo preceptor, Orestes chega ao palácio. Se propõe a cumprir o oráculo e traça imediatamente os planos para cumpri-lo. Escuta os lamentos de Electra, com esta ainda dentro do palácio.

3.2 Electra renova seu compromisso. Electra sai do palácio, relembra o assassinato do pai, e renova o seu propósito de não deixar esquecer o pai e vinga-lo.

3.3 Aparece Crisótemis. Crisótemis, irmã de Electra, sai do palácio e depois de um áspero diálogo com esta, lhe diz das intenções de Egisto e Clitemnestra de encerra-la viva se Electra não reformular o seu comportamento com a mãe e o padrasto. Informa também que Clitemnestra se viu atormentada por um sonho em que Agamêmnon lhe aparecia, e é esta a razão porque Clitemnestra envia através de Crisótemis as libações ao túmulo de Agamêmnon. Crisótemis atende ao apelo de Electra para que não faça as libações encomendadas pela mãe.

3.4 Discussão entre Electra e Clitemnestra. Clitemnestra sai do palácio e encontra Electra. Um diálogo entre ambas se processa com Clitemnestra tentando justificar o assassinato do marido.

3.5 A simulação. O preceptor chega de volta às portas do palácio anunciando a presença de emissários estrangeiros e trazendo um relato detalhado do modo como Orestes teria morrido na Fócida. Electra  se desespera com a notícia.

3.6 A presença de Orestes. Crisótemis retorna do túmulo do pai dizendo ter encontrado sinais da presença de Orestes e é informada por Electra da morte de Orestes. Electra então tenta persuadir, sem sucesso, Crisótemis a ajuda-la na vingança do pai.

3.7 O encontro. Orestes e Pílades voltam à entrada do palácio e encontram Electra. Esta lhes faz um longo relato  de  seus sofrimentos e de seu estado atual. Orestes se compadece e acaba por se identificar mostrando a Electra o anel de Agamêmnon.

3.8 A morte de Clitemnestra. Electra introduz Orestes, Pílades e o preceptor, este devidamente identificado por Electra, no palácio e Orestes sem qualquer hesitação mata a mãe.

3.9 A morte de Egisto. Egisto retorna ao palácio querendo saber das notícias que dão conta da morte de Orestes, Electra o incentiva a entrar. Ao entrar, Egisto se depara com o cadáver que pensa ser o de Orestes, mas descobre ser o de Clitemnestra e é morto por Orestes.

EXPOSIÇÃO DAS DIFERENÇAS

Dentro da perspectiva de tentar responder às questões formuladas na introdução deste trabalho, e consequentemente, tentar entender o relacionamento de Electra com o mito e o trágico, passamos agora a expor as diferenças entre as três versões de Electra, a de Eurípedes, a de Sófocles e a mesma temática exposta nas Coéforas de Ésquilo, para isso, vamos nos utilizar da transcrição de sequências que realizamos nas três obras.

AS DIFERENÇAS:

1. A PRIMEIRA DAS DIFERENÇAS CONSIDERÁVEIS DIZ RESPEITO À CENA DE ABERTURA:

Enquanto Ésquilo dá de início a palavra a Orestes e este, acompanhado por Pílades, junto ao túmulo de Agamêmnon lhe rende homenagem.

Sófocles introduz Orestes na cena inicial mas sem lhe dar a palavra, já que é o preceptor quem inicia um diálogo com Orestes indicando-lhe os lugares da cidade que Orestes foi obrigado a deixar há muito tempo.

Eurípedes tem necessidade de um narrador que informe com detalhes os precedentes da trama que se vai seguir. Ainda que isto ocorra de uma forma ou de outra nas três versões, é nítida a preocupação de Eurípedes de que sua narrativa tenha um encadeamento lógico. Os pressupostos por isso são imediatamente apresentados.

2. A SEGUNDA DAS DIFERENÇAS: O ENCONTRO DE ORESTES E ELECTRA

Nas Coéforas o encontro é preparado com Electra encontrando primeiramente uma mecha de cabelo que ela acredita ser de seu irmão, bem como observa a semelhança das pegadas encontradas junto ao túmulo com as suas, em seguida Orestes aparece e é identificado quando apresenta como prova o manto que lhe foi tecido pela própria Electra.

Em Sófocles o encontro se dá quando a narrativa já está bem avançada, o encontro ocorre bem próximo da morte de Clitemnestra, a prova apresentada é um anel pertencente a Agamêmnon para que Orestes se faça reconhecer.

Em Eurípedes Orestes encontra Electra no início da narrativa, mas só é reconhecido pelo velho preceptor, depois que este percebe em Orestes a presença de um sinal característico.

3. A TERCEIRA DAS DIFERENÇAS: A MORTE DE EGISTO

Nas Coéforas a morte de Egisto é precedida por dois momentos: Orestes toma conhecimento, através de Corifeu, do sonho premonitório em que Clitemnestra se vê mordida por uma serpente parida por ela própria; Orestes é recebido por Clitemnestra e lhe comunica a sua pseudo-morte. Clitemnestra envia então a ama para dizer a Egisto que este deve retornar para receber a notícia.

Em Sófocles a morte de Egisto sucede à morte de Clitemnestra e antes que isso ocorra é introduzida a figura de Crisótemis, irmã de Electra, como aquela que sabe das intenções de Egisto e Clitemnestra de matarem Electra. Crisótemis desempenha ainda um outro papel relevante na trama pois encontra vestígios da presença de Orestes e comunica-o a Electra, que não crê, pois acabara de ouvir o relato do preceptor dando conta da morte de Orestes.

Em Eurípedes A morte de Egisto é tramada e logo executada com Orestes a conselho do velho indo ao seu encontro no campo onde Egisto realiza rituais. O corpo de Egisto é  trazido  depois de morto para a casa de Electra.

4. A QUARTA DAS DIFERENÇAS: A MORTE DE CLITEMNESTRA

Em Ésquilo Orestes, embora um tanto relutante ante os apelos de Clitemnestra, acaba por mata-la quando lembrado por Pílades do oráculo de Delfos. Depois de matar a mãe Orestes é perseguido pelas Eríneas e foge da cidade.

Em Sófocles Orestes não hesita em momento nenhum mata Clitemnestra sem dar atenção aos apelos desta. Orestes não vive nenhum conflito e logo a seguir mata Egisto.

Em Eurípedes Clitemnestra é atraída à casa de Electra, onde é morta após muita relutância por Orestes. Depois de matar a mãe Orestes vive um sentimento de culpa, os Dióscuros aparecem e recomendam que ele se vá da cidade e se submeta ao tribunal do Aerópago e é informado de sua absolvição.

5. A QUINTA DIFERENÇA: OS COADJUVANTES

Em Ésquilo a participação mais decisiva de um coadjuvante é a de Pílades que recorda a Orestes o oráculo que prescreve a vingança.

Já em Sófocles pode-se destacar o preceptor e Crisótemis.

Em Eurípedes o velho preceptor é decisivo tanto ao reconhecer Orestes quanto ao lhe fornecer as informações para que este mate Egisto.

6. A SEXTA DIFERENÇA: A SITUAÇÃO DE ELECTRA

Enquanto nas Coéforas Electra é aquela que vela pela manutenção do ódio e da necessidade de vingança com referência aos assassinos de seu pai.

Em Sófocles Electra é mantida como prisioneira mas não é este o seu traço mais marcante, ela é memória que vela pelo não esquecimento dos acontecimentos que vitimaram seu pai.

Em Eurípedes vamos encontrar Electra reduzida a esposa de um trabalhador e podemos perceber um tom um tanto ressentido nas falas da personagem. Esse fato altera o seu papel e ao ódio devotado aos assassinos de seu pai se soma o ressentimento proveniente da humilhação sofrida pela queda de sua posição social.

É evidente que outras diferenças, talvez mais sutis aparecem num comparação mais detida dos textos em questão, essas são as que destacamos nessa nossa primeira abordagem dessas tragédias. Poderíamos mesmo localizar o objeto deste trabalho em apontar outras diferenças, mas não optamos por isso. Essas diferenças, do mesmo modo que a transcrição de sequências tem para nós um sentido de mapeamento elementar para que possamos a seguir desenvolver a análise que pretendemos de tragédia em questão. Para desenvolvermos a análise pretendida tendo como questões as apresentadas na introdução quer nos parecer que as diferenças mais relevantes são as apontadas acima.

ANÁLISE DE ELECTRA: ESTABELECIMENTO DOS MEIOS


Neste nosso trabalho temos até aqui desenvolvido uma caracterização do mito, bem como uma caracterização do sentido trágico. Essas duas caracterizações só agora, na estrutura pela qual optamos passam a fazer sentido. A partir dessas caracterizações é que estabelecemos uma primeira dualidade que nos servirá para realizarmos a análise da Electra de Eurípedes. Nossa ideia original era a de analisarmos um trecho da obra, porém no decurso do trabalho foi tomando forma uma outra ideia a de analisarmos os personagens a partir do seu comprometimento maior ou menor com os dois princípios que instituímos como pontos de partida: o mítico e o trágico.

A essa dualidade elementar superpusemos uma outra de forma ternária que pretende dar conta do esquema funcional das personagens. Nesse sentido, então os personagens da tragédia podem, numa relação com índices determinados tanto por características essenciais deles próprios ou então por relacionamento com o conjunto de acontecimentos da tragédia,  ser pensados com respeito ao seu papel na trama. Os acontecimentos, por sua vez, se relacionam com essa estrutura elementar que se ordena em dois eixos: o eixo dos princípios e o eixo das funções.

O EIXO DOS PRINCÍPIOS

Para estabelecermos o que chamamos de eixo dos princípios partimos de alguns pressupostos. O primeiro deles foi que mito e tragédia não eram a mesma coisa, não poderiam, portanto, ser confundidos. Por outro lado entendemos que entre mito e tragédia se desenvolvia, ao menos no contexto de nosso estudo, uma oposição. Não exatamente uma contradição mas uma oposição com características de complementaridade no âmbito da narrativa. Significa: a conjugação de mito e tragédia dimensiona acontecimentos e personagens, estrutura narrativa e estrutura das personagens.

O EIXO DAS FUNÇÕES

Estabelecemos o eixo das funções partindo de uma espécie de modo de produção dos efeitos, que também pode ser entendido como modo de produção dos acontecimentos ou dos comportamentos, ou ainda dos compromissos. Enfim esse modo de produção se articula a partir do processo desenvolvido, processo este que é composto por três instâncias fundamentais: a instância do agente, no sentido em que os gregos compreendiam o verbo poiew, isto é, aquele que faz nascer a ação, dá origem à ação; a instância do objeto, no sentido em que os gregos compreendiam natikeimai, isto é, o que está situado em face de, e o que se presenta como um modo de opor resistência; a instância do efeito, no sentido em que os gregos compreendiam ergon, isto é, o resultado de ações, o produto de uma trama, aquilo que se concretiza, se realiza.

