quinta-feira, 25 de julho de 2019

Antologia “Mil Poetas pela Paz (Inscrições Abertas Gratuitas por email ou site)


Regulamento


Projeto: Mil Poetas pela Paz

Realização: Editora Pragmatha e Caderno Literário Pragmatha

Coordenação e edição: Sandra Veroneze

Inscrições: A partir de 23 de Julho de 2019

Dos objetivos

A “Antologia Poética 1000 Poetas pela Paz” tem por objetivo registrar em obra literária o desejo por um mundo mais amistoso entre nações, povos e pessoas, contribuindo, assim, para o registro da literatura contemporânea nacional.

Da participação

Para participar desta coletânea, não há restrições quanto a idade, sexo, raça, credo religioso ou político;

– O autor deve enviar por e-mail (sandra.veroneze@pragmatha.com.br) 1 (uma) obra de sua autoria (poesia), inédita ou não, com no máximo 20 versos e em língua portuguesa;

– O tema para participar desta coletânea é Paz;

– A poesia deve conter título e identificação com nome do Autor.

Da seleção

– As obras poéticas enviadas passarão pelo crivo do Conselho Editorial da Editora Pragmatha e do Caderno Literário e não serão permitidos poemas com conotação preconceituosa, racista e/ou discriminatória. O Conselho também irá avaliar a qualidade da obra e a pertinência de sua publicação. A decisão da CEC é soberana e irrecorrível;

Da inscrição

– Para que a inscrição seja validada, cada autor deve informar, junto com o poema enviado, sem qualquer abreviação, os seguintes dados: nome completo, CPF e endereço completo (com CEP);

– Caso o autor utilize de pseudônimo e/ou nome artístico, deve ser comunicado no ato da inscrição para que o mesmo possa constar na obra;

Não serão aceitas obras fora dos limites regulamentares de linhas;

– A inscrição é gratuita e a compra de exemplares, caso venha a ser também impresso, será facultativa.

– Ao aceitar este Regulamento, o autor autoriza a publicação da obra inscrita (poesia) para a Antologia em questão.

– Os trabalhos podem ser inscritos no link https://codigotxt.com.br/formulario-de-inscricao-antologia-mil-poetas-pela-paz/ ou enviando os dados para o email Sandra.veroneze@pragmatha.com.br.

Dos prazos

– As inscrições abrem no dia 23 de julho de 2019, indefinidamente, até ser completado o número de 1000 poetas inscritos.

Do sorteio

O sorteio do vencedor será realizado até 30 dias após o fechamento da antologia.

Do Prêmio

Entre os participantes será sorteada a edição de um livro solo de 102 páginas e 100 exemplares, nas especificações técnicas estabelecidas pela Editora Pragmatha, e o prêmio deve ser resgatado no período de 6 (seis) meses após a divulgação do sorteado, ficando sob responsabilidade do Autor as despesas de transporte.

Das ressalvas

– Esta seletiva não é um concurso onde há vencidos e vencedores;

– Eventualmente, por decisão do Conselho, poderão ser conferidos a título de cortesia diplomas, certificados ou outro tipo de menção honrosa, sem nenhum custo para os autores;

– Compete ao Conselho Editorial da Pragmatha e do Caderno Literário resolver eventuais casos omissos neste presente regulamento.

São Paulo, Julho de 2019
 
Dúvidas:
Sandra Veroneze
sandra.veroneze@pragmatha.com.br
São Paulo: 11 98878 9079
Porto Alegre: 51 99370 0619

quarta-feira, 24 de julho de 2019

Trovadores Potiguares que Deixaram Saudades (A – E)


Amei, um dia, em segredo,
uma esquisita mulher:
seu coração – um rochedo –
sem um carinho sequer...
Adauto dos Santos (1919-?)

A morte não vence a vida,
por muito que a desarrume.
Tomba a rosa fenecida,
o céu recolhe o perfume.
Auta de Souza
Macaíba, 1876 – Natal, 1901

Após causar desencantos
e nos fazer peregrinos,
a seca faz chover prantos
nos olhos dos nordestinos...
Ademar Macedo
Santana do Matos, 1951 – Natal, 2013

Nunca desejei riqueza,
nem poderio e nem glória,
pois prefiro a singeleza
desta vida transitória.
Adolfo Figueiredo † (?)

Não posso eu atender aquele
que vive sem ter saudade,
certamente falta nele:
– Amor, carinho e bondade.
Adolfo Paulino † (?)
Quando o sentido se afasta
o coração se aposenta,
mas o amor só se desgasta
quando a saudade se ausenta.
Aldair Barreto † (?)

Comigo, num certo dia,
meu coração conversando
prometeu o que eu queria:
continuar trabalhando.
Andière Abreu
Assu, 1931 – Natal, 2017


Tendo a saudade por guia,
procuro encontrar meu sonho
que se perdeu, certo dia,
no meu destino tristonho.
Antídio de Azevedo
Jardim do Seridó, 1887 – Natal, 1975


Por hábito a mulher mente
e em tudo se contradiz:
– sente, e não diz o que sente,
– diz, e não sente o que diz.
Antonio Damasceno Bezerra † (?)

A fé remove montanhas,
transpõe rios, oceanos,
descobre coisas estranhas,
só não destrói desenganos.
Antonio Souto † (?)

No grande circo da Vida
eu me sinto prazenteiro,
oculto a alma ferida
e vibro no picadeiro.
Arlindo Castor de Lima
Natal, 1917- ????)


As duas vinham brigando,
não sei a razão por quê,
pois só no fim ouvi quando
uma disse: – Vá você!
Ascendino Almeida
Catolé do Rocha/PB, 1916 - Natal, 1989


Nesta vida de tormentos,
cheia de tantos pesares,
os prazeres são por centos,
as tristezas por milhares.
Bento Rabelo
Natal, 1915 - 1995


Sinto uma enorme vontade
de ver, seja como for,
por inteiro, a humanidade
se embriagando de amor...
Bob Motta
Natal, 1948-2017

Este é, talvez, o primeiro
dos contrastes deste mundo:
A vida é sonho ligeiro!
A morte é sono profundo!
Caio Maranhão † (?)

Eu levei a vida inteira
aguardando os teus carinhos;
reguei a minha roseira,
mas ela só deu espinhos!
Celso Caldas † (?)

Se todo o amor que irradias
somente à noite me é dado,
quero que o sol, por três dias,
fique então todo apagado.
Celso da Silveira
Assu, 1929 – Natal, 2005


Cuidado com certos traços
e truques que a vida tem...
A luz que guia teus passos
pode cegar-te também!
Clarindo Batista de Araújo
Jardim de Piranhas, 1929 - Natal, 2010


Canta e chora, ri, arqueja,
geme de dor e paixão:
– A viola sertaneja
é o retrato do sertão!
Dorinha Rabelo † (?)

Abraça-te à realidade,
liberto de ilusas crenças,
que só a luz da verdade
dissipa trevas imensas.
Esmeraldo Siqueira † (?)

Quem ama sofre demais:
– se esse amor for verdadeiro
o bem na vida nos traz,
porém maltrata primeiro!...
Evaristo Martins de Souza † (?)

Fonte:
Trovas selecionadas e enviadas por Luiz Gonzaga da Silva

Contos e Lendas do Mundo (Amazônia/Brasil: Tanguru-Pará)


O japim tornara-se o horror da passarada. A floresta andava triste, sem canto, sem as melodias de que Tupã tanto gostava.

Certa vez apareceu na região um pássaro novo, um gaviãozinho esperto, vivaz, ligeiro no voo, mas de canto monótono e sem graça. Gostava pouco de amizades e, por cá aquela palha, zangava-se e brigava.

Era deveras valente. Até o gavião real já o respeitava porque o cauré, assim se chamava o novo habitante das selvas, lhe dera uma surra de que saiu molestado e de asas derreadas.

O cauré não enfrentava as aves mais fortes. Tem a sua tática. Voa e quando o gavião lhe vai no encalço, a águia, o condor, o abutre, ele manobra com assaz perícia no espaço, mete-se embaixo das asas do inimigo e, com o seu bico adunco e forte corta os músculos propulsores, obrigando-os a abandonar a luta e mesmo, muita vez, a cair no chão, semi-mortos.

O cauré, então, desce e lhes come os olhos e as entranhas. É esse o pitéu que mais saboreia.

O japim temia o cauré, mas lá um dia o seu instinto moleque levou-o a arremedar o valente gaviãozinho.

O cauré partiu sobre ele, mas o malandro estava perto do ninhal, meteu-se no seu longo ninho e ficou aguardando os acontecimentos. O cauré empoleirou-se num galho, à espreita, como costuma fazer.

Daí a momentos, porém, teve que abalar, porque uma nuvem de cabas lhe caiu em cima.

As cabas são aliadas do japim. Onde há ninho de japim também há ninho de caba.

Caba não canta, nem zune, tampouco, de modo que não tinha queixas do japim e era-lhe até um divertimento apreciar as troças do seu talentoso aliado.

O tanguru-pará nunca se havia encontrado com o japim. Vivia lá para a sua banda, cantando baixinho e ensaiando passos de dança clássica, para um dia apresentar-se a Tupã, na certeza de o agradar e ser contratado para a corte celeste.

Aconteceu, porém, que o japim, o avô dos japins, pois a família aumentara muito na terra, numa das suas viagens pela mata, ouviu aquele canto esquisito; foi-se aproximando, aproximando, e deu com o tanguru a cantarolar e saltitar no galho do pau.

Achou aquilo engraçado e quis chegar-se e apresentar-se ao artista excêntrico, mas o seu diabólico instinto o traiu.

Daí a pouco estava a arremedar o inofensivo tanguru.

O tanguru era pacato, e por isso, quando se zangava, zangava mesmo.

– Que é isso, camarada, por acaso me estou metendo na tua vida? – perguntou ao japim, que não fez caso e continuou no arremedo.

