segunda-feira, 3 de junho de 2019

Goulart Gomes (Poetrix) II


A LINHA E O NÓ

novelo de linhas temperadas
ato lonjuras com nós de saudades
alço voo nas cores do silêncio

APRENDIZ DE FEITICEIRO

demorou, mas aprendi:
o meio do mundo
não é o meio de mim

ATAVISMO BÍBLICO

primeva
seria Lilith
ou seria Eva?

BIO

de tanto comer livros
o menino inchou
vomitou alguns

CIGARRAS

um amor que se desgarra
como uma cigarra
implodida

CONFUSO

não sou o tao
o mundo out
me deixa yin

DIVID-IR

de mim, resta-me pouco:
aos seus olhos, este
em seus braços, outro

GENÉRICOS

quanto mais desconheço
os gerentes
mais amo as serventes

(G)ESTAÇÕES

juras de amor eterno
nas folhas caídas do outono
não chegaram ao inverno

MINHA MÁXIMA

a cada nova manhã
ressuscito com a certeza
da minha culpa cristã

NAVEGAR É PRECISO II

folha caída
navegando na sarjeta
barco de formigas

OFERENDA

Meu Senhor do Bonfim,
Ganesh, Trismegisto, Exu,
Abram as portas pra mim!

PAISAGEM

no leito azul do céu
uma nuvem branca
desnuda a sua anca

PULSAR

em meu corpo vibram
cósmicas supernovas
esperando teus beijos

ROSA-DOS-VENTOS

olhos de Capitu
desgovernando-me a bússola
sem noite, sem céu, sem sul

TRANSITRIX
ou
POETRIXTA NO TRÂNSITO
ou
UM POETA GUIA SEU VEÍCULO NO TRÂNSITO DE SALVADOR LEMBRANDO QUINTANA

esses ônibus que aí estão, atravancando meu
caminho
eles, lotação; eu, unozinho

Fonte:
Livro enviado pelo autor:
Goulart Gomes. Minimal. Salvador/BA: Copigraf, 2011

Lygia Fagundes Telles (A Presença)


Quando entrou pela alameda de pedregulhos e parou o carro defronte do hotel, o casal de velhos que passeava pelo gramado afastou-se rapidamente e ficou espiando de longe. O velho porteiro que o atendeu no balcão de recepção também teve um movimento de recuo. Ele pousou a mala no chão e pediu um apartamento. Por quanto tempo? Não estava bem certo, talvez uns vinte dias. Ou mais. O velho examinou-o da cabeça aos pés. Forçou o sorriso paternal, disfarçando o espanto com uma cordialidade exagerada, mas o jovem queria um apartamento? Ali, naquele hotel?! Mas era um hotel só de velhos, quase todos moradores fixos antiquíssimos, que graça um hotel desses podia ter para um jovem? Depois das nove da noite, silêncio absoluto porque todos dormiam cedíssimo. E a comida tão insípida, sem gordura, sem sal, com pratos sem nenhuma imaginação dentro de dietas rigorosas - pois não eram velhos? E velhos têm problemas de saúde, tantas doenças reais e imaginárias, artritismo, bronquite crônica, asma, pressão alta, flebite, enfisema pulmonar... Sem falar nas doenças mais dramáticas, ocioso enumerar tudo. A própria velhice já era uma doença. Um jovem assim saudável passar suas férias num hotel tão frio quanto um hospital? Nos hospitais ao menos havia uma esperança, os pacientes saírem curados, mas a doença da velhice era sem cura e com a agravante de piorar com o tempo. Injusto oferecer-lhe esse quadro de decadência que apesar de mascarada (os hóspedes pertenciam à burguesia) era por demais deprimente. O prazer com que a juventude se vê refletida num espelho! mas a velhice ali concentrada chegava a ser tão cruel que os espelhos acabaram por ser afastados. Na última reforma, foram removidos os que apresentavam sinais mais acentuados de decomposição nas manchas porosas e bordas amarelecidas, contraídas sob o cristal como um fino papel queimando brandamente. 

Com esses, foram levados também os espelhos maiores da sala de refeições e que ainda estavam em bom estado. A substituição nunca foi providenciada e nem se voltou a falar no assunto, mas seria preciso? Era evidente o alivio dos hóspedes livres daquelas testemunhas geladas, captando-os em todos os ângulos: mais do que suficientes os espelhos menores dos banheiros, apenas o essencial para uma barba, um penteado. Um irrisório carmim. E a quantidade de espelhos na inauguração do hotel! (Estaria o jovem com disposição para ouvir mais?) Bem, tinha sido há cinquenta anos. Nessa época, não passava de um rapazola que ajudava a carregar a bagagem. As famílias chegavam com os carros pejados de malas, caixas, pajens, crianças, bicicletas. Nas longas temporadas de verão, a piscina (que ainda se conservava apesar dos rachões) ficava fervilhante. As danças até de madrugada. O jogo. E as competições na quadra de tênis, as cavalgadas pelo campo, o hotel dispunha de ótimos cavalos. Charretes. Mas aos poucos os hóspedes mais velhos foram dominando à medida que os mais jovem começaram a rarear, não sabia explicar o motivo, o fato é que a transformação - embora lenta - fora definitiva. Um museu-mausoléu. Que jovem podia se sentir bem num hotel assim? Se ele prosseguisse pela mesma estrada por onde viera, alguns quilômetros adiante encontraria um hotel excelente, tinha várias setas indicando o caminho, ficava num bosque bastante aprazível. E pelo que ouvira contar, o ambiente era alegre. Jovial.

Ele tirou os documentos do bolso da jaqueta de couro e colocou-os no mármore do balcão: queria um apartamento nesse hotel e só não insistiria se o regulamento tivesse uma cláusula que proibisse um jovem de vinte e cinco anos de hospedar-se ali.

O velho porteiro passou as pontas dos dedos vacilantes na gola puída do uniforme pardo. Já não sorria quando examinou os documentos do recém-chegado. Devolveu-os. Os olhos de um azul-pálido estavam frios. Talvez não tivesse sido suficientemente claro, talvez, mas o fato é que se ele não se importava com a presença dos velhos, era bem provável que os velhos se importassem (e quanto) com a sua presença. Tão fácil de entender, como um jovem assim sagaz não entendia? Os velhos formavam uma comunidade com seus usos, seus costumes. Uniram-se e a antiga fragilidade, tão agredida além daqueles portões, foi se transformando numa força. Num sistema. Eram seres obstinados. Na secreta luta para garantir a sobrevivência, perderam a memória do mundo que os rejeitara e se não eram felizes, pelo menos conseguiram isso, a segurança. O direito de morrer em paz. No segundo andar do hotel, por exemplo, vivia uma atriz de revista que fora muito famosa. Muito amada. Reduzida agora a um simples destroço, fechara-se na sua concha, apavorada com a curiosidade do público, com o realismo da imprensa ávida por fotografá-la na sua solidão, mas o que vocês querem de mim? ela gritou ao repórter que conseguiu apanhá-la numa cilada e publicar a foto com a manchete que a fez chorar dois dias. Quando o elevador quebrou, só ela, que ainda andava com certa agilidade, continuou no segundo andar, os outros foram transferidos para o primeiro por causa da escada. 

Nesse andar morava um antigo ídolo de atletismo que chegara a duas olimpíadas. Vivia num cadeira de rodas. E como não lia jornais nem ligava a televisão (quem quisesse, tinha seu televisor particular) conseguira esquecer que a corrida com a tocha acesa prosseguia gloriosa sem ele. Esqueceu, assim como foi esquecido. As medalhas e troféus que nos primeiros tempos de invalidez não podia nem ver estavam agora expostos na estante do seu quarto; às vezes os olhava mas sem a antiga emoção, integrados na sua senilidade como o saco de água quente ou a cadeira. O vizinho era um comerciante esclerosado que em poucos anos regredira à juventude, depois à adolescência e agora estava ficando criança de novo. Mas uma criança que era protegida até pelo mais neurastênico dos hóspedes, um homossexual que morava com um gato velhíssimo. Tivera na mocidade uma experiência trágica: quando o amigo tentou matá-lo, todos ficaram sabendo o que desesperadamente procurara esconder, ambos tinham família e eram conhecidíssimos. 

Hoje, é claro, ninguém se importava com isso mas naquele tempo foi só rejeição. Sofrimento. Reencontrara um certo equilíbrio naquele hotel, vendo as gêmeas da paciência abrir o leque do baralho no taciturno exercício do silêncio. Ouvindo a gorda solteirona do bandolim tocar pontualmente aos sábados. Relendo na pequena biblioteca (escassos volumes já gastos) Os Três Mosqueteiros. Ou O Conde de Monte Cristo. Uma tênue cinza baixara sobre suas cabeças. Sobre seus guardados. Agora chegara um jovem para ficar. Para lembrar (e com que veemência) o que todos já tinham perdido, beleza, amor. 

