sexta-feira, 14 de junho de 2019

Sady Maurente (Jardim de Trovas)


Adoeci... e nos teus olhos
grande dor eu pude ver.
Para ver a tua dor,
valeu a pena adoecer…

A fortuna sempre traça
este conceito, isto exprime:
sendo folgada, embaraça;
sendo estreita, nos oprime.

Ao ler as trovas bem feitas
tu sempre algumas me aprontas,
é que as trovas são perfeitas
estrelas de quatro pontas.

Ao notar o bisturi
na mão do médico, o doente
saiu correndo dali
e... salvou-se, finalmente...

As mulheres são fingidas,
são falsas, são tagarelas,
mas triste seria a vida
sem esses defeitos delas.

Às vezes fico a pensar
e não posso compreender:
antes de ter teu carinho,
como é que pude viver?

Às vezes fico bem triste,
pensando em lados contrários,
que a felicidade existe
somente nos dicionários.

Casamento, na verdade,
só por ter um documento
não transmite propriedade,
nem garante sentimento.

Casamento por amor,
mas por amor verdadeiro,
eu defendo com ardor,
se é por amor...ao dinheiro.

Do amor de mãe me socorro
pra dar-te ideia de um fato:
pela minha mãe eu morro,
por ti, minha amada, eu mato.

Este epitáfio curioso,
eu li um dia, entrementes:
“era um médico zeloso,
foi juntar-se aos seus clientes”...

Eu não posso compreender
essa gente de alma fria,
ter coragem de dizer
que não gosta de poesia!

Eu te amava tanto, tanto...
Foste ingrata, injusta, errada!
E agora me causa espanto,
te vejo, não sinto nada.

Fazes que não me conheces
e esse esforço se adivinha:
Não esqueço, nem esqueces,
de que um dia foste minha.

Gostaria de ser forte,
na força do meu talento,
para que ao sumir na morte,
não suma no esquecimento.

Muitos conceitos supremos
em simples quadrinhas cabem,
muitas coisas aprendemos
com aqueles que nada sabem.

Não há no mundo delícia
que se compare com a minha,
quando, com calma e perícia,
eu componho uma quadrinha.

Nas mulheres certas coisas
são das sortes inconstantes:
umas nascem para esposas,
outras nascem para amantes.

O que Catulo dizia
eu torno aqui a dizer:
- Sem o ideal da Poesia
como é triste envelhecer.

O teu amor, reconheço,
vale tanto para mim,
que teve um breve começo
mas jamais terá um fim.

Qual o fogo que consome
o papel, e as cinzas deixa,
deste amor ficou teu nome
como a derradeira queixa!

Qual o poeta de verdade?
É fácil tirar a prova,
é o que põe felicidade
nos quatro versos da trova.

Que ando de amores contigo
dizem aí na cidade;
e eu guardo a mágoa comigo
de não ser isso verdade…

Quero ser crucificado
bem como morreu Jesus,
seja amor o meu pecado,
sejam teus braços a cruz.

Se a lei punisse a pessoa
que com má fé a outra logra,
puniria, com certeza,
a quem nos desse uma...sogra!...

Tenha em mente isto primeiro,
antes de dares teu préstimo:
não te cases por dinheiro,
custa menos um empréstimo...

Tenho visto vícios feios
mas, dos piores na vida,
é aquele que se resume
na garrafa de bebida.

Tua foto com recato,
conservo-a e com devoção,
pois ela é o mesmo retrato
que tenho no coração.

HOMENAGEM AOS MESTRES TROVADORES:

Se é JOSE e se é GUILHERME,
se é ARAÚJO e se é JORGE,
eu digo sem exceder-me,
que é mestre em tudo o que forge!

R. ESTRELA, que é na trova,
um mestre na arte serena,
é professor, eis a prova;
é o FRANCISCO JURUENA.

Por mais que o meu estro cave-o,
me sai um verso infantil:
eis o grande LUIZ OTÁVIO,
Rei da trova, no Brasil.

CAROLINA, por teus versos,
na homenagem verdadeira,
deponho aos teus pés, dispersos
estes RAMOS DE OLIVEIRA!…

Fontes:
União Brasileira de Trovadores – Seção Porto Alegre. Olga Maria Dias Ferreira e Sady Maurente. Coleção Terra e Céu vol. XCII. Cachoeirinha/RS: Texto Certo, 2016.

Aparício Fernandes. Trovadores do Brasil, vol.3. RJ: Minerva, 1969.

Luiz Poeta (O Pássaro Azul)




Foi um dia. Uma data perdida numa única página de cores douradamente prazerosas, solta nos sensuais recônditos da memória, cujas imagens desmaiam - agora - trôpegas - na melhor das minhas lembranças.

Era teu corpo no meu a vida inteira. De resto, a afetuosa e tênue luz do sol dourando a prata da chuva, criando estrias de neon na vítrea pele das básculas... e nossa ânsia preguiçosa de discar e pedir mais um gole para o duzentos e dois.

Eram bocas no mesmo copo, beijos nos mesmos lábios, dentes na mesma cereja E palavras nas mesmas línguas deleitosamente camonianas rabiscando duas líricas páginas epidérmicas... e a rubra e doce gota de licor sobre teus seios à meia luz dos nossos olhos úmidos pela leveza da lágrima e pela sublimidade de um único sorriso emanado de duas faces.

