quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

Lima Barreto (Cinco mulheres) II - Antônia


A história conhece um tipo da dissimulação, que resume todos os outros, como a mais alta expressão de todos: - é Tibério. Mas nem esse chegaria a vencer a dissimulação dos Tibérios femininos, armados de olhos e sorrisos capazes de frustrar os planos mais bem combinados e enfraquecer as vontades mais resolutas.

Antônia era uma mulher assim.

Quando eu a conheci era ela casada de doze meses. O marido tinha nela a mais plena confiança. Amavam-se ambos com o amor mais ardente e apaixonado que ainda houve. Era uma alma só em dois corpos. Se ele demorava fora de casa, Antônia não só velava todo o tempo, como desfazia-se em lágrimas de saudades e de dor. Apenas ele chegava, não havia o desenlace comum das recriminações estéreis; Antônia lançava-se-lhe aos braços e tudo voltava em bem.

Onde um não ia, não ia o outro. Para quê, se a felicidade deles residia em estarem juntos, viverem dos olhos um do outro, fora do mundo e dos seus vãos prazeres? Assim ligadas estas duas criaturas davam ao mundo o doce espetáculo de uma união perfeita. Eram o enlevo das famílias e o desespero dos mal casados.

Antônia era bela; tinha vinte e seis anos. Estava no pleno desenvolvimento de uma dessas belezas robustas e destinadas a resistir à ação do tempo. Oliveira, seu marido, era o que se podia chamar um Apolo. Via-se que aquela mulher devia amar aquele homem e aquele homem devia amar aquela mulher.

Frequentavam a casa de Oliveira alguns amigos, uns da infância, outros de data recente, alguns de menos de um ano, isto é, da data do casamento de Oliveira. A amizade é o melhor pretexto, até hoje inventado, para que um indivíduo pretenda tomar parte na felicidade de outro. Os amigos de Oliveira, que não primavam pela originalidade dos costumes, não ficaram isentos de encantos que a beleza de Antônia produzia em todos. Uns, menos corajosos, desanimaram diante do extremoso amor que ligava o casal; mas um houve, menos tímido, que assentou de si para si tomar lugar à mesa da ventura doméstica do amigo.

Era um tal Moura.

Não sei dos primeiros passos de Moura; nem das esperanças que ele pôde ir concebendo à proporção que corria o tempo. Um dia, porém, a notícia de que entre Moura e Antônia havia um laço de simpatia amorosa surpreendeu a todos.

Antônia era até então o símbolo do amor e da felicidade conjugal. Que demônio lhe soprara ao ouvido tão negra resolução de iludir a confiança e o amor do marido? Uns duvidaram, outros se irritaram, alguns esfregaram as mãos de contentes, animados pela ideia de que o primeiro erro devia ser uma arma e um incentivo para os erros futuros.

Desde que a notícia, contada à meia voz, e com a mais perfeita discrição, correu de boca em boca, todas as atenções voltaram-se para Antônia e Moura. Um olhar, um gesto, um suspiro, escapam aos mais dissimulados; os olhos mais experimentados viram logo a veracidade dos boatos; se os dois se não amavam, estavam perto do amor.

Deve-se acrescentar que ao pé de Oliveira, Moura fazia o papel de deus Pã ao pé do deus Febo. Era uma figura vulgar, às vezes ridículo, sem nada que pudesse legitimar a paixão de uma mulher bela e altiva. Mas assim aconteceu, a grande aprazimento da sombra de La Bruyère.

Uma noite uma família da amizade de Oliveira foi convidá-la para irem ao Teatro Lírico. Antônia mostrou grande desejo de ir. Cantava então não sei que celebridade italiana.

Oliveira, por doente ou por enfado, não quis ir. As instâncias da família que os convidara foram inúteis; Oliveira teimou em ficar.

Oliveira insistia em ficar, Antônia em ir. Depois de muito tempo o mais que se conseguiu foi que Antônia fosse em companhia das amigas, que a trariam depois para casa.

Oliveira ficara em companhia de um amigo.

Mas, antes de saírem todos, Antônia insistiu de novo com o marido para que fosse.

- Mas se eu não quero ir? dizia ele. Vai tu, eu ficarei, conversando com ***.

- É que se tu não fores, disse Antônia, o espetáculo não vale nada para mim. Anda!

- Vai, querida, eu irei em outra ocasião.

- Pois não vou!

E sentou-se disposta a não ir ao teatro. As amigas exclamaram em coro:

- Como é isso: não ir? Que maçada! Era o que faltava! anda, anda!