OS NOMES E SEUS SIGNIFICADOS

Além da análise operada nos dois eixos acima prenunciados nos pareceu estimulante tentar um percurso etimológico através dos nomes da obra de Eurípedes. Fomos para isso estimulados pela possibilidade de depreender sob a representação do nome traços que sejam capazes de dar aos personagens um comprometimento mais estreito em relação ao seu comportamento. O nome em qualquer estrutura social, e ao longo dos tempos tem se configurado, no mínimo, um extraordinário índice. Segundo Cassirer, para os esquimós, o homem se compõe de três partes: seu corpo, sua alma, e seu nome. Por outro lado é ainda o próprio Cassirer que nos informa: "Sob a lei romana, os escravos não tinham   direito a nome, porque não podiam funcionar como personalidades independentes."

Dessa forma pensamos poder realizar a análise da Electra de Eurípedes e conseguir aquilo que seria decisivo para nós, isto é: acabar este trabalho de forma diferente da que nele entramos, seja com respeito ao que é a obra em questão, seja com referência à tragédia enquanto forma de expressão tão significativa da cultura ocidental.

ELECTRA MITO E TRAGÉDIA - ANÁLISE

Neste ponto realizamos a análise propriamente dita da Electra de Eurípedes e, como já dissemos anteriormente, na obra o que será analisado serão as personagens em relação aos dois eixos que estruturamos como forma de entender o papel desempenhado na tragédia por esses personagens. No eixo dos princípios temos a dimensão do mítico e a dimensão do trágico. No eixo das funções temos uma estrutura ternária: a função de poiew, a função de antikeimai, e a função de ergon, isto é: funções de agente, objeto  e  efeito ou produto.

Procederemos a análise da Electra de Eurípedes respeitando a ordem de importância das personagem reservando para o final o quarteto Electra, Orestes, Clitemnestra e Egisto.

A primeira personagem a aparecer em cena é o trabalhador micenense. Este personagem se apresenta como periférico aos eixos escolhidos para enfocar a obra, não se pode dizer que sua participação seja a de um agente mítico ou trágico, não chega a ser por outro lado objeto mítico ou trágico. É uma personagem de encadeamento das ações. O seu papel é muito mais de configurar os pontos de referência prévios para o entendimento da dinâmica da trama. É utilizado como efeito de comunicação entre o autor e o público.

O ancião, ainda que não se caracterize como uma personagem pertencente a nenhum dos eixos, desempenha um papel relevante no interior da narrativa pois desempenha duas importantes: reconhece Orestes e auxilia este a encontrar e matar Egisto, não chega a dar origem a uma ação o que o caracterizaria como agente, mais é um meio de interligação dos personagens.

O mensageiro é outra personagem que desempenha um papel de interligação não apenas entre os personagens, mas dos elementos da própria narrativa.

Pílades na tragédia de Eurípedes é um personagem acessório, e em momento nenhum chega a ter qualquer intervenção direta na ação. A ele é apenas reservado o papel de receber Electra de Orestes, permitindo assim que se restabeleça o que Levi-Strauss chamaria de estrutura elementar de parentesco e devolvendo a legitimidade da organização familiar desestabilizada com o assassinato de Agamêmnon. Talvez numa análise que visasse investigar essas relações na obra sua presença pudesse ser tomada em maior consideração.

O coro desempenha um papel relativo ao senso comum e sua característica volatibilidade. Vaga do clamor à vingança até a condenação desta mesma vingança. O coro é a presença do externo na trama e o seu compromisso, como nem poderia deixar de ser, é tênue. Não é agente, não é objeto, nem é efeito, trágico nem mítico.

Os Dióscuros, estes são agentes míticos. O tom oracular de sua intervenção põe de volta ordem às coisas, mas a ordem re-instaurada é uma ordem transcendente, não é uma ordem com dimensão meramente ôntica. Trata-se de uma ordem dos deuses e dos desígnios, uma ordem na destinação, e é precisamente isso que os configura e confirma como agentes míticos.

Egisto é um personagem que não se apresenta em cena. No entanto, se apresenta na trama como um agente mítico ao mesmo tempo que como objeto mítico. Por que? Ora porque Egisto é, mesmo em ausência, a presença viva da maldição dos Atridas. Sendo filho de Tiestes, ele é presença de tempo imemorial que entra pelas frestas na trama e se torna turbilhão, na medida que sua presença é fator detonador de toda a tragédia. Por outro lado é objeto mítico na medida em que ele se apresenta à vingança de Orestes e Electra. Não chega a ser um agente mítico porque para isso lhe faltam algumas coisas: a exemplaridade, e a dimensão de verdade no sentido da alétheia grega. Certamente não desempenha papel nem de agente nem de objeto trágico, significa: não é agente trágico nem em Electra, como não é em Agamêmnon. Agente do assassinato de Agamêmnon, não consegue, porém, a dimensão de agente trágico porque a prática do assassinato se dá sem a tensão necessária para que esse ato tivesse dimensão trágica. O fato de Egisto assassinar Agamêmnon não chega a ser nada de conflituoso no âmbito da personagem, nem mesmo para o público. Do mesmo modo que o fato de ser ele assassinado por Orestes não configura tragédia, apenas, se tanto, um crime comum. Assim Egisto se apresenta como um objeto mítico.

Clitemnestra se apresenta como um objeto trágico, exatamente por tudo aquilo que Egisto não o consegue ser, significa: ao se apresentar como objeto da vingança dos filhos, Clitemnestra, chamada Tíndaris em Eurípedes, se configura como uma personagem que evolui de agente trágico em Agamêmnon para objeto trágico em Electra. Por outro lado Clitemnestra não é um objeto mítico porque sua função, sua história é eminentemente trágica. Ela não entra na tragédia pelos vãos sua presença é o tempo todo íntegra ele não é nenhuma forma de revivescência. Não é nesta tragédia um agente trágico porque para isso lhe falta a dimensão de produzir efeitos com sua ação. Desempenha a função trágica do bode expiatório.

Orestes é um agente trágico uma vez que é ele responsável pela ação de maior grau de tensão e conflito da tragédia, a morte de sua mãe. Enquanto agente sacrificial, imolando em rito sua própria mãe, é aí mesmo que Orestes ganha a dimensão de agente trágico. A morte de Egisto, pura e simplesmente seria insuficiente para lhe dar a função de agente e a dimensão de trágico, a vingança da morte de seu pai nada mais seria do que o cumprimento de uma lei, isto é, seria normal portanto. Sua ação é a de agente e sua dimensão de trágico.

Electra é um agente mítico. É memória e verdade (alétheia) de si mesma de Orestes e dos Atridas. Fator principal de atualização, no sentido de tornar ato a maldição, já que não permite que o esquecimento encubra a morte de Agamêmnon. Tem dimensão mítica, mas não chega a ter dimensão trágica, embora, por vezes chegue perto dessa dimensão. Não é casual portanto que quando se refira a um mito nesta história ele tenha o seu nome.

ANÁLISE ONOMÁSTICA

Para encerrar este trabalho, nos pareceu que uma análise etimológica dos nomes de Electra e Tíndaris (Clitemnestra em alguns momentos da obra de Eurípedes) seria um bom complemento e que poderia mesmo trazer maiores subsídios para análise acima desenvolvida, além de nos auxiliar nas questões temáticas para nós apresentadas no início deste trabalho.

CLITEMNESTRA

Tratada inicialmente, no prólogo do trabalhador miceniense, por Tíndaris, que significa aquela que deve, e precisa pagar, a personagem carrega consigo essa destinação de ter que pagar, ter que expiar, ser o bode expiatório

Por outro lado, Clitemnestra vem da junção de klitos + mnester, significa: desejo de celebridade, desejo de ser célebre, bem como pode significar desejo de se casar. Ambos os significados têm relação à personagem, a ambição e o desejo de compartilhar novamente seu leito nupcial, de certo modo levam Clitemnestra a traçar a sua destinação.

ELECTRA

Em primeiro lugar devemos dizer que o nome originário de Electra era Laodice. O nome Electra só aparece nas tragédias, o que tem coerência se analisarmos etimologicamente os dois nomes.

O nome Laodice é composto por Lao + dike, significa: justiça pública, justiça do povo, portanto uma justiça pré-jurídica, uma justiça da tradição. Nas tragédias contemporâneas da presença de uma justiça da pólis, uma justiça de tribunal, parece ser este fato, um razoável indicador da preferência de Electra à Laodice.

Por outro lado o nome Electra deriva da mesma raiz que elctron que significa âmbar; por sua vez âmbar é uma substância sólida de cheiro almiscarado, proveniente das vísceras do cachalote; almíscar vem do persa mushk que significa testículo, e também é uma substância odorífera de sabor amargo e cor amarelada muito volátil e utilizada em perfumaria e farmácia..

Ora, a personagem Electra tal como é enunciada na tragédia de Eurípedes carrega consigo uma boa parte das características de sua raiz etimológica. Senão vejamos: comecemos pela cor o amarelo embora não seja em momento nenhum enunciado na obra pode ser caracterizador de uma personagem cotidiana e sem brilho, corroída pelo ressentimento na qual foi convertida Electra na obra em questão; por outro lado a proveniência intestina do almíscar de alguma forma se aplica à visceralidade com que a personagem mantém presente a necessidade de que a vingança se realize, e tenha continuidade a maldição dos Atridas -efeito mítico - na morte de Egisto, bem como de sua mãe Clitemnestra -efeito trágico. Na proveniência dos testículos o fundo comprometimento com o pai - compromisso mítico. O sabor amargo da angústia acalentada por tanto tempo também é presente.

Fonte: 
http://www.ciencialit.letras.ufrj.br/garrafa10/antoniojardim.html

quarta-feira, 1 de maio de 2019

J. G. de Araújo Jorge (Inspirações de Amor) VIII


E OS TEUS OLHOS ASSIM...

Nos teus olhos existe uma tortura imensa,
uma sombra de noite entre vagos clarões,
essa expressão inquieta e incerta de quem pensa
e vive o terror das interrogações...

E ao tempo que se esvai, cada vez mais se adensa
a noite em teu olhar ocultando aflições...
Parece que morreste, ou que sofres da doença
terrível da loucura ou das meditações...