Foi um dia por trás das lívidas cortinas esvoaçando sob o gélido sussurro eólico invadindo uma das frestas, tocando a onírica nudez das nossas mais límpidas, visíveis e passionais fantasias.

Depois, aquela ave exótica, de plumas azuis cujo canto diluía-se na beleza de uma imagem única e sublime como nossa estupefação diante da mais eterna felicidade.

Um dia a mais, o brinde a dois e o assobio do toque dos cristais despertando o melhor dos silêncios, sob a hipnótica reciprocidade de duas almas pousadas na pétala do amor...

Subitamente, o inusitado voo e o delicado pouso daquela raríssima borboleta na flor... de plástico... prenunciando o paradoxal artesanato de uma lírica eternidade, subordinada à trama de tantos destinos desconexos...

Tudo era lindo no teu corpo... a insinuante verruguinha na pálpebra, a delicada fissura num dos caninos, a tatuagem de uma rosa no seio, a cicatriz de apendicite no ventre, a ousada picada de inseto no glúteo... puro e excitante encantamento.

Foi um dia cuja etérea lembrança repousa na página de uma antiga agenda de colecionar saudades, que o sopro do vento de uma manhã de outono, como aquela, levou para bem longe.

De resto, o pássaro azul que sumiu no céu outonal de metileno não cantou. Nunca mais...

Fonte:
Livro enviado pelo autor.
Luiz Gilberto de Barros (Luiz Poeta). Canção de Ninar Estátuas. 1.ed. Ilhéus/BA: Mondrongo, 2014.

Nosso Português (Os nomes próprios perderam seus acentos com a nova reforma ortográfica?)


Segundo o texto oficial do Acordo Ortográfico: "Para ressalva de direitos, cada qual poderá manter a escrita que, por costume ou registro legal, adote na assinatura do seu nome. Com o mesmo fim, pode manter-se a grafia original de quaisquer firmas comerciais, nomes de sociedades, marcas e títulos inscritos em registro público".

Isso significa que pessoas cujo nome ou sobrenome tenham sido registrados com acento continuarão a assinar assim ("Andréia", "Pompéia", etc.). 

Mas atenção: nomes e sobrenomes de pessoas mortas serão escritos de acordo com a ortografia vigente, o que também deve ocorrer com novos registros. 

Quando se trata de nomes de logradouros (praças, avenidas, ruas, etc.), bairros e cidades, prevalece a grafia "nova": Pompeia (cidade paulista), Quintino Bocaiuva (nome de rua), Coreia do Sul (nome de país), Saboia (nome de região da França), etc.

Fonte:
So Portugues

Malba Tahan (Mil Histórias sem Fim) Narrativa 5 e 6


Houve outrora, no país de Panjgur, na Índia, um rei que tinha três ministros.

Querendo um dia verificar o grau de estima e consideração em que era tido pelos seus três dignos auxiliares, ordenou o monarca fosse colocada no meio do grande parque do palácio real uma estátua (1) dele próprio e, escondido em discreto recanto, pôs-se à espera para observar o que fariam os ministros quando vissem inesperadamente aquele novo monumento.

O primeiro a chegar foi o ministro da Justiça. Ao defrontar com a estátua do rei no meio do arvoredo, parou muito sério, os braços cruzados sobre o peito, em atitude respeitosa, e examinou minuciosamente a obra de arte sem proferir uma única palavra, nem deixando transparecer a impressão que lhe causara o inopinado encontro.

Mal se retirara o primeiro ministro quando chegou o seu colega encarregado das Finanças e do Tesouro do país.

O digno tesoureiro do rei Malabã - assim se chamava o soberano de Panjgur - ao ver a nova estátua cobriu o rosto com as mãos e entrou a chorar desesperadamente como se grande desgosto o oprimisse.

Ao rei, que tudo observara, causou isto não pequena admiração.

- Por que teria o primeiro-ministro ficado tão sério ao ver a estátua, ao passo que para o segundo o defrontar com ela fora motivo de pranto desfeito?

Momentos depois chegou o terceiro-ministro. Era esse vizir encarregado unicamente de estudar as questões relativas às Forças Armadas e aos recursos militares do país.

O titular da Guerra, ao deparar-se-lhe a imponente figura do vaidoso monarca, entrou a rir com estrepitosas gargalhadas e de tal modo o dominaram os ataques de riso que chegou a cair de costas junto ao pedestal do régio monumento.

O rei Malabã, que além de orgulhoso era muito desconfiado - dois defeitos gravíssimos para um chefe de Estado -, ficou intrigadíssimo com a diversidade singular das impressões que sua imagem causara aos três dignos ministros de Panjgur.

A rígida gravidade do primeiro, as lágrimas do segundo e o louco gargalhar do terceiro eram enigmas que a régia sagacidade não podia decifrar, o que sobremodo o afligia.

Incapaz de refrear a curiosidade que o estranho caso lhe despertara, partiu o rei Malabã para o palácio e, tão depressa ali chegado, mandou viessem à sua presença os três ministros.

Contou-lhes o rei, sem nada ocultar, tudo o que observara e disse-lhes que queria saber o motivo por que ficara o primeiro-ministro tão sério, ao passo que o segundo chorara com abundância de lágrimas e o terceiro rira a ponto de perder os sentidos.

