quinta-feira, 5 de setembro de 2019

Jardim de Trovas n. 7


Pôs a bota na janela
o coitado do José.
Papai Noel deixou nela
só remédio pra chulé...
A. A. DE ASSIS

Enquanto o Zé Liberato
sai em busca da gatinha,
pela janela entra um gato
que janta a sua sardinha!
ALOÍSIO ALVES DA COSTA

À cliente que o procura
prescreve o médico astuto:
— Dor na língua a gente cura
pelo repouso absoluto!
ANTÔNIO TORTATO

A mulher que, nesta vida,
com seus espelhos se mete,
anda sempre refletida,
mas, afinal, não reflete!,..
ARCHIMIMO LAPAGESSE

Tão unidos são os dois,
em seu idílio incomum,
que ao vê-los vê-se depois
que são dois e não são um ...
BENNY SILVA

Periga quem se apaixona
por um rosto na janela.
— Nem sempre o corpo da dona
corresponde à cara dela!...
CHICO VEIGA

Brinde a caravela, brinde-a,
que Cabral, em rota incerta,
indo descobrir a índia,
viu a Índia descoberta!...
COLBERT RANGEL COELHO

Aqui jaz magro sujeito,
que foi boa criatura.
Depois de estudar Direito,
formou-se em caricatura...
EMÍLIO DE MENESES

— Quem é que vai no caixão?
quis saber o amigo seu;
e o outro, distraidão:
— Deve ser o que morreu.
FRANCISCO DE ASSIS MENEZES

Fui casar-me e ao padre disse
pecados de arrepiar...
— Que penitência? Tolice!
Não precisas: vais casar!...
GUIMARÃES BARRETO

A pura, a doce Clarissa,
flor cristã, lírio nevado,
alterna o livro de missa
com os livros de Jorge Amado...
JOÃO RANGEL COELHO
 

Ao telefone agarrado,
sem nada dizer sequer:
– Por que estás tu tão calado?
— Falo com minha mulher...
JOSÉ COELHO DE BABO

Seja motorista ou não,
lembre esta coisa preciosa:
Nas curvas, muita atenção!
— Toda curva é perigosa...
JOSÉ CORRÊA

Presos a uma cruz, outrora,
ladrões pagavam seu feito.
Mudou. Aos ladrões de agora,
prendem-lhe uma cruz ao peito...
JOSÉ MARIA MACHADO DE ARAÚJO

Vendo-a sorrir, quando passa,
lamento não ser solteiro...
pois ela é cheia de graça
e o pai... cheio de dinheiro!
JOUBERT DE ARAÚJO SILVA

£ verdade! Mas tem graça:
numa caçada de amor,
quem não vê que é sempre a caça
que caça o seu caçador?
MAGDALENA LÉA
 

Junto ao brotinho assanhado,
diz uma velha travessa:
— Chega pra lá, seu "danado",
senão eu perco a cabeça!...
NICOMEDES ARRUDA

Nesta vida tão ingrata,
feliz é o homem que logra
casar com mulher sensata
e viver longe da sogra...
ORLANDO BRITO

Ao me dar ela o retrato,
que ideia me veio à tona!
Embora ficasse grato,
queria mesmo era a dona...
PAULO DE TARSO COSTÁBILE

Pra que foguete, pra quê?
Pra ir á lua distante?
Eu quando beijo você
não subo aos céus num instante?
WILSON MONTEMÓR

Fonte:
Aparício Fernandes. A Trova no Brasil: história e antologia. São Cristóvão/RJ: Artenova, 1972.

Raul Pompéia (A Andorinha da Torre)


Cada um tem no seu espírito as suas recordações, classificadas, arranjadas, superpostas, as mais recentes por cima, as mais antigas por baixo, numa ordem admirável, que apenas ligeiramente é perturbada pelo decurso de um grande tempo, suprimindo-se algumas lembranças ou deslocando-se outras. Basta, porém, que uma causa desperte a adormecida reminiscência, para que venha por assim dizer, à tona do espírito a mais antiga imagem do passado. Esta causa pode ser qualquer, uma harmonia que se ouviu outrora e que novamente se ouve, um lugar por onde algum dia, passou-se e que se torna a ver, um painel, uma voz, uma fisionomia, um aspecto... que lembram-nos pela semelhança ou pelo contraste um aspecto, uma fisionomia, um painel que noutro tempo nos impressionaram...