O tanguru voa-lhe em cima e engalfinharam-se. A briga foi feia. As penas saltavam de ambos os contendores. Daí a instante chegavam os espectadores e a torcida era grande pelo tanguru, que num momento feliz conseguiu ferir o adversário no coração. O sangue espirrou e o japim caiu morto A ovação da assistência coroou a vitória do tanguru-pará.

Tupã, que a tudo assistira, falou: "De hoje em diante, todos os teus descendentes trarão no bico a marca desta vitória".

E é por isto que o tanguru-pará tem o bico vermelho.

E é por isto, também, que os japins continuam a arremedar todos os pássaros, exceto o tanguru-pará.

Fonte:
José Coutinho de Oliveira. Folclore amazônico. Belém: São José. 1951, p. 169-172, in Anísio Melo (org.). Estórias e lendas da Amazônia. (Antologia ilustrada do folclore brasileiro). São Paulo: Livraria Literat, 1962.

Paulo Camelo (Sextina)


6 sextilhas e 1 terceto.

A sextina é um dos sistemas estróficos mais difíceis e raros. Criada por Arnaut Daniel, no século XII, foi usada por alguns dos grandes poetas, como Dante, Petrarca e Camões. No Brasil, dela se utilizaram Jorge de Lima, Américo Jacó, Waldemar Lopes, Edmir Domingues, Dirceu Rabelo e outros.

Compõe-se de seis sextetos e um terceto final, a coda. Utilizando versos decassilábicos, tem as palavras (ou as rimas) finais repetidas em todas as estrofes, num esquema pré-determinado. Assim, as palavras (ou rimas) que aparecem na primeira estrofe, na sequência de versos 1, 2, 3, 4, 5, 6, repetem-se na estrofe seguinte, na sequência 6, 1, 5, 2, 4, 3. E se faz a estrofe seguinte na sequência 6, 1, 5, 2, 4, 3, em relação à estrofe anterior. E assim até a sexta estrofe, finalizando os sextetos, O terceto final tem, em cada verso, no início e no fim, as palavras (ou rimas) utilizadas no poema todo, na posição em que se apresentaram na primeira estrofe.

Ezra Pound, referindo-se à sextina, disse: "A arte de Arnaut Daniel não é literatura. É a arte de combinar palavras e música numa sequência onde as rimas caem com precisão e os sons se fundem ou se alongam.
" Ao que Edmir Domingues objetou, dizendo: "Mas é este o objetivo de toda a verdadeira poesia, o perfeito encontro entre a forma e o conteúdo, entre a linguagem e a música".


SEXTINA de Luís de Camões

Foge-me pouco a pouco a curta vida = 1 a
(se por caso é verdade que inda vivo); = 2 a
vai-se-me o breve tempo d'ante os olhos; = 3 a
choro pelo passado e quando falo, = 4 a
se me passam os dias passo e passo, = 5 a
vai-se-me, enfim, a ideia e fica a pena. = 6 a

Que maneira tão áspera de pena! = 6 b
Que nunca u'a hora viu tão longa vida = 1 b
em que possa do mal mover-se um passo. = 5 b
Que mais me monta ser morto que vivo? = 2 b
Para que choro, enfim? Para que falo, = 4 b
se lograr-me não pude de meus olhos? = 3 b

Ó fermosos, gentis e claros olhos, = 3 c
cuja ausência me move a tanta pena = 6 c
quanta se não compreende enquanto falo! = 4 c
Se, no fim de tão longa e curta vida, = 1 c
de vós m'inda inflamasse o raio vivo, = 2 c
por bem teria tudo quanto passo. = 5 c

Mas bem sei, que primeiro o extremo passo = 5 d
me há de vir a cerrar os tristes olhos = 3 d
que Amor me mostre aqueles por que vivo. = 2 d
Testemunhas serão a tinta e pena, = 6 d
que escreveram de tão molesta vida = 1 d
o menos que passei e o mais que falo. = 4 d

Oh! que não sei que escrevo, nem que falo! = 4 e
Que se de um pensamento n'outro passo, = 5 e
vejo tão triste gênero de vida = 1 e
que, se não lhe não valerem tantos olhos, = 3 e
não posso imaginar qual seja a pena = 6 e
que traslade esta pena com que vivo. = 2 e

N'alma tenho contínuo um fogo vivo, = 2 f
que, se não respirasse no que falo, = 4 f
estaria já feita cinza e pena; = 6 f
mas, sobre a maior dor que sofro e passo, = 5 f
me temperam as lágrimas dos olhos = 3 f
com que, fugindo, não se acaba a vida. = 1 f

Morrendo estou na vida, e em morte vivo; = 2 g
vejo sem olhos, e sem língua falo; = 4 g
e juntamente passo glória e pena. = 6 g


Fontes:
Paulo Camelo. Sextina. in https://camelo.recantodasletras.com.br/visualizar.php?idt=47664. 25 set 2005.
Sextina de Camões obtido no livro de Lóla Prata. E eu sei fazer versos? Bragança Paulista/SP: ABR, 2011.Livro enviado pela autora.

Renato Benvindo Frata (A Lei? Ora, a Lei!)


O burburinho de gente que sai e entra com pressa é porque o progresso inspira riqueza e ela dá o alento ao homem. Mesmo que esse homem aos poucos se animalize sem que perceba com a brutalidade que impera e dá o tom à vida.

O movimento contínuo de carroças, jipes, caminhões, alguns tratores e a maioria do povo volvendo pra lá e pra cá o areão das ruas, com pés descalços ou com alpercatas, outros com botas de cano alto, era o que se via do raiar ao pôr do sol, no início de Paranavaí.

Nos dias quentes e secos, a poeira permanecia suspensa qual nuvem marrom. Nos dias chuvosos, a lama que logo se transformava numa nata boiando sobre o solo, sendo espirrada quando rodas apressadas as expeliam para as beiradas, e com isso encardiam o encardido, lembrando que não haviam ainda sido construídas as calçadas.

No burburinho, o entrevero de vozes, o roncar de motores, o fumaçar do carvão dos carros a gasogênio, a necessidade de ganhar, de cumprir o objetivo para o qual a grande maioria das pessoas se dispôs ao mudar para cá. E desenvolvê-la.

Depois, o recolhimento para alguns junto a bacias ou a chuveiros tipo Tiradentes, para se lavar e refrescar; enquanto para outros o dia, mesmo sendo noite ganhava serão, especialmente nos botecos e armazéns em que a homarada se reunia para "lavar a garganta, contar e ouvir vantagem".

Uma ou outra moça ou mulher arriscava-se em direção à igreja ou à casa de parentes.

Habilitar-se sair de casa depois do sol posto representava perigo com a escuridão que reinava. O bom conselho era o de que todos permanecessem sob o abrigo das telhas, especialmente às sextas-feiras, quando geralmente os "jagunços" voltavam de seus acampamentos no mato e mergulhavam nos prazeres da carne, da bebida e da gastança. E pelo sim, pelo não, melhor não se expor, porque a "lei se existe, está no papel e a maioria não sabe ler..."

No seu relato. Frei Ulrico cita nomes de alguns desses, contratados "para este trabalho de justiça" E faz questão de relatar sobre João Pires que carregava nas costas muitas mortes. Num determinado dia, João teria encontrado seu justiceiro que lhe metera algumas balas pelo corpo. "Foi trazido em cima de um caminhão e apesar de estar gravemente ferido, conseguiu sobreviver por algum tempo", tendo o Frei sido chamado a lhe prestar os últimos sacramentos.

Depois de receber a extrema unção, João teria se levantado, chamado o médico e pedido para curá-lo o mais rápido possível, que o deixasse em condições de "vingar do seu inimigo e matá-lo a tiros". Mas, como perante a morte não há médico que dê jeito, desesperado caiu de volta, num último suspiro.

Outros "quebradores de milho" (apelido dado a jagunço) têm seus nomes relacionados, nenhum, porém, que necessite ser lembrado, especialmente porque com o passar do tempo o Estado foi se fazendo presente, intervindo com e intensidade do acordo com a situação, especialmente nos conflitos de terra, conseguindo aos poucos "espantar para o Mato Grosso os que reinavam sem se ater às leis.”

Fonte:
Livro enviado pelo autor.
Renato Benvindo Prata. Ipê amarelo: contos. Paranavaí/PR: Ed. Graf. Paranavaí, 2014.

terça-feira, 23 de julho de 2019

Francisca Júlia (A Borboleta)


Na talisca* de um velho muro coberto de limo e vegetações bravas, estava oculto o casulo de uma lagarta.

Todos os que passavam por ali paravam a contemplar as ruínas do muro, o viço das plantas que cresciam em cima dele, colhiam às vezes alguma flor silvestre, vermelha ou azul, muito fresca de mocidade que, vicejando sobre a velhice das pedras, tinha o aspecto de um sorriso de alegria no rosto enrugado de um velho.

E ninguém descobria o pequeno casulo escuro, escondido numa fenda, ao abrigo das vistas do passeante e das violências do tempo.

Ele ali estava há muitos dias, imóvel, suspenso a uma folha seca, servindo de habitação à crisálida.

Uma manhã, enquanto as primeiras manchas de sol iam dourando a brancura das nuvens e os passarinhos cantavam nas ramas, o casulo rompeu-se. Pela abertura a borboleta enfiou a cabecinha, olhou em torno, com receio da luz, e escondeu-se de novo. Em seguida apareceu, estendeu as delgadas perninhas para fora do casulo, saiu, sacudiu as asas ainda entorpecidas de sono, respirou o ar puro, e voou.

Era uma grande borboleta de asas brancas, ornadas de traços azulados.

A princípio, como não estava habituada aos movimentos do voo, andou se batendo pelas paredes, embriagada de luz.

Voava de flor em flor, pousava de folha em folha, numa impaciência de correr, atravessar os ares e conhecer todas as dificuldades do voo.

Coitadinha! mal podia suster-se nas pernas!

Mas o sol, que já tinha aparecido de todo, e inundado o campo de luz, secou-lhe as asas.