Um jovem com dentes, músculos e sexo - perfeito como um deus, não, não precisava rir, antiga medida de todas as coisas. Essa medida eles esqueceram. Com sua simples presença, iria revolver tudo: a revolução da memória. E passara o tempo das revoluções, ninguém queria renovar mas conservar. Assegurar essa sobrevida, o que já significava um verdadeiro heroísmo, os mais fracos tinham morrido todos. Restaram esses, empenhados numa luta terrível porque dissimulada, eram dissimulados - será que estava sendo claro? Não eram bons.

Ele acendeu o cigarro e ofereceu outro ao porteiro que agradeceu, não podia fumar. Olhou o lustre com longos pingentes de cristal em formato de lágrimas pesadas de poeira. Sorriu enquanto apontava na direção do pequeno elevador dourado e redondo, "mas é lindo, parece uma gaiola!" Abriu o zíper da jaqueta de couro, fazia calor. O porteiro inclinou-se sobre o grosso caderno de registro, molhou a caneta no tinteiro mas ficou com a mão parada no ar. Arqueou as sobrancelhas fatigadas: será que o amigo não percebia que ia ser um importuno? Um intruso? Representava o direito do avesso. Ou o avesso desse direito? O problema é que ele, um simples porteiro, não podia sequer defendê-lo se a comunidade decidisse sutilmente pela sua exclusão. Por mais tolos que esses velhos pudessem parecer, guardavam o segredo de uma sabedoria que se afiava na pedra da morte. Era preciso lembrar que usariam de todos os recursos para que as regras do jogo fossem cumpridas: até onde poderia chegar o ódio por aquele que viera humilhá-los, irônico, provocativo, tumultuando a partida? O jovem se animara com a ideia da piscina. Mas se nessa mesma piscina coalhada de folhas aparecesse uma manhã seu belo corpo boiando, tão desligado quanto as folhas? Eles fechariam depressa a porta devido à correnteza de vento, os velhos não gostam de vento. E voltariam satisfeitos aos seus assuntos. Ao seu joguinho dos domingos, aquele loto tão alegre, os cartões sendo cobertos com grãos de milho enquanto o anunciador (nenhum estranho por perto?) vai cantando os números com as brincadeiras de costume, sempre as mesmas porque eles se divertem com as repetições, como as crianças: número vinte e dois, dois patinhos na lagoa? Quarenta e quatro, bico de pato! Número três, gato escocês! Tão brincalhões esses velhinhos...

O jovem riu, tirou os óculos escuros e sua fisionomia se acendeu, tinha palhetas douradas no fundo das pupilas. Por acaso o porteiro lia romance policial? Os romances da velhinha inglesa, não? Ah, preferia palavras cruzadas. Apanhou a mala. Se possível, um apartamento no segundo andar. O jantar era às sete, não? Ótimo, tinha tempo para dar umas boas braçadas, a tarde estava uma delícia. 

Nenhuma importância se a piscina estava abandonada, a água não era corrente? Pediria apenas que lhe levassem um pouco de gelo, gostava de bebericar na piscina. Não, não precisava de uísque, trouxera sua marca.

Uma velhinha de gargantilha lilás cruzou o saguão na sua cadeira de rodas empurrada por uma calma enfermeira de touca: ia gesticulando, brava, deixando escapar resmungos por entre as gengivas duras enquanto a outra seguia atrás, voltando-se para os lados e sorrindo, poor, poor darling! Hoje está meio irritada mas também, com oitenta e nove anos!... Poor, poor darling! O recém-chegado fez uma profunda reverência na direção de ambas e voltou-se para o porteiro que mostrava num sorriso constrangido a dentadura opaca. Quer dizer que insistia mesmo em ficar? Bem, tinha um apartamento bastante ensolarado no segundo andar, dando para a piscina. "Espero que o senhor fique satisfeito", acrescentou enquanto fazia sinal para um velho de avental até os joelhos, por favor, podia conduzir o novo hóspede? Em largas passadas o jovem galgou os degraus de veludo vermelho e foi esperar o empregado lá em cima, segurando a mala que em vão o velho tentou levar. Quando entrou no apartamento seguido pelo empregado com seu molho de chaves, aspirou com uma expressão de prazer o esmaecido perfume que parecia vir dos móveis antiquados, lavanda? E perguntou enquanto abria a mala se por ali não havia fantasmas, sempre sonhara com um hotel de fantasmas. Os fantasmas somos nós, respondeu-lhe o velho e ele riu alto. Tirou a garrafa de uísque. Ligou o toca-discos.

Quando subiu no trampolim, notou um vulto que espiava através da cortina rendada de uma das janelas. Baixou o olhar divertido para a água de um verde profundo, onde as folhas boiavam num ondulado calmo. Abriu os braços. Saltou. Enquanto nadava de costas, entreviu uma cabeça branca na fresta de uma janela do primeiro andar. Logo apareceu outra cabeça (de um homem?) que ficou um pouco atrás, na sombra. Chegou-lhe vagamente o fiapo triturado de uma discussão antes que a janela se fechasse com força. Ele deitou-se no banco de pedra e ali ficou de braços pendentes, a tanga vermelha escorrendo água, os olhos cerrados. Passou cariciosamente as pontas dos dedos no peito onde os pelos dourados de sol já começavam a secar. Riu silenciosamente enquanto apanhava o copo que deixara no chão: seus movimentos se fragmentavam em câmara lenta, calculados. No jantar, antes mesmo de provar a comida, despejou o sal, o molho inglês, a pimenta e bateu palmas vigorosas para os três velhos músicos - um pianista, um violinista e o careca do rabecão - que tocaram antigas peças que alguns hóspedes (poucos desceram para o jantar) ouviram imperturbáveis. Achou um certo amargor na goiabada com queijo.

Ao se deitar, depois de ter tomado o chá-de-estrada servido às vinte e uma horas, ele já não se sentia bem.

Fonte:
Lygia Fagundes Telles,. Mistérios. Ed. Nova Fronteira, 1981.

Guy de Maupassant (Luar)


Aquele nome de batalha ia bem ao cura Marignan. Era um sacerdote alto, magro, de alma reta, mas em perene estado de exaltação. Todas as suas crenças eram fixas, sem jamais sofrerem vacilações. Sinceramente acreditava conhecer seu Deus, penetrar-lhe os desígnios, os desejos, as intenções.

Quando passeava com passos largos pela alameda do pequeno presbitério, muitas vezes uma interrogação se erguia no seu espírito: "Por que Deus terá feito tal coisa?" Obstinava-se em procurar a resposta para aquele porquê, colocando-se mentalmente no lugar de Deus, e sempre a encontrava. 

Não seria ele quem murmuraria num impulso de piedosa humilhação: "Senhor, vossos desígnios são impenetráveis!" Dizia: "Sou o servo de Deus, preciso conhecer as razões que o movem, e adivinhá-las quando não as conhecer".

Todas as coisas na natureza lhe pareciam ter sido criadas com absoluta e admirável lógica. Os "Por que?" e os "Porque" sempre se equilibravam. As auroras haviam sido feitas para alegrar o despertar, os dias para amadurecer as colheitas, as chuvas para regá-las, as tardes para preparar o sono, e as noites escuras para dormir.

As quatro estações correspondiam perfeitamente às necessidades da agricultura; e nunca perturbara o sacerdote a suspeita de que a natureza não tem intenções e que, ao contrário, tudo quanto vive está sujeito às duas necessidades impostas pelas épocas, pelos climas e pela matéria.

Mas ele odiava a mulher, odiava-a inconscientemente, e desprezava-a por instinto. Aprazia-lhe repetir a frase de Cristo: "Mulher, o que há de comum entre ti e mim?" E acrescentava: "Dir-se-ia que o próprio Deus se sentia descontente com essa parte da sua criação". Para ele a mulher era bem a criança doze vezes impura de que fala o poeta. Era o tentador que arrastara o primeiro homem e que prosseguia sem cessar na sua obra de perdição, ente fraco, perigoso, misteriosamente perturbador. E, ainda mais do que o seu corpo, instrumento de danação, odiava-lhe a alma amorosa.

Muitas vezes sentira a ternura da mulher envolvê-lo e, embora se acreditasse inatingível, exasperava-o aquela necessidade de amor que constantemente fazia palpitar os corações femininos.

Deus, na sua opinião, criara a mulher apenas para tentar o homem e experimentá-lo. Urgia não se aproximar dela, a não ser com precauções defensivas, e o temor com que defrontamos as armadilhas. Com efeito, com seus braços estendidos e seus lábios entreabertos para o homem, ela bem que se assemelhava a uma armadilha.