O ministro da Justiça, compreendendo que devia ser o primeiro a falar, assim começou, depois de saudar respeitosamente o rei:

- Deveis saber, ó rei magnânimo!, que ao ver aquela belíssima estátua, para mim até então desconhecida, lembrei-me de vós e dos grandes benefícios que tendes prestado ao povo, aos meus amigos, aos meus parentes e a mim em particular. Resolvi, pois, dirigir a Alá, o Altíssimo, uma prece, pela vossa saúde, prosperidade e bem-estar! Fiquei, como vistes, muito sério, ó rei generoso!, porque estava contrito em orações.

- Meu bom amigo! - exclamou o rei, abraçando-o. - Compreendo agora o quanto és sincero e dedicado! Jamais deixarei de retribuir a grande amizade que tens por mim.

E, voltando-se para o segundo-ministro, disse-lhe:

- Não compreendo, porém, ó vizir tesoureiro!, por que motivo a estátua pôde ser causa do teu grande desespero.

Assim interpelado, o ministro das Finanças, depois de prestar ao rei Malabã a sua homenagem humilde e respeitosa, começou:

- Cumpre-me dizer-vos, ó rei do tempo, que ao ver aquela bela estátua notei que ali estava a vossa majestosa figura posta no bronze pelo gênio incomparável de famoso artista. Este monumento é de bronze, pensei, e assim durará eternamente, ao passo que o nosso bondoso rei, na sua triste condição de mortal, não poderá sobreviver à própria efígie. Dia virá em que Hã-Ru, o Anjo da Morte, (2) na sua eterna faina, arrebatará a alma preciosa do nosso estremecido rei! E esses pensamentos cruéis, sem que eu pudesse impedir, apoderaram-se de mim e tal tristeza me trouxeram ao coração que, dando livre curso às lágrimas, chorei desesperadamente!

- Grande amigo! - atalhou o soberano hindu comovido. - Jamais me esquecerei da prova sincera de amizade que acabo de receber de ti!

E depois de abraçar afetuosamente o ministro da Fazenda, o rei Malabã voltou-se para o terceiro vizir e censurou-o com enérgico rancor:

- Nas tuas gargalhadas, porém, ó vizir!, próprias de um insensato, não vi mais do que um insulto e um escárnio à minha pessoa! Não compreendo como poderás explicar a tua atitude descabida e irreverente! Cabe-te a vez de falar! Dize-me onde foste buscar em minha estátua, perfeita e impecável, motivos para tamanha hilaridade.

Ao ouvir tais palavras, empalideceu o ministro da Guerra, sentindo que a falsa interpretação do rei punha a sua vida em grande perigo.

Sem perder, porém, a calma tão necessária em tais situações, o digno vizir do rei Malabã aproximou-se do trono e, depois de beijar humildemente a terra entre as mãos, assim falou:

- Rei generoso! Esteja o vosso nome sob a proteção dos deuses! Não sei mentir. Vou contar-vos a verdade, embora com sacrifício da minha vida, revelando-vos o motivo por que tanto ri ao topar com essa estátua! - E, diante do silêncio que se fizera, o terceiro-vizir começou: - Ao atravessar o parque do palácio, deparou-se-me um belíssimo monumento de bronze que representava a figura do glorioso sultão de Panjgur. Vendo a estátua lembrei-me, naquele instante, de uma história muito curiosa intitulada “O Beduíno Astucioso”, que ouvi contar, há dez anos, no interior da Arábia! Foi a lembrança dessa história que me fez rir daquela maneira!

- Que história é essa? - indagou o rei Malabã, tomado da mais viva curiosidade.

- É uma das lendas mais chistosas que conheço - explicou o vizir. - Ouvi-a de um velho árabe quando atravessava o deserto de Dahna! “Há, nesse deserto, uma gigantesca montanha de pedra lisa e acinzentada, que os árabes denominaram “A Sofredora”, já muitas vezes contornada pelas caravanas e varrida pelo simum. Ao norte dessa montanha agreste encontra-se pequeno e acolhedor oásis, com muita sombra e água fresca, onde florescem precisamente trezentas e trinta e três tamareiras. Dizem os caravaneiros que cada uma dessas trezentas e trinta e três tamareiras (com exceção de uma, e uma só) tem a existência ligada a uma lenda. Não há erro, pois, em afirmar que o número de lendas, nesse oásis, é igual ao número de tamareiras menos uma! A lenda da décima terceira tamareira é aquela que tem por título “O Beduíno Astucioso”. Houve mesmo um sábio matemático que calculou...

- Não me interessam os cálculos das trezentas e tantas tamareiras - interrompeu, com impaciência, o monarca. - Quero ouvir, sem mais delongas, a singular aventura do beduíno astucioso com todos os episódios, versos ou fantasias que estiverem com ela relacionados.

O rei, já meio agastado, exigia a narrativa. Era preciso obedecer ao senhor de Panjgur. O digno vizir concentrou-se durante breves instantes. Parecia coordenar as ideias e recordar os fatos que estivessem dispersos entre as brumas do passado. Decorridos, finalmente, alguns minutos, iniciou, com voz pausada, o seguinte relato:

Narrativa 6

Deveis saber, ó irmão dos árabes!, que existiu outrora, para além das montanhas de Kabul, um país muito rico e populoso chamado Kafiristã. O Kafiristã era, nesse tempo, governado por um soberano íntegro e sábio cujo nome a História registrou e perpetuou em páginas magníficas, para maior glória dos povos do Islã. Deveis saber também - pois bem poucos são aqueles que o ignoram - que esse monarca famoso, a que nos referimos, foi Romalid Ben-Zallar Khã.

