quarta-feira, 28 de agosto de 2019

Aos Organizadores de Concursos Literários

O blog disponibiliza o espaço "GRATUITO" para a divulgação de literatura em geral, e dos concursos.

Se possui algum concurso literário para divulgar ou mesmo resultados deles, favor enviar email com os regulamentos e/ou resultados para 
gralha1954@gmail.com

Deste modo a divulgação será pelo blog que atinge cerca de 5 mil pessoas/mês, além dos 350 assinantes e pela página do blog no facebook, e divulgação por revistas virtuais (gratuitas) por email para poetas, trovadores, escritores em geral, etc.


2. Concurso Nacional/Internacional de Trovas de Iúna/ES (Prazo: 10 de Outubro)

Nota do blog:
Veja breve resumo sobre a cidade na postagem abaixo desta.

 _________________________________________________________
 

REGULAMENTO:

1 – DOS TRABALHOS:


1.1 – As trovas devem ser inéditas, de autoria do remetente e, cada uma delas deve ser datilografada/digitada na face externa de um envelope branco, que deve ser remetido fechado. Dentro de cada envelope, colocar um papel com a identificação:
Nome, endereço postal completo, data de nascimento, pequena biografia com data e local de nascimento, e-mail e assinatura.

1.2 – Os envelopes com as trovas devem ser colocados em outro, maior, para a remessa.

1.3 – Máximo de TRÊS trovas lírico-filosófico-humorísticas por concorrente, no tema proposto abaixo exaltando as Maravilhas da Cidade de Iúna, na Região do Caparaó, terra do Café, na divisa entre Minas e Espírito Santo.

1.4 – Serão consideradas as trovas recebidas até 10 de Outubro de 2019.

1.5 – As trovas devem ser remetidas para:
2º Concurso Nacional e Internacional de Trovas de Iúna.
A/C Sr. Clério José Borges
Rua dos Pombos, 2 – Eurico Salles – Carapina
CEP. 29160–280 – Serra/ES

1.6 – Para efeito deste Concurso entende-se por TROVA, composição poética de apenas uma estrofe, sem título, com quatro versos setessilábicos, ou seja, de sete sílabas poéticas, contada pelo som, rimando o 1º com o 3º e o 2&ord m; com o 4º, ou apenas o 2º com o 4º verso, tendo sentido completo.

2 – TEMA:

IÚNA (Palavra de origem Tupi que significa Rio Pardo).

Categorias:

Categoria Estadual: Para trovadores domiciliados no Estado do Espírito Santo;

Categoria Nacional/Internacional: Para trovadores domiciliados nas demais cidades do Brasil e Exterior;

OBS. – Nas trovas devem constar obrigatoriamente a palavra IÙNA, referindo-se a Cidade localizada na Região do Caparaó.

3 - DA FESTA DE PREMIAÇÃO: 

DIA 14 de Novembro de 2019, durante a Sessão Solene de abertura do XVII  CONGRESSO BRASILEIRO DE POETAS TROVADORES, que se estenderá com ampla programação de Palestras, Baile, Concurso Relâmpago de Trovas, Performances, Declamações, Oficinas, Serenatas e Missa em Trovas, até o Domingo, no dia 17 de Novembro de 2019.

Na impossibilidade do Comparecimento na abertura do evento no dia 14, haverá uma segunda Solenidade Especial no sábado dia 16, com início as 18 horas. 

4 - PRÊMIOS:

Serão concedidos TROFÉUS para as três (3) melhores trovas classificadas em cada categoria, sendo todas consideradas VENCEDORAS.

Do 4º ao 10º lugar serão conferidas Medalhas.

Todos os classificados receberão Diplomas de Participação, desde que as Trovas estejam de acordo com o presente Regulamento.

Caso o classificado não possa comparecer, o classificado ficará ciente de que para receber o Troféu terá que pagar uma Taxa de Correios no valor de R$ 50,00, podendo ser maior dependendo da tarifa do SEDEX.

5 - DA COMISSÃO JULGADORA:

A Comissão Julgadora será formada por trovadores de reconhecido mérito, ficando estabelecido que as trovas de âmbito Estadual sejam julgadas por trovadores residentes em outras regiões e Estados (São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais) e, as trovas de âmbito Nacional/Internacional serão julgadas por trovadores da Grande Vitória. 

6 - DA COMISSÃO ORGANIZADORA:

A Comissão Organizadora está assim constituída:
Clério José Borges – Presidente da ACLAPTCTC;
João Roberto Vasco Gonçalves, Secretário da ACLAPTCTC.

6.1 – A Comissão Organizadora resolverá os casos omissos e suas decisões serão definitivas e irrecorríveis.

6.2 – As trovas remetidas em desacordo com qualquer item serão eliminadas automaticamente do concurso, sendo que a simples remessa das trovas significa total conhecimento e completa aceitação deste Regulamento.
Ao encaminhar seus trabalhos os autores cedem Direitos Autorais para uso da ACLAPTCTC e desde já autorizam a publicação nas Mídias Sociais de fotos e vídeos realizados durante o evento, Congresso de Poetas Trovadores e nas solenidades de entrega de prêmios.

Clério José Borges de Sant Anna
Historiador, poeta Trovador Escritor Capixaba
Presidente da Academia Capixaba de Letras e Artes de Poetas Trovadores, ACLAPTCTC, antigo CTC - Clube dos Trovadores Capixabas
Fundador e Primeiro Presidente da Academia de Letras e Artes da Serra, ALEAS e atual Vice Presidente.
Secretário Geral da Academia de Letras Jurídicas do Estado do Espírito Santo.
Senador da Cultura representando o Estado do Espírito Santo no Congresso da Sociedade de Cultura Latina do Brasil.
www.clerioborges.com.br
www.youtube.com/clerioborges


Fonte:
Clério Borges

Cidade de Iúna, no Espírito Santo

Cachoeira do Chiador - Iúna/ES

O município de Iúna é localizado a quinze km da BR-262 e a 180 km da capital do estado, Vitória, fazendo parte de sua área no Parque Nacional do Caparaó, embora o Pico da Bandeira (ponto culminante do estado) fique no município de Ibitirama. No município fica o Pico do Colosso, com 2 849 metros.

Turismo

Iúna é uma cidade rica em belezas naturais. Tem potencial para turismo de montanha, aventura, religião, ecológico e agroturismo. Dentre as cachoeiras mais belas, podemos citar a Cachoeira do Rio Claro, Poço das Antas, Cachoeira do Chiador. Em se tratando de aventura, a topografia proporciona a prática de esportes radicais como rapel, tracking e parapente.

O Santuário de Santa Luzia, localizado na Água Santa, local de turismo religioso, onde para aqueles que acreditam, nasce uma pequena fonte de água milagrosa, é palco de peregrinação, não tão intensa, mas que recebe turistas de várias regiões do Brasil, principalmente no dia 13 de dezembro, em que se comemoram os festejos de Santa Luzia. A Igreja Matriz da Paróquia de Nossa Senhora Mãe dos Homens, recentemente reformada, é uma das mais belas do estado.

Tem o café, a maior riqueza do município, já torrado, moído e embalado artesanalmente, que é produzido em algumas propriedades rurais, relembrando a maneira como faziam os antepassados de muitos. A cidade possui uma Cafeteria que faz este trabalho artesanal no próprio espaço, dando a oportunidade de ser tudo observado e explicado pelos proprietários. Os alimentos, como doces de mamão em pedaços, ralado cozido com açúcar mascavo ou rapadura, de abóbora em pedaços e ralado puro ou com coco, doces de figo, goiaba, pêssego, carambola e jaca em calda; os bolos de laranja, milho, coco, as broas de fubá com melado, com erva-doce; os queijos frescal e curado; licores de sabores diversos, quentão; salgados diversos, enfim uma infinidade de guloseimas "da roça" que dão muita água na boca.

História

O território que hoje corresponde ao Município de lúna era, antigamente, totalmente coberto pela Mata Atlântica e habitado por diversas tribos indígenas da nação puri. Os puris eram de estatura mediana, de cor morena e cabelos pretos e lisos. Andavam nus, se alimentavam da caça e da pesca, cultivando alguns produtos agrícolas. A história da região do Caparaó pode ser contada a partir da vinda da família real, em 1808. Em 1814, o príncipe regente João, filho de dona Maria I, determinou que as remessas de ouro, pedras preciosas ou madeira fossem feitas obrigatoriamente pelo Rio de Janeiro. Para tanto, o governador da província, Francisco Alberto Rubim, recebeu ordens para construir uma estrada ligando Minas Gerais ao Espírito Santo. Vários povoados se formariam futuramente nesse caminho, em volta dos postos militares então instalados.

Um desses foi o povoado de "São Pedro de Alcântara do Rio Pardo", erguido em volta da capela erguida em 1855 em terreno doado pelo fazendeiro Joaquim Ferreira Val. O povoado foi primeiro subordinado a Vitória e, depois, a Cachoeiro de Itapemirim. Em 1816, o governador Francisco Alberto Rubim, valendo-se da Carta Régia do Príncipe Regente, dom João, ordenou a construção da Estrada São Pedro de Alcântara, que ligava Vitória a Vila Rica, em Minas Gerais. O responsável pela construção em território capixaba foi o Comandante Duarte Carneiro. Para a manutenção da estrada foram estabelecidos quartéis de três em três léguas para que os viajantes pudessem descansar e encontrar proteção contra os constantes ataques das feras e índios, que viam no homem branco um invasor de suas terras.

Em território riopardense, existiam três quartéis: a) Quartel de Chaves, que logo recebeu o nome de Quartel do Rio Pardo, por situar-se às margens de um rio de águas pardas; b) Quartel de Santa Cruz e Quartel do Príncipe. Com o passar dos anos, ao redor do Quartel do Rio Pardo, surgiu a pequena povoação denominada "Arraial de São Pedro de Alcântara do Rio Pardo". No decorrer do ano de 1845, o missionário capuchinho frei Paulo de Casanova construiu, com o auxílio dos índios puris, a Capela de São Pedro de Alcântara, inaugurada com a presença do Barão de Itapemirim e benzida pelo seu idealizador.

No ano de 1855, o alferes José Joaquim Ferreira Valle doou 42 alqueires de terra para a construção de uma capela dedicada a Nossa Senhora Mãe dos Homens e expansão do arraial que se formava às margens do Rio Pardo. Contudo, em 1858, Frei Bento di Gênova liderou a construção da capela, que foi inaugurada e dedicada a Nossa Senhora da Pureza. Em 1859, o arraial foi elevado a distrito de Vitória, como nome de Freguesia de São Pedro de Alcântara do Rio Pardo. Posteriormente, o distrito passou a pertencer ao município de Viana e, em 1867, foi anexado ao recém-criado Município de Cachoeiro de Itapemirim. Em 14 de julho de 1859, o povoado foi elevado à condição de paróquia; em 24 de outubro de 1890, obteve a emancipação de Cachoeiro de Itapemirim. O município foi criado em 11 de novembro de 1890 e instalado em 3 de março de 1891, com o nome de "Rio Pardo". O nome de "Iúna" seria adotado em 1943. Significa "águas pardas", em língua tupi.