Sempre que ouço a música de bronze que as torres derramam pelo espaço, turbilhões de uma sonoridade grave, solene, religiosa, ou alegres, esfuziadas, frescas e agudas como gritos de criança, caprichosas e várias como voos de andorinha; sempre que chega-me a voz dos sinos, cantando saudosamente na linha azul do horizonte, como um vago salmear flutuando ao vento, não é da missa que eu me lembro, nem das suntuosidades católicas de veludo franjado a ensanefarem* as arcárias (arcada) do templo; nem da fita de fumo com que o turíbulo vai escrevendo coisas fantásticas no ar; nem do dorso do padre recamado de florões de ouro sobre cetim branco ou roxo; nem da coroinha feita a navalha, redonda como as hóstias mostrando a pele branca veiada de azul, que sobe e desce, à medida que dobram-se ou levantam-se as reverências do oficiante; o sino de nada disso me faz lembrar, nem mesmo das carinhas pálidas das meninas que cantam ao coro, nem do semblante desenxabido e choramingas das santas de pau mal talhado...

Desde muito tempo que o serviço da torre da Igreja de X estava confiado ao velho Emílio...

Era aquele homem de barbas longas e brancas, espécie dessas figuras com que se costuma fazer a imagem mítica dos grandes rios, era aquele velho que via-se de tarde, à janela da torre sob a cúpula enorme do sino grande, olhando vagamente para o espaço, sem dar atenção ao burburinho da cidade, que circulava nas ruas lá embaixo...

Os mais antigos moradores do lugar lembravam-se de que Emílio fora sempre o mesmo homem de barbas longas e brancas, o mesmo, como a ruína consagrada pelo tempo, que nunca fica mais velha. Respeitava-se muito ao velho sineiro. Era o mais honrado dos homens e, além disso, era o avô da mais galante criança que se tem visto.

Por aqueles cinco quarteirões em volta não havia quem não gostasse da andorinha da torre. Festejavam-na muito, davam-lhe doces e beijos que não havia mãos a medir; sentiam só que ela fugisse tanto a meter-se na torre com o avô e esquecesse pelos velhos amigos de bronze que moravam lá no alto as pessoas da cidade que tanto a queriam.

Mas como havia de ser se ela amava perdidamente os seus sinos e o seu avô?... Achava os sinos frios demais e pachorrentos como uns homens de idade, mas, em compensação, admirava-os, quando vovô Emílio despertava-lhes a sanha e os fazia pularem, voltearem como clowns, precipitarem-se no espaço como se fossem desabar e ressurgirem para o alto, com a boca largamente aberta, como um sorriso de gigante satisfeito.

Pareciam mudos, no silêncio do repouso, como pareciam imóveis e inabaláveis; a um gesto, entretanto, do velho Emílio, toda aquela imobilidade movia-se em viravoltas céleres e vertiginosas, toda aquela mudez vociferava, em sonoros estampidos e envolvia a torre numa trovoada de harmonias gigantescas.

A pequena Rita admirava os sinos. Esta admiração transformava-se em amorosa simpatia. Estranhava no fundo do espírito aqueles monstros boquiabertos que sabiam ser igualmente a imobilidade e o turbilhão, o silêncio e a trovoada; ajudava o avô a tratá-los, limpar-lhes o bojo profundo e escuro, clarear-lhes os dourados de fora, esgravatar-lhes os interstícios dos relevos que os enfeitavam...

Havia amor de família naquele pequeno mundo que vivia na torre.

Uma vez, na Semana Santa de 18..., a pequena Rita, a andorinha da torre (como lhe chamavam, pelo seu costume de passar os dias no alto da igreja em companhia de Emílio) adoeceu gravemente.

