segunda-feira, 22 de abril de 2019

Mia Couto (A Chuva Pasmada) A Viagem do Avô - O Suspirar do Fumo



  
A VIAGEM DO AVÔ

      Entrámos em casa, eu amparando a minha mãe. Na sala, meu velho se entregava aos tratamentos da tia. Ela lhe aplicava limpezas e curativos. Minha mãe libertou-se com firmeza dos meus braços e avançou para junto do meu pai, retirando os panos e ligaduras das mãos da irmã.

      - Deixe, eu é que faço isso!

      A tia se arredou. Daí a um momento, porém, ela regressou ao cadeirão onde meu pai estava recebendo tratos e inquiriu a minha mãe:

      - Posso ajudar, mana?

      - Ajudar, pode.

      Deixei as duas entretidas, cuidando de meu pai. Dirigi-me ao alpendre, para confirmar se meu avô já dera conta de si. Mas a sua cadeira permanecia vazia. Olhei para o céu, não fosse ter sido arrebatado por alguma brisa. Até que reparei no seu vulto, por entre a cortina do chuvisco. Lá estava ele, mais lá em baixo, junto ao poço. Parecia debruçado sobre a canoa como se a empurrasse.

      - Meu neto, me ajude a levar este barco até ao rio.

      O velho resvalou com toda a sua ausência de peso. Tombou como uma folha. Então, murmurou:

      - Eu sabia desde o começo: esse chuvisco era ela...

      - Ela?

      - Era Ntoweni que me estava chamando.

      - Não diga isso, avô.

      - É Ntoweni que me está a chamar. Eu queria ficar um bocadinho mais, saborear um tempinho. Mas agora é já momento de eu ir, vamos empurrar o concho...

      - Não, avô. Esse concho não sai daqui.

      - Você não entende? Essa água que está suspensa, essa água não é nenhuma chuva.

      - Como não?

      - Essa água é Ntoweni. É ela que se mudou para o céu. E, pronto, agora acabou conversa. Me ajude a empurrar o barco...

      Recusei. Eu sabia o motivo desse pedido. Segurei o barco como se tivesse medo que, por força divina, ele resvalasse para o rio.

      - Esse barco não sai daqui, avô!

      - Mas qual é o seu medo? O rio não está seco?

      Eu já não tinha palavra. O soluço me amarrava a voz. O avô, então, mudou suas tonalidades. Tocou-me as mãos como sempre fizera quando pescávamos.

      - Eu não estou a partir, meu neto. Eu vou só ver o mar.

      - Mentira...

      - Juro, meu neto. Desta vez é que vou visitar o mar. Você sabe por que é que, antes, eu nunca fui lá?

      - Não, não sei.

      - Porque aquilo era uma partida desses artimanhosos da sua família. Uma partida para se verem livres de mim.

      - Como assim, avô?

      - Se eu fosse lá ao estuário, depois nunca mais poderia voltar

      - Não podia?

      - Me diga, meu neto. O estuário: não é lá que o rio termina?

      - Sim. é.

      - Então, se o rio termina, como é que eu poderia voltar?

      Eu ri-me. Ainda um riso triste. Meu avô estendeu-me o braço como se fizesse menção de me erguer do chão.

      - Vá, agora me ajude.

      Não sei que secreta força me fez aceder. Juntei músculo e tristeza para empurrar a canoa. Lentamente, meus pés se vincaram no chão, corpo jogado de encontro ao peso do barquinho. No início, ainda a embarcação foi cedendo. Mas logo ganhou um peso intransponível. Era demasiado para mim. Foi quando escutei a voz de meu pai:

      - Deixe que eu ajudo, meu filho.

      Os braços fortes dele se aplicaram no ventre da canoa. Ainda levei um tempo a ajustar-me ao espanto. Olhei o rosto do pai à procura de algo em seu olhar. Mas ele guardava o rosto, fixando a canoa. Depois voltei a aplicar-me no esforço e juntos conduzimos a embarcação para o leito seco.

      Chegados ao rio, exaustos, nos derramámos na areia. Estávamos cansados ou o cansaço era um modo de disfarçar a nossa tristeza? Perguntei, então:

      - Por que me ajudou a levar a canoa?