A tua alma parou... A tua alma tão moça
não é como a água viva em loucas enxurradas,
mas como a água parada e morta de uma poça...

E os teus olhos assim... lembram, nessa negrura,
duas janelas rindo, aos céus, escancaradas,
numa casa vazia abandonada e escura!

E TU CHEGASTE...
Mas trouxeste nos olhos sombras estranhas
nuvens dentro de um céu;
e a tua boca sorri o sorriso das rosas encarnadas
cheias de sol e mel;
e as tuas mãos guardam vestígios de carícias que murcharam,
e a tua alma, apesar de ser grande e ser bela,
nos momentos de nossa exaltação,
às vezes me parece pálida e amarela,
como uma folha lida
e já relida
de um romance que andou talvez, numa outra mão.
........................

Ah! Ninguém saberá nunca o quanto eu sou
desgraçado e infeliz na minha dor,
quando ao te amar assim, como louco
um doente,
encontro em teu amor, às vezes, casualmente,
os restos de outro amor!
Desde
cedo andei nas ruas entre os bandos
dos filhos dos pobres,
andei descalço... e apanhei muitas surras
por faltar às lições...

ERA UMA VEZ ...
- Meu Primeiro Amor -

O meu amor primeiro... o meu primeiro amor,    
foi anseio, e viveu na incerteza de uma ânsia, 
   - botão que não se abriu... que não chegou a flor,
- um pedaço de céu, quase limpo e sem cor      
perdido nos sem-fins azuis da minha infância...

Silhueta a se apagar, mas que o meu Ser divisa,
uma emoção feliz que nem foi emoção ...           
- nuvem leve a fugir aos impulsos da brisa,     
tênue... vaga... sutil... bem distinta e imprecisa,
passando na memória do meu coração...           

O meu primeiro amor, - um vulto que esqueci 
num canto da lembrança a dormir empoeirado,
- rosto que se apagou porque nunca mais vi,  
- um quadro que se esvai, e que deixei ali        
esquecido no sótão velho de um passado...      

Alma de uma ilusão pequenina e simplória      
que se dissolve em mim... e aos poucos se desfaz...
parece outro destino, outra vida, outra história,
quando o tento arrancar das sombras da memória
tão longe... que ao lembrar-me... eu nem me lembro mais...

O meu primeiro amor... A primeira esperança   
que abriu asas de sonho a procurar o além,      
- hoje, é apenas lembrança a brincar na lembrança
levado na tristeza do que não se alcança,            
na saudade de tudo o que nunca mais vem!       

Pétala que entre um livro amarelou, perdida,     
há muito tempo, há muito... por alguém que o leu,
- e agora, ao encontrá-la, seca e fenecida            
no romance sem fim da minha própria vida       
nem sei se quem a pôs entre as folhas fui eu...   
.....................

O meu primeiro amor... O meu amor primeiro,
foi uma história azul dessas de " era uma vez"...
- uma história feliz... um conto verdadeiro        
que um dia o meu Destino, um velho feiticeiro,
quis fazer mas não soube terminar talvez...      

Minha glória primeira... e o meu maior desejo
de crescer, de subir, de explicar o Universo!  
Passou... Foge de mim... mas ainda o sinto e o vejo,
- porque ele é a sensação do meu primeiro beijo
e a impressão imortal do meu primeiro verso!

ESQUECIMENTO

Mais tarde em tua vida, um dia, hás de tentar
revolver da memória este tempo de agora...
- Mas o mundo é uma praia, onde as ondas do mar
apagam quase sempre as lembranças de outrora...

Hás de em vão, ao teu Deus, esse Dom suplicar
sem conseguires nunca o que a tua alma implora...
- É que a vida é uma fonte, a correr sem parar
e a seguir, sem voltar, por este mundo afora...

Não se vive outra vez... O que chamas presente,
há de ser, amanhã, um romance apagado
que em vão procurarás reler, inutilmente...

O tempo tudo vence... Tudo ele consome...
E se um dia, talvez, lembrares teu passado
não mais hás de sequer reconhecer meu nome!...

ESSA...

Essa, que hoje se entrega aos meus braços escrava
olhos tontos de amor que aos poucos me farto,
ontem... era a mulher ideal que eu procurava
que enchia a minha insônia a rondar meu quarto...

Essa, que ao meu olhar parado e indiferente
há pouco se despiu - divinamente nua -,
já me ouviu murmurar em êxtase fremente:
- "Sou teu!"   E já me disse, a delirar: - "Sou tua!"

Essa, - que encheu meus sonhos, meus receios vãos,
num tempo que eram vãos meus sonhos, meus receios,

já transbordou de vida a ânsia das minhas mãos
com a beleza estonteante e morna de seus seios!

Essa, - que se vestiu... que saiu dos meus braços
e se foi... - para vir, quem sabe? uma outra vez...
- segui-a... e eu era a sombra de seus próprios passos.
Amei-a... e eu era um louco quando a amei talvez !

Hoje, seu corpo é um livro aberto aos meus sentidos
já não guarda as surpresas de antes para mim...
Não importa se há livros muita vez  relidos
importa... é que afinal, todos eles tem fim...

Essa, -  a que julguei ter tanta afeição sincera
e hoje...  não enche mais a minha solidão,
simboliza a mulher que sempre a gente espera,
mas que chega... e se vai... como todas se vão...

ESTRANHA ENCRUZILHADA

Não sei por que cruzou com a tua a minha estrada,
o destino é inconsciente e não sabe o que faz...
- Encontro-te, e afinal, já sei que tu és amada,
encontras-me, e afinal, já é bem tarde demais...

Já não posso esquecer a existência passada,
perdi meu coração - o amor não tenho mais...
- já não tens coração, e a tua alma, coitada,
sofrendo há de ficar sem me esquecer jamais...

Até hoje nesse amor não tínhamos pensado:
é por  isso talvez que em silêncio tu choras,
e em silêncio também meu pranto é derramado

Eu cheguei... Tu chegaste... Estranha encruzilhada:
se eu tenho que partir depois que tu me adoras,
se, tu tens que ficar sabendo-te adorada!...

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 1. SP: Ed. Theor, 1965.

Carolina Ramos ("O Tempo é Ouro")


— Ó Pedro, o que faz você aí parado?! O tempo é ouro. menino!

Pedro estremeceu, arrancando-se a custo à contemplação de um ativo carreiro de formigas. Seus oito anos de vida, admitiam que até aqueles minúsculos seres, apressados e tão laboriosos, ao seu contínuo vai-vem, melhor do que ele reconheciam que o tempo era ouro.

— Já vou, mãe... — disparou para casa.

— "O tempo é ouro!" — às vezes, chegava a ter raiva do tempo! Em casa, era a mãe, era o pai, eram os irmãos, todos a cutucá-lo o dia inteiro: "Anda, Pedrinho, que o tempo é ouro!" Na escola, a professora e os colegas a repetirem o mesmo refrão: "O tempo é ouro... o tempo é ouro!"

Ah! se o tempo não valesse tanto quanto vale, poderia desfrutá-lo bem melhor! As flores não murchariam tão depressa e poderia olhá-las o quanto quisesse, sem que ninguém o importunasse com urgências.

Ah! valesse o tempo tanto quanto a poeira que o vento sopra e dissipa no espaço! — Para que correr, se o tempo custaria tão barato?! Nada de economias, poderia gastá-lo à vontade! O pai, a mãe, a mestra, enfim, toda aquela gente grande, que o fazia olhar para cima, cada vez que lhe dava ordens, deixaria de o importunar. Tão bom, se o tempo fosse apenas lixo! Ninguém ligaria para ele, assim como Pedro não ligava, mesmo sabendo que valia ouro.

— Ó menino, outra vez parado?! As lições estão prontas? Preciso de você para uns recados e você jogando o tempo fora!

Pedro retornou à terra. Correu para a mãe. No caminho, repetiu várias vezes: — "Não gosto do tempo! Não gosto! Não gosto, mesmo!"

Naquele dia, enquanto a professora se desvelava na lousa, encheu toda uma página do caderno de linguagem, com sua letra gorda: — "Não gosto do tempo!"

Acabou de castigo, após a aula, por desatento. Não era a primeira vez que isso acontecia.

— Afinal, Pedrinho, por que você não gosta do tempo?!

— Não gosto, porque ele é bruto e me empurra o tempo todo!

A idiossincrasia cresceu com ele. Custava a enquadrar-se no mostrador de um relógio. Lembrava-lhe um cárcere.

Chegava diariamente atrasado ao escritório. O relógio do ponto, sempre hostil e pronto a depor contra ele. — Que poderia entender da vida esse tirano mecânico, sem alma e sem sentimento?!

Acabou por perder o emprego. Este, e alguns outros. Era bem mais agradável seguir para a praia, quando todos tomavam rumo contrário. Sentava-se nas pedras, meias e sapatos ao lado. Deixava que o mar lhe salgasse os pés cansados. O mar, sim, o entendia! O mar também não gostava do tempo. Não lhe dava confiança de se importar
com ele. No seu vai-vem eterno, ia e vinha como queria, num balanceio constante, sem objetivos, nem preocupações: — se queria subir? subia; se queria descer, descia; se queria cantar, cantava e se queria bramir, céus! — que bruto barulhão fazia! — Ninguém o prendia, ninguém o empurrava. Só mesmo Deus, lá de cima, tinha poderes sobre ele. Mas, Deus não empurra nem acorrenta ninguém. Pede contas um dia, mas, não amarra ninguém à Sua Vontade. O tempo, este, sim, é um tirano perfeito! Acelera e persegue todo o mundo! Encarcera as criaturas em celas numeradas e faz delas suas escravas. Antigamente, as notícias iam e vinham a cavalo. Agora, é o telefone, é o rádio, o fax, a televisão e nem se sabe o que mais! E é assim que o homem, sob o comando do tempo, vai precipitando os próprios passos e ações, e multiplicando o peso das responsabilidades. Atrás disso, as ansiedades, as angústias, as psicoses e os enfartes do miocárdio!

— "O tempo é um ladrão sem escrúpulos! E os homens, uns bobos, por se deixarem roubar passivamente. Leva-ihes o tempo, a infância, a mocidade, o viço, as forças, os sonhos! O frescor das faces, a cor dos cabelos... e os próprios cabelos. Encurta-lhes o tempo, em sua pressa, a vida e a das pessoas queridas! Rouba-lhes... ora, o que aos homens não rouba o tempo?! Se, até na sua ânsia de fuga, lhes nega o mais simples direito de contemplar um por do sol! -— Tendo ao pulso um relógio, a lhe dar ordens, quem poderá esquecer-se do tempo, deliciado com a beleza cromática de um ocaso? Todos a correr, sedentos, atrás dele e ele a fugir de todos, escoado como a água por entre os dedos!"