Caiu de cama, prostrada por uma violenta febre, na quarta-feira de trevas; exatamente quando emudecem os sinos.

Do quarto onde ela estava, na casinha do avô que ficava a trinta passos da igreja, via-se por cima dos telhados o perfil a prumo da torre. Rita, aos intervalos da febre, olhava com saudade para a janela do sino grande, onde tantas vezes estivera a seguir com os olhos a revoada dos passarinhos, que cortavam o ar de mil modos e enfiavam-se por um lado da torre para sair pelo outro, gorjeando risadas joviais.

Sofria a nostalgia da altura e do horizonte imenso; queria tornar a ver de perto os queridos sinos.

Por maior infelicidade, havia dois dias que os sinos conservavam-se desesperadamente calados...

Emílio não saía um só instante da cabeceira da doente. Apavorava-o a ideia de perder aquela criança, que era a recordação viva da filha e do genro que a fatalidade lhe roubara. Este pensamento enlouquecia-o.

No Sábado de Aleluia, Rita sentiu-se extraordinariamente bem. Sentou-se no leito, para ver melhor a torre...

Uma alegria sobretudo agitava-a deliciosamente.

O sacristão viera prevenir o avô de que a Aleluia romperia ao meio-dia em ponto e que era necessário que o velho fosse tomar o seu posto.

Rita ia ouvir novamente a voz dos sinos!...

Certo de que eram reais as melhoras da netinha, tranquilizado pela afirmação de um médico que dissera que a menina estava salva, sorrindo à ideia de que a neta se havia regozijar com os repiques da Aleluia, o velho Emílio beijou amorosamente a testa da criança, deixou-a entregue aos cuidados de uma boa mulher que lhe fazia de caseira e foi alojar-se na torre.

Da janela do sino grande, avistava o interior da área da sua casinha e a janela do quarto de Rita.

A vidraça descida e o escuro do aposento não permitiam que ele distinguisse o leito da neta. Emílio estava, entretanto a vê-la com todos os seus sorrisos bons e brandos; parecia-lhe até que ela acenava-lhe para romper a Aleluia antes da hora.

Eram onze horas e meia. Emílio estava impaciente. Os minutos passavam longos, como se em vez de minutos fossem horas...

Do alto da torre, o sineiro olhava para o oceano de telhados, que ondulava-se lá embaixo em agudas cumeeiras que repetiam-se indefinidamente pela cidade afora. As ruas cobriam-se de multidão vestida de preto que corria aos ofícios religiosos; por entre os telhados que vistos de cima pareciam enormes livros de capa entreaberta e lombo voltado para o céu, devassavam-se os quintais e os terraços, com grandes montes de lixo; coradouros* alastrados de roupa branca onde o sol brilhava deslumbrante, o olhar indiscreto via em flagrante os interiores desarranjados e obscuros, as mocinhas em roupas caseiras, correndo daqui para ali, as cozinhas em movimento, muito pretas de fumo; um formigueiro de atividade doméstica, especial, muito distinto do formigueiro das ruas, reproduzindo-se por todos os lados até onde a vista alcançava; cobrindo tudo o tênue nevoeiro alimentado pelas chaminés fumegantes e um vago perfume de assados e fermentos que subiam da cidade como o anúncio evidente de que estava a findar à última hora dos magros dias da quaresma.

O velho Emílio passou distraidamente a vista por todo aquele conjunto indistinto e complicado de minuciosidades que os altos pontos de vista desvendam numa cidade, e voltou a fixar os olhos na vidraça do quartinho de Rita...

Um movimento de espanto fez-o recuar da janela...

Estava suspensa a vidraça do quarto da netinha. A mulher a cujos cuidados ele confiara a criança estava à janela e agitava desesperadamente um lenço em direção à torre.

Acenava-lhe, sem dúvida.

Mas o que significava o aceno? Talvez ela estivesse gritando; Emílio, porém, era quase surdo em virtude da sua profissão; talvez tivesse no rosto uma expressão qualquer que explicaria tudo; mas, com a idade, a vista de Emílio era fraca demais para reconhecer essa expressão.