      - Eu não o ajudei a si, filho. Eu ajudei-me a mim.

      O braço sobre o meu ombro me dizia para sentar.

      Meu pai me queria confessar intimidades. Que o avô tinha falado com ele. E lhe mostrara como ele, o meu pai, não sendo o mais idoso era o mais envelhecido de todos nós. Porque era o mais desistido de tudo, o mais alheio ao alento e à crença. Aquela chuva se imobilizava junto ao solo? Pois também ele, o meu pasmado pai, tinha estancado junto à vida. O avô entendera o porquê da desistência de meu pai viver, o falir da sua esperança. O verdadeiro motivo daquela modorra não era ele ter estado, anos e vidas, fechado nas minas. Todo homem, afinal, está sempre saindo de um subterrâneo escuro. É por isso que tememos os bichos que vivem nas tocas -, partilhamos com eles esse mundo feito de trevas, segredos murmurados por demônios em chamas. O verdadeiro motivo de meu pai ter desistido era porque ele se pensava como o centro de si mesmo. Meu pai estava entupido de si próprio. Ele fora sufocado pelo seu umbigo.

      A solução era sair de dentro de si, arregaçar as mangas e os braços, arregaçar a alma inteira e tomar a dianteira sobre o destino.

      - Você já escavou no fundo da terra. Escave agora no céu.

      Foi assim que o avô falou. Meu pai entendeu, sem mais explicação. O avô queria a viagem. Na outra margem estava Ntoweni. Do outro lado do chuvisco estava um rio parado.

      A canoa e mais a viagem fariam a ponte que faltava.

      - A ponte entre o rio e a chuva? - perguntei.

      - A ponte entre eu e você, meu filho.

      Sim, porque a ponte entre ele e minha mãe já estaria refeita, a paixão renascida da cinza pela fagulha do ciúme.

      - Eu me sinto na boca da mina, espreitando a claridade. Sua mãe me dá à luz. É isso que eu sinto. Você lembra como dizia o avô?

      Dizia? Meu pai já falava do avô no passado. Abanei a cabeça em recusa desse tempo de verbo mais do que em resposta a meu pai.

      - O amor não é a semente. O amor é o semear. Era assim que o mais velho dizia.

      Nos erguemos, sem pressa, para subir a ladeira. Meu velho espiou-me o semblante para confirmar a minha tristeza.

      - Não fique triste, filho. Que tudo isso é um engano. Não é o morrer que é para sempre. O nascer é que é para sempre.

      E fomos buscar o avô. Trouxemo-lo nos braços como se ele fosse uma criança. Depois o deitámos no barco. Meu pai apontou a proa em direção ao mar. Eu coloquei os remos dentro da canoa. Mas ele devolveu-nos.

      - Não preciso. O remo sou eu mesmo...

O SUSPIRAR DO FUMO

      Regressámos, eu e meu pai, em silêncio. Nenhum de nós chorava. Mas nós estávamos em pranto, isso ambos sabíamos. O avô ficara dentro da canoa, ancorado no leito seco. Fingira adormecer, apenas para que acreditássemos que nada mais tínhamos que fazer junto dele.

      No caminho, meu pai e eu evitávamos trocar olhares. Subimos a ladeira como quem regressa de um cemitério. Perto de casa, de repente, foi como se esbarrássemos num silêncio. Um silêncio viscoso como a chuva suspensa. Os nossos olhares se cruzaram de espanto.

      - A fábrica!

      Os motores da fábrica tinham parado. As grandes chaminés já não vomitavam fuligens escuras.

      - Os fumos, pai, já não há fumos...

      - Foi o rio, foi o rio! - gritava meu pai.

      E ele estava certo. O rio derrotara a fábrica. Em nosso pensamento certeiro, tudo ganhava razão: a força da água é que alimentava as máquinas. O rio se extinguira, a fábrica desmaiara, os fumos desvaneciam.

      De súbito, deflagraram ventanias e cacimbos, gotas e poeiras, tudo se juntou num redemoinho imenso e subiu nos céus, em girações e vertigens, até se formarem nuvens espessas e cinzentas. Depois, ribombaram trovões tamanhos que eu vi o céu rasgando-se como um papel sem préstimo. E logo se iniciaram as mágicas cintilações no nosso teto. O zinco gargalhava com a chegada da chuva. A tia tombou sobre os joelhos e se benzeu:

      - Louvado seja Deus!