Com o crescimento da freguesia, Frei Bento di Gênova construiu a Capela e o Cemitério de São Miguel Archângelo, no qual foi sepultado no dia 2 de janeiro de 1862, pois falecera sentado na Pedra do Pecado, na Água Santa, no dia 1. No período compreendido entre 1865 e 1870, chegaram, à freguesia de São Pedro de Alcântara do Rio Pardo, diversas famílias de origem portuguesa, remanescentes da Guerra do Paraguai e que receberam, de Sua Majestade Imperial, dom Pedro II, sesmarias no "Sertão do Norte", como era conhecida a extensa região que compunha o distrito de Rio Pardo, abrangendo os territórios que hoje correspondem aos municípios de Castelo, Conceição de Castelo, Venda Nova do Imigrante, Muniz Freire, Ibatiba, Irupi, no Espírito Santo e Lajinha, Chalé, Ipanema, Conceição de Ipanema e Mutum, em Minas Gerais.

Também se fixaram em Rio Pardo, no final do século XIX e início do século XX, famílias de nacionalidades francesa; alemã; suíça, libanesa e italianas.

Em 1879, foi construída a Igreja Matriz de Nossa Senhora Mãe dos Homens, criadas as escolas masculina e feminina da Vila e em 1881 foi instalado o correio. No dia 11 de junho de 1888 foi realizado, na Freguesia de São Pedro de Alcântara do Rio Pardo, o primeiro casamento civil da província do Espírito Santo, antes mesmo da Proclamação da República.

No dia 24 de outubro de 1890, os moradores de Rio Pardo decidiram pedir à Assembleia Constituinte a criação do município, visando ao crescimento sócio-econômico da extensa região. Com efeito, no dia 11 de novembro de 1890, quando da promulgação da primeira Constituição Republicana do estado do Espírito Santo, os Deputados Constituintes aprovaram o desmembramento do distrito de São Pedro de Alcântara do Rio Pardo, então pertencente ao Município de Cachoeiro de Itapemirim, criando o Município da Villa do Rio Pardo, com sede na antiga Freguesia de São Pedro de Alcântara do Rio Pardo e tendo como distritos: Santa Cruz e São Manoel do Mutum.

Em consequência do desmembramento do Município de Cachoeiro de Itapemirim, no dia 3 de março de 1891, foi instalado o primeiro Conselho de Intendência Municipal. A Comarca do Rio Pardo foi criada em 1890.

No ano de 1917, foi fundado o primeiro time de futebol do município, denominado ainda hoje: "Rio Pardo Futebol Clube", com uniforme vermelho e branco. E ficando extinto após muitos anos e ainda Iúna ficou marcada com o famoso bingo vermelho e branco que atraia pessoas de várias cidades do Espírito Santo e Minas Gerais, mas o Rio Pardo Futebol Clube, não resistiu e ficou apenas nas lembranças daqueles que um dia fizeram parte de sua história.

Em 1922, chegaram os primeiros automóveis na antiga Vila do Rio Pardo. Em 1924, foi construída a primeira usina que gerou a eletricidade para toda a Vila do Rio Pardo, pioneira no sul do Estado. Em 1930 aconteceu a Revolução, sendo deposto o então prefeito Alfredo Hybner e fechada a Câmara, presidida pelo Coronel Pedro Scardini.

Em 1943, existiam, no Brasil, três municípios com a denominação de "Rio Pardo": nos estados do Espírito Santo, em Minas Gerais e no Rio Grande do Sul. Em virtude de lei federal, a duplicidade de nomes foi proibida. O Rio Pardo do Rio Grande do Sul, por ser mais antigo, permaneceu com o nome inalterado. O mineiro passou a denominar-se "Rio Pardo de Minas" e o capixaba foi denominado Iúna, numa homenagem aos primitivos habitantes, banidos de seu território, pois no idioma tupi, lúna significa "águas pardas".

Fonte:
Wikipedia

terça-feira, 27 de agosto de 2019

Varal de Trovas n. 64


Artur da Távola (Tudo Ruim, mas Tudo Bem)


O “tudo bem” é uma expressão profundamente brasileira. Somos um  povo pacífico e acomodado. Término do romance, sem dinheiro, brigou com a família e, após contar a desgraça inteira, diz: “Mas tudo bem”.

Na verdade, preferimos fingir que não ligamos e secretamente diluir o que nos chateia ou oprime, a remover o mal sob forma  cirúrgica. Para tal, o “tudo bem” cai como luva. Revela uma    espécie de certeza de que nada é duradouro, tudo acabará modificado, por mais que a rigidez pareça dominar.

O “tudo bem” possui duas outras leituras que latejam por dentro de sua significação aparente. São elas: “Não faz mal” e “deixa comigo que adiante eu dou um jeito”.
                                  
“Não faz mal” quer dizer “não importa”, “não há de ser nada”, “tentaram me atingir mas não conseguiram”. Quer, portanto, dizer: “Olha, eu não desistirei; estou apenas fingindo que não ligo”.
                                  
O “deixa comigo que adiante eu dou um jeito” revela outra atitude sábia do chamado caráter nacional. Eis sua tradução detalhada palavra por palavra: “Eu sei que as coisas não duram. Sei, também, que, enquanto estão quentes, as pessoas se aferram. Não adianta forçar nessas horas. É esperar a emoção, o impulso, a vontade e a teimosia passarem e, na medida em que a realidade tiver atuado sobre elas, diluindo o rigor anterior, então a gente entra na brecha e vai fazendo do jeito que quiser”.

Na medida, portanto, em que a expressão “tudo bem”, como espelho da maneira de ser, da psicologia, do caráter e do comportamento brasileiros, possui essas duas conotações revela algumas características  (e até virtudes) da maneira de ser brasileira; paciência; teimosia; capacidade de esperar; certeza de que não fará o que não quer fazer; confiança nos seus próprios métodos; certeza de que a realidade é sempre complexa e acaba se impondo com a variedade de seus resultados; convicção de que mexer demais nas coisas acaba atrapalhando; percepção de que nada é duradouro; de que é necessário criatividade para impedir as deformações da imposição de qualquer certeza exagerada; fé no tempo como o grande e lúcido mediador das coisas; falta de pressa; e certeza na própria decisão. E, também, uma certa capacidade de perdoar e encontrar desculpas para as coisas e prosseguir. O lado sábio do brasileiro é enrustido. Por malandragem ele finge não existir.

Que é tudo isso? Uma teoria de acomodação? Do deixa pra depois? Da alienação? Estarei teorizando sobre o conformismo, uma característica negativa da nossa maneira de ser?

Se é o que você acha, leitor, então tudo bem, tudo bem: mais adiante a gente se entende, ou você me entende, ou eu o entendo, tudo bem, não esquente a cabeça e vá em frente que no fim acaba dando tudo certo. Brasileiramente. Ainda bem; isto é, tudo bem. Tudo bem?

J. G. de Araújo Jorge (Inspirações de Amor) XXIV


LEMBRANÇAS

Me lembro das emoções que experimentei então.
Dos ciúmes do teu decote, das exigências do teu cabelo,
do excessivo rubor de tuas unhas
que tanto me preocupavam, tão vermelhas.

Me lembro do meu domínio e do orgulho do meu domínio
pequeno César de esquina
à espera de que tivesses pronta para o baile.

Me lembro da noite toda de par constante
policiando teus olhos e teus gestos,
captando teus sorrisos em todas as direções...

Era tudo tão tolo, era tudo tão besta, meu amor,
mas que estranha poesia a vida pisou
para nunca mais.

MADRIGAL
   
Gosto de te falar de amor, do nosso amor,
retendo em minhas mãos as tuas mãos pequenas,
- quando a tarde no céu põe desmaios de cor
e há no espaço um rumor inaudível de penas ...

Gosto de conversar com os teus olhos estranhos
no silêncio feliz de intérminos idílios,
- inebria-me a luz dos teus olhos castanhos
através do "abajur" de seda dos teus cílios...

Gosto de te falar de amor, falar baixinho...
Tudo o que então te digo, a sós, nesses instantes,
é assim como o arrulhar amoroso de um ninho
ou o rumor de uma fonte em lugares distantes...

Gosto de te falar de amor, - sentir que aos poucos
vamos ficando tontos, sem querer, os dois...
E te ouço a me dizer que não! que somos loucos!
- e te entregas inteira em meus braços depois. . .

Gosto de te falar de amor, - pela expressão
de amor que há nos teus olhos quando assim te falo,
- por tudo o que teus gestos pródigos darão
na embriaguez do segundo eterno em que me calo ...

Gosto de te falar de amor, - nesta certeza
de que gostas também que te fale de amor...
- És a terra que vive! - e eu sou a correnteza
que canta e que fecunda a terra e a enche de flor!

MÃOS ENLAÇADAS
   
Teus cinco dedos, entrelaçados
nos meus cinco dedos,
trocaram confidências e segredos
num doce enlevo esquecidos....
- são teus cinco sentidos
entrelaçados
nos meus cinco sentidos...

Assim, na sombra, de mãos dadas
não te sentes sozinha e eu não me sinto só...
E as nossa mãos unidas,
enlaçadas,
parecem nossas vidas
amarradas,
num nó...

nessa hora de silêncio  em que juntos ficamos,
tu, cheia de meiguice... eu, cheio de carinho,
e em que nada conversamos,
invade-me a impressão,

- de que a minha alma e a tua, bem baixinho
trocam juras de amor, trocam segredos
em teus dedos trançados nos meus dedos,
e em tua mão perdida em minha mão!

MATEMÁTICA DA VIDA

Matemática esquisita
que das suas sempre faz,
ao final de nove meses
somando dois, - multiplica -
e ao invés de dois, às vezes:
- são três, são quatro, e até mais...

MENINA DOS OLHOS VERDES

Ó! menina dos olhos verdes, que à tardinha
estás sempre à janela à hora de minha volta...
Que coisas pensarás? Que fazes aí sozinha?
Por que regiões de sonho a tua alma se solta?

Sempre que dobro a esquina encontro o teu olhar
e o teu claro sorriso adolescente ainda...
Habituei-me a te ver - e és tão criança e tão linda
que sem querer, também sorrio ao te encontrar...

Menina dos olhos verdes... A quem esperas
com teus olhos gritando a cor das primaveras?
Queres versos? Pois bem, estes são teus, recolhe-os!

Escrevi-os pensando em ti, tímida e bela,
- a menina dos olhos verdes da janela
debruçada à janela verde dos meus olhos!

MEU MUNDO

Toda tarde digo para mim mesmo:
afinal, eis o meu mundo.

O mesmo beijo, o mesmo quarto claro, com seu assoalho brilhando
refletindo o meu passo;
as mesmas paredes brancas me envolvendo com afáveis gestos de paz;
o mesmo rádio silencioso, entre livros empilhados, a mesma estante fechada
que a um gesto meu descobre tesouros como velha mala de pirata.

Afinal, eis o meu mundo.
A mesma insubstituível companhia, a mesma presença
                                            até quando longe dos olhos,]
a mesma voz perguntando, a mesma voz respondendo,
o mesmo odor suave da janta, do tempero cozinhando,
a mesma impressão de quem chega de ombros nus e este ajudado
um macio agasalho.