- Vai, sim, disse Oliveira. Então porque eu não vou, não te queres divertir?

Antônia levantou-se:

- Está bem, disse ela, irei.

- De que número é o camarote? perguntou bruscamente Oliveira.

- Vinte, segunda ordem, disseram as amigas de Antônia.

Antônia empalideceu ligeiramente.

- Então, irás depois, não é? disse ela.

- Não, decididamente, não.

- Dize se vais.

- Não, fico, é decidido.

Saíram para o Teatro Lírico. Sob pretexto de que desejava ir ver a celebridade tomei o chapéu e fui ao Teatro Lírico.

Moura estava lá!
________________
continua... III - Carolina

Fonte:
Publicado originalmente em Jornal das Famílias, 1865.

Sebo Multimania (Livros Baratos em Maringá/PR)


Semana passada foi colocada uma banca com muitos livros de ponta de estoque, em ótimo estado, ao preço de R$ 4,00 cada, e se levar 4 livros, paga somente R$ 10,00. Nikos Katzankis, Sílvia Day, Persia Wooley, Maurice Druon, são alguns dos escritores que constam desta banca.

Livros novos bem abaixo do custo. 

Além de milhares de livros em estantes intermináveis separados por gênero. Também tem CDS e DVDs.

Vendedores profissionais que entendem do riscado, 100% em simpatia e atenção, e cá entre nós, sendo eu um cliente de carteirinha do sebo, só faltam carregar a gente no colo. 

Sebo Multimania

Rua Joubert de Carvalho, 63, no centro de Maringá/PR
Quase junto a av. São Paulo, próximo ao Shopping Avenida Center
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terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Trova 335 - Wanda de Paula Mourthé


Carolina Ramos (Bolha de Sabão)

  
Guilherme andava desconfiado. Pressentia algo de errado no ar. Uma vez mais, lhe haviam dito que Pai Noel chegaria na noite de Natal para comemorar o aniversário do Menino Jesus. Tudo bem. Mas... havia aquele toque de falsidade, que não afinava com a a harmonia do momento e, que não era capaz de explicar!

Por quê, aquele Pai Noel, querido em todo o bairro, desde que Guilherme se conhecera por gente, chegava sempre afobado à sua casa, lá pela hora da ceia, sem nunca, nunca mesmo, encontrar seu pai entre os familiares? Era muito estranho... Estranho mesmo!

Ao que tudo indicava, o pai de Guilherme não fazia a mínima questão de conhecer o Bom Velhinho. Um estava para chegar... e o outro sumia, sem que ninguém mais o visse até o final da festa!! Não era para estranhar?!

Naquela noite, Guilherme estava mais intrigado do que nunca. A barba branca do Papai Noel estava mais rala que nos anos anteriores e, os óculos, acima do nariz, tinham uma armação muito parecida, igual, mesmo, à dos óculos de seu pai! Coincidência, é claro! Mas... por quê aquela barba branca parecia agora tão rala?! Seria porque Papai Noel estava mais velho? Não poderia ser! Ora... se Papai Noel envelhecesse como qualquer mortal, àquela altura, já teria despencado de todo e estaria morto! Mortinho, como acontece com todo o mundo!

- Por que este peru não tem asas?!

- Seu boboca... isto não é um peru... é um "tender"! - Guilherme olhou o irmão, menor, do alto dos seus experientes nove anos de idade. Confundir um presunto saído do forno, com um peru sem asas, era demais! Pesou a ingenuidade do irmão pequenino e o seu senso de protecionismo aflorou: - cresceu mais um palmo, precisava defender o irmão da sua própria ignorância! Aquele Papai Noel, que a ambos queriam impingir e que já caíra no seu descrédito, era festejado com muito entusiasmo pela inocência do seu irmãozinho. Precisava desmascará-lo! Desconfiado, Guilherme ficou na tocaia, à espera do momento propício.

Com cuidado, aproximou-se do velho gorducho de botas negras e gorro vermelho, que animava a festa com sua alegria esfuziante. Chegou-se de manso, como gato malandro, pronto para dar o golpe. O alvo era aquela barba branca... rala, através da qual se insinuava um pescoço conhecido.

Assim que o velhinho, ruidosamente ergueu a taça para o brinde tradicional, Guilherme deu o bote, arrancando, num ímpeto, aquela barba branquinha que deixou a descoberto a cara risonha do próprio pai, que, logo não escondia o desapontamento causado pela audácia do filho!