      Foi a alegria total. E pulávamos, dançávamos, festejávamos. As gotas espessas escorriam por nós como se daquele banho fôssemos nascendo. Surpreendeu-me meu pai, tocando-me no ombro:

      Vamos ao rio. Vamos agradecer, meu filho.

      Eu não sabia como se agradece a um rio. À medida, porém, que os meus pés procuravam caminho entre as rochas eu entendia: não era ao rio que iríamos agradecer. Era ao fio do tempo, esse costureiro da água que entrelaçava o pingo da chuva com a gota do rio.

      Já no fundo do vale, meu pai estacou junto a um tronco de árvore. Me aproximei. Ele estendeu o braço para encostar a sua mão sobre o meu peito.

      - Está a ouvir o pilão?

      - Sim, pai - menti.

      O braço dele ampliava o meu pulsar, a veia de um afluindo no corpo do outro. E ele voltou a falar:

      - Sempre foi esse o pilão que bateu por baixo do mundo.

      Então, ele me deu a mão e, assim, mão na mão, descemos até à margem. Eu tinha os olhos grudados nele quando inspirou fundo, como faria ao sair das profundezas da mina. Me senti um mineiro, ganhando fôlego na boca do planeta: também para mim o ar se estreava, límpido e cristalino. Razão tinha a tia, em suas rezas: cristais no céu...

      Meu velhote, depois, se debruçou para recolher o ramo de kwangula-tilo. Foi quando sucedeu: do buraco onde estava espetada a planta desatou a despontar água aos borbotões, gorgolejando por entre a areia. Meu pai juntou as palmas das mãos, em concha, para colher aquele primeiro jorro de água. Essa água nua, acabada de nascer, ele a fez tombar sobre mim. Como se me estivesse dando um novo nome.

      Quando olhei em volta vi que a família inteira se havia ali ajuntado. Os pés descalços das mulheres chapinhavam, num compasso de dança. Aos poucos, a água se vestiu de caudal. E se escutava já o redemoinhar alegre da corrente. O rio refazia as suas margens.

      Segui em rumo contrário à correnteza. Procurava o lugar onde, instantes antes, havíamos deixado o avô. Cruzei com a mãe que rodava, enlaçando meu pai. E mais lá, caminhando rumo à ponte, o aceno de um lenço: minha tia ia ou regressava? E, de súbito, como um faiscar de claridade, junto à outra margem, entrevi a velha canoa. A pequena embarcação já vogava, lenta, ao sabor da primeira ondulação. O coração me atordoava enquanto lutava contra a corrente. O nosso mais velho estaria ainda dentro do barquinho?

      Estaria vivo, poderia eu recolher o seu corpo magro e o trazer de volta a nossa casa?

      - Avô! - gritei.

      E de novo gritei e gritei até deixar de me escutar, a voz submersa no redemoinhar da corrente. Mas o barquinho foi, se dissolveu no horizonte. A última coisa que vi não foi a canoa mas a cabaça tombando das mãos da primeira Ntoweni. E da cabaça irrompendo, fluviosa, a serpente prateada da água.

      Ainda hoje meus passos se arrastam nessa travessia do rio, olhar perdido na outra margem. Meus passos se vão tornando líquidos, perdendo matéria, diluindo-se no azul da correnteza Assim se cumpre, sem mesmo eu saber, a intenção de meu velho avô: ele queria o rio sobrando da terra, vogando em nosso peito, trazendo diante de nós as nossas vidas de antes de nós. Um rio assim, feito só para existir, sem outra finalidade que riachar, sacralizando o nosso lugar.

      Como ele sempre dissera: o rio e o coração, o que os une? O rio nunca está feito, como não está o coração. Ambos são sempre nascentes, sempre nascendo. Ou como eu hoje escrevo milagre é o rio não findar mais. Milagre é o coração começar sempre no peito de outra vida.