Afinal, eis o meu mundo.
Como o pássaro do dilúvio, diante do primeiro ramo:
- afinal, eis a terra!

MÚSICA

Silêncio... Solidão... - sinto pelo ar que existe
em surdina, no céu, tempestuoso e cinzento,
- um ritmo... um compasso... um solo muito lento...
de uma obra de Chopin... nervosamente triste...
 
Repentinos clarões !... Lá pelo espaço se ouvem
entre a voz dos trovões e os sons das ventanias,
os brados de aflição... de estranhas sinfonias
lembrando a orquestração da "nona" de Beethoven...

Há música nos céus... Há música em minha alma...
Ficou na natureza um Liszt interpretando
a rapsódia de amor que enche a noite de calma...

Já não há no infinito as tormentas e o caos...
- O azul, traz de Mozart o tom sereno e brando,
e o arvoredo cicia as músicas de Strauss !...
   
Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 2. SP: Ed. Theor, 1965.

Nilto Maciel (As Sete Onças de Neo)


Para Juarez Barroso,
que não deixou de sonhar.

"De repente, nós ouvimos o esturro duma onça trigue, que há muito vinha fazendo estrago no gado. Pedi um rifle ao dono da fazenda, saltei a cerca do curral e, entrando no cercado do Doutor João Urso, avistei em vez da onça um veado e fiz fogo nele, mas errei o tiro e matei foi o diabo duma vaca que se achava adiante, pastando..."
Leonardo Mota, Sertão Alegre (Sonhou com o “Bicho”)


 Escalafobética, sim, demais, Seu Doutor. Sistema duma coisa não passada, dum marco. Porém, eu trago a história todinha na ponta da língua e posso contar inteirinha, se o Senhor não se aborrecer. Não? Então escute. Era uma casa grandona, cheia de compartimentos, enorme. Por dentro e por fora parecia muito antiga, mais velha do que a serra. Eu até me lembrei do sobradão do Dr. João Ramos, com suas cem janelas. Mas não devia ser um sobrado, não, porque se fosse, em vez de telhado tinha era tabuado. Se eu estivesse no andar de riba. O telhado era de telha mesmo, como de fato era. Porém, em vez de chão de barro ou de tijolo ou de cimento – que esses ricos têm mania de cimentar o chão – tinha era tabuado. Mas isso não vem ao caso. O diabo é eu não me lembrar o nome daquela rua. Podia ser a Tristão Gonçalves. Não, é só impressão. E nem podia ser, porque por lá tudo já está muito civilizado, tem calçamento, casa de tijolo, rádio, moça-donzela estudando piano e essas coisas todas da cidade. De qualquer forma, a rua ficava pros lados da Parangaba. Pro lado do mar não há de ser, não. Para encurtar a conversa, vamos deixar de lado a questão da rua e começar a história.

Pois bem: primeiro apareceu uma baita duma onça-preta, tão preta que não dava pra enxergar se era o couro dela ou a noite que vinha se remexendo feito feme de reboque. O Senhor sabe: esta tal tem a volta muito mais perigosa que o jaguar. Isso se deu no alpendre. Pois a bicha vinha toda faceira, roncando, naquele andar preguiçoso de quem não quer nada e querendo. Boi brabo, chegando na terra alheia, se faz de manso. Pois a danisca devera de saber que ali não era terra de onça.

Não me assustei, não Senhor, que um homem é um homem e um bicho é um bicho. Pra falar a verdade, não sei nem o que senti. Devo ter sentido só um medinho de nada. Ora, com fera não se brinca, por mais valentão que se seja. Não sou um Lampião, mas também não sou desses cabras frouxos que se mijam todo por qualquer besteira. Então fiquei de molho. Isso depois de imaginar o que havera de fazer. Mal avistei aquela ruma de pretura passeando no meu rumo, fiquei todo soberbo. Controlei o suspiro e fui me encostando na parede. Talvez ela passasse sem me ver e fosse embora. O Senhor sabe: é bom evitar. Não, eu não estava com medo de morrer nas unhas dela. Eu nunca nem imaginei isso. Ora, se eu nunca morri nem quando briguei com três cabras, num quebra-rabicho lá em Guaramiranga. Eles armados cada um com uma pajeuzeira maior do que a do Titico, meu irmão. Depois eu vou falar dela e dele. Além disso, carregavam três jucás. E eu só com uma quicezinha de nada! Juro por Deus, eu nem pensei na morte! Apenas tomei cautela, que por causa duma esporada se perde uma vaquejada. Se eu fosse com lorota, ela se espantava e adeus caçada. Ora, aquilo pra mim não passou de uma caçada, a caça chamando o caçador. Então esperei que ela me avistasse, porque estava escuro de meter dedo no olho e aposto como a coitada também não me enxergava. Ia ser uma covardia sujigar a bicha sem avisar.

Eu não sou dessa nação de gente. Negócio de tocaia não é comigo. Isso fica pra cabra medroso que não tem coragem de olhar de frente o inimigo. Quando ela me enxergou – e digo isso porque avistei aquelas duas tochas rumando na minha direção – quando ela me enxergou, dei uns dois passos também na direção dela, pra não ficar pra trás. E pensei cá comigo – essa é das grandes e vai querer passar por cima de mim, me pisar, me lamber, me arrastar pro mato. E lá vinham as duas tochas crescendo no meu rumo, alumiando tudo, numa macieza de deixar qualquer cristão sem fala. E quando já estavam pra me queimar, apalpei os cós das calças e... cadê faca? Fiz o Pelo-Sinal, me agarrei com a minha Santa Luzia pra me alumiar os olhos e enxerguei o pau-furado no canto da parede. Mais que depressa, apanhei o desgraçado e... Ainda hoje não sei como se deu aquilo. Eu nunca deixo de trazer comigo essa faquinha aqui, porque sou dado a varar noite por esse Mucuripe, por essa Parangaba e até pela Caucaia. Como o Senhor há de saber, lá só dá jararaca do rabo fino, que mata por brincadeira. Não que eu seja uma cobra de chifre, ande fazendo arruaça, acabando samba e atirando à toa. Deus me livre disso! Eu sou até assim meio besta, não digo frouxo, que é outra coisa muito diferente. Eu carrego uma opinião comigo: se eu vejo a coisa preta, vou saindo de mansinho e escapulo. Ora, quem não muda de caminho é trem. O meu sistema é outro – é só brincar. Se é um samba, chego, tiro a moça, danço. Fora disso, tomo minha cachaça, sem muita lambança e não esquento pé de balcão. Então a faquinha aqui eu só uso em caso de muita necessidade. E nem ando mostrando a ninguém. Cachorro que muito ladra não morde. Graças a Deus nunca feri nem matei ninguém.

Pois como eu ia dizendo, a bicha vinha vindo, vinha vindo e eu fui indo, fui indo. Eu já disse e repito: medo eu não tenho nem nunca tive. E fui indo, já de arma apontada pro focinho dela. A espertinha compreendeu a brincadeira e parou pra dar o pulo. Porém, antes que ela terminasse de pensar e desse o salto, puxei a alavanca. Pêi, pêi, pêi. Não sei nem contar como tudo se passou, em seguida e na horinha. Não sei se ela caiu logo, não sei se ainda esperneou, não sei se esturrou. Não sei também se gritei, se disse alguma besteira. Nessas horas a gente costuma ficar fora de si e dizer até heresia. Só sei mesmo que apareceu o Titico, meu irmão, com sua pajeuzeira na mão, chega alumiava tudo. Conforme eu disse antes, estou aqui falando dele e dela. Não sou homem de mentira, não, Seu Doutor! Pois cheguei até a ver a bichona estendida no chão, vomitando sangue, um sangue da cor de pimentão maduro.

O Titico, sem afobação nenhuma, como se a gente estivesse sangrando porco, apenas perguntava se eu precisava de ajuda. Isso se deu na horinha mesma do aperreio maior, quando eu ainda estava atirando. Eu me admiro é de ter dado pra eu atinar que dois sentidos não assam milho. Ele devia ter esperado pelo fim do serviço. Se eu me descuido, erro o tiro, estou frito. Ainda bem que minha pontaria nunca falhou. As três balas foram diretas na boca lá da carniceira. Sim, só dei três. Eu não ia desperdiçar bala com defunto! Isso eu ainda dizia pra mim mesmo, o Titico com a pajeuzeira na mão, olhando pra mim e pra bicha, um ali perto do outro, quando a danada estremeceu toda. Como se fosse se levantar e dar o pulo. Isso é só imaginação minha, pois naquele escuro todo só acontecia o que eu imaginava. Na ocasião, compreendi muita coisa deste mundo velho – boi com boi é que faz junta. Eu já tinha jogado meu pau-furado no chão. Só me restava tomar a arma da mão do Titico e cair em cima da fera. E tome pinicada nos lombos.

Pipinei, Doutor. Fiquei com pena foi do couro, tão pretinho, tão peludinho, todo esburacado e sujo de sangue. Não, eu nunca tinha visto, não. Mas já tinham me falado muito de onça. Ouvi uma infinidade de histórias. Meu finado avô, que Deus o tenha no céu!, meu pai, meu tio Vicenço, muita gente me contou histórias de onças. Assim, eu sempre tive, desde menino, a imagem de como devera de ser uma bicha dessas. No Baturité? Não, não deve existir mais nenhuma. Nem lá nem em canto nenhum, porque faz um tempão andam matando as coitadas. Eu não sou pessoa de leituras, mas no meu entendimento onça só deve ter mesmo agora é no Amazonas. Lá onde o diabo perdeu as botas e Judas os cadarços. Um matagal dos seiscentos mil diabos. Não tem homem no mundo que consiga atravessar aquilo. Como digamos, meu pai falava de um tio dele, o qual arribou pra lá e nunca mais voltou. Aquilo é um despotismo de mata, Seu Doutor, onde só há índio e fera. Aqui também já foi assim. Lá no Baturité mesmo o Senhor ainda pode ver como é a mata. Avalie noutras eras, antes de aparecerem roçados, queimadas, essa gente toda derrubando mata. Pois bem, isso tudo, que é o progresso, acabou com as oncinhas. Digo acabou, porque eu tenho palestrado muito com quem anda por este sertão afora e todos me falam de tudo, menos de onça. Então eu estou pra acreditar no seguinte: as derradeiras que existiram foram essas mortas por mim. Não, não foi só uma, não. Até agora eu só contei o comecinho da história. É uma história grande de não acabar mais. Dava até um romance. Mas eu vou contar o resto. E bem depressinha, pra não aborrecer Vosmecê.