Pedro mais se convencia: — "Que grande e refinado ladrão era o tempo!"

Acudiu-lhe o ditado: — "Ladrão que rouba de ladrão..."

Acariciou as duas alianças no dedo anular. Uma, lhe fora devolvida pela noiva, no dia anterior.

— "Como posso casar-me com um homem, que nem sequer sabe dar valor ao tempo?!"

— "Pobre Rosinha!" — não tinha alma para entender as sutilezas da vida! Deixara-se escravizar como os demais!"

— "O tempo vale ouro!" — afagou novamente as alianças. — Ouro!... E o que era ouro?! Pois, nada além de um pedaço de metal amarelo, duro e frio! Que culpa o ouro tinha de que o mundo convencionasse que valesse tanto?! Deus, que é sábio, o havia enterrado ao fundo das jazidas, para que, adormecido nas entranhas da terra, não causasse confusões cá por fora. Atirara o restante ao leito de alguns rios, misturado ao cascalho, para provar que nada valia! Mas, o homem, cego pela cobiça, fora buscá-lo... e é o que se vê: — mata ou se deixa matar por um punhado de cascalho reluzente! As alianças eram de ouro; a Pedro, lembravam o tempo. Atirou-as ao mar. Este, as engoliu. Logo as enterraria na areia, donde jamais o ouro deveria ter saído.

Pedro contou ao mar seu plano. O mar corcoveou, enrolando numa onda o seu segredo. O mar o entendia!

Pedro esqueceu, nas pedras, as meias, os sapatos e o paletó. Neste, os documentos. Foi-se... descalço, cabelos ao vento, mãos nos bolsos vazios, a assobiar uma canção.

No dia imediato, os jornais o mataram:

"Noivado rompido, na véspera, leva comerciário, desempregado, ao suicídio. O corpo ainda está desaparecido."

Ao ler as manchetes, Pedro sorriu: — Suicídio?! — logo ele que gostava tanto da vida! Muito em breve, foi esquecido.

Novas manchetes alardeavam: — "Onda de estranhos assaltos. Joalherias arrombadas. Joias e demais valores, intactos. o larápio rouba apenas relógios. Alguns, de maior porte, destruídos no próprio local!"

A cidade andava intrigada. As praias passaram a ser vigiadas, quando alguns fieis medidores do tempo foram encontrados semi-afogados na areia.

— Isto é coisa de louco! Só pode ser!

E foi assim, que Pedro foi parar na prisão. Interrogaram-no. O que levara a tão estranho e absurdo procedimento?!

Respondia equilibradamente, cônscio da sua responsabilidade:

— Pretendia libertar o mundo do jugo do tempo. Pouco poderia fazer, mas, sempre seria alguma coisa. Pouco se faz na vida por inteiro, mas, se cada um, pelo menos, tentasse fazer o que lhe está ao alcance, muito mais seria feito! Fizera a sua parte. Outros, que lhe dessem razão, e lhe seguissem o exemplo. Sem que o sentisse, a humanidade quebraria o pulso ao maior tirano de todos os tempos-— o próprio tempo!

Entre as grades, sem relógios, Pedro desvinculou-se do mundo. Foi encaminhado para uma Casa de Saúde. Vez ou outra, sentia saudades do mar. Este, sim, o entendia perfeitamente!

Ninguém mais instava para que Pedro se aviasse... ninguém! Até mesmo o tempo esqueceu-se dele e não mais o empurrou para a frente.

Fonte:
Carolina Ramos. Interlúdio: contos. São Paulo: EditorAção, 1993.

Luís da Câmara Cascudo (Sede e saudade)


Fui menino de fazenda sertaneja e o fundamento inicial de qualquer pesquisa é o depoimento testemunhal imediato, pessoal, espontâneo, infalível. Um versinho tão meu conhecido que tenho memória assim diz:

Fui na fonte beber água
Debaixo duma latada;
Somente para te ver.
Que a sede não era nada!

Muitos anos depois deparei nos Cantos populares do Brasil, de Sílvio Romero (ed. Alves, Rio de Janeiro, 1897) a mesma quadra com alteração sensível:

Fui à fonte beber água
Por baixo de uma ramada
Foi para ver meus amores
Que a sede não era nada.

Leonardo Mota, Cantadores (Ed. Castilho, Rio de Janeiro, 1921), registra a quadra, identicamente à que ouvira e aprendera no sertão norte-rio-grandense:

Fui à fonte beber água
Debaixo duma latada,
Somente para te ver
Que a sede não era nada.

O sertanejo dirá, naturalmente, fui na fonte e não fui à fonte, forma literária. Mas o verso é o mesmo e a mesma região nordestina guardou a trova delicada.

Na Venezuela, pilando-se o milho, cadência a pancada o er, er, er, entoado na batida. O sr. R. Olivares Figueiroa (Onza, tigre y leon, nº 33, Caracas, maio de 1946), recolheu entre os Cantos para el pilado del Mais o tema poético:

Deme un poquito de agua
que vengo muerto de sede
no es tanto por beber agua
como por venirte a vert.

Er, er, er...

Certamente haverá versões na Colômbia, Bolívia e Peru. As primeiras vindas da Venezuela e a última possível de Espanha.

Não conheço quadra espanhola tal e qual sabemos mas existe no mesmo sentido lírico. É uma Terneza, registrada por d. Francisco Rodrigues Marin, Cantos populares españoles (II, Sevilha, 1882):

Dame um pouco de água
Fria ó caliente,
Nó por la sed que tengo,
Sinó por verte.

A quadra portuguesa que conserva o assunto é esta que Teófilo Braga incluiu no seu Cancioneiro e romanceiro geral português (II, Porto, 1867):

Fui à fonte beber água
Debaixo da flor da murta;
Fui só para ver os teus olhos,
Que a sede não era muita.

No primeiro verso, "Fui à fonte beber água", denuncia que a quadra pertencerá, seguramente à sua série, versando o mesmo tema que emigrou para o Brasil.

A saudade do amor valerá quanto a lembrança melancólica da visão perdida, Leonardo Mota, Cantadores, p.251, divulgou esta quadra linda:

Quem nasceu cego da vista
E dela não se lucrou
Não sente tanto ser cego
Como quem viu e cegou.

Brasileira? Na coleção de Agostinho de Campos e Alberto d'Oliveira aparece a versão de Portugal:

O cego nasceu cego
Não perdeu o que logrou;
Não pode ter tanta pena
Como quem viu e cegou.

Há no cancioneiro galego versos glosando o mesmo problema trágico, Rodrigues Marin, Cantos populares españoles (IV, Sevilha, 1883), salvou do esquecimento duas quadras:

Er que bino siego ar mundo
Sin la esperanza de ber
No tiene tanta peniya
Como er que ha bisto y no be.

Mas a inspiração é bem velha em sua triste veracidade emocional. O mestre Rodrigues Marin registra uma quadra que dom Fernando Colon comentou antes de 1534.

Será a mais antiga fixação poética do motivo em língua castelhana.

El ciego que nunca vió.
Como no sabe que és ver.
No vive tan sin placer
Como el que después cegó.

A saudade da "luz dos olhos" aproximar-se-á à saudade do marido ou da esposa desaparecidos?

A musa anônima não acredita totalmente nesta saudade.

Chamamos dor de viúva ao sofrimento causado por um choque repentino na rótula ou no cotovelo. É uma dor viva, penetrante, insuportável mais rápida. Dura segundos. Assim o povo acusa as viúvas da passageira mágoa pela ausência do seu "defunto".

"Viúva rica, com um olho chora, com o outro repica". O Rifoneiro português, de Pedro Chaves, lembra que em Portugal: "Viúva rica, com um olho chora, com o outro repinica".

Quando va por la calle
La viudo rica.
Un ojo dice "nones",
Y otro repica.

Semelhante na Itália:

La vedovella colla vedovanga
Pianga lo morto e nello vivo pensa.
In altro giovinetto ha la speranza.

E para os viúvos a sátira é idêntica:

Dolor por mujer muerta
Llega hasta la puerta

Ou então:

Dolor de viugo,
Corto y agudo.

O que dizemos nós no Brasil na dor de viúva, dizem os espanhóis dolor del viudo.

Informa Rodrigues Marin: "A la pasajera pero molestisima sensacion que produce qualquier golpe en el codo ó en la rótula se llama comunmente el dolor del viudo".

Certo? Engano? Sátira? De tudo certamente um pouco existe na Gaya Scienza, o alegre saber dos folclores.

Fonte:
CASCUDO, Luís da Câmara. "Sede e saudade". O Estado de São Paulo. São Paulo, 27 de abril de 1958.

Felipe Cattapan (3a. edição do Livro "Densidades Cíclicas)


A terceira edição do meu livro "Densidades Cíclicas" será lançada pela editora Helvetia na Suiça em:

Salon International du Livre et de la Presse de Genève
Palexpo
Route François-Peyrot 30
CH-1218 Le Grand-Saconnex
Stand C 351

Data: 4/5/2019

Horário: das 15 às 16 horas

Seria uma grande honra e um enorme prazer, para mim, contar com a sua presença.

O livro está sendo recomendado por Adriana Lisboa (escritora), Stefan Kunzmann (jornalista, redator-chefe da revista "Revue" em Luxemburgo), Teresa Ribeiro (jornalista, escritora e doutora em Literatura Brasileira) e Ricardo Prado (escritor e regente).

O livro contém muitos textos inéditos e alguns premiados em vários concursos literários (incluindo primeiros lugares). No entanto, não é uma mera coletânea de poemas ou contos: trata-se de uma obra que pretende desenvolver uma linguagem extremamente pessoal num estilo que dialoga entre a poesia e a prosa. A primeira parte contém poemas, a segunda contos – porém há uma correlação entre os textos de uma parte com a outra e uma ordem minuciosamente planejada para todo o livro. Ou seja: em última análise, os textos podem ser lidos como "capítulos" de um grande romance (ou trechos de uma mesma sinfonia).

A obra busca revelar como diversos aspectos musicais podem assumir uma função literária, servindo inclusive para definir a forma de cada texto e do livro como um todo. Para tanto, se serve das mais diversas técnicas (incluindo algumas de vanguarda) – mas sempre tomando o cuidado se aproximar do leitor comum.

A nível de conteúdo, a obra nos oferece diversas variações sobre um mesmo tema: a densidade do próprio ato da leitura/escrita como uma forma de se refletir sobre as nossas questões existenciais mais essenciais (e sempre atuais).