Só as religiosas, a quem os votos tornavam inofensivas, mereciam a sua indulgência; assim mesmo, tratava-as com dureza, pois sentia que continuava viva em seus corações acorrentados, em seus corações humilhados, aquela eterna ternura que também o envolvia, embora fosse sacerdote.

Sentia-a nos seus olhares mais umedecidos pela piedade do que o olhar dos monges; nos seus êxtases, nos quais o sexo se misturava; nos seus arroubos amorosos para com o Cristo, que o indignavam por se tratar de amor de mulher, amor carnal; sentia aquela mesma ternura amaldiçoada na própria docilidade das religiosas, na doçura das suas vozes quando a ele se dirigiam, nos seus olhos baixos, e nas lágrimas resignadas que derramavam quando as tratava com aspereza.

E sacudia a batina ao deixar as portas do convento, e afastava-se com passos apressados como se fugisse a um perigo

O cura Marignan tinha uma sobrinha que vivia com a mãe numa casinha, nos arredores. Porfiava em fazer dela uma irmã de caridade. A moça era bonita, estouvada, zombeteira. Ouvia, sorrindo, os sermões do cura; e quando ele se zangava, abraçava-o com veemência, apertando-o contra o coração, enquanto que, involuntariamente, ele tentava desvencilhar-se do amplexo; dela lhe vinha, contudo, uma doce alegria, pois despertava no seu íntimo o instinto da paternidade, que dormita em todos os homens.

Muitas vezes, caminhando ao lado da sobrinha através dos campos, o cura falava-lhe de Deus, do seu Deus. Ela mal o escutava e olhava o céu, as plantas, as flores e o gosto de viver lhe transparecia nos olhos. Às vezes, corria para apanhar um inseto alado e exclamava ao trazê-lo: "Veja, titio, como é bonito: até sinto vontade de beijá-lo!" E aquele desejo de "beijar moscas", ou sementes de lilás, inquietava, irritava, revoltava o sacerdote que nele encontrava a inextirpável ternura sempre pronta a germinar no coração das mulheres.

E eis que um dia a mulher do sacristão, que cuidava da casa do cura Marignan, cautelosamente lhe contou que sua sobrinha tinha um namorado. A notícia causou ao sacerdote uma enorme emoção, e ele quase perdeu o fôlego, o rosto cheio de sabão, pois se barbeava.

Quando novamente se encontrou em estado de refletir e de falar, exclamou: - Não é verdade, você está mentindo, Mélanie!

Mas a camponesa colocou a mão no coração:

- Que Nosso Senhor me castigue se estou mentindo, senhor Cura. Estou lhe dizendo que ela sai todas as noites, nem bem a mãe se deita. Encontram-se à beira do rio. Se quiser vê-los, é só aparecer lá entre dez horas e meia-noite.

O sacerdote parou de arranhar o queixo e pôs-se a caminhar agitadamente, como costumava fazer em suas horas de graves meditações. E cortou-se três vezes, entre o nariz e a orelha, quando recomeçou a barbear-se.

Durante o dia inteiro permaneceu silencioso, quase estourando de cólera e indignação. Ao seu furor sacerdotal diante do invencível amor, juntava-se uma exasperação de pai espiritual, de tutor, de responsável pelas almas, enganado, roubado, ludibriado por uma criança; aquela mesma indignação egoísta dos pais a quem uma filha comunica que, sem consultá-los, e contra a vontade deles escolheu um marido.

Depois do jantar tentou ler um pouco, mas não conseguiu; sentia-se cada vez mais irritado. Ao soar das dez horas, apanhou a bengala, um formidável bastão de carvalho, que sempre o acompanhava nas suas saídas noturnas, quando ia ver algum doente. E olhou com um sorriso o maciço cacete que ameaçadoramente fazia girar no seu sólido punho de camponês. Depois ergueu-o no ar, de chofre, e rilhando os dentes, deixou-o cair sobre uma cadeira cujo espaldar foi parar no chão, rachado ao meio.

Abriu a porta para sair; porém, deteve-se à soleira, perplexo ante o esplendor de um luar como muito raramente se via.

E como era dotado de um espírito ardente, de um daqueles espíritos que deviam ter animado os Padres da Igreja, esses poetas sonhadores, subitamente se sentiu empolgado, emocionado pela grandiosa e serena beleza da noite clara.

No seu jardinzinho, inteiramente banhado por uma suave luminosidade, as árvores frutíferas, enfileiradas, desenhavam no chão, em silhueta, os galhos frágeis ainda mal revestidos de verdura; ao passo que a madressilva gigante, enroscada na parede da casa, exalava fragrâncias deliciosas e como que adocicadas, fazendo flutuar na noite tépida e transparente uma espécie de alma perfumada.

O cura Marignan pôs-se a respirar profundamente, sorvendo o ar como os bêbedos bebem vinho, e caminhando a passos lentos, encantado, maravilhado, quase esquecido da sua sobrinha.

Assim que chegou ao campo, deteve-se para contemplar a planície iluminada por aquela claridade acariciante, envolta pelo encanto terno e lânguido das noites serenas. Os sapos soltavam, continuamente, suas notas curtas e metálicas e, na distância, rouxinóis entremisturavam seus cantos trinados, que fazem sonhar sem obrigar a pensar, música leve e vibrante feita para o beijo, sob a fascinação do luar.

O pároco recomeçou a caminhar, sentindo o coração desfalecer, sem que soubesse por quê. Sentia-se como que enfraquecido, subitamente esgotado; tinha vontade de sentar-se, de aí permanecer, de contemplar, de admirar Deus através da sua obra.

Ao longe, acompanhando as ondulações do riacho, serpenteava uma longa fileira de choupos. Uma névoa fina, vapor branco que os raios da lua traspassavam, prateavam, e faziam cintilar, pairava sobre as ribanceiras, cingia-as, e envolvia o curso tortuoso da água numa espécie de algodão leve e transparente.

Mais uma vez o sacerdote estacou, invadido até o fundo da alma por um crescente e irresistível enternecimento.

E uma dúvida, uma vaga inquietação o assaltava; sentia modelar-se dentro dele uma daquelas perguntas que dirigia a si próprio, às vezes.

Por que Deus fizera aquilo? Já que a noite era destinada ao sono, à inconsciência, ao repouso, ao esquecimento de tudo, por que torná-la mais bela do que o dia, mais suave do que as auroras e as tardes, e por que aquele astro lânguido e sedutor, mais poético do que o sol, e tão discreto, que parecia fadado a iluminar coisas delicadas e misteriosas demais para a luz do sol, por que viera a tornar tão transparentes as trevas da noite?

Por que o mais harmonioso dos pássaros canoros não repousava como os outros e se punha a cantar na sombra perturbadora?

Por que aquele véu transparente atirado sobre o mundo? Por que aqueles frêmitos no coração, aquela emoção na alma, aquele langor na carne?

Por que aquela exibição de belezas que os homens não viam, pois dormiam em suas camas? A quem seria destinado aquele sublime espetáculo, aquele transbordamento de poesia que o céu atirava sobre a terra?

E o cura nada compreendia.

Eis que ao longe, à orla da campina, sob a abóbada do arvoredo imerso numa bruma luminosa, surgiram duas sombras, caminhando lado a lado.

O homem era mais alto e enlaçava os ombros da companheira e, de quando em quando, beijava-a na testa. Subitamente, animaram a paisagem imóvel que os envolvia como uma moldura divina para eles preparada. Ambos pareciam compor um único ser, o ser para o qual se destinava aquela noite calma e silenciosa; e caminhavam em direção ao sacerdote como uma resposta viva, a resposta que o Senhor atirava às suas interrogações.

Ele permanecia de pé, o coração palpitando, perturbado, e acreditava presenciar um episódio bíblico, tal como os amores de Ruth e Booz, a realização da vontade do Senhor num dos grandiosos cenários a que se referem os livros santos. Na sua cabeça começaram a ressoar os versetos do Cântico dos Cânticos, gritos ardentes, apelos carnais, toda a candente poesia daquele poema inflamado de ternura.

E ele disse consigo mesmo:

- Talvez Deus tenha feito noites iguais a essa para velar com um pouco de idealismo os amores dos homens.

Retrocedeu diante do par enlaçado que continuava a avançar. Contudo, tratava-se da sua sobrinha; agora, porém, indagava a si próprio se não iria desobedecer a Deus. Pois Deus não consentiria no amor, já que o envolvia abertamente em tamanho esplendor?

E o cura Marignan afastou-se depressa, aturdido, quase envergonhado, como se tivesse penetrado num templo no qual não tivesse o direito de entrar.