Dando ouvidos aos conselhos de um vizir insidioso e bajulador, o rei Romalid (Alá o tenha em sua glória!) mandou erguer na grande praça da capital três belíssimas estátuas. (3)

A primeira era de bronze, a segunda de prata e a terceira - não obstante ser a maior - era toda de ouro. Todas representavam o rei em atitude de combate, a erguer ameaçador um grande alfanje recurvado.
Um dia, o vaidoso Romalid repousava descuidoso na varanda de marfim de seu palácio, quando notou que um velho beduíno, pobremente vestido, se aproximava do lugar em que se achavam os três monumentos. Ao ver a estátua de bronze, o árabe do deserto ergueu os braços para o céu e exclamou:

- Que Alá, o Exaltado, conserve o nosso rei! - Ao defrontar, logo depois, a estátua de prata, o beduíno riu alegremente e disse em voz bem alta: - Que Alá, o Altíssimo, abençoe o nosso rei! - Ao topar, porém, com o rútilo e áureo monumento, o beduíno atirou-se ao chão; como um louco, entrou a gritar, desesperado: - Que Alá, o Clemente, salve o nosso rei!

O sultão, que tudo observara, mandou que trouxessem o aventureiro desconhecido ao seu palácio e em presença dos vizires mais ilustres da corte, interrogou-o sobre a significação dos votos que proferira e das atitudes diversas e inesperadas que havia assumido diante de cada uma das estátuas.
O velho beduíno, homem inteligente e astucioso, interpelado pelo poderoso senhor do Kafiristã, inclinou-se respeitoso e exclamou.

- Allah alá tiac in manlei! (Que Deus conserve a vossa vida, ó rei!) Devo dizer, primeiramente, que o meu nome é Salã Motafa. Pertenço a um grupo de nômades do deserto que hoje, para breve repouso, acamparam junto às portas desta cidade. Há dez anos que não vinha ao Kafiristã e não conhecia os três novos monumentos ora erguidos ali no meio da praça. Ao ver a estátua de bronze compreendi que ela representava o nosso rei Romalid Ben-Zallar Khã, sultão magnânimo e afortunado. Prestei, pois, como humilde súdito que sou, minhas homenagens à figura imponente e respeitável do soberano, rei e senhor deste rico país. Pensei: “Se não houvesse um rei, justo e forte, para governar e dirigir o povo, este andaria na terra como, em pleno oceano, o batel sem piloto.”

“Ao avistar, logo depois, a estátua feita de prata pensei: ‘Se o rei mandou fazer uma estátua tão cara é porque tem as arcas do tesouro a transbordar de dinheiro. Há, portanto, notável e completa prosperidade no país!’ E este raciocínio trouxe-me ao espírito grande alegria, que externei, com a maior sinceridade, ao exclamar: 

‘Que Alá, o Altíssimo, abençoe o nosso rei e por muitos anos o conserve!’ ‘O que é muito puro de sangue, de linguagem e de conduta, o que é poderoso, reto e consumado político, é digno de reinar na terra.’

“Ao verificar, porém, que a terceira estátua era de ouro maciço, fiquei assombrado. ‘O rei enlouqueceu’, pensei. ‘Onde já se viu, em que terra e em que lugar, um soberano desperdiçar tanto dinheiro numa estátua de ouro quando há tanto benefício a fazer-se e tanta necessidade a remediar-se?! Pobre e desventurado rei! Está completamente dominado pelo delírio das grandezas!’ E esta triste conclusão afligiu-me de tal modo que de mim se assenhoreou grande e incontida aflição. Atirei-me desesperado ao chão, e implorei a proteção de Deus: ‘Que Alá, o Clemente, salve o nosso rei!’”

Achou o sultão muita graça na original explicação dada pelo inteligente forasteiro e perguntou-lhe:

- Acreditas, então, ó beduíno tão bem-dotado!, que eu poderia ficar louco sem que os meus súditos o percebessem?

- Acredito, sim, ó rei dos reis - afirmou o beduíno. - Não conheceis o caso ocorrido com o rei Talif?

- Não é possível, mesmo a um rei, conhecer os casos que se deram com todos os reis. Possivelmente, ignoro o que ocorreu com esse meu digno antecessor.

- Pois é a história mais espantosa de quantas tenho ouvido - respondeu o beduíno. - Trata-se de um rei que verificou ter acontecido, consigo mesmo, uma anomalia realmente fantástica; durante nove anos, apesar de completamente louco, governava tranquilamente um dos países mais prósperos e mais ricos do mundo! E houve ainda, no caso, uma particularidade notável. No dia em que o rei Talif achou que seria prudente enlouquecer ficou inteiramente curado da demência que o aniquilava!

- Por Alá! - exclamou o sultão. - Será possível que um rei demente possa governar com acerto um grande país? Conta-nos, ó Filho do Deserto!, conta-nos esta história que me parece curiosa!