O que foi escrito acima é descrito de uma forma mais poética e sutil no prefácio do livro (e de uma maneira mais indireta em alguns dos seus textos). Comentários sobre o livro podem ser encontrados em:  https://www.helvetia-edicoes.com.br/blog

Capa do artista plástico Beat Zoderer e apresentação de Ricardo Prado.

Atenciosamente,
 
Felipe Cattapan
Escritor e regente
Reithystrasse 49
CH-8810 Horgen
Tel. + 41 43 3880010
felipe.cattapan@gmail.com
www.cattapan.ch

P.S.: caso se interessem pelos meus próximos workshops sobre música, as respectivas informações podem ser encontradas em http://www.cattapan.ch/es/pr-ximos-cursos/

Fonte:
O Escritor

Felipe Cattapan (1973)


Nascido no Rio de Janeiro em 1973,  Felipe Cattapan mora com a sua família em Zurique, onde é conhecido sobretudo como regente (orquestral e coral) e docente universitário. Na sua ampla atividade musical dirige diversos projetos interdisciplinares que dialogam com a literatura. Como escritor e regente recebeu o "Prêmio Excelência e Qualidade Brasil 2017 - Melhores do Ano", categoria "personalidade do ano/destaque nacional e internacional, brasileiros de sucesso no exterior/mérito social cultural" (Braslider Org., São Paulo).
 
Desde 2010 se dedica profissionalmente à literatura, desenvolvendo com grande intensidade e originalidade um estilo próprio. É autor de poemas, contos, crônicas e uma peça de teatro. 

Foi um dos vencedores do “26° Festival Poético de Cornélio Procópio”; 
recebeu o 1.° prêmio no “3° Concurso de Poesias Prof. Tonellotti” e no 
“Concurso Nacional de Crônicas Nylce Mourão Gontijo”, 
certificado de "brilhante participação" no "5° Festival Santa Lúcia de Contos e Poesias", 
dois prêmios de participação especial no “Grande Concurso da Cidade do RJ”, 
 2° e 3° lugares no "34° Concurso Internacional Literário Edições AG", 
6.° lugar no "Concurso Prêmio Cataratas", 
2.° lugar no “1.° Concurso Antares de Literatura” (categoria: poesia), 
menção honrosa no “2° Concurso de Poesias Prof. Tonellotti”, no “Concurso Pérolas da Literatura – Edição 2012”, no “6.° Concurso Nacional de Poesia de Colatina”, no “24.° Concurso de Poesia da ALAP” e no “10.° Concurso de Contos do Tijuco Valnice Pereira”; 
Premiado no “VIII CLIPP - Concurso Literário de Presidente Prudente”, nos “Concursos de Contos e Poesias da Big Time Editora” em 2012 e 2013 (quando obteve o 1.° lugar), no “1.° Concurso Literário Cidade das Asas” (modalidade: crônica) e semifinalista no “7° Varal de Poesias Unifamma”; 
teve um conto incluído entre os melhores textos adultos no “8° Concurso Literário Jornalista Valacir Cremonese”; 
além disso, também publicou textos nas revistas literárias "Varal do Brasil", “Samizdat”, “Inteligência” e nas antologias dos "6° e 10° Prêmios Literários Valdeck Almeida de Jesus", do “2° Concurso de Poesia da Biblioteca de Condeixa” e da “Coletânea 100 Poemas 100 Poetas – 2013”.
 
Em outubro de 2016 o seu livro “Densidades Cíclicas” (poemas e contos) foi lançado no Brasil – e posteriormente na Europa. Em 2017 foi o livro mais vendido pela editora Helvetia; a 3a. edição já foi lançada em 2018.
 
Além de ensinar a língua portuguesa, realiza palestras sobre temas relacionados à literatura e à música e participa regularmente de eventos literários e culturais – como, por exemplo, o “1.° Encontro Intercultural” na biblioteca municipal de Biel (Suíça) em 2016, o “3.° Festival de Poesia de Lisboa” em 2018 e o "Salon International du Livre et de la Presse de Genève" em 2017 e 2018. Foi jurado no “2.° Festival de Poesia de Lisboa" em 2017.

Fonte:

terça-feira, 30 de abril de 2019

Trova 347 - Maria Thereza Cavalheiro


Angela Maria de Godoy Theodorovicz (Os quintais da minha vida)


No meu tempo de infância, na pequena cidade onde vivia, criança brincava no quintal. Lá todas as casas tinham quintais. Alguns eram separados por muros, que pulávamos com a maior facilidade; outros, por uma cerca com dois ou três fios de arames que de tanto espichá-los para passarmos sob ou sobre eles, acabavam indo para o chão. No meu tempo de infância era nos quintais que passávamos muitas horas do dia e também das noites quentes de verão, quando a lua era cheia e clareava nossos passos e brincadeiras.

Nos quintais brincávamos sem brinquedos. Era pega-pega, cabra-cega, esconde-esconde, amarelinha, passa-anel e tantas outras coisas que bastava ter um quintal e nada mais.

Nos quintais brincávamos de fazer brinquedos. Neles sempre havia sobras de construções, coisas quebradas e outros entulhos amontoados em algum canto. Bastava procurar, cortar, serrar, juntar uma coisa com outra para fazermos um carrinho, um trem, uma panela, uma bola...

Nos quintais havia árvores que subíamos em desafio para ver quem alcançava o galho mais alto ou chegava primeiro em um galho pré-determinado. Delas pendiam balanços feitos de cordas com assento de tábua ou pneu; nelas erguíamos casas, na maior parte das vezes contando com a ajuda de um irmão mais velho, e isso podia durar meses, para nosso deleite.

Nos quintais construíamos fazendas, delimitadas com palitos de sorvetes catados pelas ruas que cravávamos no chão a imitar cercas. Frutas, de diversos tamanhos e tipos, eram usadas para compor o corpo dos animais que, com palitos espetados e pedaços de rolha, ganhavam pernas, rabos, cabeças, e desse jeito nasciam bois, porcos, cavalos e outros bichos que a imaginação alcançava. As estradas eram construídas com areia peneirada, a imitar os cascalhos das estradas rurais. Abríamos pequenos sulcos no chão para fazer de conta que eram rios e sobre eles colocávamos pontes feitas com pedaços de galhos de árvores. Nas nossas fazendas também havia as plantações, feitas com ramos de plantas, de diversos tipos, enfiados pelo chão. Nas nossas fazendas havia tantas coisas mais que ficávamos dias, semanas, nessa brincadeira. E essa era a graça.

Nos quintais construíamos pocinho d’água cavando um buraco redondo no chão, profundo até onde nossos braços podiam alcançar. Uma lata de massa de tomate vazia virava o balde; um barbante, a corda; o sarilho era um galho bem roliço, apoiado em duas forquilhas de galho de goiabeira. Depois era só encher o buraco d’água e brincar de puxar água. Era tão divertido construir nossos poços como era divertido brincar com eles.

Nos quintais brincávamos de circo. Trapézio? Um galho de árvore mais resistente bastava. Malabarismo? Três limões ou laranjas atirados pelo ar, um de cada vez, num movimento continuo de pegar e lançar sem deixar cair no chão. Passávamos dias treinando, e esse era o divertimento, essa era a brincadeira.

Até para ler um gibi o quintal era escolhido. Sob uma árvore ou sobre ela. Sob a sombra de um muro, no canto da casa. Até para não fazer nada, quando não se tinha com quem brincar, era no quintal que a gente ficava pensando sei lá no quê.

Na minha época de criança quintal era o nosso mundo, o palco para nossas aventuras e realizações, fonte inesgotável para nossas fantasias. Para nós aqueles metros de terra tinham a dimensão do infinito.

Estou me lembrando disso tudo porque neste final de semana, na nossa casa de campo, tivemos a visita de um menino de oito anos acompanhado da avó. O garoto chegou exibindo um celular, presente que ganhou de Natal. Foi logo mostrando tudo sobre o aparelho e estava ansioso para fazer ligações. Como é difícil pegar sinal dentro de casa ele vasculhou minuciosamente todos os cantos da casa e ao menor sinal de que aquele aparelho iria funcionar o garoto soltava gritos estridentes, para não dizer histéricos.

O garoto não tinha outro assunto, não se interessava por outra coisa, tornou-se repetitivo e era enfadonho escutá-lo falar sobre as maravilhas daquela coisa. Tentei mudar aquela rotina, convidei-o para um passeio fora de casa onde havia muitas coisas a ver e a fazer. Ele não demonstrou nenhum interesse. Tentei explicar-lhe do que eu brincava quando tinha a sua idade e quanto do que eu falava poderia ser encontrado fora de casa. Ele ouviu um pouco, fez cara de pouco caso e continuou na sua interessantíssima aventura de encontrar dentro de casa um lugar onde o aparelho pudesse funcionar. Para ele o que eu dizia deve ter sido tão bizarro como me foi vê-lo dois dias enfurnado dentro de uma casa cercada de árvores e com um quintal imenso.

Ele foi embora como chegou. Com o celular na mão, exibindo-o como um troféu.

Fiquei com a impressão de que ele nem se deu conta de onde passou o final de semana. Não pude deixar de compará-lo a mim, quando tinha a sua idade. Foi então que me lembrei dos meus quintais. E tive pena do garoto.

Fonte:
Espaço Literário Sorocult

MIFORI (Poemas Avulsos)


A JORNALISTA   

  Trabalhando muito e de forma fenomenal,
Lutava com obstinação para conseguir,
Galgar os degraus do sucesso profissional,
Expondo matérias em revistas e em jornal!
 
Disputava sempre a mesma vaga com alguém!
Jamais imaginava disputá-la com este homem,
Que no passado, a feriu tirando-lhe a reportagem,
Deixando-a frustrada e perdidamente apaixonada!
 
Lembrava-se que ele era a mais pura tentação,
Que nela provocava sensação de nuvens flutuar,
Sem controle, numa doida e irresistível paixão!
O coração disparava com hormônios em ebulição!
 
A situação, agora, apresentava-se diferente,
Iriam juntos trabalhar num grande desafio!
Mas, desafio maior era  ao lado dele trabalhar,
Mostrando-se indiferente a quem queria amar!
 
Na hora marcada para se receber as orientações,
Sem perceber, seus olhos docemente se atraíram,
E como imã, selaram neste dia o amor que nasceu,
Naquela noite,  em que mau entendido aconteceu!

DIFÍCIL SAÍDA   

O término do trabalho a obrigava
Tomar sérias decisões assertivas.
A expressão no rosto dele brilhava,
De desejo e também de expectativas.