O lenço frenético significava alegria? significava terror?... Urgia saber-se!

Emílio ia correr, esquecendo o toque de Aleluia, quando emerge ofegante pela escada da torre o sacristão a gritar:

- Olha o sino!... Olha o sino!... já passa da hora... Já cantaram a Glória!

Emílio, atordoado, desvairado, precipita-se sobre o feixe das cordas que punham em movimento o carrilhão. Toma-as, desvairado, e agita os sinos como um doido, confundindo o dobre de finados com os repiques alegres, badalando precipitadamente, sem compasso, levantando na torre uma tempestade de detonações incríveis, infernais.

- Não há memória de uma Aleluia tão ruidosa e alegre, dizem as pessoas que ouviram-na.

Depois de um quarto de hora de frenesi, o pobre Emílio inclinou-se na janela do sino grande e observou a vidraça do quarto da netinha. Estava suspensa como antes da Aleluia e ninguém mais se via.

- Quem sabe se o lenço fazia-me sinal para tocar os sinos?... pensou o velho...

E, mais tranquilo, embora prostrado pela comoção que sofrera e pelo excesso que acabava de fazer, Emílio desceu da torre. Na escada, teve de sentar-se muitas vezes, antes de chegar ao último degrau.

- Vamos ver a Ritinha, dizia consigo, deve estar satisfeita comigo... Nunca toquei tão forte...

Em casa, encontrou morta a pequena Rita.

- Morreu sorrindo e atenta ao rumor dos seus queridos sinos, disse a mulher a quem Emílio confiara a guarda da criança.

O velho apertou o peito com ambas as mãos, lançou um olhar seco, terrível pela janela do quarto para a torre e para o espaço profundo, e caiu.

Na rua e no céu, reinava a ruidosa alegria das Aleluias e a tirania deslumbrante do sol.

É esta pequena história que conheci casualmente no quando chega-me aos ouvidos linha azul do horizonte como passado que me vem à mente, a voz dos sinos, cantando na um vago salmear flutuante...
_____________________
* Notas:
Coradouro – lugar onde se coloca a roupa para corar.
Ensanefar – guarnecer em sanefas.
Sanefa – tira larga de tecido que se atravessa na parte superior de uma portada e que forma conjunto com a cortina ou o reposteiro.

quarta-feira, 4 de setembro de 2019

Silmar Böhrer (Lampejos) XXIII


Mara Melinni (Da Urgência)


Algumas coisas vão sempre ficando pra depois... Ou porque o dia está cheio ou porque parece que o tempo foge depressa, como se estivesse disputando uma corrida com a gente. Por uma razão ou outra, algo - importante - sempre fica de fora. Pra amanhã, pra depois de amanhã, pra semana que vem, quem sabe!

Aí, livrados da urgência, acomodamos tudo no nosso calendário. O horário do trabalho, a vaga no salão, uma viagem, o dia de sair com as amigas, um aniversário, a hora do pilates, fazer compras... Compromissos, datas. Mas não damos conta, mesmo...

E, no meio dessa correria toda, eu percebi uma urgência. E ela justifica as minhas lacunas. De tanto fazer planos e de eles não caberem no meu tempo, perdendo-se no meio do caminho, vi que o mais essencial estava sendo deixado de lado: Me olhar, me admirar. No sentir, no cuidar e... Até no espelho!

E quando me permiti fazer isso, eu pude me esvaziar daquela corrida maluca com as horas e deixar meus pés sentirem a calmaria do chão, descalços, despidos, suavemente. Pude sonhar acordada, sem relógio e, sem cautelas, rabiscar novos projetos, fazer aposta no meu talento, sentir algo diferente, achar beleza no meu sorriso.

Eu fiz, de mim, a minha urgência.

E eu me senti tão plena, que tudo se acomodou melhor e ficou mais prazeroso.

Apaguei as notas do planner e escrevi um só compromisso: Ser feliz!

Fonte:
Blog da autora.

Thereza Myrthes Mazza Masiero (Jardim de Trovas)


A caridade é um dom
cantando dentro de nós;
na vida, só quem é bom
consegue ouvir sua voz!