- Escuto-vos e obedeço-vos - respondeu o nômade, beijando humilde a terra entre as mãos. - Conto com a vossa generosidade. O coração do bom, embora agastado, não muda. Não é possível aquecer a água do oceano com a luz de uma vela!

E na sua voz forte e cadenciada, como o andar de uma caravana, o astucioso beduíno iniciou a seguinte narrativa:
____________________________
Notas
1 A religião maometana proíbe a representação de animais, o uso de imagens e de figuras humanas. Na Índia, porém, muitos países estão inteiramente fora do Islã. 

2 Hã-Ru - Na mitologia hindu figuram nada menos de 17 deuses. Um deles, Siva, é o princípio destruidor e tem como auxiliar Hã-Ru, o mensageiro da Morte.

3 A religião maometana proíbe a representação de animais, o uso de imagens e de figuras humanas. Na Ásia, porém, muitos países estão inteiramente fora do Islã.
___________________________
continua…
_______________________________________

Fonte:
Malba Tahan. Mil histórias sem fim. vol.2

quinta-feira, 13 de junho de 2019

J. G. de Araújo Jorge (Inspirações de Amor) XVI


PAISAGEM DO SILÊNCIO

Tenho a janela para os céus aberta,
e entre a renda dos ramos da mangueira,
- timidamente a luz do luar se esgueira
e anda na sombra, vagamente, incerta.

A noite está de estrelas recoberta
e a "via-láctea..." a esparramar-se, inteira,
- parece uma florida trepadeira
abrindo os astros na amplidão deserta...

Sob a sombra das árvores, - no chão,
as rodelas de luz, tremeluzindo,
lembram moedas de prata em profusão...

É profundo o silêncio... tudo em calma...
Chego a ter a impressão de estar ouvindo
o rumor dos meus sonhos na minha alma!…

PAR CONSTANTE

Dia dois... uma festa... Era o mês de janeiro...
Festa da minha vida... A noite azul, brilhante...
Chegaste... E eu fui teu par... fui o teu par primeiro...
Dançamos... (como é bom lembrar aquele instante!)

Tu, tão linda, nem sei... Eu, feliz, petulante,
um pouco petulante, sim... mas cavalheiro...
Dançamos toda a noite... E fui teu par constante...
Nem só teu par constante... Eu fui teu par primeiro...

Quantas cousas te disse... E assim juntos, os dois,
com os meus olhos nos teus - afinal, quem diria
o mundo que ainda havia de surgir depois?

Quem diria ao nos ver, talvez, aquele instante,
que o nosso par  feliz, constante aquele dia,
seria a vida inteira e sempre um par constante!

PASSIONAL

És lânguida e amorosa quando estás sozinha
e em teu corpo perfeito este amor apoteosas!
Nos teus olhos distantes, tudo se adivinha
e há em teu beijo um sabor encarnado de rosas!

Nasceste com certeza para ser rainha,
e o serias na certa, das mais poderosas!
- no entanto, aqui te tenho escrava, e sendo minha
cabes toda e inteirinha em minhas mãos nervosas!

Os teus cabelos louros, soltos sobre o leito
espalham-se  em meu ombro, emolduram teu rosto,
e, quando assim te sinto abatida em meu peito

os teus olhos castanhos, místicos, oblongos,
vão morrendo em desmaios roxos de sol posto
sob a noite de seda dos teus cílios longos!

PENSANDO NELA
  
Neste instante em que escrevo, estou pensando nela,
longe de mim, no entanto, em que estará pensando?
- quem sabe se a sonhar, debruçada à janela
recorda nosso amor, a sorrir, vez em quando...

Ou terá tal como eu, esse ar de alguém que vela
um sonho que estivesse em nosso olhar flutuando?
Ou quem sabe se dorme, e adormecida e bela
o luar lhe vai beijar os lábios, suave e brando...

Invejaria o luar... É tarde, estou sozinho,
ela dorme talvez, e não sabe que ao lado
do seu leito, a minha alma ronda de mansinho...

Nem vê meu pensamento entrar pela janela
e ir na ponta dos pés murmurar ajoelhado
este verso de amor que fiz, pensando nela!

PÔR DE SOL
                                  ( Aquarelas )

Pelo vão da janela escancarada
Tenho os olhos pousados no horizonte,
até que atrás da terra o luar desponte
na noite só de estrelas pontilhada...

Lá embaixo - como a fita de uma estrada
sob a arcada mourisca de uma ponte
as águas cristalinas de uma fonte
são o espelho da tarde iluminada...

Há chilreios na sombra do arvoredo
e no ouvido das árvores passando
o vento diz baixinho algum segredo...

Multiplicam-se as sombras nas quebradas.
e as nuvens lembram na distância, um bando
de pétalas de luz, ensanguentadas!

PRESSENTIMENTO

O fim do nosso amor pressenti - na agonia
das tuas próprias cartas, rápidas, pequenas...
- se nem tantas, com carinho imenso te escrevia
tão poucas me chegavam por resposta apenas...

Nas cartas que a sofrer, te escrevia, às dezenas
adiava a realidade sempre, dia a dia,
procurando iludir em vão as minhas penas
muito embora eu soubesse o quanto me iludia!

Hoje... já não foi mais surpresa para mim,
dizes (como quem tem piedade), que é melhor
não continuarmos mais... e tens razão: é o fim...