Subitamente ergueu-se e saiu caminhando.
À sua frente se abria um novo mundo.
Mas, a incerteza, seu amor foi minando.
Sentiu no coração, um vazio profundo.

Olhando pras estrelas, procurou
Livrar-se do turbilhão de emoções,
Encontrando beleza e harmonia.
 
A flor desabrochou, mas, não quebrou
Todas as dúvidas e indecisões...
Viver o amor, trabalho em sincronia.

FAZ-ME FALTA   

Faz-me falta a sua condescendência,
Alguém que ao meu lado permaneça,
Todos os dias, com a sua competência!
Venha, como o raio de Sol e me aqueça,
Com seus beijos carinhosamente,
Como este seu amor resplandecente!

Faz-me falta um amor verdadeiro,
Presente de corpo e de alma... Inteiro!
Que feliz queira comigo viver,
E ao meu lado, lute para vencer!
Ama-me nas noites enluaradas,
Sob o céu de estrelas iluminadas!

Faz-me falta a sua cumplicidade,
A luminosidade do seu amor.
Alguém que me ame com sinceridade,
Saiba fazer, querer, ousar dispor,
Do direito de amar e se respeitar,
Pra consolidar a felicidade!

PARQUE NACIONAL DE ITATIAIA   

Resistindo ao tempo valentemente
Mostrando imponentes as belas riquezas
Inunda de luz a alma da gente
Superam pressões, jorrando beleza.

São seres seguindo o ciclo natural
São plantas e rochas, flores e frutas
Para pesquisas do meio ambiental,
Degustação tão saudável de trutas.

Conservaremos saúde e o vigor
Ao respirar o ar puro do parque,
Caminhando com ânimo e leveza.

Bendigamos ao nosso Pai Criador,
Prosseguindo e vivendo com arte,
Preservando com amor a natureza.

Fonte:

Machado de Assis (Um sonho e outro sonho)


Crês em sonhos? Há pessoas que os aceitam como a palavra do destino e da verdade. Outras há que os desprezam. Uma terceira classe explica-os, atribuindo-os a causas naturais. Entre tantas opiniões, não quero saber da tua, leitora que me lês, principalmente se és viúva, porque a pessoa a quem aconteceu o que vou dizer era viúva, e o assunto pode interessar mais particularmente às que perderam os maridos. Não te peço opinião, mas atenção.

Genoveva, vinte e quatro anos, bonita e rica, tal era a minha viúva. Três anos de viuvez, um de véu longo, dois de simples vestidos pretos, chapéus pretos, e olhos pretos, que vinham do consórcio e do berço. A diferença é que agora olhavam para o chão, e, se olhavam para alguma coisa ou alguém, eram sempre tristes, como os que já não têm consolação na terra nem provavelmente no céu. Morava em uma casa escondida, para os lados do Engenho Velho*, com a mãe e os criados. Nenhum filho. Um que lhe devia nascer foi absorvido pelo nada: tinha cinco meses de gestação.

O retrato do marido, bacharel Marcondes, ou Nhonhô, pelo nome familiar, vivia no quarto dela, pendente da parede, moldura de ouro, coberta de crepe. Todas as noites, Genoveva, depois de rezar a Nossa Senhora, não se deitava sem lançar o último olhar ao retrato, que parecia olhar para ela. De manhã o primeiro olhar era para ele. Quando o tempo veio amortecendo o efeito da dor, esses gestos diminuíram naturalmente e acabaram; mas a imagem vivia no coração. As mostras externas não diminuíam a saudade.

Rica? Não, não era rica, mas tinha alguma coisa; tinha o bastante para viver com a mãe, à larga. Era, conseguintemente, um bom negócio para qualquer moço ativo, ainda que não tivesse nada de seu; melhor ainda para quem possuísse alguma coisa, porque as duas bolsas fariam uma grande bolsa, e a beleza da viúva seria a mais valiosa moeda do pecúlio. Não lhe faltavam pretendentes de toda a espécie, mas todos perdiam o tempo e o trabalho. Carlos, Roberto, Lucas, Casimiro e outros muitos nomes inscreviam-se no livro dos passageiros, e iam-se embora sem esperanças. Alguns nem levavam saudades. Muitos as levavam em grande cópia e das mais tristes. Genoveva não se deixou prender de ninguém.

Um daqueles candidatos, Lucas, pôde saber da mãe de Genoveva algumas circunstâncias da vida e da morte do finado genro. Lucas tinha ido pedir licença à boa senhora para solicitar a mão da filha. Não havia necessidade, pois que a viúva dispunha de si; mas a incerteza de ser aceito sugeriu-lhe esse alvitre, a fim de ver se ganhava a boa vontade e intercessão da mãe.

- Não lhe dou tal conselho - respondeu esta.

- De pedi-la em casamento?

- Sim; ela deu-lhe alguma esperança?

Lucas hesitou.

- Vejo que não lhe deu nenhuma.

- Devo ser verdadeiro. Esperanças, não tenho; não sei se D. Genoveva me perdoa, ao menos, a afeição que me inspirou.

- Pois não lhe peça nada.

- Parece-lhe que...

- Que perderá o tempo. Genoveva não casará nunca mais. Até hoje tem a imagem do marido diante de si, vive da lembrança dele, chora por ele, e nunca se unirá a outro.

- Amaram-se muito?

- Muito. Imagine uma união que apenas durou três anos. Nhonhô, quando morreu, quase que a levou consigo. Viveram como dous noivos; o casamento foi até romanesco. Tinham lido não sei que romance, e aconteceu que a mesma linha da mesma página os impressionou igualmente; ele soube disso lendo uma carta que ela escrevera a uma amiga. A amiga atestou a verdade, porque ouvira a confissão de Nhonhô, antes de lhe mostrar a carta. Não sei que palavras foram, nem que romance era. Nunca me dei a essas leituras. Mas naturalmente eram palavras ternas. Fosse o que fosse, apaixonaram-se um pelo outro, como raras vezes vi, e casaram-se para ser felizes por longos anos. Nhonhô morreu de uma febre perniciosa. Não pode imaginar como Genoveva sofreu. Quis ir com o cadáver, agarrou-se ao caixão, perdeu os sentidos, e esteve fora de si quase uma semana. O tempo e os meus cuidados, além do médico, é que puderam vencer a crise. Não chegou a ir à missa; mandamos dizer uma, três meses depois.

A mãe exagerava no ponto de dizer que foi a frase do romance que ligou a filha ao marido; eles tinham naturalmente inclinação. A frase não fez mais que falar por eles. Nem por isso tira o romanesco de Genoveva e do finado Marcondes, que fizera versos aos dezoito anos, e, aos vinte, um romance, A bela do sepulcro, cuja heroína era uma moça que, havendo perdido o esposo, ia passar os dias no cemitério, ao pé da sepultura dele. Um moço que ia passar as tardes no mesmo cemitério, ao pé da sepultura da noiva, viu-a e admirou aquela constância póstuma, tão irmã da sua; ela o viu também, e a identidade da situação os fez amados um do outro. A viúva, porém, quando ele a pediu em casamento, negou-se e morreu oito dias depois.

Genoveva tinha presente este romance do marido. Havia-o lido mais de vinte vezes, e nada achava tão patético nem mais natural. Mandou fazer uma edição especial, e distribuiu exemplares a todos os amigos e conhecidos da família. A piedade conjugal desculpava esse obséquio pesado, ainda que gratuito. A bela do sepulcro era ilegível. Mas não se conclua daí que o autor, como homem espirituoso, era inferior às saudades da viúva. Inteligente e culto, cometera aquele pecado literário, que, nem por ser grande, o teria levado ao purgatório.

Três anos depois de viúva, apareceu-lhe um pretendente. Era bacharel, como o marido, tinha trinta anos, e advogava com tanta felicidade e real talento que contava já um bom pecúlio. Chamava-se Oliveira. Um dia, a mãe de Genoveva foi demandada por um parente, que pretendia haver duas casas dela, por transações feitas com o marido. Querendo saber de um bom advogado, inculcaram-lhe Oliveira, que em pouco tempo venceu a demanda. Durante o correr desta, Oliveira foi duas vezes à casa de Genoveva, e só a viu da segunda; mas foi quanto bastou para achá-la interessantíssima, com os seus vestidos pretos, tez muito clara e olhos muito grandes. Vencida a demanda, a constituinte meteu-se em um carro e foi ao escritório de Oliveira, para duas cousas, agradecer-lhe e remunerá-lo.

- Duas pagas? - retorquiu ele rindo -. Eu só recebo uma: agradecimentos ou honorários. Já tenho os agradecimentos.

- Mas...

- Perdoe-me isto, mas a sua causa era tão simples, correu tão depressa, deu-me tão pouco trabalho, que seria injustiça pedir-lhe mais do que a sua estima. Dá-me a sua estima?

- Seguramente - respondeu ela.

Quis ainda falar, mas não achava palavras, e saiu convencida de que era chegado o reino de Deus. Entretanto, querendo fazer uma fineza ao generoso advogado, resolveu dar-lhe um jantar, para o qual convidou algumas famílias íntimas. Oliveira recebeu o convite com alacridade. Não gostava de perfumes nem adornos; mas nesse dia borrifou o lenço com Jockey Club* e pôs ao peito uma rosa amarela.

Genoveva recebeu o advogado como recebia outros homens; a diferença, porém, entre ele e os outros é que estes apresentavam logo no primeiro dia as credenciais, e Oliveira não pedia sequer audiência. Entrou como um estrangeiro de passagem, curioso, afável, interessante, tratando as coisas e pessoas como os passageiros em trânsito pelas cidades de escala. Genoveva teve excelente impressão do homem; a mãe estava encantadíssima.

"Enganei-me", pensou Genoveva, recolhendo-se ao quarto. "Cuidei que era outro pedinte, entretanto... Mas, por que motivo fez o que fez, e aceitou o jantar de mamãe?"

Chegou a suspeitar que a mãe e o advogado estavam de acordo, que ela não fizera mais que buscar ocasião de os apresentar um ao outro, e travar relações. A suspeita cresceu quando, dias depois, a mãe falou em visitar a mãe de Oliveira, com quem este vivia; mas a prontidão com que aceitou as suas razões de negativa tornou a moça perplexa. Genoveva examinou o caso e reconheceu que atribuía à mãe um papel menos próprio; varreu-se-lhe a suposição. Demais (e isto valia por muito), as maneiras do homem estavam em desacordo com quaisquer projetos.