Eu contava que caí em cima da bichona, a pajeuzeira do Titico na mão, e acabei de matar a sem-vergonha, que se fingia de morta com os três tiros. Mais com pouco, acordou todo mundo, assustado com os tiros e aquela zoada.  Com os tiros, sim, pois foi tudo na mesma hora – tiros, meu irmão aparecendo e me oferecendo ajuda, as pinicadas... Eu ainda furava a bicha quando apareceu o povo com as lamparinas em riba da cabeça, vindo do corredor, uma parte, e a outra só espiando pelas janelas, sem coragem de se achegar. Pareciam duas nações de gente – uma de gente despositada, outra de gente almoçada. Estes até nem não vinham com lamparina. Eram do meu proceder. Eu nunca precisei de alumiadura nem pra ir ao mato. Se tivesse lua, bem. Se não tivesse, também. Não sei quem eram, não. Talvez fossem meu pai, meu irmão Kiko, meu outro irmão Bira, ainda um frangote, meu primo Mandapolão, cabra que não vale uma masca de fumo, o Domingo irmão dele, e outros. Só não havia mulher, pois saia eu não vi, não. Minto, havia mulheres, as alumiadeiras. Então veio aquele povo espiar a imbuança besta, mas já chegou tarde. Não digo nem briga, que em briga os dois lados brigam e nesta só quem brigou foi eu.

E tem mais – em briga eu sou de ficar raivoso feito peru e nesta eu nem cheguei a esquentar o gogó. Pois, como eu dizia, aquele povo chegou pra espiar a briga, porém, só viu sossego e a pretona estendida no chão. E começou a falação. Como se tivesse gente em riba do telhado, debaixo do chão, dentro das paredes, na barrica da onça. O que foi isso?, quem fez isso?, Ave-maria!, vamos fechar as portas, a casa está cheia de bicho, porque vira, porque mexe. E eu na minha calma, só rindo, fumando e achando tudo bonito. Aquilo pra mim não passou de brincadeira de menina feme. Nem aqui nem no mato eu nunca fui de me espantar com besteira. Tanto faz pra mim um general como um soldado raso. Tanto faz uma bicicleta como um avião. Tudo pra mim não me faz medo. No mato tanto fazia uma surucucu como uma minhoca. Tanto fazia uma onça – onça não, essa tal fera eu nunca vi lá. Tanto fazia caipora pedindo fumo como volante pedindo notícia de Lampião. Não, eu até enjeito parada. Mas sou moço, tenho o couro grosso e, graças a Deus, nunca fui de ensebar as canelas com medo de grito. Voltando à história: o povo foi criando medo, era bom todo mundo entrar, trancar as portas, tomar cuidado, podia haver mais bicho por ali.

Eu já disse: o quintal não era um quintal. Ao redor da casa havia mato, tudo sem muro e sem cerca, um descampado sem fim, um despotismo de mato, emendando com o sertão, a se perder de vista. Minha mãe, então, olhando no rumo da mata, disse: quem sabe tem mais onça metida aí nesse matagal, esperando a hora de invadir a casa. Pois, mal ela fechou a boca, lá se escutou um reboliço, assim como de onça pisando em graveto. Aí deu-se uma correria dos diabos. Era gente gritando e chorando, pedindo clemência a Deus Nosso Senhor, se valendo de tudo quanto é santo. Eu fiquei esperando a fera, caçoando deles, eu mais o Titico, meu irmão. E mamãe gritando: entrem, meus filhos, deixem de valentia, valente morre mais cedo, vocês mataram uma, mas as outras vão querer se vingar, deixem essas feras pra lá, venham dormir, deixem pra cuidar disso amanhã. E eu cá comigo – amanhã o carneiro perdeu a lã. Não se tratava de desobediência, não, mas a gente queria ver o fim da história. Pois enquanto ela falava as piedades dela, eu apurava o ouvido e arregalava os olhos pra ver se escutava algum esturro ou pisada macia de onça. E então apareceu mesmo outra: uma pintada e muito mais baita do que a defunta. Vinha vindo do mato, as duas tochas alumiando o caminho, a bocona aberta mostrando aquela dentadura branca e bonita. Eu até fui ficando encantado e querendo que ela chegasse mais e se abraçasse comigo.

Fiquei rindo, de feliz. Doidice, seu Doutor! Se não fosse o Titico, meu irmão, me alertar, você não vai atirar logo, não?, eu hoje morava na terra dos pés juntos. Tomei um susto e, mesmo com pena, passei a atirar. Quando o primeiro tiro saiu, a tadinha foi se vergando, se vergando, até se prostrar feito uma vaca velha. Mas quem confia em fera? Meu irmão pulou em cima dela, a pajeuzeira na frente, e tome pinicada. Eu só via aquele fio de luz subindo e descendo. A onça já devia estar pra lá de morta. Eu disse: chega, mano, senão essa faca vai virar arame. Bendita ordem. Eu estava adivinhando. Pois se a pajeuzeira virasse arame, quem ia terminar de matar as onças que eu matasse? Dito e certo. Mal eu fechei a boca, lá apareceu outra. Vinha que nem um cão – cruz, credo! – no meu rumo. Vinha chega vinha bufando. Mas Vosmecê vai dar o não dito pelo ouvido. Eu não vou contar como se deu esta luta, não. Só me acredite o seguinte: ela se deu igualzinho às outras. Não vou contar não é por outra coisa, não, é porque assim não vai dar tempo.

Eu sei, o Senhor está interessado na história, porém, depois da segunda onça, tudo aconteceu como numa correria. E eu não vou poder acompanhar essa correria. Escute só e me entenda: mal aparecia uma onça, a gente matava; aparecia outra, a gente matava. Se uma pulava do telhado, outra saltava o parapeito, outra se coçava na parede, outra esturrava, outra escancarava a boca. Finalmente, não restou mais nenhuma. Graças a Deus (aqui pra nós e pro padre que nos confessa), eu já estava pra desistir. Depois ficou tudo um silêncio danado. Dava até medo escutar. Eu no meu canto segurando o pau-furado pegando fogo, meu irmão no canto dele limpando a pajeuzeira nas pernas da calça e aquela ruma de onças no chão perdida no meio da sangueira. A gente, dê por visto, cansado e suado, doido pra tomar um calisto de delas frias e se espichar numa rede. Eu me sentei no chão e senti aquele rio quentinho escorrendo debaixo de mim. Era o sangue das coitadinhas. Fui me sentar no parapeito e me deu uma vontade espritada de fumar. Qualquer quebra-queixo servia. Mas cadê cigarro! Aí o Titico disse: Não, pião gabado é que vira carrapeta, né? Me deu uma vontade de rir, Seu Doutor. E mais ainda quando meu irmão começou a gritar no rumo do mato: cadê as onças dessa terra!? E eu me animei, esqueci a vontade de fumar, beber cachaça e dormir, e dei uns tiros pra cima.

Imagine minha besteira, Doutor. Pra ver se acertava nalguma onça restante que andasse lá pelos ares. Quem já viu onça voar? Comecei também a gritar: apareça, cambada de carrapetas; aqui mora é macho, não é caçador mentiroso, não. E a gente ficou nessa besteira de atirar e gritar. Mais com pouca, lá longe no céu apareceu um clarãozinho de nada. Os galos começaram a acordar tudo com aquela zoada doida de bater asas e cantar um atrás do outro. Sabe, a gente ficou assim meio zoró, olhando pro céu e pros galos, como se nem eu nem o Titico tivesse nascido na serra. Como se nenhum dos dois fosse acostumado a ver aquilo quase todo dia. O Senhor sabe como é o mundo quando os galos começam a cantar. Pois é, um sossego danado de bom, aquela cor parda... A gente olha, olha, parece que vê, mas nada vê. A gente olhava pro mato e parecia ver onça. Tudo ilusão. Depois, a gente ficou só olhando e avistando umas coisas se mexendo, se mexendo, lá longe. O clarãozinho foi se clareando, uns bichos se mexiam e olhavam na direção da gente.

Tem mais onça, Titico, prepare a pajeuzeira – eu disse bem baixinho. A

Mas agora vem a dúvida maior – é se tudo isso aconteceu mesmo ou se foi apenas um pesadelo.

Fonte:
Livro enviado pelo autor.
Nilto Maciel. Tempos de Mula Preta, contos. Secretaria da Cultura do Ceará: 1981.

segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Silmar Bohrer (Lampejos) XXI


Vicência Jaguaribe (O Castelo do Nunca)


A cabecinha loura brilha ao sol das nove horas. A mãe levara-o à praia, seu programa preferido. Sob protesto, passa-lhe no corpo o protetor solar. “Mãe, isso é nojento! Melequento!” Fecha a cara e começa a cavar um buraco na areia, para construir o que chama de Castelo do Nunca. “- Porque Castelo do Nunca, filho?” “— Porque eu nunca termino ele. A maré sempre vem e derruba ele antes de ficar pronto.”

O menino tem cinco anos e está sentindo a separação dos pais. As vezes, nega-se a sair com o pai, que também não leva muito jeito com criança. Naquela manhã, ele irá pegá-lo na praia e levá-lo a almoçar. A mãe sabe que haverá atrito: o pai não aprova a dieta do filho. E quase sempre a criança volta com fome, porque não consegue comer o que o pai quer que ele coma.

A mãe vira-se e vê que o Castelo está bem adiantado. Olha para o mar e percebe que a maré começa a subir e em poucos minutos destruirá o que o filho fizera com tanto empenho. Ele tem jeito para a coisa. Talvez resolva ser escultor. Mas há também a possibilidade de fazer engenharia ou arquitetura.

Fica observando e sente orgulho quando percebe que aquele montinho de areia molhada vai ganhando, realmente, forma de castelo: a muralha, cercando-o; as torres projetando-se a intervalos regulares; a ponte levadiça delineando-se.

Quando o menino começa a modelar os portões, vem uma pequena onda e derruba uma parte da muralha. Ele deixa escapar um poxa e completa com um chute a obra de destruição que a maré começara, Por que tem de ser assim? Por que a maré não deixa o castelo crescer? Vai ser sempre o Castelo do Nunca? Nunca vai ser terminado? Nunca vai ser enfeitado? Nunca vai ficar pronto para que as pessoas que passam achem ele bonito?

A mãe percebe o desgosto do filho. “– Vamos tomar banho, antes que a maré fique cheia demais. Vamos!” Pega na mão do menino e, cuidadosamente, vai entrando na água. Vê que ele se descontrai e começa a movimentar os braços, fingindo nadar, como sempre faz. Uma onda mais forte derruba-o e leva-o até a areia. Ele levanta-se rindo e pergunta se ela o vira nadando.

Ela olha-o rapidamente e grita que não entre mais. A água está ficando cheia de sargaço. Mas ele ou não ouve a recomendação da mãe ou não lhe dá atenção. Rindo e espadanando a água, vai até o local onde ela luta para desvencilhar-se dos tentáculos que enlaçam suas pernas.

Quando consegue aproximar-se, o menino desequilibra-se e grita. Com muito custo, a mulher levanta-o e o põe nos braços, Dividida entre o filho e os sargaços, ela também acaba desequilibrando-se e deixa a criança cair. Agacha-se e consegue levantá-lo. Tenta sair da água com ele no colo, mas os malditos sargaços apertam cada vez mais seu abraço de sucuri. Uma onda mais forte arranca-lhe o menino dos braços. Num esforço sobre-humano, ela disputa o filho com aquele poder violento e traiçoeiro e vence-o mais uma vez. Está cansada! Exausta! Precisa sair imediatamente da água, que já subira o suficiente para destruir o Castelo do Nunca.