Fonte:
Guy de Maupassant. Contos.

domingo, 2 de junho de 2019

Jaqueline Machado (Jardim de Trovas)


Acredito na vitória
de quem somente o bem faz.
O mal nunca leva à glória...
E sempre destrói a paz.

A dona beata, tão crente,
sempre a rezar e a rezar...
Mas um tanto displicente:
olha o padre sem parar...

A fuga não leva a nada,
meu caminho eu sigo em frente.
Em toda e qualquer estrada,
há um anjo guardando a gente.

Ah!... essa beleza de amar
é um segredo inconfessável.
Loucura que faz sonhar,
ir além do imaginável.

Amar jamais é pecado.
Ama quem sabe viver
Este é meu simples recado
para quem pensa em morrer.

A minha Mãe natureza,
que nada deixa faltar,
me faz saber, com certeza
que vale a pena sonhar...

A palavra tem poder,
não vale a pena chorar...
Para plantar ou colher,
sempre é preciso esperar...

Cadeirante e bem feliz!
Mulher doce... sonhadora...
Eu tenho dó de quem diz
que tu não és vencedora!

Criança é pingo de luz,
é benção, é caridade...
É força que nos conduz
pelos vales da verdade...

Debruçado na lagoa,
qual Narciso a se mirar,
pescador jamais enjoa
de sonhar e de pescar...

Deficiente: adjetivo
bem inculto e sem moral
pois corrompe o objetivo
de todo ser especial...

Deus, com máxima grandeza,
nada nos deixa faltar.
Pois, com primor e nobreza,
está sempre a nos guiar!

Doce Europa dos meus sonhos,
eu quero te conquistar...
E, com mil planos risonhos,
em teus mares navegar...

É na fonte dos teus lábios,
que eu extraio o mel da vida.
Mágico licor dos sábios,
que faz a alma embevecida.

Este é o Brasil de igualdade
que nós pedimos a Deus:
política de verdade
para todos filhos seus!!!

Eu sou mesmo a calmaria.
Eu sou mesmo a tempestade:
feliz na tua alegria,
tempestuosa na saudade...

Hão de surgir os bons dias,
de luz, paz e mais amor...
Dos Orixás, profecias
que o bem vai vencer a dor.

Irmão: és parte de mim.
Graça divina de Deus!!!
Nem mesmo depois do fim
ouvirás meu triste adeus...

Mamãe, ainda em seu ventre,
já absorvia a leitura:
as tuas palavras dentre
todas, ressoavam ternura...

Mas onde mora a verdade?
No bem, no mal ou na dor:
Onde está a realidade?
Respostas estão no amor!

Minha vizinha espiava,
pelo vidro da janela,
o que eu fazia ou comprava...
Tudo era da conta dela...

Moça, cadeirante e bela,
cheia de graça e esplendor...
Todo mundo fala nela:
parece fonte de amor!

Na cadeira, bem sentada,
eu senti algo diferente:
do alfinete, a alfinetada
num lugar muito indecente...

Na cadeira do hospital,
ela de pernas cruzadas,
e o velho, passando mal,
deu algumas espiadas...

Na cela do meu cavalo
sempre levo sonhos mil...
O gaúcho, em seu embalo,
conquistou todo o Brasil...

Nanâ, Isis ou Maria!
Te multiplicas em tantas.
Mãe feita de poesia...
És a mais bela das santas...

Natal é paz, muito amor,
momento de refletir
a missão do redentor
e o pão nosso repartir...

O aposentado lamenta,
pois com essa grana magra
ele quase nem se aguenta:
– Não dá nem para o Viagra...

O mar é espelho da lua
e a lua espelho do mar...
Na lua cheia sou tua.
Sereia nua a te amar...

Ó meu Brasil, terra amada
de belezas sem igual,
mesmo tão pouco cuidada
és lindo cartão postal...

O meu nome é liberdade,
minha sina é sempre amar.
Eu sou livre de verdade,
quando consigo sonhar...

O velhinho apaixonado
foi em busca da conquista...
Porém, sem grana, ó coitado,
ficou largado na pista...

“Pedalada” objetiva
a falcatrua moral:
eu pago e tu me incentiva
a lavar nota fiscal.

Oyá, formosa menina,
o teu sorriso me encanta.
Entre as rosas tu me ensina
a rezar feito uma santa...

Para o cidadão de bem,
servir é uma obrigação.
Ele transmite a que vem,
sem procurar gratidão.

Preciso ter ousadia
e cumprir minha missão
de esmagar a covardia
com cada aperto de mão.

Rogo a ti, meu Santo Antônio,
tu que vigias meu lar,
me mandes um matrimônio,
pra não morrer sem casar...

Santo Antônio, meu amigo,
eu preciso me casar...
Não me deixes à perigo...
Pra tia não vou ficar !!

Siga! Não perca a esperança...
Enquanto existir na vida
um sorriso de criança
a missão será cumprida...

Fonte:
União Brasileira de Trovadores Porto Alegre - RS. Trovas de Jaqueline Machado e Chico Xavier. Coleção Terra e Céu. vol. XXX. Cachoeirinha/RS: Texto Certo, 2016.

Ricardo Ernesto Rose (Dona Nena)


Ela vivia sozinha numa casa de madeira, sem pintura, no final de um caminho de areia grossa e amarelada, ladeado pelos enferrujados postes do telégrafo, onde mais tarde seria o início da avenida Anchieta. O terreno, sem cerca, era tomado por goiabeiras, cajueiros, chapéus de sol, e compartilhado por galinhas, alguns gatos e três cachorros. De lá, caminhava-se uns quinze minutos para chegar ao centro da vila de Peruíbe.

Mesmo afastada do convívio da vila, dona Nena era conhecida no núcleo de ruas em torno da praça e da pequena igreja. Na modesta vila de pescadores, relativamente isolada, com pouca comunicação com os grandes centros, a velha senhora despertava curiosidade e um certo temor.

Ninguém conhecia as origens de dona Nena. Os antigos lembravam que quando eram jovens ela já tinha certa idade, e sempre vivera ali naquela casa isolada, perto da praia e junto ao rio Preto. Gentil mas reservada, a velha não tinha amigos e pouco falava com as pessoas. Participava da missa nas manhãs de domingo, mas, quieta e pensativa, voltava para casa logo após a bênção final. Havia, mas ninguém sabia exatamente o quê, algo de misterioso nessa senhora.

Entre os peruibenses de então, principalmente os mais velhos, circulavam muitas histórias sobre ela. O velho Vital, pescador aposentado, comentava que conhecia “a velha Nena” desde a infância, e que nunca a havia visto de aparência mais jovem. Tinha certeza, dizia, que a velha seria uma bruxa e, ali em Peruíbe, teria descoberto uma erva que lhe adiava a morte.

A vizinha de Vital, dona Mocinha, cujos antepassados eram caiçaras e guaranis que sempre haviam vivido na região, dizia que a velha seria uma feiticeira; que devia ter algum pacto com a morte e com o mundo do além.

De fato, o comportamento de dona Nena causava muita estranheza entre aquelas pessoas simples. Nos dias frios e úmidos de outono, quando a forte garoa e o vento sudeste mantinham todos em casa à volta dos fogões a lenha, a velha senhora havia sido vista diversas vezes, coberta por grosso casaco, caminhando na praia gesticulando e como que conversando com alguém. A mesma cena foi testemunhada em três outras ocasiões, exatamente às vésperas dos naufrágios de pequenos barcos de pesca, nos quais morrem pescadores da vila. Houve até quem dissesse ter observado, ao anoitecer, escondido na alta vegetação que existia perto da praia, dona Nena falando com dois vultos, que depois de abraçarem a velha, caminharam em direção às ondas e desapareceram no mar.

Certo dia, assim disseram os moradores, dona Nena desapareceu da cidade, junto com seus animais. Sobrou apenas a casa vazia, que foi se degradando até por fim ser demolida. Das árvores, uma ou outra ainda continua ali até hoje. Dizem as más línguas que a velha tivera uma visão de como a cidade se transformaria, e que por isso teria resolvido ir para outras paragens.

Num desses dias de garoa e vento, passando pela praia ao anoitecer, tive a impressão de ter visto o vulto recurvado de uma velha, caminhando para a água e por fi desaparecer no
mar. Mas acho que foi só impressão.

Fonte:
Academia Peruibense de Letras (org.). Rosa do abismo - 9ª Coletânea da Academia Peruibense de Letras. São Paulo/SP: All Print, 2018.

J. G. de Araújo Jorge (Inspirações de Amor) XIV


MORRER

Quando estamos a sós... quando o teu corpo enlaço
e mergulho o meu rosto em teus cabelos soltos,
por Deus que nem eu sei o que sinto, o que faço,
há em mim a confusão de desejos revoltos!