Travadas as relações, bem depressa as duas famílias se visitaram, e a miúdo. Oliveira residia longe; mas achou casa perto e mudou-se. As duas mães achavam-se reciprocamente encantadoras, e tanto a de Genoveva gostava de Oliveira, como a de Oliveira gostava de Genoveva. Tudo isto vai parecendo simétrico; mas eu não tenho modo de contar diferentemente coisas que se passaram assim, ainda que reconheça a conveniência de as compor algo. Quando menos, falta-me tempo. A verdade é que as duas matronas se amavam e trabalhavam para fazer os filhos encontradiços.

Um, dois, três meses correram, sem que Oliveira revelasse a menor inclinação à viuvinha. Entretanto, as horas passadas com ele, em qualquer das casas, não podiam ser mais deleitosas. Ninguém sabia encher o tempo tão bem, falando a cada uma das pessoas a sua própria linguagem. Durante esse prazo teve Genoveva ainda um pretendente, que não recebeu melhor agasalho; parece até que tratou a este com uma sombra de despeito e irritação inexplicáveis, não só para ele, como para ela própria.

"Realmente, o pobre diabo não tem culpa que eu seja viúva", disse ela consigo.

"Que eu seja bonita" é o que ela devia dizer, e pode ser que tal ideia chegasse a bater as asas, para atravessar-lhe o cérebro; mas, há certa modéstia inconsciente, que faz evitar confissões, não digo presumidas, mas orgulhosas. Seja o que for, Genoveva chegou a ter pena do pretendente.

"Por que não se portou ele como o Oliveira, que me respeita?" continuou consigo.

Entrara o quarto mês das relações, e o respeito do advogado não diminuiu. Jantaram juntos algumas vezes, e chegaram a ir juntos ao teatro. Oliveira abriu até um capítulo de confidências com ela, não amorosas, é claro, mas de sensações, de impressões, de cogitações. Um dia, disse-lhe que, em pequeno, tivera desejo de ser frade; mas, levado ao teatro, e assistindo à comédia do Pena, O noviço*, o espetáculo do menino, vestido de frade, e correndo pela sala, a bradar: "eu quero ser frade! Eu quero ser frade!" fez-lhe perder todo o gosto da profissão.

- Achei que não podia vestir um hábito assim profanado.

- Profanado, como? O hábito não tinha culpa.

- Não tinha culpa, é verdade; mas eu era criança, não podia vencer essa impressão infantil. E parece que foi bom.

- Quer dizer que não seria bom frade?

- Podia ser que fosse sofrível; mas eu quisera sê-lo excelente.

- Quem sabe?

- Não; dei-me tão bem com a vida do foro, com esta chicana da advocacia, que não é provável tivesse a vocação contemplativa tão perfeita como quisera. Há só um caso em que eu acabaria num convento.

- Qual?

Oliveira hesitou um instante.

- Se enviuvasse - respondeu.

Genoveva, que sorria, aguardando a resposta, fez-se rapidamente séria, e não retorquiu. Oliveira não acrescentou nada, e a conversa naquele dia acabou menos expressiva que das outras vezes. Posto que tivesse o sono pronto, Genoveva não dormiu logo que se deitou; ao contrário, ouviu dar meia-noite, e esteve ainda muito tempo acordada.

Na manhã seguinte, a primeira coisa em que pensou foi justamente na conversação da véspera, isto é, naquela última palavra de Oliveira. Que havia nela? Aparentemente, pouco; e pode ser que, na realidade, ainda menos. Era um sentimento de homem que não admitia o mundo, depois de roto o consórcio; e iria refugiar-se na solidão e na religião. Confessemos que não basta para explicar a preocupação da nossa viúva. A viúva, entretanto, não viveu de outra coisa, durante esse dia, salvo o almoço e o jantar, que ainda assim foram quase silenciosos.

- Estou com dor de cabeça - respondeu à mãe, para explicar as suas poucas palavras.

- Toma aspirina.

- Não, isto passa.

E não passava. Se enviuvasse, ele iria meter-se em um convento, pensava Genoveva; logo, era uma censura a ela, por não ter feito o mesmo. Mas que razão havia para desejá-la recolhida a um mosteiro? Pergunta torta; parece que a pergunta direita seria outra: "Que razão haveria para não desejá-la recolhida a um mosteiro?" Mas se não era direita, era natural, e o natural é muitas vezes torto. Pode ser até que, bem exprimidas as primeiras palavras, deixem o sentido das segundas; mas eu não faço aqui psicologia, narro apenas.

Atrás daquele pensamento, veio outro mui diverso. Talvez que ele tivesse tido alguma paixão, tão forte, que, se casasse e enviuvasse... E por que não a teria ainda agora? Pode ser que amasse a alguém, que pretendesse casar, e que, se acaso perdesse a mulher amada, fugisse ao mundo para sempre. Confessara-lhe isto, como usava fazer a outros respeitos, como lhe confessava opiniões, que dizia não repetir a ninguém mais. Essa explicação, posto que natural, atordoou Genoveva ainda mais que a primeira.

- Afinal, que tenho eu com isto? Faz muito bem.

Passou mal a noite. No dia seguinte foi com a mãe fazer compras à rua do Ouvidor*, demorando-se muito, sem saber por quê, e olhando para todos os lados, sempre que saía de uma loja. Passando por um grupo estremeceu e olhou para as pessoas que falavam, mas não conheceu nenhuma. Tinha ouvido, entretanto, a voz de Oliveira. Há vozes parecidas com outras, que enganam muito, ainda quando a gente vai distraída. Há também ouvidos mal educados.

A declaração de Oliveira de que entraria para um convento, se chegasse a enviuvar, não saía da cabeça de Genoveva. Passaram-se alguns dias sem ver o advogado. Uma noite, depois de cuidar no caso, Genoveva olhou para o retrato do marido antes de deitar-se; repetiu a ação no dia seguinte, e o costume dos primeiros tempos da viuvez tornou a ser o de todas as noites. De uma vez, mal adormecera, teve um sonho extraordinário.

Apareceu-lhe o marido, vestido de preto, como se enterrara, e pôs-lhe a mão na cabeça. Estavam em um lugar que não era bem sala nem bem rua, uma coisa intermédia, vaga, sem contornos definidos. O principal do sonho era o finado, cara pálida, mãos pálidas, olhos vivos, é certo, mas de uma tristeza de morte.

- Genoveva! - disse-lhe ele.

- Nhonhô! - murmurou ela.

- Para que me perturbas a vida da morte, o sono da eternidade?

- Como assim?

- Genoveva, tu esqueceste-me.

- Eu?

- Tu amas a outro.

Genoveva negou com a mão.

- Nem ousas falar - observou o defunto.

- Não, não amo - acudiu ela.

Nhonhô afastou-se um pouco, olhou para a antiga esposa, abanou a cabeça incredulamente, e cruzou os braços. Genoveva não podia fitá-lo.

- Levanta os olhos, Genoveva.

Genoveva obedeceu.

- Ainda me amas?

- Oh! Ainda! - exclamou Genoveva.

- Apesar de morto, esquecido dos homens, hóspede dos vermes?

- Apesar de tudo!

- Bem, Genoveva; não te quero forçar a nada, mas se é verdade que ainda me amas, não conspurques o teu amor com as carícias de outro homem.

- Sim.

- Juras?

- Juro.

O finado estendeu-lhe as mãos, e pegou nas dela; depois, enlaçando-a pela cintura, começou uma valsa rápida e lúgubre, giro de loucos, em que Genoveva não podia fitar nada. O espaço já não era sala, nem rua, nem sequer praça; era um campo que se alargava a cada giro dos dois, por modo que, quando estes pararam, Genoveva achou-se em uma vasta planície, semelhante a um mar sem praias; circulou os olhos, a terra pegava com o céu por todos os lados. Quis gritar; mas sentiu na boca a mão fria do marido, que lhe dizia:

- Juras ainda?

- Juro - respondeu Genoveva.

Nhonhô tornou a pegar-lhe da cintura, a valsa recomeçou, com a mesma vertigem de giros, mas com o fenômeno contrário, em relação ao espaço. O horizonte estreitou-se a mais e mais, até que eles se acharam numa simples sala, com este apêndice: uma essa e um caixão aberto. O defunto parou, trepou ao caixão, meteu-se nele, e fechou-o; antes de fechado, Genoveva viu a mão do defunto, que lhe dizia adeus. Soltou um grito e acordou.

Parece que, antes do grito final, soltara outros de angústia, porque quando acordou, viu já ao pé da cama uma preta da casa.

- Que foi, Nanhã?

- Um pesadelo. Eu disse alguma coisa? Falei? Gritei?

- Nanhã gritou duas vezes, e agora outra vez.

- Mas foram palavras?

- Não, senhora; gritou só.

Genoveva não pôde dormir o resto da noite. Sobre a manhã chegou a conciliar o sono, mas este foi interrompido e curto.

Não referiu à mãe os pormenores do sonho; disse só que tivera um pesadelo. De si para si, aceitou aquela visão do marido e as suas palavras como determinativas do seu proceder. Ao demais, jurara, e este vínculo era indestrutível. Examinando a consciência, reconheceu que estava prestes a amar a Oliveira, e que a notícia desta afeição, ainda mal expressa, tinha chegado ao mundo onde vivia o marido. Ela cria em sonhos; tinha para si que eles eram avisos, consolações e castigos. Havia-os sem valor, sonhos de brincadeira; e ainda esses podiam ter alguma significação. Estava dito; acabaria com aquele princípio de qualquer coisa que Oliveira conseguira inspirar-lhe e tendia a crescer.

Na seguinte noite, Genoveva despediu-se do retrato do marido, rezou por ele, e meteu-se na cama com receio. Custou-lhe dormir, mas afinal o sono fechou-lhe os lindos olhos e a alma acordou sem ter sonhado nada, nem mal nem bem; acordou com a luz do sol que lhe entrava pelas portas das janelas.

Oliveira deixara de ir ali uma semana. Genoveva espantou-se da ausência; a mãe quis ir à casa dele saber se era alguma doença, mas a filha tirou-lhe a ideia da cabeça. No princípio da outra semana, apareceu ele com a mãe, tinha tido um resfriamento que o reteve na cama três dias.

- Eu não disse? - acudiu a mãe de Genoveva -. Eu disse que havia de ser negócio de doença, porque o doutor não deixa de vir tanto tempo...

- E a senhora não acreditou? - perguntou Oliveira à linda viúva

- Confesso que não.

- Pensa, como minha mãe, que sou invulnerável.

Sucederam-se as visitas entre as duas casas, mas nenhum incidente veio perturbar a resolução em que estava Genoveva de cortar inteiramente quaisquer esperanças que pudesse haver dado ao advogado. Oliveira era ainda o mesmo homem respeitoso. Passaram-se algumas semanas. Um dia, Genoveva ouviu dizer que Oliveira ia casar.