O menino, apavorado, agarra-se a seu pescoço, quase sufocando-a. Mas ela consegue, mesmo manietada pelos sargaços, dar alguns passos cm direção à praia. Outra onda forte, no entanto, arremessa-a no chão e arranca-lhe o filho dos braços, ela rola pela areia, engolindo o líquido salgado, que lhe penetra pela boca, pelo nariz e pelos ouvidos. Com muita dificuldade, consegue ajoelhar-se e procura o menino.

Mergulha... emerge... torna a mergulhar... emerge mais uma vez. A essa altura, alguns banhistas haviam percebido que algo estava errado. Aproximam-se dela, que aponta para o mar e só consegue gritar: “- Meu filho! Meu filho!"

Retiram-na à força de dentro da água. Mas ela luta para voltar. O filho ficou lá. Ela precisa resgatá-lo. Alguns homens mergulham e tentam encontrar o menino. Nada. O mar tragara-o e não se tinha certeza se o regurgitaria. A mãe rola na areia e grita pelo filho. O barulho das águas abafa-lhe a voz. Aquelas águas que atropelaram a vida do seu menino são as mesmas águas que lhe negaram, a ele, o direito e o prazer de terminar o seu castelo. O filho nunca mais poderá brincar de engenheiro ou de escultor. Nunca terá o prazer de concluir o Castelo do Nunca, que nunca mais será instrumento de sua fantasia.

Do outro lado do calçadão, um homem de estatura acima da mediana, de bermuda marrom e camiseta branca, estaciona o carro. Atravessa a rua, sobe o calçadão, desce-o e dirige-se ao ponto combinado com a ex-mulher. É quando percebe uma pequena multidão disposta em círculo. Aproxima-se e abre espaço. O que vê congela-lhe o sangue. Onde está o menino? É da boca de estranhos que recebe a notícia da tragédia. A mulher continua em estado de choque. Desesperado e sem a olhar, ele deixa-a só, com a sua dor, e foge, carregando a sua. Atravessa o calçadão, pega o carro e afasta-se dali.

Fonte:
Vicência Jaguaribe. Ancoragem em porto aberto. Rio de Janeiro: Câmara Brasileira de Jovens Escritores, 2010.

Heitor Stockler de França (Jardim de Trovas)


A continuar isto assim,
eu penso, só Deus prevê...
Não sei que será de mim
nem que há de ser de você.

A estima quando floresce
e se transforma em amor,
tem a força de uma prece,
ouvida pelo Senhor!

A minha amada eu escrevo,
se faltar tinta e papel,
em uma folha de trevo
e a pena molhada em mel.

A razão da minha mágoa,
motivo do meu sofrer,
põe meus olhos rasos d’água
por ser tolo em te querer.

A saudade é sempre grata
ao meu, ao teu coração,
porque nos lembra e retrata
horas de satisfação.

Cartilha de sensações
na linguagem de quem ama...
Rejubila os corações
e põe as almas em chama!

Cativa-me o beijo quente
dos lábios da minha amada,
como a papoula atraente
fascina a abelha dourada.

Como a terra se contrai
sob a geada nos caminhos,
definha o amor e se esvai
quando há falta de carinhos.

Confesso, é no teu perfume
e no sabor do teu beijo,
que para mim se resume
a volúpia do desejo.

Contei o tempo que falta
para ter você ao meu lado,
tremi de conta tão alta,
descrente e desconsolado.

Coração sossega e canta,
não busque na dor guarida,
pois é no canto que encanta
que está o encanto da vida.

Cruzamo-nos no caminho
por mero acaso. Confesso
que orei, embora sozinho,
novo encontro no regresso.

Denotam tuas atitudes
e norma de vida calma
a nobreza e as virtudes
que ornamentam a tua alma.

Difícil é compreender
a extravagância do amor,
que quanto mais faz sofrer,
mais se lhe quer o sabor.

Disseste que eras só minha,
que outro olhar não se lhe dava,
mas outro olhar te entretinha
sempre que o meu se afastava.

Do coração, igualmente,
há mister sentir o ardor,
pois ele é quem faz a gente
cair nos braços do amor.

Espero-te, amor, contente,
cantarolando a vibrar,
porque faz tão bem à gente
cantando o amor esperar.

Esses cabelos cor de ouro
a moldurar tua beleza,
são o fúlgido tesouro
que te deu a natureza.

Eu juro por qualquer santo
que já não creio em você...
No fingimento, entretanto,
eu creio...Não sei porquê.

Felicidade? Quem dera!...
Ela é rara e fugidia...
Quem a espera desespera
por esperar noite e dia.

Grande enigma é o saber
o que deseja a mulher...
Pensa que sabe querer
mas nunca sabe o que quer.

Meu amor e teu amor
são afins conforme os vejo,
tal qual o perfume e a flor,
a insinuação e o desejo.

Meu coração bate tanto
quando longe do meu bem,
que parece estar em pranto
por afagos que não tem.

Meu coração, leal amigo,
que faz loucuras por mim,
me acautela que é perigo,
querer e amar tanto assim

Não há um instante somente,
nem um minuto sequer,
que me não baile na mente
o teu perfil de mulher.

Não julgues que a simpatia
seja fugaz, passageira...
É imutável, contagia
se espontânea e verdadeira.

Naquele instante do adeus
do nosso encontro fortuito,
teus olhos e os olhos meus,
discretos, disseram muito.

Nesta vida o teu caminho
para onde quer que tu fores,
será um relvado de arminho
coberto inteiro de flores.

O céu de estrelas constela
o infinito azul de Deus
mas nenhum dos astros vela
o fulgor dos olhos teus.

O teu sorriso me estende
as malhas da sedução,
e delas não se defende
meu valente coração.

Pensar em ti como eu penso
e muito tenho pensado,
diz, a rir, o meu bom senso,
que é o meu divino pecado.

Procurei a cartomante
que previu lendo-me a sorte:
– Um amor assim constante,
só se acaba com a morte.

Proponho com devoção:
Permutemos os presentes...
Eu te dou meu coração,
tu me dás mil beijos quentes.
Quando chegaste, a alegria
inundou meu coração;
quando partiste, partia
contigo a minha ilusão.

Quando longe de você
mais sinto quanto lhe quero...
A ausência, como se vê,
não me abate porque espero.

Quando te vi, que surpresa!
Bem rara é beleza assim.
Vieste ao mundo, com certeza
para encantares a mim...

Revelo, com embaraço,
a supor que ninguém crê,
que já outra coisa não faço
do que pensar em você.

Se a saudade que me empolga
teimar em me perseguir
sem me dar nenhuma folga,
acabo por sucumbir.

Se há excesso de fantasia
nos temas que aqui deponho,
perdoa, é o sol da alegria
glorificando o meu sonho!...

Se me houvesses revelado
não ter amor por ninguém,
não ficaria ao teu lado
a te chamar de meu bem.

Suponho serem só minhas
as mágoas do coração,
pelo que externam as linhas
da palma da minha mão.

Tenho ciúme até das rosas
abertas no teu jardim,
pois, sei que ao vê-las, formosas,
te esqueces logo de mim.

Teus olhos azuis de santa,
de blandícia* na expressão,
a quem os fita acalanta
no ritual da sedução.

* Blandícia – meiguice, ternura
___________________________________
 
Heitor Stockler de França nasceu em Palmeira, Paraná, em 5 de novembro de 1888.
Marcou sua passagem como cidadão pioneiro e empreendedor do Paraná. Foi um dos cinco homens fundadores da Confederação Nacional da Indústria – CNI; Fundador da Federação das Indústrias do Estado do Paraná – FIEP, seu primeiro presidente e por quatorze anos consecutivos; Fundador e diretor do Serviço Social da Indústria –SESI/PR; fundador e presidente da União Brasileira de Trovadores – UBT Seção de Curitiba e Paraná; Fundador e presidente do Centro de Letras do Paraná e Presidente do Clube Atlético Paranaense. Homem que honrou a família, a natureza, a pátria e a cultura, obstinadamente.

Foi advogado, jornalista, industrial, comerciante, pecuarista, poeta, escritor, cronista, trovador, contista, historiador, teatrólogo, novelista e pesquisador devotado. Esteve sempre presente nos mais relevantes marcos da história contemporânea do Paraná. Autor de vários livros. Deixou entre centenas de poemas e trovas, quase duas mil crônicas publicadas em jornais.

Faleceu em Curitiba, em 11 de janeiro de 1975, aos 86 anos.

Em Curitiba, a casa centenária, localizada na Avenida Marechal Floriano Peixoto, onde viveu o primeiro presidente da FIEP e um dos seus fundadores, Heitor Stockler de França, deu espaço, em 2013, ao Centro Cultural que leva o nome do seu ilustre morador.
O Farol do Saber Heitor Stockler de França na R. Rio Iriri, no Bairro Alto, em Curitiba, vinculado à Escola Municipal Araucária.
Há também a Rua Heitor Stockler de França, no Centro Cívico, em Curitiba.


Fontes:
– União Brasileira de Trovadores Porto Alegre - RS. Trovas de Apollo Taborda de França e Heitor Stockler França. Coleção Terra e Céu vol. XLI. Cachoeirinha/RS: Texto Certo, 2016.
– http://www.sesipr.org.br/cultura/centros-culturais/centro-cultural-sesi-heitor-stockler-de-franca-1-27898-367965.shtml

Lima Barreto (Miss Edith e seu Tio )


A pensão familiar “Boa Vista” ocupava uma grande casa da praia do Flamengo, muito feia de fachada, com dois pavimentos, possuindo bons quartos, uns nascidos com o prédio e outros que a adaptação ao seu novo destino fizera surgir com a divisão de antigas salas e a amputação de outros aposentos.

Tinha boas paredes de sólida alvenaria de tijolos e pequenas janelas de portadas de granito e linha reta, que olhavam para o mar e para uma rua lateral, à esquerda.

A construção devia datar de cerca de sessenta anos atrás e, nos seus bons tempos, certamente possuiria, como complemento, uma chácara que se estendia para o lado direito e para os fundos, chácara desaparecida, em cujo chão se erguem atualmente prédios modernos, muito pelintras e enfezados, ao lado da velha, forte e pesadona edificação dos outros tempos.

Os aposentos e corredores da obsoleta moradia tinham uma luz especial, uma quase penumbra, esse toque de sombra do interior das velhas casas, no seio da qual flutuam sugestões e lembranças.

O prédio sofrera acréscimos e mutilações. Da antiga chácara, das mangueiras que a “viração” todas as tardes penteava a alta cabeleira verde, das jaqueiras, de ramos desorientados, das jabuticabeiras, dos sapotizeiros tristes, só restava um tamarindeiro no fundo do exíguo quintal, para abrigar nos posmerídios de canícula, sob os ramos que caíam lentamente como lágrimas, algum hóspede sedentário e amoroso da sombra maternal das grandes árvores.

O grande salão da frente – a sala de honra das recepções e bailes – estava dividido em fatias de quartos e dele só ficara, para lembrar o seu antigo e nobre mister, um corredor acanhado, onde os hóspedes se reuniam, após o jantar, conversando sentados em cadeiras de vime, ignobilmente mercenárias.