Ela sentiu-se melhor; abriu as asas, tentou o voo e rompeu o ar com uma rapidez de seta: correu o campo inteiro em todos os sentidos, rodeou todos os arbustos, aspirou o perfume de todas as plantas e veio de novo, equilibrando-se no ar, em movimentos vagarosos, um pouco fatigada pelo esforço.

Pousou em cima do velho muro, e a todos que passavam provocava com seus movimentos ligeiros, muito vaidosa da sua beleza, abrindo e fechando as grandes asas como um leque de plumas, ou voava de novo a uma grande altura e ficava suspensa no ar, iluminada de sol.

E à tarde, quando o crepúsculo veio descendo, ela teve medo da noite, e andou tonta, voando na corrente das brisas, em procura da luz.
___________________
Nota:
* Talisca - qualquer rachadura estreita em uma superfície dura; fenda, greta, frincha.
 
 Fonte:
Francisca Júlia. Livro da Infância. Revisão ortográfica: Iba Mendes.

Antonio Cabral Filho (4º Colar de Trovas Brasil Trovador)


Tema: sequência por imagem.
(o 1. verso da trova posterior deve rimar com o 4. verso da trova anterior)

-Obra de Pawel Kuczinski-

01
Era quase meio *dia*
e terminei de cavar,
um crime por covardia,
tenho outro para *enterrar.*
Antônio de Pádua Elias de Souza (MG)

02

O tempo vive a *ceifar*
toda e qualquer forma viva,
não temos como escapar
de sua ação *destrutiva.*
Gilberto Cardoso (RN)

03

A morte nunca *cativa*
para muitos é mistério,
mas na hora decisiva
todos vão pro *cemitério.*
Adriano Bezerra (RN)

04

O tempo em seu *magistério*
sem distinção em seus crivos,
iguala sem ter critério
quem está no rol dos *vivos.*
Zé Ferreira (RN)

05

Da finitude *cativos*
na arte achamos suporte,
ou em outros lenitivos
como cachaça e *esporte.*
Gilberto Cardoso (SC / RN)

06

Finitude não tem *sorte,*
é por demais ilusória,
impedir jamais coorte,
ao desfilar com a *vitória*.
Antônio Cabral Filho (RJ)

07

Para descansar na *glória*
de Deus Pai, Nosso Senhor,
basta seguir a história:
ser bom e *trabalhador.*
Aurineide Alencar (MS)

08

Quem fica chora de *dor*
pelo seu ente querido,
mas quando também se for
por outros será *sentido.*
Adriano Bezerra (RN)

09

O poeta *extrovertido*
no seu tempo precioso,
faz poemas com sentido
e a arte de um ser *saudoso!...*
Luiz Cláudio (RN)

10

Tão triste, mas mui *ditoso*
emprega os versos com fé.
Ergue o poema lacrimoso
E ora ficando de *pé*.
Prof. Roque (RS)

11

É temeroso ou não *é,*
saber que a morte vem?
Da cova ou da chaminé
não vai escapar *ninguém.*
Adriano Bezerra (RN)

12

Falo sem nenhum *desdém*
que enfrento com coragem,
o embarque nesse trem
que leva à última *viagem.*
Zé Ferreira (RN)

13

É pecado a *sacanagem*
de matar uma pessoa!
Deus vê tal crocodilagem
como coisa nunca *boa!*
Oliveira Caruso (RJ)

14

Deus é bom e Ele *perdoa*
Pequenas falhas do dia.
Mas matar uma pessoa
Isso é suprema *heresia.*
Antonio Francisco Pereira (MG)

15

Os plebeus e a *burguesia*
se equiparam na morte,
pra que tanta hiprocrisia
se terão a mesma *sorte*?
Maria Zilnete (RJ)

16

Sem nenhum medo da *morte*
ciente da hora de chegar,
eu sigo a vida mais forte
e já me pus a *rezar.*
Antônio de Pádua Elias de Souza (MG)

17

Todos irão *viajar*
já nascem com passaporte,
ninguém escolhe o lugar,
o desembarque é a *morte.*
Aurineide Alencar (MS)

18

Agora dou grande *corte*
passado pra mim é tempo,
a imagem faz esse aporte
cova não é *passatempo!...*
Luiz Cláudio (RN)

19

Sempre haverá *contratempo*
pra motivar nossa ida,
busquemos no entretempo
nos preparar pra *partida.*
Adriano Bezerra (RN)

20

Começa cedo a *corrida*
Desde o primeiro vagido.
E quantos ao fim da vida
Chegam sem terem *nascido*.
Antonio Francisco Pereira (MG)

21

Por antes nunca *morrido,*
sobrevivo na alegria.
Jamais serei esquecido
nem terei *melancolia.*
Prof. Roque (RS)

 22

Chegado o fim do *dia*
Eu percebi, com torpor
Que a cada trova morria
Um pouco do trovador.
(Zé Ferreira - RN)

Fonte:
https://trovadoresdobrasil.blogspot.com/2017/10/4-colar-de-trovas-brasil-trovador.html

Hans Christian Andersen (O Anjo e a Flor do Campo)


– Sempre que sucede morrer uma criança boa, desce um anjo do céu a buscá-la, e, depois de a recolher em seu regaço, desdobra as asas brancas, dadas pelo Criador, afim de ir percorrendo em seguida todos os sítios com que na terra a criança mais simpatizou. As flores que nesta digressão apanham, levam-nas ambos ao Pai Celeste, para ele as fazer lá reflorir no empíreo mais formosas e odoríferas, imarcescíveis (não perde o viço) mesmo. Deus então aconchega ao peito essas flores, – e na que mais lhe apraz deposita um beijo. Esse beijo tem o condão miraculoso de inocular na flor animação e voz.

Destarte a flor transfigurada passa a tomar parte também nos harmoniosos coros dos bem-aventurados. Assim falava um anjo de Deus na ocasião de transportar para a mansão celestial uma criança morta. E a criança escutava o anjo, absorta, embevecida, como se a envolvessem cintilantes brumas de um sonho fagueiro. E o anjo, aconchegando ao regaço a criancinha, voava naquele momento por sobre os sítios, de que mais tinha gostado em vida, – jardins esmaltados de flores lindíssimas.

– Quais destas queres, perguntava o anjo, que daqui levemos para lá plantarmos no céu?

Aconteceu passarem por junto de uma roseira magnífica. Mãos daninhas, porém, de qualquer mal-intencionado, haviam barbaramente praticado o ato brutal de quebrar-lhe o tronco, por forma que os desditosos ramos, carregadinhos de rubros botões prestes quase a desabrocharem, pendiam tristemente murchos, enquanto de todo não secassem.

– Que dó que me faz o pobrezinho do arbusto! exclamou a criança. Ah! que se pudéssemos levá-lo conosco para ir lá no céu reverdecer e reflorir!…

Fez-lhe o anjo a vontade e apanhou a roseira. Depois continuaram a colher flores de variadas castas, até reunirem um volumoso braçado.

– Parece-me que bastam agora já essas que levamos, observou a criança.

O anjo fez um aceno de condescendência, mas sem remontar ainda o voo para o firmamento. Começava a pronunciar-se cada vez mais a escuridão da noite incipiente. Reinava em torno um silêncio profundíssimo. Nisto aconteceu passarem quase rentes com uma ruazinha estreita e sombria, em cujo pavimento jaziam dispersos, abandonados, desprezados por entre o lixo do solo, fragmentos de louça quebrada, vidros partidos, chinelos velhos, farrapos e trapalhadas, que denunciavam esse conjunto de peripécias sempre mais ou menos inerentes a qualquer mudança de domicílio. Algum morador, que dali se ausentara, – ao transportar para a nova residência seus pobres trecos, havia certamente arremessado à rua a inútil frandulagem de que já não precisava.

Por entre estes destroços mostrou o anjo à criança os cacos de um vasinho de flores. Junto aos cacos viam-se os torrões esboroados da terra que em tempo enchera o vaso. A um desses torrões prendiam-se ainda as raízes de uma singela planta campestre, com a sua florzinha de mimosas cores murcha já e quase desfolhada, suja de pó, machucada e pisada pelos pés dos transeuntes. E, ao mostrar-lhe, disse o anjo à criança:

– Levaremos também esta, coitada!, no caminho te irei contando os motivos.

Depois começou a erguer, a erguer o voo para o céu. Foi então que o anjo deu princípio à narrativa seguinte :

– Ali, naquela rua sombria que tu viste, morava numa espécie de toca uma criancinha enferma. Era um pequeninho que nascera infectado e raquítico. Sua moléstia congênita impunha-lhe a necessidade tristíssima de permanecer quase sempre na cama. Se alguma vez acontecia sentir melhoras, o mais que lograva era percorrer o quarto em roda, amparado nas muletas. Quando chegava o estio, entravam-lhe pela janela uns raios de sol a iluminarem-lhe o acanhado âmbito do seu miserável domicílio. A criança aproveitava então a visita fugitiva daquelas ondulações luminosas e nelas se aquecia, e nelas buscava revivificar-se, como se fora aquilo a benéfica influência de um higiênico passeio pelo campo. Este pequenino nunca em sua vida tinha pois podido apreciar a magnífica verdura das florestas, e delas só podia formar uma longínqua ideia por algum ramo de faia que o filho do vizinho lhe trazia de tempos a tempos, como lembrança. Pegava então no ramo, e dependurava-o por sobre a cabeceira, fazendo assim de conta que estava repousando à sombra de virente arvoredo, com as ondulações douradas de um sol em perspectiva e um delicioso chilreio de mil passarinhos a encher-lhe de música os ouvidos. Numa bela manhã de primavera trouxeram-lhe umas flores do campo; casualmente uma destas vinha ainda com a raiz intacta. Tira-se de cuidados o pequeno, e trata de plantar cautelosamente o vegetalzinho num vasinho de barro, que daí por diante ficou constituindo o seu constante enlevo, pousado no parapeito da janela, à ilharga do leito em que jazia. Plantado por mãos carinhosas, regado, tratado, acariciado, o vegetal campestre soube na sua humildade agradecer os afagos de tanta solicitude; em breve lhe pulularam viçosos rebentos; e todos os anos se desatava em novas flores, como a festejar o seu desvelado cultor. Para o pobre doentinho era aquilo o seu estimado jardim, o seu único tesouro neste mundo; queria-lhe com todo o afeto da sua alma; prodigalizava-lhe os seus mais encarecidos mimos; da água, que bebia, dava-lhe sempre as primícias; colocava-o de modo que nunca perdesse um raio sequer do sol que escassamente lhe entrava pela janela. E a humilde planta vegetava e desenvolvia-se; revestia-se cada vez mais de folhagem; enchia-se de botões que desabrochavam em flores; irradiava-lhe perfumes; parecia até sorrir-lhe com requintes de galanteio. Por sua parte o pequenino, – quando afinal Deus o chamou à sua eterna presença, – , antes de soltar o derradeiro suspiro, inclinou-se comovido para a sua verde companheira e segredou-lhe de mansinho, muito de mansinho, as suas ternas, últimas despedidas. Faz agora um ano, que o pobre enfermo faleceu; e durante este ano todo lá ficou desprezada, esquecida a um canto, no mesmo parapeito da esguia fresta, a planta campesina em que outrora havia docemente concentrado seus cuidados e alegrias o infantil doentinho. Faltando-lhe os mimos, a que se acostumara, pouco a pouco murchou e se foi o triste vegetal mirrando, até que o próprio vaso agora lhe deitaram à rua, como inútil estorvo, por ocasião de sair dali quem habitava naquela miserável toca. Foi esta a flor, que ora acabamos de cuidadosamente recolher de entre o lixo da rua; e, se em nosso ramalhete a arrecadei com tanto carinho, é porque, – onde a vês, machucada, espezinhada, — causou já mais alegrias e mais enlevos, do que se fora uma flor raríssima no jardim de uma rainha!