- Não é possível - disse ela à amiga que lhe deu a notícia.

- Não é possível, por quê? - acudiu a outra -. Vai casar com a filha de um comerciante inglês, um Stanley. Todos sabem disto.

- Enfim, como eu pouco saio...

Justifiquemos a viúva. Não lhe parecia possível, porque ele visitava-as com tal frequência, que não se podia crer em casamento tratado. Quando visitaria a noiva? Apesar da razão, Genoveva sentia que podia ser assim mesmo. Talvez o futuro sogro fosse algum esquisitão, que não admitisse a visita de todas as noites. Notou que, a par disto, Oliveira era desigual com ela; tinha dias e dias de indiferença, depois lá vinha um olhar, uma palavra, um dito, um aperto de mão... Os apertos de mão eram o sinal mais frequente: tanto que ela sentia alguma falta no dia em que ele era frouxo, e esperava o dia seguinte para ver se era mais forte. Lançava estas curiosidades à conta da vaidade. Vaidade de mulher bonita, dizia a si mesma.

Daquela vez, porém, esperou-o com certa ânsia, e fez-lhe bem o aperto de mão com que ele a saudou na sala. Arrependera-se de não ter contado à mãe a notícia do casamento, para que esta perguntasse ao advogado; e, não se podendo ter, falou ela mesma.

- Eu, minha senhora?

Genoveva continuou sorrindo.

- Sim, senhor.

- Há de ser outro Oliveira, também advogado, que está realmente para casar este mês. Eu não me casarei nunca.

Naquela noite, Genoveva, ao deitar-se, olhou ternamente para o retrato do finado marido, rezou-lhe dobrado, e tarde dormiu, com medo de outra valsa; mas acordou sem sonhos.

Que poderá haver entre uma viúva que promete ao finado esposo, em sonhos, não contrair segundas núpcias, e um advogado que declara, em conversação, que jamais se casará? Parece que nada ou muito; mas é que o leitor não sabe ainda que este Oliveira tem por plano não saltar o barranco sem que ela lhe estenda as duas mãos, posto que a adore, como dizem todos os enamorados. A última declaração teve por fim dar um grande golpe, por modo que a desafiasse a desmentir-se. E pareceu-lhe, ao sair, que algum efeito produzira, visto que a mão de Genoveva tremia um pouco, muito pouco, e que a ponta dos dedos... Não, aqui foi ilusão; os dedos dela não lhe fizeram nada.

Notem bem que eu não tenho culpa destas histórias enfadonhas de dedos e contradedos, e palavras sem sentido, outras meio inclinadas, outras claras, obscuras; menos ainda dos planos de um e das promessas de outro. Eu, se pudesse, logo no segundo dia tinha pegado em ambos, ligava-lhes as mãos, e dizia-lhes: casem-se. E passava a contar outras histórias menos monótonas. Mas as pessoas são estas; é preciso aceitá-las assim mesmo.

Passaram-se dias, uma, duas, três semanas, sem incidente maior. Oliveira parecia deixar a estratégia de Fábio Cunctator*. Um dia declarou francamente à viúva que a amava; era um sábado, em casa dela, antes de jantar, enquanto as duas mães os tinham deixado sós. Genoveva abria as folhas de um romance francês, que Oliveira lhe trouxera. Ele fitava pela centésima vez uma aquarela, pendurada no trecho de parede que ficava entre duas janelas. Bem ouvia a faca de marfim rasgando as folhas espessas do livro*, e o silêncio deixado pelas duas senhoras que tinham deixado a sala; mas não voltava a cabeça nem baixava os olhos. Baixou-os de repente, e voltou-os para a viúva. Ela sentia-os, e, para dizer alguma coisa:

- Sabe se é bonito o romance? - perguntou, parando de rasgar as folhas.

- Dizem-me que sim.

Oliveira foi sentar-se em um puf, que estava ao pé do sofá, e fitou as mãos de Genoveva, pousadas sobre o livro aberto, mas as mãos continuaram o seu ofício para escapar à admiração do homem, como, se cortando as folhas, fossem menos admiráveis que paradas. Alongou-se o silêncio, um silêncio constrangido - que Genoveva quisera romper, sem achar modo nem ocasião. Pela sua parte, Oliveira tinha ímpetos de lhe dizer subitamente o resto do que ela devia saber pelos últimos dias; mas não cedia aos ímpetos, e acabou trivialmente elogiando-lhe as mãos. Não valia a pena tanto trabalho para acabar assim. Ele, porém, vexado da situação, pôs toda a alma na boca e perguntou à viúva se desejava ser sua esposa.

Desta vez, as mãos pararam sem plano. Genoveva, confusa, pregou os olhos no livro, e o silêncio entre os dois fez-se mais longo e profundo. Oliveira olhava para ela; via-lhe as pálpebras caídas e a respiração curta. Que palavra estaria dentro dela? Hesitava pelo vexame de dizer que sim? Ou pelo aborrecimento de dizer que não? Oliveira tinha razões para crer na primeira hipótese. Os últimos dias foram de acordo tácito, de consentimento prévio. Entretanto, a palavra não saía; e a memória do sonho veio complicar a situação. Genoveva recordou-se da penosa e triste valsa, da promessa e do féretro, e empalideceu. Nisto foram interrompidos pelas duas senhoras, que voltaram à sala.

O jantar foi menos animado que de costume. De noite, vieram algumas pessoas, e a situação piorou. Separaram-se sem resposta. A manhã seguinte foi cheia de tédio para Genoveva, um tédio temperado com alegria que bem fazia adivinhar o estado da alma da moça. Oliveira não apareceu nesse dia; mas, veio no outro, à noite. A resposta que ela lhe deu não podia ser mais decisiva, ainda que trêmula e murmurada.

Há aqui um repertório de pequenas coisas infinitas, que não pode entrar em um simples conto nem ainda em longo romance; não teria graça escrito. Sabe-se o que sucede desde a aceitação de um noivo até o casamento. O que se não sabe, porém, é o que aconteceu com esta nossa amiga, dias antes de casar. É o que se vai ler para acabar.

Desde duas semanas antes da pergunta de Oliveira, a viúva deitava-se sem olhar para o retrato do finado marido. Logo depois da resposta, olhava-o algumas vezes, de soslaio, até que tornou ao anterior costume. Ora, uma noite, quatro dias antes de casar, como houvesse pensado no sonho da valsa e na promessa não cumprida, deitou-se com medo e só dormiu sobre a madrugada. Nada lhe sucedeu; mas, na segunda noite, teve um sonho extraordinário.

Não era a valsa do outro sonho, posto que, ao longe, na penumbra, via uns contornos cinzentos de vultos que andavam à roda. Viu, porém, o marido, a princípio severo, depois triste, perguntando-lhe como é que se esquecera da promessa. Genoveva não respondeu nada; tinha a boca tapada por um carrasco, que era não menos que Oliveira.

- Responde, Genoveva!

- Ah! Ah!

- Tu esqueceste tudo. Estás condenada ao inferno!

Uma língua de fogo lambeu a parte do céu que se conservava azul, porque todo o resto era um amontoado de nuvens carregadas de tempestade. Do meio delas saiu um vento furioso, que pegou da moça, do defunto marido e do noivo e os levou por uma estrada fora, estreita, lamacenta, cheia de cobras.

- O inferno! Sim! O inferno!

E o carrasco tapava-lhe a boca, e ela mal podia gemer uns gritos abafados.

- Ah! Ah!

Parou o vento, as cobras ergueram-se do chão e dispersaram-se no ar, entrando cada uma pelo céu dentro; algumas ficaram com a cauda de fora. Genoveva sentiu-se livre; desaparecera o carrasco, e o defunto esposo, de pé, pôs-lhe a mão na cabeça, e disse com voz profética:

- Morrerás se casares!

Desapareceu tudo; Genoveva acordou; era dia. Ergueu-se trêmula; o susto foi passando, e mais tarde, ao cuidar do caso, dizia consigo: "São sonhos". Casou e não morreu.
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Notas:

Engenho Velho - O bairro do Engenho Velho se localiza na zona Norte da cidade do Rio de Janeiro. No século XVIII, os jesuítas eram donos de uma grande propriedade, onde fundaram a Fazenda do Engenho Novo, produtora de cana-de-açúcar. Com a expulsão dos jesuítas das colônias portuguesas, ordenada pelo marquês de Pombal (1759), as terras foram leiloadas e divididas em três partes: Engenho Velho, Engenho Novo e São Cristóvão. O Engenho Velho, cujo ponto central era a matriz de São Francisco Xavier, até hoje no mesmo local, deu origem ao atual bairro da Tijuca.

Jockey Club - era o nome de uma fragrância produzida pela perfumaria de Jean-Baptiste Rigaud, estabelecida em Paris em 1852.

O Noviço - Trata-se de uma comédia escrita por Martins Pena (1815-1848) em 1845. Foi apresentada pela primeira vez no Teatro de São Pedro, em agosto do mesmo ano e publicada em livro em 1853. Na peça, o vilão Ambrósio casa com Florência por interesse, e, por isso, tenta internar os dois filhos da esposa num convento, para poder ficar com toda a fortuna desta.

Rua do Ouvidor - A rua do Ouvidor, principal rua comercial do Rio de Janeiro no século XIX (e em boa parte do século XX), ia do mar ao largo de São Francisco. Hoje seu início está afastado do mar, devido a sucessivos aterros. Nela ficavam as lojas elegantes da época, como charutarias, sapatarias, joalherias, lojas de roupas etc., assim como a sede do Jornal do Commercio, da Gazeta de Notícias e de outros periódicos. Nela situava-se também a livraria Garnier, casa editora de grande parte da obra de Machado de Assis e ponto de encontro da intelectualidade nas últimas décadas do século XIX.

Fábio Cunctator - Quinto Fábio Máximo (275 a.C.- 203 a. C.) foi um político e militar romano, nomeado cônsul em cinco ocasiões. A sua alcunha, Cunctator, significa "o que adia" em latim, e faz referência às suas táticas utilizadas durante a Segunda Guerra Púnica para deter Aníbal.

Faca de marfim rasgando as folhas espessas do livro - Antigamente (até meados do século XX), os livros eram impressos em folhas, que eram dobradas ao meio, resultando cadernos com quatro páginas, que o primeiro leitor de uma obra precisava abrir (ou "rasgar"), com facas ou espátulas de marfim, prata ou outro material resistente, para poder ler o que estava impresso em cada página.

Fonte:
Machado de Assis. Obra completa. Outros Contos - Fase 10 (1893-1907).