Tendo os lábios aos teus longamente apertados,
misturo em nossas bocas nossa própria Vida,
e ao  te sentir pesar em meus braços, vencida,
o mundo é um caos que gira em meus olhos cerrados...

Quando encontro em meu corpo o teu corpo macio,
os seios soltos, nus... fremindo no meu peito,
- abraço-te numa ânsia ! ... e depois que te estreito
sou como um tronco em queda a soltar-se num rio!

Eu te quero e desejo! ... Esse amor que me dás
é uma alucinação que cega os meus sentidos...
Meus braços te enlaçando, querem sempre mais
até que os nossos corpos rolem confundidos...

Não há nada no mundo, eu junto a ti, sou franco!
Desprezo a terra inteira, e todos os tesouros
para poder beijar o teu pescoço branco
e desmanchar com as mãos os teus cabelos louros!

Não há mundo, se te ouço num débil socorro
a debater-se em vão e a murmurar: "sou tua!
cobre-me de carícias que me sinto nua
e aperta-me ao teu peito que em teus braços, morro!" .

Quando estamos a sós... calados, esquecidos,
nosso amor é um incêndio esplêndido, sensual,
e julgamos morrer ao seu calor, vencidos
ao sublime estertor de um desejo imortal !

MOSAICO

Cada verso que escrevo, vez em quando
retalho-o da minha alma, e assim um dia
terei a colcha imensa da poesia
que com a agulha do ideal vou costurando...

Um verso... um outro mais... e enfim um bando
de versos, e a minha alma - quand’iria?
- com os pedaços da minha fantasia
vai de novo em meus livros se formando...

É o jogo de paciência do meu sonho,
que vou fazendo aos poucos, muito em calma,
com as pedrinhas dos versos que componho...

Solto-os... E embora os deixe assim dispersos,
vou desenhando a imagem da minha alma
sobre o estranho mosaico dos meus versos !

MÚSICA

Silêncio... Solidão... - sinto pelo ar que existe
em surdina, no céu, tempestuoso e cinzento,
- um ritmo... um compasso... um solo muito lento...
de uma obra de Chopin... nervosamente triste...

Repentinos clarões !... Lá pelo espaço se ouvem
entre a voz dos trovões e os sons das ventanias,
os brados de aflição... de estranhas sinfonias
lembrando a orquestração da "nona" de Beethoven...

Há música nos céus... Há música em minha alma...
Ficou na natureza um Liszt interpretando
a rapsódia de amor que enche a noite de calma...

Já não há no infinito as tormentas e o caos...
- O azul, traz de Mozart o tom sereno e brando,
e o arvoredo cicia as músicas de Strauss !...

NOITE

Há na expressão do céu um mágico esplendor
e em êxtase sensual, a terra está vencida...
- deixa enlaçar-te toda... A sombra nos convida,
e uma noite como esta é feita para o amor...

Assim... - Fica em meus braços, trêmula e esquecida,
e dá-me do teu corpo esse estranho calor,
-  ao pólen que dá vida, em fruto faz-se a flor,
e o teu corpo é uma flor que não conhece a vida...

Há sussurros pelo ar... Há sombras nos caminhos...
E à indiscrição da Lua, em seu alto mirante,
encolhem-se aos casais, os pássaros nos ninhos...

Astros fogem no céu... ninguém mais pode vê-los...
procuram, para amar, a noite mais distante,
e eu, para amar, procuro a noite em teus cabelos!…

NOITE DE JUNHO

Escancaro a janela aos céus, de par em par...
Noite fria de junho. O céu negro e cinzento.
Lá na altura há balões tocados pelo vento
e há foguetes rasgando a amplidão, sem parar...

Sem querer... sem sentir... eu me ponho a pensar
e a saudade me invade o peito e o pensamento...
-A luz dos foguetões, de momento a momento,
é um cometa sem rumo em difusão pelo ar...

A cidade está quieta... Os ruídos distanciados
dos fogos ; muito ao longe, espalham nostalgia
por sobre a placidez friorenta dos telhados...

E ao jogo dos balões que o céu todo acendeu,
vai passando em minha alma a visão fugidia
de um antigo S. João que há muito já morreu!…

NOIVA
 
Ei-la toda de branco. Aos pés, o imenso véu
como em flocos de espuma, espalhado no chão...
No ar, dentro do olhar, cabe inteirinho um céu,
e leva um céu maior dentro do coração...

Nos lábios... Ah! nos lábios o sabor do mel,
e uma carícia em flor se entreabre em cada mão,
- e que tremor no braço, ao deixar no papel
o nome dela, o dele... os dois desde então...

Quem lhe falou da vida ? A vida é um sonho, a vida
é esse caminho azul, esse estranho embaraço
de sentir-se ao seu lado adorada e querida...

Aos seus pés, como nuvem branca, o imenso véu...
Quem dirá, que ao seguir apoiada ao seu braço
não pensa que caminha em direção ao céu ?…

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 1. SP: Ed. Theor, 1965.

Machado de Assis (O Caso Barreto)


- Sr. Barreto, não falte amanhã - disse o chefe de seção - olhe que temos de dar essa cópia ao ministro.

- Não falto, venho cedo.

- Mas, se vai ao baile, acorda tarde.

- Não, senhor, acordo cedo.

- Promete?

- Acordo cedo, deixe estar, a cópia fica pronta. Até amanhã.

Qualquer pessoa, menos advertida, afirma logo que o amanuense Barreto acordou tarde no dia seguinte, e engana-se. Mal tinham batido seis horas, abriu os olhos e não os fechou mais. Costumava acordar às oito e meia ou nove horas, sempre que se recolhia às dez ou onze da noite; mas, andando em teatros, bailes, ceias e expedições noturnas, acordava geralmente às onze horas da manhã. Em tais casos, almoçava e ia passar o resto do dia na charutaria do Brás, rua dos Ourives. A reputação de vadio, preguiçoso, relaxado foi o primeiro fruto desse método de vida; o segundo foi não andar para diante. Havia já oito anos que era amanuense; alguns chamavam-lhe o marca-passo. Acrescente-se que, além de falhar muitas vezes, saía cedo da repartição, ou com licença ou sem ela, às escondidas. Como é que lhe davam trabalhos e trabalhos longos? Porque tinha bonita letra e era expedito; era também inteligente e de compreensão fácil. O pai podia tê-lo feito bacharel e deputado; mas era tão estroina o rapaz, e de tal modo fugia a quaisquer estudos sérios, que um dia acordou amanuense. Não pôde dar crédito aos olhos; foi preciso que o pai confirmasse a notícia.

- Entras de amanuense, porque houve reforma na Secretaria, com aumento de pessoal. Se houvesse concurso, é provável que fugisses. Agora a carreira depende de ti. Sabes que perdi o que possuía; tua mãe está por pouco, eu não vou longe, os outros parentes conservam a posição que tinham, mas não creio que estejam dispostos a sustentar malandros. Aguenta-te.
Morreu a mãe, morreu o pai, o Barreto ficou só; ainda assim achou uma tia que lhe dava dinheiro e jantar. Mas as tias também morrem; a dele desapareceu deste mundo dez meses antes daquela cópia que o chefe de seção lhe confiou, e que ele ficou de concluir no dia seguinte, cedo.

Cedo acordou, e não foi pequena façanha, porque o baile acabou às duas horas, e ele chegou à casa perto das três. Era um baile nupcial; casara-se um companheiro de colégio, que era agora advogado principiante, mas ativo e de futuro. A noiva era rica, neta de um inglês, que meteu em casa cabeças louras e suíças ruivas; a maioria, porém, compunha-se de brasileiros e de alta classe, senadores, conselheiros, capitalistas, titulares, fardas, veneras, ricas joias, belas espáduas, caudas, sedas, e cheiros que entonteciam. Barreto valsou como um pião, fartou os olhos com todas aquelas coisas formosas e opulentas, e principalmente a noiva, que estava linda como as mais lindas. Ajuntai a isso os vinhos da noite, e dizei se não era caso de despertar ao meio-dia.

A preocupação da cópia podia explicar esse madrugar do amanuense. É certo, porém, que a excitação dos nervos, o tumulto das sensações da noite foi a causa originária da interrupção do sono. Sim, ele não acordou, propriamente falando; interrompeu o sono, e nunca mais pôde reatá-lo. Perdendo a esperança, consultou o relógio, faltavam vinte minutos para as sete. Lembrou-se da cópia.

- É verdade, tenho de acabar a cópia...