A esperança é luz tão cálida,
razão de nosso viver;
recém-nascida crisálida,
enche-nos de alvorecer!...

A juventude é um culto
á beleza e á esperança;
é ser a metade adulto,
outra metade, criança!

Amar é luz, sinfonia,
madrugada a alvorecer;
jatos de sol de alegria,
nossa razão de viver!

Amar... emoção sublime!
Amam-se cristãos e ateus;
quem ama e o amor exprime
fica mais perto de Deus!…

Amizade é sol que aquece,
aonde quer que se vá;
nem sempre o sol aparece,
mas se sabe que está lá!

Aos teus rogos não me rendo;
dizes mentiras aos quilos...
Fingindo, vives vertendo
lágrimas de crocodilos!

A paz é sonho dourado
nas asas do pensamento,
levando de cada lado
fé e amor em voo lento!

Aprendi no dia a dia
que as trovas são obras-primas;
são a essência da poesia
latejando em quatro rimas!

A propensão à violência
assanha o ódio na Terra;
espanta do amor, a essência
e acende o pavio da guerra!

Araras azuis, voando,
vão singrando a imensidão;
parecem fugir em bando
da ameaça da extinção!…

As trovas têm tanta luz
que já são o suficiente;
acendem o que traduz
toda a luz que está na gente!

A trova é real presente
quando se gosta de alguém;
a gente sente o que sente
e a trova vai muito além…

A trova é Santo Remédio,
cura-nos de tantas dores...
Livra-nos do insosso tédio,
cria laços de mil cores!

Carrego em minha bagagem
bela herança de meus pais:
fé, esperança e coragem
e a ânsia de saber mais!

Chegada, rósea alvorada,
fímbria orgia de emoções!
É um grito da madrugada
que arrebata os corações!

Depois de uma tempestade
e a paz volta a florescer,
eu sinto a felicidade
de um cego que volta a ver.

Descobri no dia a dia
que as trovas são obras primas;
são a essência da poesia
latejando em quatro rimas.

Descobriu que foi traído,
não surtou, nem rangeu dente;
mas, vingou-se do atrevido:
-deu-lhe a mulher de presente!...

Deus, com mágico pincel,
fez o mundo tão bonito;
pôs o arco-íris no céu,
a paz e a luz no infinito!...

Dor na “cacunda”, eu escuto,
nas “juntas”, não tem saída...
o velho é mesmo um produto
com validade vencida!

Ela enche a minha bola
e depois me apaga a chama:
se, em vez de uma camisola,
vem pra cama de pijama!

Escrevo trovas porque
não sei dizer cara a cara,
que quando vejo você
o meu coração dispara!

Eu me arrasto a passos lentos...
indo atrás desta paixão;
monto nas asas dos ventos,
sem dar ouvido à razão!

Eu sempre fiz ”macaquice”,
mas “mico” não pago não.
Existe coisa mais triste
que dar “topada” no chão?

Franqueza, um belo costume,
de quem é franco e leal,
é faca que tem dois gumes,
pode, às vezes, ser fatal!

Fresca e rósea madrugada
canta na minha janela...
e a banda da passarada
vem fazer coro com ela!

Mãos que sustentam o mundo,
que plantam paz, fé e amor...
que espalham saber fecundo,
são as mãos do professor!

Mesmo que não sejas meu,
vives guardado em meu sonho;
meu coração te escondeu
nos versos que hoje componho!

Meu lar está sempre em pé,
resiste ao tempo e ao vento;
nele, a fogueira da fé
é acesa a todo o momento!

Meu querido e bom amigo,
entender ninguém consegue,
nosso amor é tão antigo
até que o Diabo o carregue!...

Meus irmãos, os trovadores,
irão erguer mil troféus,
formando um buquê de flores
a LUIZ OTÁVIO nos céus!

Minha MÃE era uma santa,
a mais bela estrela guia;
eu sinto um nó na garganta
por tê-la perdido um dia!

Minha paixão malograda,
sufocada entre segredos,
é como nau destroçada
batendo contra os rochedos!