– E como é que tu sabes os pormenores todos dessa história? perguntou a criança ao anjo.

– Como é que os sei? é porque se passaram comigo estas particularidades; o pequenino das muletas sou eu; não querias que reconhecesse a minha estimadíssima flor?

A criança olhou então deslumbrada para o rosto esplendoroso do anjo. Chegavam naquele momento às luminosas portas da privilegiada mansão, em que ninguém respira senão júbilo inefável e felicidade eterna.

Quando o Pai do Céu estreitou em seus braços o corpinho da criancinha morta, sentiu esta, como por encanto, despontarem-lhe milagrosamente nas costas duas asas brancas, muito brancas, de plumagem fina, acetinada, exatamente iguais às do anjo que o transportara.

E ambos de mãos dados, agora perfeitamente idênticos na sua essência imutável, ambos graciosamente unidos em fraternal amplexo, foram então voando risonhos pela estrelada amplidão do empíreo.

Em seguida recolheu Deus no regaço as flores que os recém-chegados lhe haviam trazido; todas amimou e agasalhou por igual; – mas na pobre planta que o anjo apanhara de entre o lixo, nessa, como se quis esse distingui-la com o privativo selo da sua espe­cial predileção, depositaram seus divinos lábios um beijo.

É logo a florzinha dos campos, que abandonada e desprezada jazera na lama da rua, de pronto renasceu transfigurada; brotou-lhe instantaneamente voz; incorporada no grupo infinito das criaturas angélicas que flutuam em torno do Onipotente, ficou simultaneamente com estas entoando os solenes cânticos da felicidade celeste.

Antonio Carlos Barros (Gralha Azul Singrando Horizontes)


Conta a lenda que, uma certa gralha negra, dormia num galho de pinheiro e foi acordada pelo som dos golpes de um machado. Assustada, voou para as nuvens, para não presenciar a cena do extermínio do pinheiro. Lá no céu, ouviu uma voz pedindo para que ela retornasse para os pinheirais, pois assim ela seria vestida de azul celeste e passaria a plantar pinheiros. A gralha aceitou então a missão e foi totalmente coberta por penas azuis, exceto ao redor da cabeça, onde permaneceu o preto dos corvídeos. Retornou então aos pinheirais e passou a espalhar a semente da araucária, conforme o desejo divino.

Assim como a Lenda da Gralha Azul, ouvi uma voz, nem tanto do céu e nem tanto da terra, do amigo e Acadêmico João Líbero, velho amigo de infância, nascido e crescido em nossa querida Sorocaba, pedindo e me incentivando para que retornasse aos pinheirais da cultura, para assim como ele, espalhasse a semente da poesia, das lendas, dos textos Tropeiros e Gaúchos, dos causos e mentiras, da Irmandade, da música, enfim que voltasse a escrever.

O pedido do amigo Líbero ecoou como uma machadada em minha cabeça, onde eu, adormecido sobre os galhos do pinheiro, não vislumbrava mais, espalhar o pouco das sementes culturais, que havia guardado em meus antigos pessuelos.

Pois bem, como diz o Gaúcho: “Não podemo se entregá pros home de jeito nenhum, amigo e companheiro”, o pingo estava encilhado e passando a minha frente. Resolvi “muntá”.

Então como diz uma música Gaúcha: “Com café de lambe-sela eu abro o dia/ Se o Camargo me faltar pelo sendeiro/ O Tropeiro vai cantando de alegria/ Quando a gralha pular entre os pinheiros/ Com soquete na panela fervilhando/ Me preparo para a noite que aí vem/ Abre a gaita, eu abro o peito, improvisando/ E adormeço quando o sol, dorme também”.
__________________________
Notas:
Pingo: cavalo.
Pessuelos: Espécie de alforje duplo, de couro ou de lona, usado na garupa do cavalo.
Café de lambe sela: café muito fraco.
Sendeiro: Cavalo ruim, sem préstimo algum.

Fonte:
O Autor

segunda-feira, 22 de julho de 2019

Isabel Furini (A Barca de Rá)

Fonte: Facebook / Isabel é de Curitiba/PR 

Carolina Ramos (Triângulo)


Carnaval. Noite de sábado — aquele apêndice agregado ao calendário, ampliador dos três dias programados para a folia.

Zulma, Carlão e Zico — trio escolhido para representar a tríade mais famosa das folias de Momo — Colombina, Pierrô e Arlequim. Noite quente, sem chuva. Ar parado. Noite de fevereiro, autêntica, prenunciadora das águas de março, próximas.

A moça acordara cedo. Banhada e perfumada, desenrolava os bobes, soltando as mechas de cabelos negros. A fantasia de Colombina, estendida na cama, descalçava, por antecipação, da refrega que teria de enfrentar, logo adiante.

— Tira a mão daí, menina. Vai vestir a tua borboleta azul.

E a caçula voou, sem asas, em busca das asas embrionárias, dobradas, ainda, na gaveta-crisálida.

Carlão e Zico. Um dilema a ser resolvido. Por ironia, os dois pretendentes ao coração da moça. assumiam figuras polêmicas que mais confundiam seus sentimentos, a impedir que chegasse a uma decisão, na vida real.

Zico ou Carlão. Arlequim ou Pierrô?

Carlão romântico, tímido, sem muita iniciativa, música de fundo, suave e transparente como bola de cristal. Pierrô autêntico, carente de carinho, despertando ternura e amor.

Zico. O oposto. Auto-suficiente, algo arrogante, narciso, dominador. Autêntico Arlequim, volúvel e imediatista, arrastando à paixão.

Perfeitos! Carlão nunca poderia ser um Arlequim. Zico, jamais um Pierrô!

Zulma sorriu para o espelho, enquanto pingava no canto direito da face uma pinta negra, que lhe emprestava a coqueteria indispensável à figura que encarnava.

Quando a Escola adentrou a av. Tiradentes, e o ritmo das baterias sacudiu as almas, Colombina estremeceu no alto da plataforma apoiando-se nas duas bengalas prateadas, fincadas como arrimo às suas evoluções. Delas dependiam, pelo menos, noventa por cento da sua segurança. Grande responsabilidade! Acarinhou-as com respeito.

Lá em baixo, um Pierrô de cara branca e triste, vestido de cetim azul celeste, com sua gola entiotada, abraçando o alaúde estilizado, propositadamente alongado e enfeitado de fitas. Uma lágrima de prata, brilhando na cara branca.

Do outro lado, exuberante Arlequim, exibindo o colante de losangos coloridos, máscara negra, sensual e misteriosa, e um sorriso amplo, absolutamente confiante de que sua presença agradava, sem exceções.

O eterno triângulo, vezes se conta, repetido dentro e fora do Carnaval!

Às tantas, não se sabe como, nem se sabe por quê, a frágil Colombina despencou do alto da plataforma, candidata a múltiplas fraturas e mesmo, quem sabe, a sucumbir face a qualquer delas!

A surpresa amarrou a todos. Estupefação! Nem mesmo a decantada auto-suficiência do Zico conseguiu vencer o estupor geral.

Surpresa maior, foi, no entanto, a providencial e presta atitude de um Pierrô apaixonado, conseguindo aparar nos braços, com força imprevista, o corpo da bela Colombina, aparentemente desacordada.

Ao abrir os olhos, Zulma encontrou outros dois olhos, ansiosos, iluminando uma cara branca. A lágrima de prata brilhava mais ainda, autenticada por outras que abriam sulcos na face alvaiada.

Carlão virou herói! E o coração de Zulma deixou de balançar, indeciso. Pendeu, definitivamente, para o lado certo!

Pela primeira vez, quem sabe, na turbulenta história do Carnaval, um Arlequim, fascinante e extrovertido, perdeu, fragorosamente, para um tímido e sonhador Pierrô!

Fonte:
Carolina Ramos. Interlúdio: contos. São Paulo: EditorAção, 1993.

Acácio de Paiva (Poemas Diversos)


O TOJO

Porque me fez cruel a natureza,
O tojo diz, é alma da floresta,
E não me concedeu, como a giesta
E mais irmão que tenho a macieza?

Não pode por carícia (que tristeza!)
Diminuir a dor que me molesta,
Pois que por condição, e bem funesta,
A quem me toque eu firo, com dureza.