Há muito eu o esperava e o pressentia no ar...
Chegou... que hei de fazer?... Foi bom... Seria Pior
se ele não viesse nunca... e eu ficasse a esperar…

PRIMEIRO AMOR

Quando te vi naquela tarde eu era
uma criança, talvez - tinha quinze anos;
- não sabia, da vida, os desenganos
que à nossa frente vão ficando à espera...

Estava no esplendor da primavera
e num mar de ilusões erguia planos...
No peito, não guardava estes profanos
sentimentos, que o mundo aos poucos, gera...

Foi assim que te vi... e então julgava
que a vida era melhor do que eu pensava
e me sentia mais feliz que um rei...

Mas um dia... Não sei por que... Partiste...
- E eu que era alegre, me tornei triste
e a tristeza em meus versos transbordei !

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 1. SP: Ed. Theor, 1965.

Vinicius de Moraes (Para uma menina com uma flor)


Porque você é uma menina com uma flor e tem uma voz que não sai, eu lhe prometo amor eterno, salvo se você bater pino, que aliás você não vai nunca porque você acorda tarde, tem um ar recuado e gosta de brigadeiro: quero dizer, o doce feito com leite condensado. 

E porque você é uma menina com uma flor e chorou na estação de Roma porque nossas malas seguiram sozinhas para Paris e você ficou morrendo de pena delas partindo assim no meio de todas aquelas malas estrangeiras. E porque você quando sonha que eu estou passando você para trás, transfere sua d.d.c. para o meu cotidiano e implica comigo o dia inteiro como se eu tivesse culpa de você ser assim tão subliminar. E porque quando você começou a gostar de mim procurava saber por todos os modos com que camisa esporte eu ia sair para fazer mimetismo de amor, se vestindo parecido. E porque você tem um rosto que está sempre num nicho, mesmo quando põe o cabelo para cima, como uma santa moderna, e anda lento, a fala em 33 rotações mas sem ficar chata. E porque você é uma menina com uma flor, eu lhe predigo muitos anos de felicidade, pelo menos até eu ficar velho: mas só quando eu der aquela paradinha marota para olhar para trás, aí você pode se mandar, eu compreendo. 

E porque você é uma menina com uma flor e tem um andar de pajem medieval; e porque você quando canta nem um mosquito ouve a sua voz, e você desafina lindo e logo conserta, e às vezes acorda no meio da noite e fica cantando feito uma maluca. E porque você tem um ursinho chamado Nounouse e fala mal de mim para ele, e ele escuta mas não concorda porque é muito meu chapa, e quando você se sente perdida e sozinha no mundo você se deita agarrada com ele e chora feito uma boba fazendo um bico deste tamanho. E porque você é uma menina que não pisca nunca e seus olhos foram feitos na primeira noite da Criação, e você é capaz de ficar me olhando horas. E porque você é uma menina que tem medo de ver a Cara- na-Vidraça, e quando eu olho você muito tempo você vai ficando nervosa até eu dizer que estou brincando. E porque você é uma menina com uma flor e cativou meu coração e adora purê de batata, eu lhe peço que me sagre seu Constante e Fiel Cavalheiro. 

E sendo você uma menina com uma flor, eu lhe peço também que nunca mais me deixe sozinho, como nesse último mês em Paris; fica tudo uma rua silenciosa e escura que não vai dar em lugar nenhum; os móveis ficam parados me olhando com pena; é um vazio tão grande que as outras mulheres nem ousam me amar porque dariam tudo para ter um poeta penando assim por elas, a mão no queixo, a perna cruzada triste e aquele olhar que não vê. E porque você é a única menina com uma flor que eu conheço, eu escrevi uma canção tão bonita para você, "Minha namorada", a fim de que, quando eu morrer, você se por acaso não morrer também, fique deitadinha abraçada com Nounouse, cantando sem voz aquele pedaço em que eu digo que você tem de ser a estrela derradeira, minha amiga e companheira, no infinito de nós dois. 

E já que você é uma menina com uma flor e eu estou vendo você subir agora - tão purinha entre as marias-sem-vergonha - a ladeira que traz ao nosso chalé, aqui nestas montanhas recortadas pela mão presciente de Guignard; e o meu coração, como quando você me disse que me amava, põe-se a bater cada vez mais depressa. E porque eu me levanto para recolher você no meu abraço, e o mato à nossa volta se faz murmuroso e se enche de vaga-lumes enquanto a noite desce com seus segredos, suas mortes, seus espantos - eu sei, ah, eu sei que o meu amor por você é feito de todos os amores que eu já tive, e você é a filha dileta de todas as mulheres que eu amei; e que todas as mulheres que eu amei, como tristes estátuas ao longo da aleia de um jardim noturno, foram passando você de mão em mão, de mão em mão até mim, cuspindo no seu rosto e enfeitando a sua fronte de grinaldas; foram passando você até mim entre cantos, súplicas e vociferações - porque você é linda, porque você é meiga e sobretudo porque você é uma menina com uma flor.

Fonte:

quarta-feira, 12 de junho de 2019

Benedita de Mello (Poemas Avulsos) 1


A BENJAMIN CONSTANT

Eu te agradeço, Benjamim Constant,
eu te agradeço todo o bem de outrora,
que há tantos anos feito, eu sinto agora
e sentirão os cegos do amanhã.