FIM

Fonte:
Mia Couto. A chuva pasmada. 2004.

domingo, 21 de abril de 2019

Almanaque O Voo da Gralha Azul (n. 15 - abril de 2019)


Lançado hoje o número 15 do Almanaque O Voo da Gralha Azul.

Antes de mais nada uma errata, no número anterior na biografia do poeta português Domingos Freire Cardoso havia colocado que ele se licenciou em Física, corrija para Engenharia Quimico-Industrial.

Nas 120 páginas deste Almanaque,

Estante de livros: Andrey do Amaral, Clarice Lispector, Monteiro Lobato, Literatura indígena.

Pedro Malasartes apronta mais uma.

Poesias, muitas, Denise Emmer Dias Gomes, Edy Soares, Elisa Alderani, Hermes Fontes, Lairton Trovão de Andrade e muitos mais.

Textos diversos abre o almanaque com Mara Melinni, seguida por textos de Antonio Brás Constante, Carlos Leite Ribeiro, José de Alencar, Lygia Fagundes Telles, um conto premiado de Luiz Poeta (que está na postagem abaixo), e mais.

Teatro de Ontem e de Hoje é a nova seção, com artigo sobre duas peças.

Trovas de Colombina, Luiz Damo, Miguel Russowski e outros.

A primeira parte de texto de A. A. de Assis que nos conta um pouco da história de antes de Maringá.

Caso deseje o e-book escreva para gralha1954@gmail.com solicitando o número.

                                                                                                              José Feldman

Luiz Poeta (Projétil Pedagógico)


O professor está assumindo sua primeira turma numa escola municipal. São alunos repetentes, de uma sexta série complicada, oriunda de áreas de risco. Ele é novo naquela unidade, mas já dá aula há bastante tempo e acredita que não terá nenhuma dificuldade em ministrar o seu trabalho e passar suas experiências para o seu corpo discente; procura ser simpático, brinca com sua clientela didático-pedagógica, elogia a beleza das meninas e a simpatia dos garotos. A algazarra é inevitável. Eles se divertem e até exageram nos gestos e movimentos buliçosos. O professor pede silêncio. Repete a solicitação com a energia da autoridade. Eles se aquietam gradativamente.

Alguns o olham desconfiados, outros parecem ignorá-lo, mas os sorrisos que recebe do restante da turma sinalizam para uma relação empática com o grupo. O mestre precisa conquistá-los. A primeira aula é decisiva. Inicia seu discurso e fala do mundo, da dificuldade de sobrevivência no planeta, da necessidade que as pessoas têm de se sentirem protegidas e da importância da união entre elas. - Eu sou como vocês - diz ele - posso rir, chorar, ficar feliz ou me entristecer com determinado fato... nossos uniformes não são necessariamente nossas identidades, porque temos capacidade de amar e de ser amados uns pelos outros...

Os alunos, a princípio arredios, parecem magnetizados. Sorriem, divertem-se, dão opiniões, sentem-se livres, à vontade para falarem de suas vidas, dos seus sentimentos, dos seus desejos. Contam histórias, mostram-se personagens importantes de cada uma delas, fazem um teatro espontâneo de suas próprias alegrias. O professor sente-se efetivamente um deles, é o mais feliz de todos eles, entende suas alegrias, senta-se alegremente no meio deles.

Num determinado momento, no clima da evidente euforia coletiva gerada pela aceitação mútua, ele vira-se para a turma e diz: - Eu adoro balas. Alguém aí tem uma para me dar?

Um aluno sentado numa das últimas carteiras, chama o professor, observado atentamente pelos colegas.

- O senhor gosta de balas?

- Adoro.

- Que tal esta aqui?

Trata-se de uma bala de escopeta (não deflagrada, intacta!). O professor está perplexo, visivelmente abatido. Pega o pesado projétil numa das mãos, hesita e percebe que toda a turma silencia. Somando-se ao primeiro, mais dois alunos levantam-se e se colocam ao lado do professor.

Sorridentes, insistem:

- E aí, mestre, gostou da bala?

A pausa é pesada e inevitável. Parece eterna, mas a resposta é intuitiva e inespontânea.

- Prefiro Halls.