E assim deitado, pôs os olhos na parede, fincou ali os pés do espírito, se me permitem a expressão, e deu um salto no baile. Todas as figuras, danças, contradanças, falas, risos, olhos e o resto obedeceram à evocação do jovem Barreto. Tal foi a reprodução da noite, que ele chegou a ouvir a mesma música, as vozes e o rumor dos passos. Reviveu as gratas horas tão velozmente passadas, tão próximas e já tão remotas.

Mas, se esse rapaz ia a outros bailes, e divertia-se, e, pela própria roda em que nascera, costumava ter daquelas festas, que razão havia para a excitação particular em que ora o vemos? Havia uma longa cauda de seda, com um bonito penteado por cima, duas pérolas sobre a testa, e dois olhos embaixo da testa. Beleza não era; mas tinha graça e elegância de sobra. Perdei a ideia de paixão, se a tendes; pegai na de um simples encontro de salão, um desses que deixam algum sulco, por dias, às vezes por horas, e se desvanecem sem grandes saudades. Barreto dançou com ela, disse-lhe algumas palavras, ouviu outras, e trocou meia dúzia de olhares mais ou menos longos.

Entretanto, não era ela a única pessoa que se destacava no quadro; vinham outras, começando pela noiva, cuja influência no espírito do amanuense foi profunda, porque lhe deu a ideia de casar.

- Se eu me casasse? - perguntou ele com os olhos na parede.

Tinha vinte e oito anos, era tempo. O quadro era fascinador; aquele salão, com tantas ilustrações, aquela pompa, aquela vida, as alegrias da família, dos amigos, a satisfação dos simples convidados, e os elogios ouvidos a cada momento, às portas, nas salas: - "Magnífica festa!" - "A noiva é linda!" - "Casamento feliz!" - "Que me diz a este baile?" - "Oh! esplêndido!" - Todas essas vistas, pessoas e palavras eram de animar o nosso amanuense, cuja imaginação batia as asas pelo estreito âmbito da alcova, isto é, pelo universo.

De barriga para o ar, as pernas dobradas, e os braços cruzados sobre a cabeça, Barreto formulava, pela primeira vez, um programa de vida, olhava para as coisas com seriedade, e chamava a postos as forças todas que pudesse ter em si para lutar e vencer. Oscilava entre a recordação e o raciocínio. Ora via as galas da véspera, ora cuidava nos meios de as possuir também. A felicidade não era um fruto que fosse preciso ir buscar à lua, pensava ele; e a imaginação provava que o raciocínio era verdadeiro, mostrando-lhe o noivo da véspera, e na cara deste, a sua própria.

"Sim", dizia Barreto consigo, "basta um pouco de boa vontade, e eu posso ter muita. Há de ser aquela. Parece que o pai é rico; ao menos terá alguma cousa para os primeiros tempos. O resto é comigo. Um mulherão! O nome é que não é grande cousa: Ermelinda. O nome da noiva é que é realmente delicioso: Cecília! Manganão! Ah! Manganão! Achou noiva para o seu pé..."

"Noiva para o seu pé!" fê-lo rir e mudar de posição. Voltou-se para o lado, e olhou para os sapatos, a certa distância da cama. Lembrou-se que podiam ter sido roídos das baratas, esticou o pescoço, viu o verniz intacto, e ficou tranquilo. Mirou os sapatos com amor; não só eram bonitos, bem feitos, mas ainda acusavam um pé pequeno, coisa que lhe enchia a alma. Tinha horror aos pés grandes - "pés de carroceiro", dizia, "pés do diabo". Chegou a tirar um dos seus, de baixo do lençol, e contemplá-lo por alguns segundos. Depois encolheu-o novamente, coçou-o com a unha de um dos dedos do outro pé, gesto que lhe trouxe à memória o adágio popular - uma mão lava a outra -, e naturalmente sorriu. "Um pé coça outro", pensou. E, sem advertir que uma ideia traz outra, pensou também nos pés das cadeiras e nos pés dos versos. Que eram pés de verso? Dizia-se verso de pé quebrado. Pé de flor, pé de couve, pé de altar, pé de vento, pé de cantiga. Pé de cantiga seria o mesmo que pé de verso? A memória neste ponto cantarolou uma copla ouvida em não sei que opereta, copla realmente picante e música mui graciosa.

- Tem muita graça a Geni! - disse ele, consertando o lençol nos ombros.

A cantora fez-lhe lembrar um sujeito grisalho que a ouvia uma noite, com tais derretimentos de olhos que fez rir alguns rapazes. Barreto riu também, e mais que os outros, e o sujeito grisalho avançou para ele, furioso, e agarrou-o pela gola. Ia dar-lhe um murro; mas o nosso Barreto deu-lhe dois, com tal ímpeto que o obrigou a recuar três passos. Gente no meio, gritos, curiosos, polícia, apito, e foram ter ao corpo da guarda. Aí soube-se que o sujeito grisalho não avançara para o moço com o fim de se despicar do riso, por imaginar que se risse dele, mas por supor que estava mofando da cantora.

- Eu, senhor?

- Sim, senhor.

- Mas se até a aprecio muito! Para mim é a melhor que temos atualmente nos nossos teatros.

O sujeito grisalho acabou convencido da veracidade do Barreto, e a polícia mandou-os em paz.

"Um homem casado!", pensava agora o rapaz, recordando o episódio. "Eu, quando casar, hei de ser coisa muito diferente."

Tornou a pensar na cauda e nas pérolas do baile.

- Realmente, um bom casamento. Não conhecia outra mais elegante... Mais bonitas, havia no baile; uma das Amarais, por exemplo, a Julinha, com os seus grandes olhos verdes - uns olhos que faziam lembrar os versos de Gonçalves Dias... Como eram mesmo? "Uns olhos cor de esperança..."
Que, ai, nem sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!

Não se lembrando do princípio da estrofe, teimou por achá-lo, e acabou vencendo. Repetiu a estrofe, uma, duas, três vezes, até decorá-la inteiramente, para não esquecê-la mais. Bonitos versos! Ah! Era um grande poeta! Tinha composições que haviam de ficar perpétuas na nossa língua, como o "Ainda uma vez, adeus!" E Barreto, em voz alta, recitou este começo:

*************************

Enfim te vejo! Enfim, posso,
Curvado a teus pés, dizer-te
Que não cessei de querer-te
Pesar de quanto sofri!
Muito penei! Cruas ânsias,
De teus olhos apartado,
Houveram-me acabrunhado
A não lembrar-me de ti.

********************************

- Realmente, é bonito! - exclamou outra vez de barriga para o ar -. E aquela outra estrofe - como é? -, aquela que acaba:

Quis viver mais, e vivi!

Dessa vez, trabalhou em vão; a memória não lhe acudiu com os versos do poeta; em compensação, trouxe-lhe uns do próprio Barreto, versos que ele sinceramente rejeitou do espírito, vexado da comparação. Para consolar o amor-próprio, disse que era tempo de tratar de negócios sérios. Versos de criança. Toda a criança faz versos. Vinte e oito anos; era tempo de seriedade. E o casamento voltou, como um parafuso, a penetrar no coração e na vontade do nosso rapaz. A Julinha Amaral não era grande negócio, e demais já andava meio presa ao filho do conselheiro Barros, que advogava com o pai, e diziam que ia longe. Todas as filhas do barão de Meireles eram bonitas, menos a mais moça, que tinha cara de pau. Verdade é que dançava como um anjo.

- Mas a Ermelinda... Sim, a Ermelinda não é tão bonita, mas também não se pode dizer que seja feia; tem só os olhos miudinhos demais e o nariz curto, mas é simpática. A voz é deliciosa. E tem graça o ladrão, quando fala. Ainda ontem...

Barreto recordou, salvo algumas palavras, um diálogo que tivera com ela, no fim da segunda valsa. Passeavam; ele, não sabendo bem que dissesse, falou do calor.

- Calor? - disse ela admirada.

- Não digo que esteja quente, mas a valsa agitou-me um pouco.

- Justamente - acudiu a moça -; em mim produziu efeito contrário; estou com frio.

- Então, constipou-se.

- Não, é costume antigo. Sempre que valso, tenho frio. Mamãe acha que eu vim ao mundo para contrariar todas as ideias. O senhor espanta-se?

- Seguramente. Pois a agitação da valsa...

- Aqui temos um assunto - interrompeu Ermelinda -; era o único modo de tirar alguma coisa do calor. Se concordássemos, estava esgotada a matéria. Assim, não; teimo em dizer que valsar faz frio.

- Não é má ideia. Então, se eu lhe disser que valsa muito mal...

- Eu acredito o contrário, e provo... - concluiu ela, estendendo-lhe a mão.