Toda a Luz do Saber, fulgente aurora,
com que me batizaste a alma pagã.
E os teus esforços que pusemos fora,
a troco apenas de promessa vã.

Eu te agradeço as expressões sinceras,
que dia e noite vens me repetindo,
certa de que és ainda o que antes eras.

Eu te agradeço o labutar infindo,
pelo qual te entendi e amei deveras.
E, sendo cega, pude ver-te lindo!

BENDITA CEGUEIRA

Não vi ciscar a terra o pintainho,
nem vi no lago espreguiçar-se a lua.
Não vi num ramo balouçar-se o ninho,
nem no dorso do mar vi a falua.

Não vi, em frente, o rumo ao meu caminho...
Vi ruidosa e deserta cada rua...
Meu ser em toda a parte vi sozinho...
Não vi o mato verde, a pedra nua...

Mas se não vi a graça de uma flor,
Nem  plumagem de pássaro cantor,
Bendigo o que não vi, para bem meu...

Não vi o olhar de quem renega...
E a dor de minha mãe ao ver-me cega...
E o rosto de meu pai, quando morreu...

INGRATA

Buganvília, minha amada,
onde pássaros cantores
vinham em tarde rosada
cantar cantigas de amores.

Foi junto ao muro plantada.
Guardei-a dos malfeitores.
Por ser assim, bem cuidada,
dava-me todas as flores...

E um dia fiquei tão triste,
Por ver que em tudo o que existe,
sempre existe a ingratidão!

Pela parede subiu,
e do outro lado floriu,
distante da minha mão.

MEU QUARTO DE BANHO

O meu quarto de banho era um riacho
que atrás do meu casebre se estendia
e ali formava um cristalino tacho
que a natureza cuidadosa enchia.

Ramalhada por teto, areia em baixo.
E paredes de palha luzidia
retirada ao coqueiro, ainda em cacho,
onde insistente um bem-te-vi mentia...

O cabide era o tronco dos ingás.
Sobre pedras, nas margens embutidas,
que sabonete bom, raspas de juás!

Esse rio em que virgem me banhei,
por entre as tranças de cipó floridas,
foi bem a pia em que me batizei.

MEUS VERSOS

Estes meus versos não terão beleza.
São versos pobres e descoloridos;
mortiça chama, sobre a campa acesa,
resto de instantes sem amor vividos.

Lembram grilhões a que tenho a alma presa;
morrão de cinza de meus tempos idos;
foram cantados a embalar tristeza,
não foram feitos para serem lidos.

São versos nossos, meus e teus somente.
Verdade nossa, muito nossa e crua.
Não pode ouvi-la, quem amor não sente.

História amarga que não foi contada,
e encerra apenas a minha vida e a tua.
Tu, menos eu, mais eu, sem ti. Mais nada.

MINHA ESCOLA

Minha escola! Existia só aquela
no tempo em que estudei. Jovem. Tranquila.
— Por sabê-la dos cegos — a pupila,
dia por dia se me fez mais bela.

Podem ir vê-la, porém nunca ouvi-la;
torce a verdade, é fina e tagarela,
com falar afetado, ela é singela.
Como eu a soube amar e sei senti-la!

Pintaram-lhe de rosa a alta figura.
Sofre, porém, de mal que não tem cura...
E’ velha já, cem anos faz agora.

Quanta alegria e garbo na fachada!
E lá por dentro, quanta dor guardada!
— Muita gente há feliz assim, por fora.

TREVA E LUZ

Quem diz que o cego não vê luz, não pensa
que o Pai dá tudo a todos igualmente;
que entre o vidente e o cego, a diferença
é que um vê tudo, e outro tudo sente.
  
A luz, com seu poder de onipresença,
a maior invenção do Onipotente,
vários efeitos de uma Causa imensa,
está em toda parte, em toda gente.

Não é por não ver luz que há gente cega;
mas por falhas de um órgão que a conquiste;
isto é verdade que jamais se nega.

Concordo que a cegueira é cruz pesada,
mas se alguém nada vê por não ter vista,
quem tem vista, sem luz, já não vê nada.

Benedita de Mello (1906 – 1991)


Nascida em 16 de março de 1906, em Vicencia, um lugarejo no sertão pernambucano, faleceu no Rio de Janeiro, 1991, cidade onde se radicou desde 1919. (Foi registrada como nascida no Rio de Janeiro, em 1905).

Cega de nascença foi possuidora de rara inteligência. Apesar de uma vida de sofrimentos, teve a felicidade de ser ajudada por pessoas amigas que a levaram para o Rio de Janeiro, matriculando-a no Instituto Benjamin Constant, permitindo-lhe estudar e se formar no Magistério, onde exerceu a função de professora de Português, por mais de 40 anos.

Encantava a todos com os seus versos. Mãos amigas ajudaram-na a publicar as suas poesias. Realizou inúmeras conferências e criou a Semana Social dos Cegos do Brasil, e fundou a Instituição Hellen Keller.

Autora de belos versos, deixou algumas obras como: "Lanterna Acesa"-1938 e "Sol nas Trevas"-1944. 

Primeira mulher, talvez, a ser cogitada para a Academia Brasileira de Letras.