Dirigia a pensão Mme. Barbosa, uma respeitável viúva de seus cinquenta anos, um tanto gorda e atochada, amável como todas as donas de casas de hóspedes e ainda bem conservada, se bem que houvesse sido mãe muitas vezes, tendo até em sua companhia uma filha solteira, de vinte e poucos anos por aí, Mlle. Irene, que teimava em ficar noiva, de onde em onde, de um dos hóspedes de sua progenitora.

Mlle. Irene, ou melhor: Dona Irene escolhia com muito cuidado os noivos. Procurava-os sempre entre os estudantes que residiam na pensão, e, entre estes, aqueles que estivessem nos últimos anos do curso, para que o noivado não se prolongasse e o noivo não deixasse de pagar a mensalidade à sua mãe.

Isto não impedia, entretanto, que o insucesso viesse coroar os seus esforços. Já fora noiva de um estudante de direito, de um outro de medicina, de um de engenharia e descera até um de dentista sem, contudo, ser levada à presença do pretor por qualquer deles.

Voltara-se agora para os empregados públicos e toda a gente na pensão esperava o seu próximo enlace com o Senhor Magalhães, escriturário da alfândega, hóspede também da “Boa Vista”, moço muito estimado pelos chefes, não só pela assiduidade ao emprego como pela competência em coisas de sua burocracia aduaneira e outras mais distantes.

Irene caíra do seu ideal de doutor até aceitar um burocrata, sem saltos, suavemente; e consolava-se interiormente com essa degradação do seu sonho matrimonial, sentindo que o seu namorado era tão ilustrado como muitos doutores e tinha razoáveis vencimentos.

Na mesa, quando a conversa se generalizava, ela via com orgulho Magalhães discutir Gramática com o doutor Benevente, um moço formado que escrevia nos jornais, levá-lo à parede e explicar-lhe tropos de Camões.

E não era só nesse ponto que o seu próximo noivo demonstrava ser forte; ele o era também em Matemática, como provara questionando com um estudante da Politécnica sobre Geometria e com o doutorando Alves altercava sobre a eficácia da vacina, dando a entender que conhecia alguma coisa de Medicina.

Não era, pois, por esse lado do saber que lhe vinha a ponta de descontentamento. De resto, em que pode interessar a uma noiva o saber do noivo?

Aborrecia-lhe um pouco a pequenez do Magalhães, verdadeiramente ridícula e, ainda por cima, o seu canhestrismo de maneiras e vestuário.

Não que ela fosse muito alta, como se pode supor; porém, algo mais do que ele, era Irene fina de talhe, longa de pescoço, ao contrário do futuro noivo que, grosso de corpo e curto de pescoço, ainda parecia mais baixo.

Naquela manhã, quando já se ia em meio dos preparativos do almoço, o tímpano elétrico anunciou estrepitosamente um visitante.

Mme. Barbosa, que superintendia na cozinha o preparo da primeira refeição dos seus hóspedes, àquele apelo da campainha elétrica, de lá mesmo gritou à Angélica:

— Vá ver quem está, Angélica!

Essa Angélica era o braço direito da patroa. Cozinheira, copeira, arrumadeira e lavadeira, exercia alternativamente cada um dos ofícios, quando não dois e mais a um só tempo.

Muito nova, viera para a casa de Mme. Barbosa ao tempo em que esta não era ainda dona de pensão; e, em companhia dela, ia envelhecendo sem revoltas, nem desgostos ou maiores desejos.

Confidente da patroa e, tendo visto crianças todos os seus filhos, partilhando as alegrias e agruras da casa, recebendo por isso festas e palavras doces de todos, não se julgava bem uma criada, mas uma parenta pobre, a quem as mais ricas haviam recolhido e posto a coberto dos azares da vida inexorável.

Cultivava por Mme. Barbosa uma gratidão ilimitada e procurava com o seu auxílio humilde minorar as dificuldades da protetora.

Tinha guardado uma ingenuidade e uma simplicidade de criança que, de modo algum, diminuíam a atividade pouco metódica e interesseira dos seus quarenta e tantos anos.

Se faltava a cozinheira, lá estava ela na cozinha; se bruscamente se despedia a lavadeira, lá ia para o tanque; se não havia cozinheira e copeiro, Angélica fazia o serviço de uma e de outro; e sempre alegre, sempre agradecida à Mme. Barbosa, Dona Sinhá, como ela chamava e gostava de chamar, não sei por que irreprimível manifestação de ternura e intimidade.

A preta andava lá pelo primeiro andar na faina de arrumar os quartos dos hóspedes mais madrugadores e não ouviu nem o tinir do tímpano, nem a ordem da patroa. Não tardou que a campainha soasse outra vez e desta, imperiosa e autoritária, forte e rude, dando a entender que falava por ela a própria alma impaciente e voluntariosa da pessoa que a tocava.

Sentiu a dona da pensão que o estúpido aparelho lhe queria dizer qualquer coisa importante e não mais esperou a mansa Angélica. Foi em pessoa ver quem batia. Quando atravessou o “salão”, reparou um instante na arrumação e ainda ajeitou a palmeirita que, no seu pote de faiança, se esforçava por embelezar a mesa do centro e fazer gracioso todo o aposento.

Prontificou-se em abrir a porta envidraçada e logo encontrou um casal de aparência estrangeira. Sem mais preâmbulos, o cavalheiro foi dizendo com voz breve e de comando:

— Mim quer quarto.

Percebeu Mme. Barbosa que lidava com ingleses e, com essa descoberta, muito se alegrou porque, como todos nós, ela tinha também a imprecisa e parva admiração que os ingleses, com a sua arrogância e língua pouco compreendida, souberam nos inspirar. De resto, os ingleses têm fama de dispor de muito dinheiro e ganhem duzentos, trezentos, quinhentos mil réis por mês, todos nós logo os supomos dispondo dos milhões dos Rothschilds.

Mme. Barbosa alegrou-se, portanto, com a distinção social de tais hóspedes e com a perspectiva dos extraordinários lucros, que certamente lhe daria a riqueza deles. Apressou-se em ir pessoalmente mostrar a tão nobres personagens os cômodos que havia vagos.

Subiram ao primeiro andar e a dona da pensão apresentou com os maiores gabos um amplo quarto com vista para a entrada da baía – um rasgão na tela mutável do oceano infinito.

— Creio que servirá este. Aqui morou o doutor Elesbão, deputado por Sergipe. Conhecem?

— Oh, não, fez o inglês, secamente.

— Mando pôr uma cama de casal…

Ia continuando Mme. Barbosa, quando o cidadão britânico interrompeu-a, como se estivesse zangado:

— Oh! Mim não é casada. Miss aqui, meu sobrinha.

A miss por aí baixou os olhos cheios de candura e inocência; Mme. Barbosa arrependeu-se da culpa que não tinha, e desculpou-se:

— Perdoe-me… Não sabia…

E ajuntou logo:

— Então querem dois quartos?

A companheira do inglês, até aí muda, respondeu com calor pouco britânico:

— Oh! sim, senhora!

Mme. Barbosa prontificou-se:

— Tenho, além deste quarto, um outro.

— Where? perguntou o inglês.

— Como? fez a proprietária.

— Onde? traduziu miss.

— Ali.

E Mme. Barbosa indicou uma porta quase fronteira à do aposento que mostrara em primeiro lugar. Os olhos do inglês fuzilaram bruscamente de alegria e, nos de miss, houve um relâmpago de satisfação. A um tempo, exclamaram:

— Muito bom!

— All right!

Examinaram com pressa os aposentos e já se dispunham a descer quando, no patamar da escada, se encontraram com a Angélica. A preta olhou-os demorada e fixamente, com espanto e respeito; parou estática, como em face de uma visão radiante. A luz mortiça da claraboia empoeirada, ela viu, naqueles rostos muito alvos, naqueles cabelos louros, naqueles olhos azuis, de um azul tão doce e imaterial, santos, gênios, alguma coisa de oratório, de igreja, da mitologia de suas crenças híbridas e ainda selvagens.

Ao fim de instantes de muda contemplação, continuou o seu caminho, carregando baldes, jarros, moringas, inebriada na visão, enquanto a sua patroa e os ingleses iniciaram a descida, durante a qual não se cansou Mme. Barbosa de elogiar o sossego e o respeito que havia na sua casa. Mister dizia – yes; e miss também- yes.

Prometeram mandar as malas no dia seguinte e a dona da pensão, tão comovida e honrada com a futura presença de tão soberbos hóspedes, que nem lhes falou no pagamento adiantado ou fiança.

Na porta da rua, ainda madame se deixou ficar embevecida, contemplando os ingleses. Viu-os entrar no bonde; admirou-lhes o império verdadeiramente britânico com que ordenaram a parada do veículo e a segurança com que se colocaram nele; e só depois de perdê-los de vista foi que leu o cartão que o cavalheiro lhe dera:

— George T. Mac. Nabs—C. E.

Radiante, certa da prosperidade de sua pensão, antevendo a sua futura riqueza e descanso dos seus velhos dias, Dona Sinhá, no carinhoso tratamento da Angélica, penetrou pelo interior do casarão adentro com um demorado sorriso nos lábios e uma grande satisfação no olhar.

Quando chegou a hora do almoço, logo que os hóspedes se reuniram na sala de jantar, Mme. Barbosa procurou um pretexto para anunciar aos seus comensais a boa nova, a notícia maravilhosamente feliz da vinda de dois ingleses para a sua casa de pensão.

Olhando a sala, escolhera a mesa que destinaria ao tio e sobrinha. Ficaria a um canto, bem junto à última janela, que dava para a rua, ao lado, e à primeira que se voltava para o quintal. Era o lugar mais fresco da sala e também o mais cômodo, por ficar bem distante das outras mesas. E, pensando nessa homenagem aos seus novos fregueses, de pé na sala, encostada ao imenso étagère, foi que Mme. Barbosa recomendou ao copeiro em voz alta:

— Pedro, amanhã reserve a “mesa das janelas” para os novos hóspedes.

A sala de jantar da Pensão “Boa Vista” tinha a clássica mesa de centro e outras pequenas ao redor. Forrada de papel cor-de-rosa com ramagens, era decorada com umas velhas e empoeiradas oleogravuras, representando peças de caça, mortas, entre as quais um coelho que teimava em voltar o ventre encardido para fora do quadro, dando aos fregueses de Mme. Barbosa sugestões de festins luculescos. Havia também algumas de frutas e um espelho oval. Era dos poucos compartimentos da casa que não sofrera alteração o mais bem iluminado. Tinha três janelas que davam para a rua, à esquerda, e duas outras, com uma porta ao centro, que miravam o quintal, além das comunicações interiores.

Ouvindo tão imprevista recomendação, os hóspedes todos dirigiram o olhar para ela, cheios de estranheza, como querendo perguntar quem eram os hóspedes merecedores de tão excessiva homenagem; mas a pergunta que estava em todos os olhos só foi feita por Dona Sofia. Sendo a mais antiga hóspede e possuindo uma razoável renda em prédios e apólices, gozava esta última senhora de uma tal ou qual intimidade com a proprietária. Dessa forma, sem rodeios, suspendendo um instante a refeição já começada, perguntou:

— Quem são esses príncipes, madame?