Pés descalços, de carne preciosa,
Se atravessam os matos dos caminhos
Eu tenho de os rasgar, alma impiedosa,

E tanto desejaria que os espinhos
Se trocassem por pétalas de rosa
Quando os pisam crianças e velhinhos!

A LÍNGUA PORTUGUESA

Assim como onde tem maior pureza
A linfa, é na mãe de água, por ventura
Assim também na aldeia é que é mais pura
A minha amada língua Portuguesa.

Na sua elegantíssima rudeza
Como nos seus extremos de doçura
Todos os pensamentos emoldura
Numa espontânea e artística beleza

Ouço-a forte, nas feiras, discutindo;
Nos serões ouço-a meiga namorando…
E é sempre um trecho de poema lindo

Aqui soberbo, além risonho e brando,
Porque é de Portugal o mar bramindo
E é também o nosso rouxinol trinando

CIDADE FLOR

Nomeou-me Leiria embaixador
Para saudar-vos nesta hora clara
..... Do mais vivo esplendor
Que jamais, até hoje se alumiara

E cedi com vaidade: pela minha
Terra, minha saudade há tantos anos
E que é da Estremadura alta rainha
E por vós dois: excelsos soberanos

Crede: Leiria é digna de visita.
Não exibe a riqueza deslumbrante
Que cega e oprime que entontece e grita
E chega a amedrontar o viandante,

Mas é..., como direi...bem comparada...
Uma Cidade-Flor! É pequenina
Mas tão airosa, amável, perfumada
Como gentil grinalda de menina.

E quanto acolhedora: - uma cidade...
(Não sei onde encontrar comparação
Que possa dar ideia da verdade...)
Vamos... uma Cidade-Coração.

- “Estranha imagem” notareis; por certo,
Mas é condão de alguns ouvir e ler
Nítido em tudo, como em livro aberto,
......Aflição ou prazer...

Assim, desde o seixinho humilde e bruto
Aos mais aparatosos arvoredos,
O coração da minha terra escuto
E entendo em seus recônditos segredos.

Se quisésseis no meu sonho acompanhar-me
Artistas milagrosos da harmonia
Ouvireis em primeiro e junto alarme
O elegante castelo de Leiria...

Depois, o brando e donairoso Lis,
Seus marachões, seus salgueirais e noras,
Os miradouros onde D. Dinis
As estrofes singelas e sonoras

Oferecia à «flor de verde pino»...
Os arcos e os balcões do burgo antigo...
Os sinos...(Um irmão em cada sino,
Tão íntimo, tão nosso, tão amigo!...)

A capelinha de onde avisto as Cortes
De Xavier Cordeiro, senhoriais...
No vento inquieto, as Fontes,
Emanações sádicas dos pinhais...

Leiria toda, enfim, de canto a canto,
Joia de engaste lindo entre as mais lindas
Ouvireis, comigo, dizer: Quanto!
Oh! quanto nos honras! Sede bem-vindas!

O PERU DOS OLIVAIS

I

Adorada perua:
Há dias que, diante do patrão,
ando de rua em rua
não sei por que razão.
Como tu viste, o homem resolveu
fazermos em Lisboa a consoada,
para me divertir, suponho eu.
Porém, se adivinhasse esta estopada,
tinha-lhe dito logo que não vinha,
tanto mais, tanto mais, não vindo tu,
minha peruazinha,
por quem morre de amor o teu peru.
É para ver a terra? Não percebo,
pois mal ergo a cabeça para o ar
trabalha logo a cana do mancebo
e continuo a andar, a andar, a andar…
Às vezes lá paramos, mas estranho
também estas paragens,
porque me agarram certas personagens,
tomam-me o peso, notam-me o tamanho
e até (Deus me perdoe se ouço mal!)
discutem o valor,
como se eu fosse, amor,
uma coisa venal!

Adeus. Com isto não te enfado mais.
Havendo novidades
escrevo. Mil saudades
e beijos do
Peru dos Olivais

II

Meu anjo… Escrevo agora na cozinha
duma senhora muito delicada,
que me tem dado esplêndida papinha
assim como a criada.
Há pouco ainda (ora imagina, filha!)
deram-me até um copo de Bucelas
que me adoçou muitíssimo as goelas
e é uma verdadeira maravilha,
mas Deus queira, Deus queira
como só bebo água lá em casa,
que não me faça mal à mioleira
e que eu não fique com um grão na asa.
Amanhã te direi o que é passado.
Recebe mil bicadas cordiais
do teu apaixonado
Peru dos Olivais

III

Querida. Água a ferver… Uma panela
ao pé dum alguidar… tenho receio…
Fala-se em cabidela
e em peru de recheio…
Afia-se uma faca… Ó céus! Que horror!
O monco já me cai… Nunca supus…
Que é isto meu amor?
Ai Jesus! Ai Jesus!
Já tenho as pernas presas…
Tolda-se a vista… Engasgo-me… Agonizo…
Tremem-me as miudezas…
Turva-se-me o juízo…
Adeus: Recebe o último glu-glu
e os corais
do in… fe… liz
Pe… rú… dos O… li…vais

Couto de Magalhães (Como a Noite Apareceu)


No princípio não havia noite; havia dia somente, em todo o tempo. A noite estava adormecida no fundo das águas. Não havia animais; todas as coisas falavam. A filha da Cobra Grande, contam, casara-se com um moço. Este moço tinha três fâmulos fiéis. Um dia chamou ele os três fâmulos e lhes disse: "Ide passear, porque minha mulher não quer dormir comigo."

Os fâmulos foram-se, e então ele chamou sua mulher para dormir com ele. A filha da Cobra Grande respondeu-lhe: "Ainda não é noite". O moço disse-lhe: "Não há noite, somente há dia". A moça falou: "Meu pai tem a noite. Se queres dormir comigo, manda buscá-la, lá pelo grande rio".

O moço chamou os três fâmulos; a moça mandou-os à casa de seu pai para trazerem um caroço de tucumã. Os fâmulos foram, chegaram em casa da Cobra Grande, esta lhes entregou um caroço de tucumã muito bem fechado, e disse-lhes: "Aqui está; levai-o. Eia! Não os abrais, senão todas as coisas se perderão".

Os fâmulos foram-se, estavam ouvindo barulho dentro do coco de tucumã, assim: ten, ten, len… xi… era o barulho dos grilos e dos sapinhos que cantam de noite. Quando já estavam longe, um dos fâmulos disse a seus companheiros: "Vamos ver que barulho será este". O piloto disse: "Não, do contrário nos perderemos. Vamos embora, eia, rema!" Eles foram-se e continuaram a ouvir aquele barulho dentro do coco de tucumã, e não sabiam que barulho era.

Quando já estavam muito longe, ajuntaram-se no meio da canoa, acenderam fogo, derreteram o breu que fechava o coco, e o abriram. De repente tudo escureceu. O piloto então disse: "Nós estamos perdidos; e a moça, em sua casa, já sabe que abrimos o coco de tucumã!" Eles seguiram viagem. A moça, em sua casa, disse então a seu marido: "Eles soltaram a noite; vamos esperar a manhã".

Então todas as coisas que estavam espalhadas pelo bosque, se transformaram em animais e em pássaros. As coisas que estavam espalhadas pelo rio, se transformaram em patos e peixes. Do paneiro gerou-se a onça; o pescador e a sua canoa se transformaram em pato; de sua cabeça nasceram a cabeça e bico do pato. A filha da Cobra Grande, quando viu a estrela d'alva, disse a seu marido: "A madrugada vem rompendo, vou dividir o dia da noite". Então ela enrolou um fio, e disse-lhe: "Tu serás cujubim". Assim, ela fez o cujubim, pintou a cabeça do cujubim de branco, com tabatinga, pintou-lhe as pernas de vermelho com urucum, e então disse-lhe: "Cantarás para todo sempre, quando a manhã vier raiando". Ela enrolou o fio, sacudiu cinza em riba dele, e disse: "Tu serás inambu, para cantar nos diversos tempos da noite, e de madrugada".

De então para cá todos os pássaros cantaram em seus tempos, e de madrugada para alegrar o princípio do dia.

Quando os três fâmulos chegaram, o moço disse-lhes: "Não fostes fiéis; abristes o caroço de tucumã, soltastes a noite e todas as coisas se perderam, e vós também que vos metamorfoseastes em macacos, andareis para todo o sempre pelos galhos dos paus". A boca preta, e a risca amarela que eles têm no braço, dizem que é ainda o sinal do breu que fechava o caroço de tucumã, que escorreu sobre eles quando o derreteram.

Fonte:  

domingo, 21 de julho de 2019

Trova 356 - Sonia Regina Rocha Rodrigues


Carlos Drummond de Andrade (Ladrões no Terraço)


— Tem paciência, filhinha, já decidi. Hoje vamos ao cinema de qualquer maneira.

— Mas, Dago, ainda não preparei os sanduíches para o aniversário do Guilherme…

— O Guilherme que pare de fazer anos e de dar festa com sanduíches divinos-maravilhosos. Ao cinema!

— E o Barriga? A gente vai deixar o garoto sozinho em casa? Ele é de morte.

— Chame o Italianinho do 301 para fazer companhia a ele. Assim o Barriga sossega. Ao ci-ne-ma!

D. Neusa sempre achando razões para ficar em casa, trabalhando. Cinema ali pertinho, inaugurado há um mês, filme de Buñuel chamando, marido insistindo. E quando marido escande sílabas, mesmo sendo ótimo como aquele, paira ameaça sobre o casamento. Ela cedeu.

Italianinho acudiu pressuroso ao chamado. No 301, também os pais haviam saído, e a patota de adolescentes curtia uma festinha à base de som incrementado e luzes psicodélicas, de que, obviamente, estavam excluídos os menores de doze anos.

— Que que a gente vai fazer?

— Atirar setas e bolinhas na rua. Bolinhas nos carecas, e setas nas perucas das coroas.

— Só nos carecas e nas coroas, não. Em todo mundo.

— Tá.