- Ah!... Eu sabia! - o menino inflou o peito, vitorioso! Absoluto dono da verdade, ainda repetiu triunfante: - Eu sabia!... Papai Noel não existe!

Silêncio perturbador envolveu o ambiente. Era como se, de repente, aquela magia que enfeita o Natal e aquece a fantasia das crianças, houvesse explodido no ar, tala qual uma linda e irizada bolha de sabão, irremediavelmente furada pelo dedo atrevido de um garotinho precoce e contestador!...

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. 
2. ed. São Paulo: EditorAção, 2015.

Paulo Roberto Oliveira Caruso (Poemas Diversos)


A ETERNIDADE NAS FOTOS 

A foto “eterniza” as pessoas, 
por mais que mortas estejam. 
As filmagens outrossim. 
Os meios de gravação de som
igualmente o proporcionam. 
A pintura impressionista faz o mesmo,
embora não se trate de uma imagem sugada
instantaneamente, lepidamente, 
num feixe de luz... ou flash... 

Como pode um ser humano
envelhecer em sua vida real, 
adoecer, morrer de qualquer forma,
sem que a imagem capturada 
sofra quaisquer alterações?

O ser humano e a fotografia.
A pessoa e a filmagem.
A gente e a pintura impressionista, impressionante.
A voz e a gravação. 
São gêmeos bivitelinos perfeitos, 
conquanto a ideia em si pareça absurda.

Tais experimentos nos trazem saudade...
E ademais certa maldade...
Justamente porque a saudade nos mata...
Mas nos mata lentamente.

A SINFONIA NA LAGOA

Sob o fino pratear da lua, 
cujo cintilar reflete na lagoa, 
vitórias-régias pequenas e robustas
parecem bailar ao som da sinfonia
de sapos, rãs e pererecas.
Eles enchem o peito pra cantar
a melodia típica dos anfíbios, 
como se agradecessem a Deus
pelo alimento, pela existência e pelo lar. 
São os tenores da ária nascida rica. 

O verdor predomina vastamente, 
apenas tendo a luz divina e bela. 
Como sua companheira de jornada. 
Mais parece a lagoa um grande palco
para as vitórias-régias bailarinas
rodopiarem ao som do canto dos batráquios. 

O olhar brilhante da onça espreita 
de longe o concerto enriquecido
pelos grilos e cigarras – 
barítonos e sopranos – 
deste espetáculo da natureza. 

Macacos batem palmas em algazarra
e saltitam, gritando efusivamente, 
agradecendo por cada nota musical. 
Dão mesmo cambalhotas de alegria 
nos camarotes da copa das árvores. 

Acima disto tudo, no céu, 
corujas fazem seu coro de pios, 
enquanto rodopiam alegremente
como uma quadrilha de festa junina.

CADERNO IN ALBIS 

A passagem para o ano vindouro 
traz a cor branca do tecido como símbolo.
Atribui-se a ela normalmente a paz.
Mas podemos pensar em algo mais...

Trata-se da cor mais usada em páginas de um caderno.
E na cor branca das páginas sem escrita 
podemos ver todo um mar de oportunidades, 
tendo o céu como o limite. 
Podemos ver a liberdade de criar 
um ano que está por nascer. 
Cabe a nós mesmos escrever as linhas 
do que desejamos ter pela frente.

Logicamente outras linhas cruzarão 
as linhas por nós escritas,
como num choque de cadernos incompletos.
Mas aí haverá a chance de aprendermos 
uma cultura diferente da que temos
e ver se a consideramos auspiciosa ou não. 
Afinal, o homem é um ser social e político
por sua própria natureza! 

Que a saúde nos conduza a lindas ocasiões! 
E que saibamos fazer o bem a nós mesmos
e também aos demais seres vivos
com muito amor e muita paz! 

Talvez tenhamos que rasgar uma folha ou outra...
Mas que o façamos com sapiência
de reconstruir a nossa vida 
e de proporcionar uma vida melhor a outrem,
dando-lhe novas perspectivas!

CORDEL À BAILARINA

Bailarina rodopia, 
mais parecendo uma garça. 
Chega a não tocar o chão
sem qualquer truque e sem farsa!

Bailarina no teatro 
é como a garça a voar!
A leveza transparece 
a cada piruetar!

Faz um coque nos cabelos 
para cegar-se jamais 
com os mesmos no trajeto 
dos seus passos magistrais. 

Na ponta de cada pé, 
faz plateia suspirar;
sua fé jamais se perde
num melhor apresentar. 