Mme. Barbosa retrucou bem alto e com certo orgulho:

— Uns ingleses ricos—tio e sobrinha.

Dona Sofia, que farejava desconfiada o contentamento da viúva Barbosa com os novos inquilinos, não pôde evitar um movimento de mau humor: arrebitou mais o nariz, já de si arrebitado, deu um muxoxo e observou:

— Não gosto desses estrangeiros.

Dona Sofia havia sido casada com um negociante português que a deixara viúva rica; por isso, e muito naturalmente, não gostava desses estrangeiros; mas teve logo, para contrariá-la, a opinião do doutor Benevente.

— Não diga tal, Dona Sofia. O que nós precisamos é de estrangeiros… Que venham… Demais, os ingleses são, por todos os títulos, credores da nossa admiração.

De há muito, o doutor procurava captar a simpatia da rica viúva, cuja abastança, famosa na pensão, atraía-o, embora a vulgaridade dela devesse repeli-lo.

Dona Sofia não respondeu à contestação do bacharel e continuou a almoçar, cheia do mais absoluto desdém.

Magalhães, no entanto, julgou-se obrigado a dizer qualquer coisa, e o fez nestes termos:

— O doutor gosta dos ingleses; pois olhe: não simpatizo com eles… Um povo frio, egoísta. `

— E um engano, veio com pressa Benevente. A Inglaterra está cheia de grandes estabelecimentos de caridade, de instrução, criados e mantidos pela iniciativa particular… Os ingleses não são esses egoístas que dizem. O que eles não são é esses sentimentais piegas que nós somos, choramingas e incapazes. São fortes e…

— Fortes! Uns ladrões! Uns usurpadores! exclamou o Major Meto.

Meto era um empregado público, promovido, guindado pela República, que impressionava à primeira vista pelo seu aspecto de candidato à apoplexia. Quem lhe visse o rosto sanguíneo, o pescoço taurino, não lhe podia vaticinar outro fim. Morava com a mulher na pensão, desde que casara as filhas; e, tendo sido auxiliar, ou coisa que valha do Marechal Floriano, guardava no espírito aquele jacobinismo do 93, jacobinismo de exclamações e objurgatórias, que era o seu modo habitual de falar.

Benevente, muito calmo, sorrindo com ironia superior, como se estivesse a discutir numa academia, com outro confrade, foi ao encontro do adversário furioso:

— Meu caro senhor; é do mundo: os fortes devem vencer os fracos. Estamos condenados…

O bacharel usava e abusava desse fácil darwinismo de segunda mão; era o seu sistema favorito, com o qual se dava ares de erudição superior. A bem dizer, nunca lera Darwin e confundia o que o próprio sábio inglês chama de metáforas, com realidades, existências, verdades inconcussas. Do que a crítica tem oposto aos exageros dos discípulos de Darwin, dos seus amplificadores literários ou sociais, do que, enfim, se vem chamando as limitações do darwinismo, ele nada sabia, mas falava com a segurança de inovador de há quarenta anos passados e ênfase de bacharel recente, sem as hesitações e dúvidas do verdadeiro estudioso, como se tivesse entre as mãos a explicação cabal do mistério da vida e das sociedades. Essa segurança, certamente inferior, dava-lhe força e o impunha aos tolos e néscios; e, só uma inteligência mais fina, mais apta a desmontar máquinas de embuste, seria capaz de fazer reservas discretas aos méritos de Benevente. Na pensão, porém, onde as não havia, todos recebiam aquelas afirmações como ousadias inteligentes, sábias e ultramodernas.

Melo, ouvindo a afirmação do doutor, não se conteve, exaltou-se e exclamou:

— E por isso que não progredimos… Homens há, como o senhor, que dizem tais coisas… Nós precisávamos de Floriano… Aquele sim…

O nome de Floriano era para Melo uma espécie de amuleto patriótico, de égide da nacionalidade. O seu gênio político seria capaz de fazer todos os milagres, de realizar todos os progressos e modificações na índole do país.

Benevente não lhe deixou muito tempo e objetou, pondo de lado a parte de Floriano:

— E um fato, meu caro senhor. O nosso amor à verdade leva-nos a tal convicção. Que se há de fazer? A ciência prova.

A palavra altissonante de ciência, pronunciada naquela sala mediocremente espiritual, ressoou com estridências de clarim a anunciar vitória. Dona Sofia virou-se e olhou com espanto o bacharel; Magalhães abaixou afirmativamente a cabeça; Irene arregalou os olhos; e Mme. Barbosa deixou de arrumar as xícaras de chá no étugère.

Melo não discutiu mais e Benevente continuou a exaltar as virtudes dos ingleses. Todos concordaram com ele sobre os grandes méritos do povo britânico: a sua capacidade de iniciativa, a sua audácia comercial, industrial e financeira, a sua honestidade, a sua lealdade e, sobretudo, rematou Florentino: a sua moralidade.

— Na Inglaterra, afirmou este último, os rapazes se casam tão puros como as raparigas.

Irene enrubesceu ligeiramente e Dona Sofia levantou-se estrepitosamente, arrastando a cadeira em que estava sentada.

Florentino, hóspede quase sempre mudo, era um velho juiz de direito aposentado, espiritista convencido, que vagava no mundo o olhar perdido de quem perscruta o invisível.

Não percebeu que a sua afirmação havia escandalizado as senhoras e continuou serenamente:

— Lá não há esse nosso desregramento, essa falta de respeito, essa impudicícia de costumes… Há moral… O senhor quer ver uma coisa: outro dia fui ao teatro. Quer saber o que me aconteceu? Não pude ficar lá… Era tal a imoralidade que…

— Que peça era, doutor?—indagou Mme. Barbosa.

— Não sei bem… Era Iaiá me deixe.

— Ainda não vi, disse candidamente Irene.

— Pois não vá, menina! fez com indignação o doutor Florentino. Não se esqueça do que Marcos diz: “Qualquer que fizer a vontade de Deus, esse é meu irmão, e minha irmã, e minha mãe, isto é, de Jesus.”

Florentino gostava dos Evangelhos e os citava a cada passo, com ou sem propósito.

Alguns hóspedes levantaram-se, muitos já se tinham retirado. A sala esvaziava-se e não tardou que o jovem Benevente se erguesse também e saísse. Antes passeou pela sala o seu olhar de pequeno símio, cheio de pequeninas espertezas, rematou sentenciosamente:

— Todos os povos fortes, como os homens, são morais, isto é, são castos, doutor Florentino. Concordo com o senhor.

Conforme tinham prometido, no dia seguinte, vieram as malas dos ingleses; mas não apareceram nesse dia na sala de jantar, nem em outras partes da pensão se mostraram aos hóspedes. Só no outro dia imediato, pela manhã, à hora do almoço, foram vistos. Entraram sem descansar o olhar sobre ninguém; cumprimentaram entre os dentes e foram sentar-se no lugar que Mme. Barbosa lhes indicou.

Como parecessem não gostar dos pratos que lhes foram apresentados, Dona Sinhá apressou-se em ir receber as suas ordens e logo se pôs a par de suas exigências e correu à cozinha para as providências necessárias.

Miss Edith, como se sonhe mais tarde chamar-se a moça inglesa, e o tio comiam calados, lendo cada um para o seu lado, desinteressados de toda a sala.

Vendo Dona Sofia os rapapés que a dona da pensão fazia ao par albiônico, não pôde deixar de dar um muxoxo, que era o seu modo costumeiro de criticar e desprezar.

Todos, porém, olhavam de soslaio para os dois, sem animo de dirigir-lhes a palavra ou fixá-los mais demoradamente. Assim foi o primeiro e nos dias que se seguiram. A sala fez-se silenciosa; as conversas bulhentos cessaram; e, se alguém queria pedir qualquer coisa ao copeiro, falava baixo. Era como se de todos se tivesse apossado a emoção que a presença dos ingleses trouxera ao débil e infantil espírito da preta Angélica.

Os hóspedes acharam neles não sei o que de superior, de superterrestre; deslumbraram-se e acharam-se de um respeito religioso diante daquelas banalíssimas criaturas nascidas numa ilha da Europa ocidental.

A moça, mais que o homem, inspirava esse respeito. Ela não tinha a fealdade habitual das inglesas de exportação. Era até bem gentil de rosto, com uma boca leve e uns lindos cabelos louros, a puxar para o veneziano de fogo. As suas atitudes eram graves e os seus movimentos lentos, sem preguiça ou indolência. Vestia-se com simplicidade e discreta elegância.

O inglês era outra coisa: brutal de modos e fisionomia. Posava sempre de Lord Nelson ou Duque de Wellington; olhava todos com desdém e superioridade esmagadora e realçava essa sua superioridade não usando ceroulas, ou vestindo blusas de jogadores de golfe ou bebendo cerveja com rum.

Não se ligaram a ninguém na pensão e todos suportavam aquele desprezo como justo e digno de entes tão superiores.

Nem mesmo à tarde, quando, após o jantar, vinham todos, ou quase, para a sala da frente, eles se dignavam trocar palavras com os companheiros de casa. Afastavam-se e iam para a porta da rua, onde se mantinham geralmente calados: o inglês fumando, com os olhos semicerrados, como se incubasse pensamentos transcendentes; e Miss Edith, com o cotovelo direito apoiado no braço da cadeira e a mão na face, olhando as nuvens, o céu, as montanhas, o mar, todos esses mistérios fundidos na hora misteriosa do crepúsculo, como se o quisesse absorver, decifrá-lo e tirar dele o segredo das coisas futuras. Os poetas que passassem no bonde, certamente, veriam nela uma casta druidesa, uma Veleda, descobrindo naquele instante imperecível o que havia de ser pelos dias vindouros em fora.

Eram assim na pensão, onde faziam trabalhar as imaginações no imenso campo do sonho. Benevente julgava-os nobres, um duque e sobrinha; tinham o ar de raça, maneiras de comando, depósito da hereditariedade secular dos seus ancestrais, começando por algum vagabundo companheiro de Guilherme da Normandia; Magalhães pensava-os parentes dos Rothschilds; Mme. Barbosa supunha Mr. Mac. Nabs gerente de um banco, metendo todos os dias as mãos em tesouros da gruta de Ali-Babá; Irene admitia que ele fosse um almirante, viajando por todos os mares da terra, a bordo de poderoso couraçado; Florentino, que consultara os espaços, sabia-os protegidos por um espírito superior; e o próprio Meio calara a sua indignação jacobina para admirar as fortes botas do inglês, que pareciam durar a eternidade.

Todo o tempo em que estiveram na pensão, o sentimento, que a respeito deles dominava os seus companheiros de casa, não se modificou. Até em alguns cresceu, solidificou-se, cristalizou-se em uma admiração beata e a própria Dona Sofia, vendo que a sua consideração na casa não diminuía, partilhou a admiração geral.

Em Angélica, a coisa tomara feição intensamente religiosa. Pela manhã, quando levava chocolate ao quarto da miss, a pobre preta entrava medrosa, tímida, sem saber como tratar a moça, se de dona, se de moça, se de patroa, se de minha Nossa Senhora.