Barreto cingiu-a ao turbilhão da valsa. De fato, a moça valsava bem; o que mais impressionou o nosso amanuense, além da elegância, foi o desembaraço e a graça da conversação. "As outras moças não são assim", disse ele consigo, depois que a conduziu a uma cadeira. E ainda agora repetia a mesma coisa. Realmente, era espirituosa. Não podia achar melhor noiva - de momento, ao menos; o pai era bom homem; não o recusaria por ser amanuense. A questão era aproximar-se dela, ir à casa, frequentá-la; parece que eles tinham assinatura no Teatro Lírico. Vagamente lembrava-se de lhe haver ouvido isso, na véspera; e pode ser até que com intenção. Foi, foi intencional. Os olhares que ela lhe lançou traziam muita vida. Ermelinda! Bem pensado, o nome não era feio. Ermelinda! Ermelinda! Não podia ser feio um nome que acabava pela palavra linda. Ermelinda! Barreto deu por si a dizer alto:

- Ermelinda!

Assustou-se, riu-se, repetiu:

- Ermelinda! Ermelinda!

A ideia de casar fincou-se-lhe de vez no cérebro. De envolta com ela vinha a de figurar na sociedade por seus próprios méritos. Era preciso deixar a crisálida de amanuense, abrir as asas de chefe. Que é que lhe faltava? Tinha inteligência, prática, era limpo, não nascera das ervas. Bastava energia e disposição. Pois ia tê-las. Ah! Por que não obedecera aos desejos do pai, formando-se, entrando na Câmara dos Deputados? Talvez fosse agora ministro. Não era de admirar a idade, vinte e oito anos; não seria o primeiro. Podia muito bem ser ministro, ordenanças atrás. E o Barreto lembrava-se da entrada do ministro na Secretaria, e imaginava-se a si mesmo naquela situação, com farda, chapéu, bordados... Logo depois, compreendia que estava longe, agora não - não podia ser. Mas era tempo de ganhar posição. Quando fosse chefe, casado em boa família, com uma das primeiras elegantes do Rio de Janeiro, e um bom dote - acharia compensação aos erros passados...

"Tenho de acabar a cópia" pensou Barreto repentinamente.

E achou que o melhor modo de crescer era trabalhar. Pegou no relógio que ficara sobre a mesa, ao pé da cabeceira da cama: estava parado. Mas não andava quando acordou? Pôs-lhe o ouvido, agitou-o, estava parado de vez. Deu-lhe corda, ele andou um pouco, mas parou logo.

- É uma espiga do tal relojoeiro das dúzias - murmurou o Barreto.

Sentou-se na cama um tanto reclinado, e cruzou as mãos sobre o estômago. Notou que não tinha fome, mas também comera bem no baile. Ah! Os bailes que ele havia de dar, com ceia, mas que ceias! Aqui lembrou-se que ia pôr água na boca aos companheiros da Secretaria, contando-lhes a festa e as suas fortunas; mas não as contaria com ar de pessoa que nunca viu luxo. Falaria naturalmente, aos pedaços, quase sem interesse. E compôs alguns trechos de notícias, ensaiou de memória as atitudes, os movimentos. Talvez algum o achasse com olheiras. - "Foi pândega, não?" - "Não", responderia ele, "fui ao baile" . - "Ah! você foi sempre ao baile? Que tal esteve?" - "O baile?" diria com fastio; "esteve magnífico". E continuou assim o provável diálogo, compondo, emendando, riscando palavras, mas de maneira que acabasse contando tudo sem parecer que dizia nada. Diria o nome de Ermelinda ou não? Este problema gastou-lhe mais de dez minutos; concluiu que, se lho perguntassem, não havia mal em dizê-lo, mas não lho perguntando, que interesse havia nisso? Evidentemente nenhum.

Ficou ainda outros dez minutos, pensando à toa, até que deu um salto, e pôs as pernas fora da cama.

- Meu Deus! Há de ser tarde.

Calçou as chinelas e tratou de ir às abluções; mas logo aos primeiros passos, sentiu que as danças o tinham fatigado deveras. A primeira ideia foi descansar; tinha para isso uma excelente poltrona, ao pé do lavatório; achou, porém, que o descanso podia levar longe e não queria chegar tarde à Secretaria. Iria até mais cedo; às dez e meia, no máximo, estaria lá. Banhou-se, ensaboou-se, deu-se todo aos cuidados pessoais, gastando o tempo do costume, e mirando-se ao espelho, vinte e trinta vezes. Também era costume. Gostava de ver-se bem, não só para retificar uma cousa ou outra, mas para contemplar a própria figura. Afinal começou a vestir-se, e não foi pequeno trabalho, porque era meticuloso em escolher meias. Mal tirava umas, preferia outras; e já estas lhe não serviam, ia a outras, tornava às primeiras, comparava-as, deixava-as, trocava-as; afinal, escolheu um par cor de canela, e calçou-as; continuou a vestir-se. Tirou camisa, meteu-lhe os botões e enfiou-a; fechou bem o colarinho e o peito, e só então foi à escolha das gravatas, tarefa mais demorada que a das meias. Costumava fazê-lo antes, mas desta vez estivera pensando no discurso que dispararia ao diretor, quando este lhe dissesse:

- Ora viva! Muito bem! Hoje madrugou! Vamos à cópia.

A resposta seria esta:

- Agradeço os cumprimentos; mas pode o Sr. diretor estar certo que eu, comprometendo-me a uma coisa, faço-a, ainda que o céu venha abaixo.

Naturalmente, não gostou do final, porque torceu o nariz, e emendou:

- ... comprometendo-me a uma coisa, hei de cumpri-la fielmente.

Isto é que o distraiu, a ponto de vestir a camisa sem ter escolhido a gravata. Foi às gravatas e escolheu uma, depois de pegar, deixar, tornar a pegar e a deixar umas dez ou onze. Adotou uma de seda, cor das meias, e deu o laço. Reviu-se então longamente no espelho, e foi às botas, que eram de verniz e novas. Já lhes tinha passado um pano; era só calçá-las. Antes de as calçar, viu no chão, atirada por baixo da porta, a Gazeta de Notícias. Era uso do criado da casa. Levantou a Gazeta e ia pô-la na mesa, ao pé do chapéu, para lê-la ao almoço, como de costume, quando deu com uma notícia do baile. Ficou pasmado! Mas como é que podia a folha de manhã noticiar um baile, que acabou tão tarde? A notícia era curta, e podia ter sido escrita antes de terminar a festa, à uma hora da noite. Viu que era entusiástica, e reconheceu que o autor havia estado presente. Gostou dos adjetivos, do respeito ao dono da casa, e advertiu que entre as pessoas citadas figurava o pai de Ermelinda. Insensivelmente sentara-se na poltrona, e indo dobrar a folha, deu com estas palavras em letras grandes: "Horrível! Sete mortes!" A narração era longa, interlinhada; começou a ver o que seria, e, em verdade, achou que era gravíssimo. Um homem da rua das Flores matara a mulher, três filhos, um padeiro e dous policiais, e ferira a mais três pessoas. Correndo pela rua fora, ameaçava a toda a gente, e toda a gente fugia, até que dois mais animosos puseram-se-lhe em frente, um com um pau, que lhe quebrou a cabeça. Escorrendo sangue, o assassino ainda corria na direção da rua do Conde; aí foi preso por uma patrulha, depois de luta renhida. A descrição da notícia era viva, bem feita; Barreto leu-a duas vezes; depois leu a parte relativa à autópsia, um pouco por alto; mas demorou-se no depoimento das testemunhas. Todas eram acordes em que o assassino nunca dera motivo de queixa a ninguém. Tinha 38 anos, era natural de Mangaratiba e empregado no Arsenal de Marinha. Parece que houve uma discussão com a mulher, e duas testemunhas disseram ter ouvido ao assassino: "Esse tratante não há de voltar aqui!" Outras não acreditavam que as mortes tivessem tal origem, porque a mulher do assassino era boa pessoa, muito trabalhadeira e séria; inclinaram-se a um acesso de loucura. Concluía a noticia dizendo que o assassino estivera agitado e fora de si; à ultima hora ficara prostrado, chorando, e chorando pela mulher e pelos filhos.

- Que coisa horrível! - exclamou Barreto -. Quem se livra de uma destas?

Com a folha nos joelhos, fitou os olhos no chão, reconstruindo a cena pelas simples indicações do noticiarista. Depois, tornou à folha, leu outras coisas, o artigo de fundo, os telegramas, um artigo humorístico, cinco ou seis prisões, os espetáculos da antevéspera, até que se levantou de repente lembrando-se que estava perdendo tempo. Acabou de vestir-se, escovou o chapéu com toda a paciência e cuidado, pô-lo na cabeça diante do espelho, e saiu. No fim do corredor, reparou que levava a Gazeta, para lê-la ao almoço, mas já estava lida. Voltou, deitou a folha por baixo da porta do quarto e saiu à rua.