Bailarina majestosa 
entra vestida de branco, 
conquista a todos à frente 
com seu movimento franco. 

Ela sabe ser austera 
e outrossim ser singela, 
mas é certo, meu leitor, 
se apresentar sempre bela!

É suave como pluma, 
faz cócegas pelo chão. 
Este fica agradecido 
pela artista em compaixão. 

Dança! Baila, bailarina!
Às damas faze sonhar!
Às meninas sê exemplo
dum bonito voejar!

Fonte:

Lima Barreto (Cinco mulheres) I - Marcelina


Aqui vai um grupo de cinco mulheres, diferentes entre si, partindo de diversos pontos, mas reunidas na mesma coleção, como em um álbum de fotografias.

Desenhei-as rapidamente, conforme apareciam, sem intenção de precedência, nem cuidado de escolha.

Cada uma delas forma um esboço à parte; mas todas podem ser examinadas
entre o charuto e o café.

I
MARCELINA

Marcelina era uma criatura débil como uma haste de flor; dissera-se que a vida lhe fugia em cada palavra que lhe saía dos lábios rosados e finos. Tinha um olhar lânguido como os últimos raios do dia. A cabeça, mais angélica do que feminina, aspirava ao céu. Quinze anos contava, como Julieta. Como Ofélia, parecia que estava destinada a colher a um tempo as flores da terra e as flores da morte.

De todas as irmãs - eram cinco -, era Marcelina a única a quem a natureza tinha dado tão pouca vida. Todas as mais pareciam ter seiva de sobra. Eram mulheres altas e reforçadas, de olhos vivos e cheios de fogo. Alfenim era o nome que davam a Marcelina. Ninguém a convidava para as fadigas de um baile ou para os grandes passeios. A boa menina fraqueava depois de uma valsa ou no fim de cinqüenta passos do caminho.

Era ela a mais querida dos pais. Tinha na sua fragilidade a razão da preferência. Um instinto secreto dizia aos velhos que ela não havia de viver muito; e como que para desforrá-la do amor que havia de perder, eles a amavam mais do que às outras filhas. Era ela a mais moça, circunstância que acrescia àquela, porque ordinariamente os pais amam o último filho mais do que os primeiros, sem que os primeiros pereçam inteiramente no seu coração.

Marcelina tocava piano perfeitamente. Era a sua distração habitual; tinha o gosto da música no mais apurado grau. Conhecia os compositores mais estimados, Mozart, Weber, Beethoven, Palestrina. Quando se assentava ao piano para executar as obras dos seus favoritos, nenhum prazer da terra a tiraria dali.

Chegara à idade em que o coração da mulher começa a interrogá-la secretamente; mas ninguém conhecia um sentimento só de amor no coração de Marcelina. Talvez não fosse a hora, mas todos que a viam acreditavam que ela não pudesse amar na terra, tão do céu parecia ser aquela delicada criatura.

Um poeta de vinte anos, virgem ainda nas suas ilusões, teria encontrado nela o mais puro ideal dos seus sonhos; mas nenhum havia na roda que frequentava a casa da moça. Os homens que lá iam preferiam a tagarelice insossa e incessante das irmãs à compleição frágil e à recatada modéstia de Marcelina.

A mais velha das irmãs tinha um namorado. As outras sabiam do namoro e o protegiam na medida dos seus recursos. Do namoro ao casamento pouco tempo mediou, apenas um mês. O casamento foi fixado para um dia de junho. O namorado era um belo rapaz de vinte e seis anos, alto, moreno, de olhos e cabelos pretos. Chamava-se Júlio.

No dia seguinte em que se anunciou o casamento de Júlio, Marcelina não se levantou da cama. Era uma ligeira febre que cedeu no fim de dois dias aos esforços de um velho médico, amigo do pai. Mas, ainda assim, a mãe de Marcelina chorou amargamente, e não dormiu uma hora. Nunca houve crise séria na moléstia da filha, mas o simples fato da moléstia bastou para que a boa mãe perdesse a cabeça. Quando a viu de pé regou de lágrimas os pés de uma imagem da Virgem, que era a sua devoção particular.

Entretanto seguiam os preparativos do casamento. Devia efetuar-se dali a quinze dias. Júlio estava radiante de alegria, e não perdia ocasião de comunicar-se a todos o estado em que se achava. Marcelina ouvia-o com tristeza; dizia-lhe duas palavras de cumprimento e desviava a conversa daquele assunto, que lhe parecia penoso. Ninguém reparava, menos o médico, que um dia, em que ela se achava ao piano, disse-lhe com ar pesaroso:

- Menina, isso faz-lhe mal.