Muitas vezes temia interromper-lhe o sono, quebrar-lhe o sereno encanto do rosto adormecido na moldura dos cabelos louros. Deixava o chocolate sobre a mesa de cabeceira; a infusão esfriava e a pobre negra era mais tarde repreendida, em uma algaravia ininteligível, pela deusa que ela adorava. Não se emendava, porém; e, se encontrava a inglesa dormindo, a emoção do momento apagava a lembrança da repreensão. Angélica deixava o chocolate a esfriar, não despertava a moça e era de novo repreendida.

Em uma dessas manhãs, em que a preta foi levar o chocolate à sobrinha de Mr. George, com grande surpresa sua, não a encontrou no quarto. Em começo pensou que estivesse no banheiro; mas havia passado por ele e o vira aberto. Onde estaria? Farejou um milagre, uma ascensão aos céus, por entre nuvens douradas; e a miss bem o merecia, com o seu rosto tão puramente oval e aqueles olhos de céu sem nuvens…

Premida pelo serviço, Angélica saiu do aposento da inglesa; e foi nesse instante que viu a santa sair do quarto do tio, em trajes de dormir. O espanto foi imenso, a sua ingenuidade dissipou-se e a verdade queimou-lhe os olhos. Deixou-a entrar no quarto e, cá no corredor, mal equilibrando a bandeja nas mãos, a deslumbrada criada murmurou entre os dentes:

— Que pouca vergonha! Vá a gente fiar-se nesses estrangeiros… Eles são como nós…

E continuou pelos quartos, no seu humilde e desprezado mister.

domingo, 25 de agosto de 2019

Varal de Trovas n. 63


Malba Tahan (A Seita dos Iakinis)


Quando o príncipe Livati de Miapola voltava de uma caçada, na grande floresta de Baladeva, viu, casualmente, junto a uma casa rústica da estrada, formosa rapariga,
que trabalhava em grosseiro tear.

Apaixonou-se o príncipe por essa jovem, e, como não pudesse refrear os impulsos de seu coração, dirigiu-se, no mesmo instante, à encantadora desconhecida e pediu-a em casamento.

- Não posso aceitar a vossa generosa proposta, ó príncipe! Porque já sou casada!

E contou, pesarosa, o seu triste romance:

- Meu nome é Vitória - começou - e sou filha de um brâmane muito pobre. Quando eu tinha doze anos de idade, meu pai vendeu-me a um homem perverso chamado Jaradgava, dando-me em troca de uma dívida que fizera no jogo. Meu marido, da casta dos vaixias, tem alma de chandala [1]; trata-me com desprezo, e, não raras vezes, espanca-me impiedosamente!

- Pois fujamos desse bruto! - propôs o príncipe. - Iremos para Hiamavanta e, lá bem longe, casaremos!

- Não posso fugir - replicou a moça. - Embora não sinta a menor afeição por meu algoz, estou presa por um juramento que fui obrigada a fazer!

- Vou oferecer ao teu marido avultada quantia - ajuntou o mancebo. - Estou certo de que a cobiça fará com que ele, repudiando-te, consinta em nosso casamento!

- Nada conseguireis pelo dinheiro - respondeu a moça. - Jaradgava é caprichoso e ciumento. Já apunhalou, por minha causa, um rico mercador de Benares.

E a infeliz, com voz repassada de profunda mágoa, ajuntou:

- Só poderei ser vossa esposa se for levada ao vosso palácio e entregue aos vossos cuidados pela própria mão de meu marido! E isso é impossível! Completamente impossível!

Quando o príncipe regressou, nesse dia, ao castelo, estava triste e abatido. Procurou um velho brâmane, chamado Iama, seu confidente e amigo, contou-lhe o que se havia passado e pediu-lhe que o auxiliasse a vencer a teimosia e o ciúme do facinoroso Jaradgava.

- Estou certo - respondeu o brâmane - de que V. Alteza só poderá vencer esse vaicia [2] perverso, se quiser entrar para a seita dos Iakinis!

O príncipe de Baladeva nunca ouvira falar em semelhante seita: mas resolveu seguir confiante as instruções do prudente brâmane.

No dia seguinte Livati mandou convidar o perigoso Jaradgava para exercer o cargo de mordomo do castelo oferecendo-lhe ótimo salário.  O  ciumento  vaicia  - que  ignorava a paixão do príncipe por sua esposa - aceitou, sem hesitar, o generoso oferecimento.

Alguns dias depois, o príncipe chamou Jaradgava e disse-lhe, em tom confidencial:

- Naturalmente já sabes, meu amigo, que eu pertenço à grande seita dos Iakinis. Os filiados a essa doutrina secreta dedicam a todas as mulheres um amor puro e desinteressado. Quero, portanto, que tragas hoje, ao castelo, uma rapariga de casta elevada e que seja digna, pelos seus dotes naturais, de receber as homenagens que sou obrigado a prestar, segundo as formalidades prescritas pelos iakinistas.

Não se pode calcular a surpresa com que o vaicia ouviu estas palavras. Que seita seria essa? Não estaria o rico senhor de Baladeva sofrendo das faculdades mentais?

O príncipe, como se não percebesse o espanto que a sua inesperada revelação havia causado ao administrador, ajuntou:

- Quando trouxeres a rapariga, deveras levá-la ao salão de honra. E apresentando-a, deveras dizer: - "Eis aqui a mulher que Vossa Alteza pediu!"

Jaradgava retirou-se, tendo prometido que tudo faria como fora ordenado.

Intrigava-o, porém, aquele caso.

- Vou desvendar esse mistério! - pensou. E, no dia seguinte, procurou uma rapariga muito viva e alegre, chamada Noila, e propôs-lhe que o acompanhasse até o castelo de Maipola. Noila, que cultivava toda sorte de aventuras, aquiesceu de bom grado.

Jaradgava levou-a à presença do príncipe.

- Eis aqui - exclamou, solene - a mulher que Vossa Alteza pediu!

O príncipe tomou Noila pela mão e conduziu-a, respeitosamente, ao salão de honra do castelo, cuja porta fechou.

- Vamos ter belos idílios! - murmurou o mordomo.

Quando Noila, momentos depois saiu da sala, perguntou-lhe Jaradgava que galanteios lhe havia dito o príncipe.

- Nada - respondeu Noila. - Sua Alteza colocou-me em um trono riquíssimo, ajoelhou-se a meus pés e adorou-me como se eu fosse uma nova deusa! Obsequiou-me, por fim, dando-me vestidos, enfeites e joias!

E a jovem mostrou ao mordomo do castelo os ricos anéis, os colares, as pomadas e as rutilantes peças de ouro que recebera.

- É estranha essa religião! - murmurou Jaradgava.

Alguns dias depois, o príncipe ordenou a Jaradgava que lhe trouxesse outra rapariga, pois já era chegada, novamente, a ocasião de prestar as homenagens devidas à deusa dos Iakinis.

O mordomo trouxe, desta vez, uma donzela chamada Naraína. Passou-se tudo como da primeira vez. recebendo a jovem, que era da casta dos párias [3], valiosa recompensa.

- É extraordinário! - pensava Jaradgava, cada vez mais intrigado. - Parece-me que essa seita dos Iakinis não passa de uma loucura do príncipe! Não creio existirem no mundo dois homens que tenham, em relação às mulheres formosas, tão estranha maneira de proceder!

Um dia, porém, quando o desconfiado Jaradgava voltava de casa, encontrou sob uma árvore, junto à estrada, um velho brâmane. absorto com a leitura de um grande livro.

E Jaradgava, aproximando-se do velho, perguntou-lhe:

- É verdade, ó brâmane! Que existe no mundo uma seita chamada Iakinis?

O brâmane, que não era outro senão o prudente Iama, que naquele lugar fora postar-se já de propósito - respondeu:

- É verdade, sim, meu filho! A grande seita dos Iakinis existe, há mais de dez séculos, espalhada pelo mundo. Os adeptos dessa elevada doutrina faz o juramento sagrado de respeitar a mulher e de prestar homenagens constantes ao sexo feminino, reduzindo todo esse culto a uma admiração platônica, pura e desinteressada.

E o sábio concluiu, gravemente:

– Os iakinistas, homens extremamente puros, são incapazes de tocar em uma mulher!

Agradeceu Jaradgava ao bom brâmane a preciosa informação e, nesse dia, quando regressou ao castelo, estava já plenamente convencido de que a seita dos Iakinis era, na Índia, uma grande realidade.

Uma semana depois, o príncipe pediu ao seu mordomo que trouxesse ao castelo, para o cerimônia iakinista, uma jovem de boa família.

- E se eu trouxesse minha esposa? - pensou Jaradgava. - É claro que não haveria nisso mal algum! Esses bons iakinistas são inofensivos!

E murmurou, cheio de ambição:

- Bela ideia! Com os presentes que Vitória receber do príncipe estarei riquíssimo em pouco tempo!

O ambicioso vaicia foi nesse mesmo dia a casa e disse à esposa:

- Vou levar-te ao castelo do príncipe de Maipola. Deverás, ao chegar, obedecer a tudo o que o príncipe determinar!

A jovem fitou com indizível espanto o seu terrível marido. Quem teria feito mudar de ideia àquele homem caprichoso e mau?

Jaradgava levou a esposa ao castelo e, na presença do príncipe, exclamou, como já fizera das outras vezes:

- Eis aqui a mulher que Vossa Alteza pediu!
   
O príncipe tomou-a pela mão, levou-a para o grande salão do castelo e, depois de ter fechado cuidadosamente a porta, assim falou:

- Bem vês, querida Vitória, que foi o teu próprio marido que para aqui te quis trazer! Estás desligada de teu juramento! Convenci-o de que ele deveria consentir em nosso matrimônio!

E, ante o incalculável espanto da moça, o príncipe ajuntou:

- Fujamos depressa! Jaradgava pode arrepender-se, de repente, do ato de generosidade que acaba de praticar.

O príncipe abriu uma porta secreta que ficava ao fundo do salão. Foi por essa porta que os dois namorados fugiram, sem que Jaradgava pudesse perceber.

Algumas horas depois foi o rancoroso vaicia sabedor do logro em que havia caído. Era, porém, muito tarde para qualquer vingança. O príncipe e Vitória já estavam longe!

E ainda hoje, na índia, os velhos brâmanes contam:

- Era uma vez uma moça chamada Vitória, que entrou por uma porta, saiu por outra e... acabou-se a história!
_________________________
Notas:
[1] Chandala, na Índia, é o indivíduo expulso da sua casa.
[2] Vaicia - Uma das quatro maiores castas em que se divide o povo hindu.
[3] Párias - Casta antiga, perfeitamente definida, que não é a última nem das últimas. Os párias não se reputam miseráveis e abjetos nem são refugo da sociedade: entretêm o mesmo pudor de sua casta - ou o "castismo", como se diz na Índia - que os brâmanes e os xatrias e tratam as camadas que consideram mais baixas, como as de sapateiros e lavadeiras, com o puritanismo e desdém análogos aos das castas superiores.


Fonte:
Malba Tahan. Os Segredos da Alma Feminina nas Lendas do Oriente.