Dirigiu-se para o hotel em que costumava almoçar, e não era longe. Ia apressado para desforrar o tempo perdido; mas não tardou que a natureza vencesse, e o passo tornou ao de todos os dias. Talvez a causa fosse a bela Ermelinda, porque, havendo pensado ainda uma vez no noivo, a moça veio logo, e a ideia do casamento meteu-se-lhe no cérebro. Não teve outra até chegar ao hotel.

- Almoço, almoço, depressa! - disse ele sentando-se à mesa.

- Que há de ser?

- Faça-me depressa um filé e uns ovos.

- O costume.

- Não, não quero batatas hoje. Traga petit-pois... Ou batatas mesmo, venha batatas, mas batatas miudinhas. Onde está o Jornal do Commercio?

O criado trouxe-lhe o Jornal, que ele começou a ler, enquanto lhe faziam o almoço. Correu à notícia do assassinato. Quando lhe trouxeram o filé, perguntou que horas eram.

- Faltam dez minutos para o meio-dia - respondeu o criado.

- Não me diga isso! - exclamou o Barreto espantado.

Quis comer às carreiras, ainda contra o costume; despachou efetivamente o almoço o mais depressa que pôde, reconhecendo sempre que era tarde. Não importa; prometera acabar a cópia, iria acabá-la. Podia inventar uma desculpa, um acidente, qual seria? Doença era natural demais, natural e gasto; estava farto de dores de cabeça, febres, embaraços gástricos. Insônia, também não queria. Um parente enfermo, noite velada? Lembrou-se que já uma vez explicara uma ausência por esse modo.

Era meia hora depois do meio-dia, quando bebeu o ultimo gole de chá. Ergueu-se e saiu. Na rua parou. A que horas chegaria? Tarde para acabar a cópia, para que ir à Secretaria tão tarde? O diabo fora o tal assassinato, três colunas de leitura. Maldito bruto! Matar a mulher e os filhos. Aquilo foi bebedeira, de certo. Assim reflexionando, ia o Barreto, caminhando para a rua dos Ourives, sem plano, levado pelas pernas, e entrou na charutaria do Brás. Já lá achou dois amigos.

- Então, que há de novo? - perguntou ele, sentando-se. - Tem passado muito rabo de saia?

Fonte:
Machado de Assis. Contos Avulsos.

Ryoki Inoue (O que é um best-seller) Características de um livro de sucesso parte 2


Bom título

Um romance que fale de um reencontro de dois amantes após vinte anos de separação e que não fale de tambores ou de cornetas pode muito bem se chamar Nem cornetas, nem tambores. Contudo, mostra uma extrema falta de imaginação do autor e, partindo-se do pressuposto que não houve criatividade para dar o título, podemos pensar com piedade sobre a criação do texto...

O título deve ter pelo menos alguma relação com a trama, com o desenrolar da história. E deve ser impactante, sem ser chocante.

Um romance que fale sobre traição de amantes, crime passional e fortíssimas emoções pode ser chamado Sangue sob os lençóis, Amor, paixão e morte ou, simplesmente, Por quê, Soraya?! Muito provavelmente, o último título terá maior sucesso, uma vez que já, de per si, deixa margem e campo aberto à curiosidade do leitor. Já outros, como A traição de Soraya ou Paixão assassina, certamente não seriam bons porque já contam parte da trama.

Além disso, é preciso lembrar que um título não deve ter mais do que 16 caracteres, porque a mente humana é capaz de ver, interpretar, absorver e memorizar — sem ler — no máximo 16 caracteres. Estudos feitos com base nos ideogramas japoneses e chineses comprovam essa teoria. E deve-se ter em mente que é preciso registrar não apenas o título do livro, mas também o nome do autor, associando uma imagem à outra.

Podemos notar que a tendência atual é a de ver títulos curtos ou, no mínimo, razoavelmente curtos, em romances que fizeram muito sucesso. Assim, por exemplo, O advogado, de John Grisham; Labirinto, de Kate Mosse; Ponto de impacto, de Dan Brown.
Temática de interesse do público leitor 

Na escolha da temática, o autor deve ter em mente que está escrevendo para vender, e não apenas por uma questão de realização ou de vaidade pessoal. O objetivo de quem se propõe a escrever um best-seller é — como já está explícito, expresso e pleonasticamente claro no próprio termo best-seller — vender. E só se consegue vender aquilo que alguém quer comprar.

Assim, a pesquisa de mercado é importante para que o autor saiba que tipo de temática interessa ao público que pretende atingir. Nos dias de hoje, o tema abordado por Francisco de Barros Júnior em Caçando e pescando por todo o Brasil, que na década de 1950 foi um sucesso absoluto, hoje seria condenado por todos como ecologicamente errado. Da mesma maneira, um romance que fale sobre o mensalão estaria condenado às prateleiras de encalhe, já que o público está mais do que farto de ouvir e ler sobre corrupção, política malfeita e etc. Em contrapartida, temáticas que abordam o lado espiritualista da vida têm muito mais possibilidade de sucesso, pois o ser humano, nos dias de hoje, começa a se convencer de que a vida não é apenas a matéria.

Trama envolvente


O leitor precisa se envolver completamente com o contexto do romance. Isso só é possível se houver identificação do leitor com pelo menos um protagonista ou, no mínimo, com um local da obra.

Quando tratarmos de conflito dramático, abordaremos com mais detalhes os três pilares de uma boa trama: motivação, correspondência é ponto de identificação.

Boa estruturação

Um bom romance — e com possibilidades fortes de se tornar um best-seller — precisa ser estruturado de tal forma que impeça o leitor de parar de ler. Isso significa manter um clima de suspense durante todo o texto, com enganchamentos bem caracterizados entre os capítulos e subcapítulos. Também quer dizer que o autor não deve entregar o ouro logo nas primeiras páginas.

Porém, ele deve dar uma pequena e rápida imagem de onde está esse ouro. Mas, para poder fazer isso, precisa saber exatamente o que pretende com sua história, em que ponto está em cada momento da elaboração do texto e, principalmente, onde quer chegar.
 
E é por isso, pela necessidade de saber onde chegar, que eu sempre aconselho a começar a escrever um romance pelo fim. O que, é óbvio, não significa que o formato final do livro venha a ser esse, ou seja, o fim será o começo e o começo será o fim. Escrevê-la do fim para o início torna-se mais fácil para o autor e, provavelmente, faz que sejam evitadas muitas dores de cabeça... Sem contar que o texto pode ficar mais rico e mais atraente.

Nos dias de hoje, em que a média da população leitora tornou-se mais exigente no que concerne à organização de seu cotidiano (tendo em vista o acúmulo de tarefas diárias e a popularização da informática, que por si só já leva a uma maior racionalização de atitudes no que diz respeito a trabalho), a boa estruturação de qualquer coisa que se faça é condição sine qua non para o sucesso.

Boa linguagem

É obrigação de todo autor — em especial, dos romancistas — escrever de uma maneira que qualquer um possa entendê-lo. Usar termos rebuscados, entrar nos preciosismos literários, lançar mão de compridas e complicadas filosofias para explicar um fato que seria corriqueiro pode ser muito bonito num ensaio. Num best-seller, é absolutamente condenável.

É mais do que evidente que, neste item, também devemos levar em consideração o público-alvo. Um romance destinado a leitores de Françoise Sagan obrigatoriamente terá uma linguagem diferente e muito mais elaborada do que um outro cujo público-alvo seja o de leitores de Harold Robbins.

Atualmente, a tendência à simplificação, presente em quase todas as atividades humanas, praticamente exige que a linguagem utilizada num romance destinado a uma grande massa de leitores seja enxuta, simples, concisa e precisa.

Boa distribuição

Falar sobre distribuição de livros pode parecer até mesmo intempestivo, impertinente e extravagante a um escritor. Contudo, não o é.

O autor, como verdadeiro fornecedor de matéria-prima para um produto — o livro não deixa de ser um produto de mercado, uma mercadoria, realmente, por mais chocante que isso possa parecer precisa se preocupar com a forma como seu produto final será comercializado.

Assim, é importante que ele saiba de que forma a distribuição será feita.

Basicamente, há seis formas de vender livros: nos lançamentos, nas livrarias, nas bancas, nos pontos de venda mais heterodoxos, por mala direta e de porta em porta.

continua…

Fonte:
Ryoki Inoue. Vencendo o Desafio de Escrever um Romance. Summus, 2009.

sexta-feira, 31 de maio de 2019

Silmar Bohrer (Gamela de Versos) 2



Fonte:
Livro enviado pelo autor
Silmar Bohrer. Gamela de Versos. Caçador/SC: Ed. do Autor, 2004.