- Isso quê?

- Sufoque o que sente, esqueça um sonho impossível e não vá adoecer por um sentimento sem esperança.

Marcelina cravou os olhos nas teclas do piano e levantou-se a chorar.

O doutor saiu mais pesaroso do que estava.

- Está morta, dizia ele descendo as escadas.

O dia do casamento chegou. Foi uma alegria na casa, mesmo para Marcelina, que cobria a irmã de beijos; aos olhos de todos era a afeição fraternal que se manifestava assim num dia de júbilo para a irmã; mas a um olhar experimentado não escaparia a tristeza escondida debaixo daquelas demonstrações tão fervorosas.

Isto não é um romance, nem um conto, nem um episódio; - não me ocuparei, portanto, com os acontecimentos dia por dia. Um mês se passou depois do casamento de Júlio com a irmã de Marcelina. Era o dia marcado para o jantar comemorativo em casa de Júlio. Marcelina foi com repugnância, mas era preciso; simular uma doença era impedir a festa; a boa menina não quis. Foi.

Mas quem pode responder pelo futuro? Marcelina, duas horas depois de estar em casa da irmã, teve uma vertigem. Foi levada para um sofá, mas tornada a si achou-se doente. Foi transportada para casa. Toda a família a acompanhou. A festa não teve lugar.

Declarou-se uma nova febre.

O médico, que sabia o fundo da doença de Marcelina, procurou curar-lhe a um tempo o corpo e o coração. Os remédios do corpo pouco faziam, porque o coração era o mais doente. O médico quando empregava uma dose no corpo, empregava duas no coração. Eram os conselhos brandos, as palavras persuasivas, as carícias quase fraternais. A moça respondia a tudo com um sorriso triste - era a única resposta.

Quando o velho médico lhe dizia:

- Menina, esse amor é impossível...

Ela respondia:

- Que amor?

- Esse: o de seu cunhado.

- Está sonhando, doutor. Eu não amo ninguém.

- É debalde que procura ocultar.

Um dia, como ela insistisse em negar, o doutor ameaçou-a sorrindo que ia contar tudo à mãe.

A moça empalideceu mais do que estava.

- Não, disse ela, não diga nada.

- Então, é verdade?

A moça não ousou responder: fez um leve sinal com a cabeça.

- Mas não vê que é impossível? perguntou o doutor.

- Sei.

- Então por que pensar nisso?

- Não penso.

- Pensa. É por isso que está tão doente...

- Não creia, doutor; estou doente porque Deus o quer; talvez fique boa, talvez não; é indiferente para mim; só Deus é quem manda estas coisas.

- Mas sua mãe?...

- Ela irá ter comigo, se eu morrer.

O médico voltou a cabeça para o lado de uma janela que se achava meio aberta.

Esta conversa reproduziu-se muitas vezes, sempre com o mesmo resultado.
Marcelina definhava a olhos vistos. No fim de alguns dias o médico declarou que era impossível salvá-la.

A família ficou desolada com esta notícia.

Júlio ia visitar Marcelina com sua mulher; nessas ocasiões Marcelina sentia-se elevada a uma esfera de bem-aventurança. Vivia da voz de Júlio. As faces se lhe coloriam e os olhos readquiriam um brilho celeste.

Depois voltava ao seu estado habitual.

Mais de uma vez quis o médico declarar à família qual era a verdadeira causa da moléstia de Marcelina; mas que ganharia com isso? Não viria daí o remédio, e a boa menina ficaria do mesmo modo.

A mãe, desesperada com aquele estado de coisas, imaginou todos os meios de salvar a filha; lembrou a mudança de ares, mas a pobre Marcelina raras vezes deixava de arder em febre.

Um dia, era um domingo de julho, a menina declarou que desejava comunicar alguma coisa ao doutor.

Todos os deixaram a sós.

- Que quer? perguntou o médico.

- Sei que é nosso amigo, e sobretudo meu amigo. Sei quanto sente a minha doença, e como lhe dói que eu não possa ficar boa...

- Há de ficar, não fale assim...

- Qual doutor! eu sei o que sinto! Se lhe quero falar é para dizer-lhe uma coisa. Quando eu morrer não diga a ninguém qual foi o motivo da minha morte.

- Não fale assim... interrompeu o velho levando o lenço aos olhos.

- Di-lo-á somente a uma pessoa, continuou Marcelina; é a minha mãe. Essa sim, coitada, que tanto me ama e que vai ter a dor de me perder! Quando lhe disser, entregue-lhe então este papel.