Subiram os dois, de mansinho, pela escada de serviço, munidos de zarabatanas, bolinhas, setas e muita disposição. A chuvinha ranzinza peneirava, eles nem sentiam. E começou o ataque silencioso na noite. Não tão silencioso, pois corriam de um lado para outro, esbarrando aqui e ali, emitindo ruídos abafados de prazer quando atingiam o alvo — dava para perceber que alguma coisa de estranho se passava no terraço.

Juju, de ouvido afiado, num instante em que o som amortecia na festa, correu ao apartamento de seu Ivo:

— Está na hora da batida.

— Que batida? Vocês prometeram que só haveria chopinho. E o síndico não permite festa de brotos com batida.

— O senhor não morou. Batida para pegar ladrão. Tem gente mexendo no terraço. Escute.

Escutou. Mexiam e paravam. Mexiam e paravam. Ladrões, na certa. Havia dias que vinham frequentando os terraços de edifícios daquele trecho de rua, “limpando” antenas, canos, torneiras, roupas, tudo. Alertados, síndicos e condôminos planejaram um serviço de vigilância. Ao menor sinal suspeito, os próprios moradores de cobertura dariam caça aos larápios, já que os vigias noturnos, como se sabe, têm sono pesado.

Seu Ivo achou prudente telefonar para os moradores das coberturas vizinhas, que compareceram imediatamente. Subiram os três, cada um de calibre 45 em punho. Entreaberta a porta do terraço, detiveram-se no penúltimo degrau, à espreita. Sentindo aproximação de gente (ladrões, sem dúvida), Barriga e Italianinho, tomados de pânico, meteram-se na casa de máquinas. Ladrões avançando, ladrões se escondendo dos outros ladrões — era a situação, debaixo de chuva mansa, durante um silêncio de dez minutos.

— Não vão ficar a noite inteira na casa de máquinas — ponderou seu Ivo. — Esperemos.

E continuaram os três, respiração suspensa, mão no gatilho, aguardando.

Concluindo que se tratava de alarme falso, Italianinho e Barriga foram saindo de leve, pé ante pé, agachados junto à mureta.

— É agora — comandou baixinho seu Ivo. — Vamos atirar pra valer, mas nos pés.

As armas foram baixando lentamente, para a pontaria. Súbito, seu Ivo exclamou, trêmulo, gago:

— Não atirem! Não é o que nós pensamos!

— Está doido, seu…?

— Doido nada. São os moleques!

Seu Ivo reconhecera o Barriga, pelo volume abdominal característico. Entraram rápido no terraço, em direção contrária à dos meninos, para pegá-los desprevenidos. Os dois tentaram fugir, no passo de ema selvagem. Mas Italianinho sentiu uma coisa úmida e cálida escorrer-lhe pelo short, e quedou-se, desamparado, enquanto Barriga dava no pé.

Os homens estavam pálidos.

— Quase que nós matávamos esses diabos!

Voltando do cinema, d. Neusa comentou:

— Viu, Dago? Viu no que dá essa mania de ir ao cinema? A gente paga para ver Catherine Deneuve de perna cortada, e na volta, por pouco, encontra nosso filhinho defunto!

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas.

José Albano (Sonetos e Trovas Avulsas)


SONETO

Poeta fui e do áspero destino
Senti bem cedo a mão pesada e dura.
Conheci mais tristeza que ventura
E sempre andei errante e peregrino.

Vivi sujeito ao doce desatino
Que tanto engana mas tão pouco dura;
E inda choro o rigor da sorte escura,
Se nas dores passadas imagino.

Porém, como me agora vejo isento
Dos sonhos que sonhava noite e dia
E só com saudades me atormento;

Entendo que não tive outra alegria
Nem nunca outro qualquer contentamento
Senão de ter cantado o que sofria.

SONETO V

Senhor, assim pregado ao duro lenho,
Não negas a ninguém o teu socorro;
A mim, pois, que de mágoa vivo e morro,
Dá-me o brando sossego que não tenho.

Em te amar sempre ponho todo o empenho,
Vendo do puro sangue o frio jorro,
E com suspiros aos teus braços corro
E ao pé da santa cruz deitar-me venho.

Olha como foi triste o meu destino,
Sem esperanças quase e sem venturas,
Apenas com os sonhos que imagino.

Lembra-te destas dores tão escuras,
De que tu és o meu Pastor divino
E de que eu sou a ovelha que procuras.

SONETO DA DOR

Mata-me, puro Amor, mas docemente,
Para que eu sinta as dores que sentiste
Naquele dia tenebroso e triste
De suplício implacável e inclemente.

Faze que a dura pena me atormente
E de todo me vença e me conquiste,
Que o peito saudoso não resiste
E o coração cansado já consente.

E como te amei e sempre te amo,
Deixa-me agora padecer contigo
E depois alcançar o eterno ramo.

E, abrindo as asas para o etéreo abrigo,
Divino Amor, escuta que eu te chamo,
Divino Amor, espera que eu te sigo.

SONETO DA SAUDADE

Trato só da perpétua saudade
Que mora neste peito desditoso
Mas o queixume derramar não ouso
Com medo de que aos outros desagrade.

Se entanto de gemer me dissuade
O coração, tão cedo desgostoso,
Ordena e manda Amor que sem repouso
Tudo que sofro em canto se traslade.

Oh! triste verso meu, pois vais partindo
Por este baixo e escuro em que ando
Para espalhar o meu tormento infindo.

Ah! seja o teu destino manso e brando.
Porém, se te alguém ler acaso rindo,
Dize-lhe então que te escrevi chorando!

SONETO DO AMOR

Amar é desejar o sofrimento
E contentar-se só de ter sofrido,
Sem um suspiro vão, sem um gemido,
No mal mais doloroso e mais cruento.

É vagar desta vida tão isento,
É deste mundo enfim tão esquecido,
É pôr o seu cuidar num só sentido,
É todo o seu sentir num só tormento.

É nascer qual humilde carpinteiro,
De rudes pescadores rodeado,
Caminhando ao suplício derradeiro.

É viver sem carinho nem agrado,
É ser enfim vendido, por dinheiro,
E entre ladrões morrer crucificado.

SONETO DO SONHO

Doce me foi viver, quando sonhava
E entre esperanças e ilusões sorria,
Antes de conhecer a dor sombria
Cuja lembrança na alma inda se grava.

Naquele tempo não adivinhava
A pena sem igual que dura um dia
Mas sempre faz surgir a fonte fria
Que os saudosos olhos banha e lava.

Cansado coração, tu nunca viste
Outro que tanto gozo e mágoa sente,
Outro que a tanto bem e mal resiste.

Amor te castigou severamente,
Pois foste, uma só vez apenas, triste
E nunca mais tornaste a ser contente.

Trovas
(o poeta denominou Cantigas)

VIII

As estrelas no alto abrigo,
mais alegres, fico a vê-las
todas as vezes que digo
que os teus olhos são estrelas.

X

A pensar-me às vezes ponho,
e não posso compreender,
porque sempre acaba o sonho
quando começa o prazer.

XII

Há no coração sombrio
um eco brando e sonoro
que adormece quando rio
e desperta quando choro.

XIII

Disto enfim já não duvido,
no mundo o maior cuidado
vem do bem que foi perdido
antes de ser alcançado.

Monteiro Lobato (Um Suplício Moderno)


Todas as crueldades de que foi useira a Inquisição para reduzir heréticos, as torturas requintadas da “questão” medieval, o empalamento otomano, o suplício chinês dos mil pedaços, o chumbo em fusão metido a funil gorgomilos adentro — toda a velha ciência de martirizar subsiste ainda hoje encapotada sob hábeis disfarces. A humanidade é sempre a mesma cruel chacinadora de si própria, numerem-se os séculos anterior ou posteriormente a Cristo. Mudam de forma as coisas; a essência nunca muda. Como prova denuncia-se aqui um avatar moderno das antigas torturas: o estafetamento.

Este suplício vale o torniquete, a fogueira, o garrote, a polé, o touro de bronze, a empalação, o bacalhau, o tronco, a roda hidráulica de surrar. A diferença é que estas engenharias matavam com certa rapidez, ao passo que o estafetamento prolonga por anos a agonia do paciente.

Estafeta-se um homem da seguinte maneira: o Governo, por malévola indicação dum chefe político, hodierno sucedâneo do “familiar” do Santo Ofício, nomeia um cidadão estafeta do correio entre duas cidades convizinhas não ligadas por via férrea.

O ingênuo vê no caso honraria e negócio. É honra penetrar na falange gorda dos carrapatos orçamentívoros que pacientemente devoram o país; é negócio lambiscar ao termo de cada mês um ordenado fixo, tendo arrumadinha, no futuro, a cama fofa da aposentadoria.

Note-se aqui a diferença entre os ominosos tempos medievos e os sobre-excelentes da democracia de hoje. O absolutismo agarrava às brutas a vítima e, sem ter-te nem hábeas corpus, trucidava-a; a democracia opera com manhas de Tartufo, arma arapucas, mete dentro rodelas de laranja e espera aleivosamente que, aponte sua, caia no laço o passarinho. Quer vítimas ao acaso, não escolhe. Chama-se a isto — arte pela arte...

Nomeado que é o homem, não percebe a princípio a sua desgraça. Só ao cabo de um mês ou dois é que entra a desconfiar; desconfiança que por graus se vai fazendo certeza, certeza horrível de que o empalaram no lombilho duro do pior matungo das redondezas, com, pela frente, cinco, seis, sete léguas de tortura a engolir por dia, de mala postal à garupa.

Eis as puas do aparelho de tormento, as tais léguas! Para o comum dos mortais, uma légua é uma légua; é a medida duma distância que principia aqui e acaba lá. Quem viaja, feito o percurso, chega e é feliz.

As léguas do estafeta, porém, mal acabam voltam “da capo”, como nas músicas. Vencidas as seis (suponhamos um caso em que sejam só seis) renascem na sua frente de volta. É fazê-las e desfazê-las. Teia de Penélope, rochedo de Sísifo, há de permeio entre o ir e o vir a má digestão do jantar requentado e a noite maldormida; e assim um mês, um ano, dois, três, cinco, enquanto lhes restarem, a ele nádegas e ao sendeiro lombo.