Fonte principal:

Carolina Ramos (O Folião)


Santos. O bairro do Gonzaga respirava fundo. Depois de alguns anos, a folia do Carnaval, desta vez, teria por palco a Ponta da Praia. Do já famoso Carnaval santista, chegariam ao bairro anteriormente castigado e pisoteado, as ressonâncias dos surdos, o eco longínquo da batucada e a zoeira, bastante amenizada, da algazarra dos foliões. Longe ficava, também, o clarão exuberante das luzes da Av. Bartolomeu de Gusmão, transformada agora em passarela carnavalesca.

Entre os dois polos, o bairro do Boqueirão curtia a intermediação, como novidade, cujas consequências só poderiam ser avaliadas num após. Inclinados para a direita ou para a esquerda, como bons representantes da orla santista, os prédios de apartamentos serviam de arquibancada privilegiada, ou melhor ainda, de camarote, já que a infra-estrutura dos lares, por detrás de cada janela, garantia maior conforto.

A avenida praiana, recentemente recapeada, oferecia um tapete de asfalto impecável, lavado pelas copiosas chuvas de verão, bem propício à vibração dos passistas, na espera, indócil, do início do desfile.

Um a um, chegavam os carros alegóricos. Empíricos ainda, mostrando apenas a carcaça. A decoração acontecia no próprio local, a ritmo acelerado, e por ordem de chegada. Era ver um caminhão desovar pequena multidão à paisana e, num passe de mágica, vê-la caracterizada com as cores e brilhos exigidos pela ala à qual pertenciam os componentes. Logo, o asfalto era varrido pelas saias fartas e rodopiantes das baianas, chegadas em profusão, e pelos passos lépidos de mil e um figurantes, em trajes por vezes indefiníveis. Aconteciam excessos nessa ágil troca de roupas em local público? Certamente que sim! Aqueles que os viam, fingiam nada ver. E o assunto morria, E acabava por ser enterrado na cova rasa da cumplicidade carnavalesca que tudo perdoa e sepulta... pecadilho de carnaval, sem maiores consequências. Na maioria das vezes, quem chegava vestido, saía com bem menos roupas que era possível imaginar. Carnaval! Mesmo aqueles que se escandalizavam, mesmo aqueles que torciam o nariz aos desmandos e à semvergonhice liberada, não conseguiam ficar indiferentes à exuberância exibida pelos canais de televisão, embasbacados com a explosão colorida de beleza e sensualidade despejadas em enxurrada dentro de suas próprias casas, a um simples girar de botões. Carnaval!

Valdo prometera a si mesmo que, naquele ano, haveria de se esbaldar! Mal sentiu no ar os primeiros sintomas da síndrome carnavalesca, levou à risca a letra do velho sambão: — "vestiu uma camisa listrada..."

Largou-se. Fantasiado de povo, perdeu-se dentro dele. Tentara entrar numa das tradicionais Escolas de Samba, das mais categorizadas. Não tinha samba no pé. Muito menos na cabeça. Definitivamente reprovado, não desistiu. Dirigiu-se, cedo, para o Boqueirão, onde as Escolas ultimavam os preparativos para o desfile. Um camarim a céu aberto! Céu vestido de negro, de estrelas apagadas. Céu zangado com o que via lá embaixo! Valdo infiltrou-se aqui e ali, tentando ser útil. Ninguém precisava dele. Todo o mundo, atarefado, encarregou-se de fazê-lo ciente disso. Posto a escanteio, insistiu. Convidado, com maior veemência, a retirar os préstimos não solicitados, conformou-se, afinal. Não foi bem assim. Sentou-se no meio fio, aparentemente resignado, à espera do momento propício para voltar ao ataque.

Um frenesi muito especial correu ao longo da Escola perfilada, deixando antever que a hora da participação era chegada. Os carros alegóricos deram mostras de vida, deslizando de manso pela passarela, adornados convenientemente e com os destaques sambando nos devidos lugares.

Ensurdecedoras, as baterias faziam vibrar os prédios tortos da orla. Os cristais tiniam nas cristaleiras, quando ainda existentes.

A chuva fina, caída pouco antes, deixara o asfalto escorregadio, dificultando a tarefa de impulsionar os carros enormes, e suas frenéticas alegorias. Monumentos ambulantes! Alguns, envoltos ainda em plástico protetor. Presentes, bem embrulhados, para serem entregues aos olhos do públicos, no momento oportuno.

Não era fácil! Nem bem a faina do empurra-empurra começada, e já o cansaço ameaçava perturbar. Um dirigente de Escola descobriu Valdo, cabisbaixo, deprimido, sentado à beira da calçada.

— Ei, você aí…, quer dar uma ajudazinha?

Valdo olhou em volta, antes de responder. Era com ele mesmo. Coração aos pulos e olhos acesos, lançou-se à tarefa. Nascia naquele instante, um dos foliões mais ativos da
Avenida!

Madrugada a dentro, com ânimo insuspeitado, Valdo empurrou o imenso monumento, coberto de plumas adejantes, até a meta final.

Ao voltar para casa, pela manhã, exausto, encharcado de suor, comentava, com bravata, quase sem fôlego:

— Gente! Desfilei na maior!... Me esbaldei pra valer!...

Largou-se na cama.

Se à noite ajudara o diabo… de dia, dormiria como um anjo... feliz... feliz!...

Fonte:
Carolina Ramos. Interlúdio: contos. São Paulo: EditorAção, 1993.