Marcelina tirou debaixo do travesseiro uma folha de papel dobrada em quatro, e atada por uma fita roxa.

- Escreveu isto? Quando? perguntou o médico.

- Antes de adoecer.

O velho tomou o papel das mãos da doente e guardou-o no seu bolso.

- Mas, venha cá, disse ele, que ideias são essas de morrer? Tão moça! Começa apenas a viver; outros corações podem ainda receber os seus afetos; para que quer tão cedo deixar o mundo? Pode ainda encontrar nele uma felicidade digna da sua alma e dos seus sentimentos... Olhe cá, ficando boa iremos todos para fora. A menina gosta da roça. Pois toda a família irá para a roça...

- Basta, doutor! É inútil.

Daí em diante Marcelina pouco falou.

No dia seguinte à tarde Júlio e a mulher vieram visitá-la. Marcelina achava-se pior. Toda a família estava ao pé da cama. A mãe debruçada à cabeça chorava silenciosamente.

Quando veio a noite fechada, declarou-se a crise da morte. Houve então uma explosão de soluços; porém a menina, serena e calma, a todos procurava consolar dando-lhes a esperança de que iria orar por todos no céu.

Quis ver o piano em que tocava; mas era difícil satisfazer-lhe o desejo e ela facilmente se convenceu. Não desistiu porém de ver as músicas; quando elas lhas deram distribuiu-as pelas irmãs.

- Quanto a mim vou tocar outras músicas no céu.

Pediu algumas flores secas que tinha numa gaveta, e distribuiu-as igualmente pelas pessoas presentes.

Às oito horas expirou.

Um mês depois o velho médico, fiel à promessa que fizera à moribunda, pediu uma conferência particular à infeliz mãe.

- Sabe de que morreu Marcelina? perguntou ele; não foi de uma febre, foi de um amor.

- Ah!

- É verdade.

- Quem era?

- A pobre menina pôs a sua felicidade num desejo impossível; mas não se
revoltou contra a sorte; resignou-se e morreu.

- Quem era? perguntou a mãe.

- Seu genro.

- É possível? disse a pobre mãe dando um grito.

- É verdade. Eu o descobri, e ela mo confessou. Sabe como eu era amigo dela; fiz tudo quanto pude para desviá-la de semelhante pensamento; mas tinha chegado tarde. A sentença estava lavrada; ela devia amar, adoecer e subir ao céu. Que amor, e que destino!

O velho tinha os olhos rasos de lágrimas; a mãe de Marcelina chorava e soluçava que cortava o coração. Quando ela pôde ficar um pouco calma, o médico continuou:

- A entrevista que ela me pediu nos seus últimos dias foi para dar-me um papel, disse-me então que lho entregasse depois da morte. Aqui o tem.

O médico tirou do bolso o papel que recebera de Marcelina e lho entregou intacto.

- Leia-o, doutor. O segredo é nosso.

O doutor leu em voz alta e com voz trêmula:

Devo morrer deste amor. Sinto que é o primeiro e o último. Podia ser a minha vida e é a minha morte. Por quê? Deus o quer. Não viu ele nunca que era eu a quem devia amar. Não lhe dizia acaso um secreto instinto que eu carecia dele para ser feliz? Cego! foi procurar o amor de outra, tão sincero como o meu, mas nunca tão grande e tão elevado! Deus o faça feliz!

Escrevi um pensamento mau. Por que me hei de revoltar contra minha irmã? Não pode ela sentir o que eu sinto? Se eu sofro por não ter a felicidade de possuí-lo não sofreria ela, se ele fosse meu? Querer a minha felicidade à custa dela, é um sentimento mau que mamãe nunca me ensinou. Que ela seja feliz e sofra eu a minha sorte.

Talvez eu possa viver; e nesse caso, ó minha Virgem da Conceição, eu só te peço que me dês a força necessária para ser feliz só com a vista dele, embora ele me seja indiferente. Se mamãe soubesse disto talvez ralhasse comigo, mas eu acho que...

O papel achava-se interrompido neste ponto.

O médico acabou estas linhas banhado em lágrimas. A mãe chorava igualmente. O segredo confiado aos dois morreu com ambos.

Mas um dia, tendo morrido a velha mãe de Marcelina, e procedendo-se ao inventário, foi achado o papel pelo cunhado de Marcelina... Júlio conheceu então a causa da morte da cunhada. Lançou os olhos para um espelho, procurando nas suas feições um raio da simpatia que inspirara a Marcelina, e exclamou:

- Pobre menina!