Quando cruza um viandante a jornadear, morde-o a inveja: aquele breve “chegará”, ao passo que para o estafeta tal verbo é uma irrisão. Mal apeia, derreado, com o coranchim em fogo, ao termo dos trinta e seis mil metros da caminheira, come lá o mau feijão, dorme lá a má soneca e a aurora do dia seguinte estira-lhe à frente, à guisa de “Bom dia!”, os mesmos trinta e seis mil metros da véspera, agora espichados ao contrário...

Breve o animal, pisado, dá de si, fraqueia. Já os topes o cavaleiro galga a pé. Não possui meios de adquirir outra montada. O ordenado vai-se-lhe em milho e “rapador” para a alimária, água de sal para os semicúpios e mais remédios às pisaduras de ambos, cavalgante e cavalgado. Não sobeja sequer para roupa.

Dá-lhe o Estado — o mesmo que custeia enxundiosas taturanas burocráticas

a contos por mês, e baitacas parlamentares a duzentos mil-réis por dia —, dá-lhe o generoso Estado... cem mil-réis mensais. Quer dizer, “um real” por nove braças de tormento. Com um vintém paga-lhe trezentos e trinta metros de suplício. Vem a sair a sessenta réis o quilômetro de martírio. Dor mais barata é impossível.

O estafeta entra a definhar de canseira e fome. Vão-se-lhe as carnes, as bochechas encovam, as pernas viram parênteses dentro dos quais mora a barriga do desventurado rocim.

Além das calamidades fisiológicas, econômicas e sociais, chovem-lhe em cima as meteorológicas. O tempo inclemente não lhe poupa judiarias.

No verão não se dói o sol de assá-lo como se assam pinhões nas cinzas. Se chove, de nenhuma gota se livra. Pelos fins de maio, à entrada do frio, é entanguido como um súdito de Nicolau exilado nas Sibérias que devora as léguas infernais. No dia de são Bartolomeu, agarrado de unhas à crina da escanzelada égua, é por milagre que não os despeja a ambos, perambeiras abaixo, o endemoninhado vento.

O patrão-Governo pressupõe que ele é de ferro e suas nádegas são de aço; que o tempo é um permanente céu com “brisas fagueiras” ocupadas em soprar sobre os caminhantes os olores da “balsamina em flor”.

Pressupõe ainda que os cem mil-réis do salário são uma paga real de lamber as unhas. E, nestas angelicais pressuposições, quando há crises financeiras e lhe lembram economias, corta seus cinco, seus dez mil-réis no pingue ordenado, para que haja sobras permitidoras de ir à Europa um genro em comissão de estudos sobre “a influência zigomática do periélio solar no regime zaratústrico das democracias latinas”.

E assim o exército dos estafetas, dia a dia mais encanifrado, encalacrado de dívidas, enchagado de pisaduras, ao sol de dezembro ou à garoa entanguente de junho, trota, trota sem cessar, morro acima, morro abaixo, por atoleiros e areões, caldeirões e escorregadouros, sacudido pela miseranda cavalgadura que de tanto padecer, coitada, já nem jeito de cavalo tem.

O lombo delas é todo uma chaga viva; as costelas, um ripado. Caricaturas contristadoras do nobre Equus, um dia rebentam de fome, exaustas, a meio de viagem.

O estafeta toma às costas os arreios, a mala, e conclui a caminheira a pé. Nesse dia chega fora de horas, e o agente do correio oficia ao centro sobre a “irregularidade”.

O centro move-se; faz correr um papelório através de várias salas onde, comodamente espapaçada em poltronas caras, a burocracia gorda palestra sobre espiões alemães. Depois de demorada viagem o papelório chega a um gabinete onde impa em secretária de imbuia, fumegando o seu charuto, um sujeito de boas carnes e ótimas cores. Este vence dois contos de réis por mês; é filho de algo; é cunhado, sogro ou genro de algo; entra às onze e sai às três, com folga de permeio para uma “batida” no frege da esquina.

O canastrão corre os olhos mortiços de lombeira por sobre o papel e grunhe:

— Estes estafetas, que malandros!

E assina a demissão daquele a bem do serviço público.

(E se isso não acontece, acontece pior. Certa vez o agente do correio duma cidadezinha paulista oficiou ao centro queixando-se do estafeta. O centro respondeu autorizando-o a “punir com severidade o faltoso”. O agente medita a sério sobre o caso; depois, mostrando o ofício ao estafeta, e com muita dor de coração, ferra-lhe em nome do Governo a maior sova de chicote de que há memória no lugar. Em seguida oficia ao centro dando conta do desempenho da missão e declarando que o serviço ficaria interrompido por uma quinzena, visto o paciente estar de cama, a curar-se com salmoura...)

O supliciado, posto no olho da rua, sem saúde, sem cavalo, sem nádegas, coberto de dívidas, com o fígado e mais vísceras fora do lugar em virtude do muito que “chacoalharam”, vê-se logo rodeado pela chusma de credores, ávidos como urubus de charqueada. Como está nu, mais nu que Jó, não pode pagar a nenhum — e ganha fama de caloteiro.

— Parecia um homem sério, e no entanto roubou-me cinco alqueires de milho — diz o da venda, calabrês gordo, enricado no passamento de notas falsas.

— Tomou-me emprestados 100 mil-réis para a compra de um cavalo, a jurinho de amigo (cinco por cento ao mês), já lá vão cinco anos, e por muito favor pagou-me o premiozinho e deu os arreios por conta. Que ladrão! — diz o onzeneiro, sócio do outro na nota falsa.

A loja de fazenda chora umas calças de algodão mineiro que lhe fiou em tempo. A farmácia, um quilo de sal-amargo falsificado. Abeberado de insultos, o mártir só vê pela frente uma saída: fincar o pé na estrada e fugir... fugir para uma terra qualquer onde o desconheçam e o deixem morrer em paz.

Destarte, o moderno suplício do estafetamento, além de charquear as carnes duma criatura humana limpa de crimes, dá-lhe ainda de lambuja uma bela mortezinha moral. Tudo isto a fim de que não falte aos soletradores de tais e tais bibocas do sertão o pábulo diário da graxa preta em fundo branco, por meio do qual se estampam em língua bunda as facadas que Pé Espalhado deu em Camisa Preta, o queijo que furtou Baianinho ao Manoel da Venda, o romance traduzido de Jorge Ohnet, o salvamento da pátria pela alta volataria nacional, o palavreado gordo das ligas disto e daquilo, a descoberta de espiões onde nada há que espiar, a policultura, o zebu, o analfabetismo, o aliadismo, o germanismo, as potocas da Havas e quanta papalvice grela por massapês e terras roxas deste país das arábias.

A política do coronel Evandro em Itaoca deu com o rabo na cerca desde que em tal pleito o competidor Fidêncio, também coronel, guindou a cotação dos votos de gravata a quinhentos mil-réis, e a dos votos de pé no chão a dois parelhos de roupa, mais um chapéu.

O primeiro ato do vencedor foi correr a vassoura do Olho da Rua em tudo quanto era olhodarruável em matéria de funcionalismo público. Entre os varridos estava a gente do correio, inclusive o estafeta, para cuja substituição inculcou-se ao Governo o Izé Biriba.

Era este Biriba um caranguejo humano, lerdo de maneiras e atolambado de ideias, com dois percalços tremendos na vida — a política e o topete.

O topete consistia num palmo de grenha teimosa em lhe cair sobre a testa, e tão insistente nisto que gastava ele metade do dia erguendo a mão esquerda à altura da fronte para, num movimento maquinal, botar pra arriba a crina rebelde. A política escusa dizer o que é.

Coligados ambos, topete e política comiam-lhe o tempo inteiro, de jeito a não lhe deixar folga nenhuma para o amanho do sítio, que, afinal, roído pelo cupim da hipoteca, lá foi parar nas unhas dum onzeneiro ladrão.

Montou em seguida botequim mas faliu. Enquanto Biriba arrumava o topete os fregueses surrupiavam-lhe os mata-bichos; e nas cavaqueiras políticas os correligionários, de passo que expeliam diatribes contra o governo, sorviam capilés refrescantes e mascavam bolinhos de peixe por conta da vitória futura.

Além do topete tinha Biriba o sestro do “sim senhor” alçado às funções de vírgula, ponto e vírgula, dois-pontos e ponto final de todas as parvoiçadas emitidas pelo parceiro; e às vezes, pelo hábito, quando o freguês parando de falar entrava a comer, continuava ele escandindo a “sim senhores” a mastigação do bolinho filado.

Ao tempo da queda do outro e subida de sua gente, andava Biriba reduzido à conspícua posição de “fósforo” eleitoral. No pleito trabalhara como nenhum. Deram-lhe as piores missões — acuar eleitores tabaréus embibocados nos socavões das serras, negociar-lhes a consciência, debater preço de votos, barganhá-los com éguas lazarentas e provar aos desconfiados, com argumentos de cochicho ao ouvido, que o Governo estava com eles.

Após a vitória sentiu pela primeira vez um gozo integral de coração, cabeça e estômago.

Vencer! Oh, néctar! Oh, ambrosia incomparável!

O nosso homem regalou as vísceras com o petisco dos deuses. Até que enfim os negrores da vida de misérias lhe alvorejavam em aurora. Comer à farta, serrar de cima... Delícias do triunfo!

Que lhe daria o chefe?

No antegozo da pepineira iminente, viveu a rebolar-se em cama de rosas até que rebentou sua nomeação para o cargo de estafeta.

Sem queda para aquilo, quis relutar, pedir mais; na conferência que teve com o chefe, entretanto, as objeções que lhe vinham à boca transmutavam-se no habitual “sim senhor”, de modo a convencer o coronel de que era aquilo o seu ideal.

— Veja, Biriba, quanto vale a felicidade! Pilha um empregão! Vai Regino para agente e você para estafeta.

O mais que ele pôde alegar foi que não tinha cavalgadura.