A inércia é quebrada, todos riem, a turma se alvoroça. Nem o professor esperava sua própria reação. A custo, ele indaga, misturando solenidade com simpatia:

- Querido, posso continuar o meu trabalho?

- Claro, professor - o aluno senta-se desconfortavelmente.

A aula é reiniciada. A bala de escopeta está na mão do professor. O silêncio é tumular. Em sua boca, as palavras esgueiram-se. Tentando aparentar naturalidade, ele usa o quadro-de-giz e começa a ministrar o conteúdo.

A sirene toca, todos se retiram ruidosamente, cumprimentando o professor com gestos típicos de estudantes de uma comunidade carente:
- Aí, professor, o senhor é maneiro!

- Professor, até amanhã!

- Valeu, professor!

- Tchau, mestre, sangue-bom!

- ...Professor... e a minha bala?

- Ah, tinha me esquecido.

O professor olha fixamente para o aluno. Há no seu olhar um misto de desapontamento, tristeza e extrema afeição. No seu coração, a sensibilidade mescla a necessidade da manifestação do amor de um pai com a necessária atitude de um educador em exercício.

- Você já pensou na possibilidade de a diretora da escola pegar essa bala?
- Já.

- Se ela pega, o que acontece com você?

- Sou expulso da escola.

- Você acha isso legal?

O aluno abaixa a cabeça.

- Não.

O professor insiste. Em cada palavra, a sinceridade evoca a ideia permanente da confiança:

- Meu filho, esta vida tem dois lados: o seu e o do mundo. O seu é de sonhos, de realizações, de conquistas... o outro é o do poder, do medo, da hipocrisia, da covardia... Crie seu território, delimite-o; mostre o que você pode fazer de bom para sua própria sobrevivência e liberdade... Seja feliz, querido... Você é um vencedor! Você não precisa provar isto pra ninguém! Prove para você mesmo!

Pausa.

- ...o senhor vai me devolver ?

- Ah, sim, a bala. Vou. Toma.

- Valeu, professor, o senhor é sangue-bom.

O menino sorri e se retira, deixando no ar uma nervosa sensação de impotência e medo. Há, entretanto, um silencioso pacto entre eles, marcado pela tímida iminência de uma lágrima e pelo poder de um sorriso que se dilui volátil, dentro dela.

Na semana seguinte, mais uma aula. O professor reinicia suas atividades, mas percebe uma inquietação diferente. Está absorto no seu trabalho, quando alguém o chama lá do fundo sala. É o mesmo aluno que lhe oferecera a bala de escopeta.

- Professor... Quer bala ?

Um calafrio percorre cada poro, mas a inicial estupefação cede gradativamente.

- Depende da bala.

A turma ri.

O professor sente-se seguro com a espontaneidade coletiva dos sorrisos.

- Vem aqui pegar. Pode confiar na gente.

O professor caminha na direção dos alunos. Os mesmos três que lhe ofereceram a bala de escopeta.

Eles entregam três sacos de balas ao professor. Hortelã, tamarindo, mel, coco... uma infinidade delas.

O coração se abre como um botão numa flor.

Todos aplaudem a cena.

As balas são distribuídas. A alegria é geral.

Os alunos cumprimentam o professor. Alguém escreve uma frase com letra bonita no quadro: "Nós amamos o senhor."

A lágrima agora é inevitável. Desliza sem pudor pelo rosto num riso sublime que mistura surpresa com euforia. Eles a percebem. Choram e riem com o professor.

Que aula!

O sinal toca. Todos se despedem e saem. O aluno da bala de escopeta fica.

- Gostou das balas, professor?

- Claro.

Pausa.

"...mas ficaria mais feliz se...

- Se eu jogasse aquela bala fora?

- É.

- Eu já me desfiz dela, professor.

- Por quê?

- Porque descobri que sou uma criança ainda, professor. Prefiro balas de hortelã.

(Texto premiado pela Academia Brasileira de Letras e pela Folha Dirigida do Rio de Janeiro - Publicado na Antologia "Por que poesia em tempos de indigência?")

Fonte:
Livro gentilmente enviado pelo autor:
Luiz Gilberto de Barros. Canção de Ninas Estátuas. Ilhéus/BA: Mondrongo, 2014.