Acendeu um charuto e foi ao teatro.
_________
continua... II - Antônia

Fonte:
Publicado originalmente em Jornal das Famílias, 1865.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Olivaldo Júnior (Clarice)


10 de dezembro de 2018.

Hoje, pela manhã, o Google me lembrou que, se Clarice Lispector estivesse viva, estaria completando noventa e oito anos de idade. Clarice, essa ucraniana radicada no Brasil, é uma das maiores escritoras da Língua Portuguesa de todos os tempos. Tempo. Talvez, o tempo tenha sido o maior mote da obra de Clarice, que buscava em suas personagens a face perdida de si mesma. Lembrou-se do famoso verso de Cecília Meireles?! Pois é, onde anda a nossa face?

A face de Clarice se metamorfoseou em cada uma das mulheres às quais deu vida e trouxe à luz. Eu, que sou homem, me identifico muitas vezes com Macabéa, sua famosa personagem de A hora da estrela, cujo destino, assim como a sua vida, foi trocado no embaralhar de cartas de uma cartomante que mal sabia de si mesma. A cartomante da história também era Clarice. Clarice, aliás, era muitas, era todas, não cabia em si de tantas que foi, era e ainda é.

Macabéa, com seu nada de existência, carregava tanto significado em suas costas, no seu quartinho dividido com outras, tão pobres e tão ricas de sentido quanto ela, que me comove saber que ainda existem Macabéas por aí, sem eira e nem beira, à espera de sua hora da estrela de cinema. Também espero a minha. Tenho muito de Macabéa. Sua ingenuidade, sua crença no outro, sua trégua com a maldade e sua obtusa configuração de tempo e espaço, tão singela!

Clarice, você que renasce a cada vez que um texto seu é lindamente dito por Beth Goulart, Maria Bethânia, Aracy Balabanian e tantas outras intérpretes brasileiras, você, Clarice, eu convidaria para um chá com meus fantasmas, que Quintana me ensinou a preparar. Você, Clarice, eu gostaria de encontrar num café celestial, onde os anjos param toda tarde a fim de dar descanso às grandes asas que o deus fizera. Também invento Deus, Clarice. E a mim.

Fonte:
O Autor

Maria da Glória Colucci (Poemas Recolhidos)


APENAS UMA GOTA... 

Com a suavidade de uma pétala. 
Com a doçura do mel. 
Apenas uma... 
Gota! 
Com a beleza de um pássaro. 
Com a leveza de uma nuvem. 
Apenas uma... 
Gota! 
Com a pureza do orvalho. 
Com a alegria de um sorriso. 
Apenas uma... 
Gota! 
Incomparável! Indescritível! 
Maravilhosa! Perfeita! 
Apenas uma...Só uma 
Gota! 
De teu precioso Amor... 
Perdoa...Purifica...Transforma... 
Eternamente, Senhor! 

BANAL

Nenhuma palavra é banal!
Tem força, tem energia, tem impulso.

Banal é quem a usa mal.

Perigosa é a palavra injusta,
desperdiçada, leviana, sem cor,
vazia, sem afeto, sem amor,
que fere como seta fervente, mortal.

Banal é quem a usa mal.

Pedra aguçada, agressiva,
ou pérola preciosa, que anima,
produz conforto e dá alegria!

Não esqueças a cada dia:
- Nenhuma palavra é banal...!

ILUSÃO

Podes partir, já não te quero 
mais !... 

Podes seguir teu caminho 
em paz!... 

Chegaste como passageira 
tormenta em primavera, 
súbita e inesperada quimera. 

Deves partir, já não me 
fazes falta! 

Envelheci mil dias em poucas 
e amargas horas! 

Deves partir, já não te quero 
mais!... 

LIVRES?

Somos todos frágeis seres 
Em triste desalinho. 
Vivemos entre o trágico, 
O translúcido e o divino. 

Tropeçamos no fútil e mágico, 
Movidos pelo admirável... 
Paralisados pelo aceitável. 
Livres sempre para escolher; 
Mas, sem saber o que fazer... 

PASSA O TEMPO

Tudo passa a seu tempo.
Passa o tempo
das dores, das nuvens, das trovoadas.
Passa, passa o tempo
da indiferença, das tristes revoadas.
Tudo... tudo sempre passa!

Tudo passa a seu tempo.
Passa o tempo
das alegrias, das paixões, dos amores.
Passa, passa o tempo
correndo no relógio, marcado por temores.
Tudo... tudo sempre passa!