— Arranja-se — resolveu de pronto o coronel. — Tenho lá uma égua moura legítima, de passo picado, que vale duzentos mil-réis. Por ser para você, dou-a por metade. O dinheiro? É o de menos. Você toma-o de empréstimo a Leandrinho. Arranja-se tudo, homem.

O arranjo foi adquirir Biriba uma égua trotona pelo dobro do valor, com dinheiro tomado a três por cento ao tal Leandro, que outra coisa não era senão o testa de ferro do próprio Fidêncio. Destarte, carambolando, o matreiro chefe punha a juros o pior sendeiro da fazenda, além de conservar pelo cabresto da gratidão ao idiota estafetado.

Iniciou Biriba o serviço: seis léguas diárias a fazer hoje e a desfazer amanhã, sem outra folga além do último dia dos meses ímpares.

Inda bem se fora devorar as léguas na só companhia da chupada mala postal. Mas não lhe saiu serena assim a empresa. Como Itaoca não passasse de mesquinho lugarejo empoleirado no espinhaço da serra e desprovido de tudo, não transcorria vez sem que os amigos políticos não viessem com encomendas a aviar na cidade. À hora de partir surgiam aproveitadores com listinhas de miudezas, ou negras com recados.

— Sinhá disse assim pra suncê comprar três carretéis de linha cinquenta, um papel de agulhas, uma peça de cadarço branco, cinco maços de grampo miúdo e, se sobejar um tostão, pra trazer uma bala de apito pro seu Juquinha.

Todos aqueles artigos existiam em Itaoca, um tantinho mais caros, porém; o encomendá-los fora visava apenas à economia do tostão da bala de apito.

— Sim senhor, sim senhor!...

Não lhe escapava da boca outro som, embora o exasperasse a contínua repetição do abuso.

Além das pequenas encomendas, pouco trabalhosas, surgiam outras de vulto, como levar um cavalo arreado ao senhor Fulano que vinha em tal dia, acompanhar a mulher de Etcetrano, e que tais. Tibúrcia, cozinheira preta do coletor, cada vez que ia de férias descansar à cidade, era Biriba o indicado para conduzi-la.

Foi como o conheci, guardando cesta às amazonas. De viagem para Itaoca, a meio caminho topo num homem encavalgado na mais avariada égua que jamais meus olhos viram. À garupa iam malas do correio e vários picuás; no santo-antônio, mais picuás além duma vassoura nova enganchada nos arreios com a palha para cima. Estava parado, em atitude idiotizada, segurando pelo cabresto um cavalinho de silhão. Abordei-o, pedindo fogo. Aceso o cigarro, indaguei de quem montava a cavalgadura vazia.

— “Não vê” que estou acompanhando a dona Engrácia, que é parteira em Itaoca. Ela apeou um bocadinho e...

Ouvi rumor atrás: saía do mato uma mulheraça rúbida, de saias tufadas de goma, tendo na cabeça um toucadinho coevo de Sua Majestade Fidelíssima... Para não vexá-la pus-me a caminho, não sem, voltando a cara de soslaio, regular-me com os apuros do estafeta para entalar nas andilhas as cinco arrobas da parteira aliviada.

E descomposturas...

— Seu Biriba, não foi linha quarenta que eu encomendei. O senhor parece bobo!

Quando a fazenda era má:

— Não viu que a chita desbotava? Que moda!

Doía-lhe, sobretudo, carretear para a execrável gente da oposição. O coronel contrário não se pejava de por intromissão de terceiro, neutro ou oposicionista encapotado, abusar da boa-fé do mártir. Lembrava-se Biriba, com dor de alma, de um bode de raça que lhe dera grandes trabalhos pelo caminho — e várias marradas de lambuja; afinal, chegando, verificou que vinha para o inimigo.

Toda gente gozou do caso, entre espirros de riso e galhofa.

— É um pax-vóbis Biriba! Trazer o bode da oposição! Quiá! quiá! quiá! Estas e outras foram-lhe azedando os fígados e as vísceras circunvizinhas.

Biriba emagreceu. Biriba amarelou.

A égua, coitada, perdeu a feição cavalar. Seu lombo selara em meia-lua, de modo que por um nadinha não raspavam o chão os pés do cavaleiro. Montado, Biriba afundava. Sua cabeça caía quase ao nível duma linha tirada da anca às orelhas da égua. Horrendamente pisada, trazia a bicha nos olhos permanentes lágrimas de dor; mas em vez de tanta mazela mover ao dó o coração dos itaoquenses, regalava-os, e eram chufas sem fim e piadas idiotas acerca do “Estafeta da Triste Figura mais a sua Bucéfala”, como os batizou um engraçado local.

Lazarento como eles, só o Cunegundes, cão sem dono, coberto de sarna, que perambulava a esmo pela cidade, fugindo a moscas e pontapés. Pois não lhe mudaram o nome para Biribinha? Cachorrada!

Não tardou muito viesse o Governo dar sua volta ao torniquete, cortando dez mil-réis no ordenado dos estafetas — para salvar-se em certa ocasião de apuros financeiros. E salvou-se, esta é que é!...

A roupa no fio. À entrada das chuvas uma alma caridosa deu-lhe uma velha capa de borracha; mas no primeiro aguaceiro verificou Biriba que tal capote vazava como peneira, de modo a piorar-lhe a situação com a sobrecarga dum panejamento absorvedor de litros de água.

Biriba, perdida a paciência, murmurou.

Ai! Soube-o logo o chefe e fê-lo vir a contas.

— É certo que o senhor me anda arrenegando do emprego que lhe demos? Queria, acaso, ser eleito senador ou vice-presidente? Um pedaço de porcalhão que andava aí lambendo embira, morre não morre de fome, passa, por generosidade nossa, a ocupar um cargo federal com ordenado relativamente bom (aqui Biriba tossiu um... “Sim senhor”), encontra todas as facilidades, recebe um bom animal e ainda se queixa? Que quer então Vossa Excelência?

Biriba entumeceu-se de coragem e declarou querer uma coisa só: a demissão. Estava doente, surradíssimo, ameaçado de perder de um momento para outro a égua e as nádegas. Queria mudar de vida.

— Muda-se, então, de vida assim do pé pra mão? Quer abandonar os amigos? E a disciplina partidária onde fica, meu caro palerma?

Não convinha a ninguém a saída do Biriba. Quem mais serviçal? Lembravam-se dos estafetas anteriores, malcriados, inimigos de trazer um papel de agulha fosse para quem fosse. Não sairia. Itaoca impunha-lhe o sacrifício de ficar.

Mas a tortura do diário chocalhar por sete léguas das vísceras de Biriba acabou por desconjuntar nele o cimento da lealdade partidária. O mártir abriu os olhos. Lembrou-se com saudades dos ominosos tempos do coronel Evandro, das delícias do botequim e até do calamitoso período da degradação “fosfórica”. Piorara após o triunfo, não havia dúvida.

Este livre exame de consciência — crede-me — foi o início da queda do coronel Fidêncio em Itaoca. Biriba, o firme esteio, apodrecia pelo nabo; viria abaixo, e com ele a cumeeira do pardieiro político. A víbora da traição armara ninho em sua alma.

Como o novo pleito se aproximasse, nova vitória lhe seria novo termo de martírio. Biriba ponderou de si para sua égua que a salvação de ambos estava na derrota. Demitiam-no, e ele, veterano e mártir do fidencismo, continuaria com jus ao apoio do partido, sem padecer por via coccigiana o contato odioso das sete horas diárias de socado.

Deliberou trair.

Na véspera da eleição incumbiu-o Fidêncio de trazer da cidade um papel importantíssimo para o tribofe das urnas. Sei lá o que era! Um “papel”. A palavra “papel” dita assim em tom de mistério traz no bojo “coisas”...

Fidêncio frisou a gravidade da incumbência — a maior prova de confiança jamais dada por ele a um cabo eleitoral.

— Veja lá! A nossa sorte está nas suas mãos. Isto é que é confiança, hein? Partiu Biriba. Recebeu na cidade o “papel” e rodou para trás. A meio caminho, porém, tomou por uma errada, foi ter à biboca dum negro velho, soltou a égua, pegou de prosa com o gorila. Caiu a noite: Biriba deixou-se ficar. Alvoreceu o dia seguinte: Biriba quieto. Dez dias se passaram assim. Ao cabo, arreou a égua, montou e botou-se para Itaoca como se nada houvera acontecido.

Foi um assombro a sua aparição. Baldadas as tentativas para apanhá-lo no dia do pleito e nos posteriores, deram-no como papado pelas onças, ele, égua, mala postal e “papel”. Vê-lo agora surgir sãozinho da silva foi um abrir de boca e um pasmar à vila inteira. Que houve? Que não houve?

A todas as perguntas Biriba armava na cara a suprema expressão da idiotia. Nada explicava. Não sabia de nada. Sono cataléptico? Feitiço? Não compreendia o sucedido. Afigurava-se-lhe ter partido na véspera e estar de volta no dia certo.

Ficaram todos maravilhados, com asníssimas caras.

Fidêncio delirava na cama, com febre cerebral. Perdera a eleição redondamente.

— Derrota fedida — arrotavam os vencedores, atochando foguetes de assobio.

Em consequência do inexplicável eclipse do estafeta senhoreou-se do rebenque o ex-ominoso Evandro. Começou a derrubada. O olho da rua recebeu em seu seio tudo quanto cheirava a fidencismo. A vassoura da demissão, porém, poupou a... Biriba.

O novo cacique aproximou-se dele e disse:

— Demiti toda a canalha, Biriba, menos a você. Você é a única coisa que se salva da quadrilha de Fidêncio. Fique sossegado, que do seu lugarzinho ninguém o arranca, nem que o céu chova torqueses.

Pela derradeira vez em Itaoca Biriba balbuciou o “Sim senhor”. À noite deu um beijo no focinho da égua e saiu de casa pé ante pé. Ganhou a estrada e sumiu.

E nunca mais ninguém lhe pôs a vista em cima...

Fonte:
Monteiro Lobato. Urupês. atualização ortográfica: Iba Mendes.