Tudo passa a seu tempo.
Passa o tempo.
da beleza, do encanto, da lembrança.
Passa, passa o tempo
das dores, do perdão, da saudade.
Tudo... tudo sempre passa?

Não. Só não passa a Esperança!


Fontes:

Maria da Gloria Colucci (Cadeira n. 9 da AVIPAF)

AVIPAF - Patronesse: Cecília Meireles

Maria da Gloria Lins da Silva Colucci, Mestre em direito público pela UFPR. Especialista em Filosofia do Direito pela PUCPR. 

Professora titular de Teoria do Direito do UNICURITIBA. 

Professora Emérita do Centro Universitário Curitiba. 

Orientadora do Grupo de Pesquisas em Biodireito e Bioética - Jus Vitae, do UNICURITIBA, desde 2001. 

Professora adjunta IV, aposentada, da UFPR. 

Foi membro do corpo editorial dos periódicos: Revista Jurídica (Curitiba), 2001 - 2002 e Direito Privado (UFPR), 2001 - 2003.

Entidades as quais pertence: 
- Sociedade Brasileira de Bioética (Brasília). 
- Colegiado do Movimento Nós Podemos Paraná (ONU, ODS). 
- IAP (Instituto dos Advogados do Paraná). 
- AVIPAF (Academia Virtual Internacional de Poesia, Arte e Filosofia)
- Titular do Comitê de Ética em Pesquisa do Unicuritiba (2018).
- Comissão do Pacto Global da OAB/PR (2018).

Premiações: 
1976 - 1º lugar no Prêmio Augusto Montenegro (OAB, Pará); 
1977 - 3º lugar no Prêmio Ministério da Educação e Cultura; 
1997 - 1º lugar Pergaminho de Ouro do Paraná (Jornal do Estado). 
2016 - Troféu Carlos Zemek: Destaque Poético.
2017 - Troféu Imprensa Brasil e 
2017 - Top of Mind Quality Gold.

Fontes:

Malba Tahan (A Raposa e a Vinha)


Recompensou-me o Senhor segundo a minha justiça, retribuiu-me segundo a pureza de minhas mãos.
Porque guardei os caminhos do Senhor; nem pecando me afastei do meu Deus.
Davi

Uma raposa se pusera a namorar avidamente uma vinha tão bem cercada que não havia brecha por onde entrasse. Deu voltas e mais voltas, até que topou com um resquício da cerca entre os mourões. Lança-se por ele, impetuosamente, mas era tão estreito que mal pôde colocar a cabeça. Esforça-se daqui, tenta dali, mas tudo em vão. Veio-lhe, então, à ideia um plano singular: “Se eu pudesse”, monologava ela, “emagrecer bastante passaria por esta brecha.” 

Resolvida a vencer a prova, submeteuse a um estranho teor de vida: ficou três dias sem provar alimento, e pôs-se tão fina e magrinha que mais parecia um palito. Toda satisfeita com o sucesso, esgueira-se pelo delgado vão e entra radiante na vinha. Ali pôde recompensar-se de tudo quanto sofrera e passou alguns dias na mais regalada abundância.

Chegado o tempo de sair, receosa dos donos do vinhedo que não podiam tardar, corre à brecha por onde entrara e tenta meter-se por ela. Aconteceu, porém, que a infortunada, naqueles poucos dias de regabofe, engordara tanto que não mais cabia ali. Mais triste do que um mocho, desiste do intento e resolve repetir a provação por que passara, pondo-se de novo em rigoroso jejum até que, novamente magra como um esqueleto, lhe foi possível safar-se pelo agulheiro. Estava, porém, tão fraca e debilitada que parecia um cadáver.

Livre daquele cativeiro, olhou melancolicamente para a vinha e disse-lhe: “Adeus, não me apanharás mais. És sedutora e deliciosa. Tens, em abundância, frutos saborosos, mas que importa? De ti saio, como entrei.”

Assim o homem em relação aos prazeres efêmeros da vida terrena. Ensinava o sábio Rabi Meir: O homem quando nasce tem os braços estendidos para a frente, como se dissesse: “É meu o mundo. Todo mundo é meu!” Quando morre, os traz ao longo do corpo, como a prevenir os que se aferram aos bens materiais: “Nada levo deste mundo. Deixo da vida o que a vida me deu!”

Fonte:
Malba Tahan. Lendas do Bom Rabi. Rio de Janeiro: Record, 2011.