Muita gente desvalida,
que labuta como mouro,
vive a escutar na vida
que o trabalho vale ouro.

Muito tímido e baixinho,
confessa o marido ao Padre:
-Eu me casei com bom vinho
que “agora” virou vinagre!

Mulher e mãe... Que mistura!
Cuidados mil pelos seus;
zelo, amor, força, ternura,
obra perfeita de Deus!

Na família é que se aprende
o amor, honradez, verdade;
e desse tripé depende
toda a paz da humanidade!

Nas labutas costumeiras
deste mundo sem poesia,
as trovas são companheiras,
nosso pão de cada dia!

Na voz do povo , em geral,
algo tem de verdadeiro;
se o feitiço é para o mal,
"vira contra o feiticeiro!"

Nesta vida, a mocidade
tal qual roseiras viçosas,
dá botões na flor da idade
antes de encher-se de rosas!

No banheiro do boteco,
o cartaz era um “revanche”:
-Quem desentope esse “treco”
é o mesmo que faz seu lanche!

Nos invernos desta vida
viramos todos “mendigos”;
sem atenção, sem guarida,
órfãos de parente e amigos!...

Nossas mais belas cantigas
girando em rodas cantadas,
são lembranças tão antigas,
que nos enchem de alvoradas!

Nossa vida é um carnaval!
Somos todos foliões
dos blocos do bem, do mal,
perdidos nas multidões!

O clarinete assoprou
com tal força e envergadura,
que para longe pulou
saltitante- a dentadura!...

O sábio é um degustador,
degusta a sabedoria,
“carpe diem” com fervor,
bebe a luz que ele irradia.

O valor de uma amizade
é maior do que supomos;
um amigo de verdade
nos faz melhor do que somos!

Poeta não é aquele
que sabe escandir um verso;
poeta traz dentro dele
mil vibrações do universo!

Quando a cabrocha aparece
descendo o morro sambando,
o povaréu enlouquece,
cai no samba rebolando!

Quando assisto à Escolinha
do bom Professor Raimundo,
volto a ser professorinha
querendo salvar o mundo!

Que haverá de mais valor
num mundo de corre, corre?
Amigo é o único amor
que na vida nunca morre!...

Quem ensinou o passarinho
tecer, com arte e primor,
o ninho do filhotinho
com mil raminhos de amor?

Quem impede com carinho
que se parta um coração,
planta flores no caminho,
não terá vivido em vão!...

Quem na vida tem um sonho
só se veste de alvoradas...
Mesmo entre brumas, tristonho,
vê rútilas madrugadas!

Quem quiser ser bem lembrado,
guarde bem esta verdade:
-tem que andar sempre calçado
com sandálias da humildade!

Quem semeia entendimento,
jamais colhe tempestade,
esparrama aos quatro ventos
flores de fraternidade.

Que surrealismo completo
vender "sorte" em loteria,
quem não tem pão, não tem teto...
Que dolorosa ironia!

Saudade é como cebola
que se descasca a chorar.
Mas toda mulher que é tola,
vive a cebola a cortar.

Se a vida nos fecha as portas,
Deus nos abre ao menos uma;
e as esperanças já mortas
ressurgem por entre as brumas!

Se após longa tempestade
a paz volta a florescer,
eu sinto a felicidade
de um cego que volta a ver!

Seja bem-aventurado
o mágico agricultor;
água a esperança e o arado
é arma que espalha o amor!

Senhor, que quadro mais lindo
o arco-íris sobre o mar...;
parece que é Deus sorrindo
querendo o mundo abraçar!

Toda a noite quando saio,
vendo o céu luminescente
sinto a paz, que é como um raio
de luar, dentro da gente!

Toda emoção sufocada
que se vive a camuflar,
é tal qual bomba já armada,
prontinha para estourar!

Todo o progresso, hoje em dia,
entra por todas as frestas...
Destrói a paz, a poesia,
mata o canto das florestas!

Todos sabem que a mentira
pode enganar muita gente;
vira e mexe, mexe e vira,
ela mesma se desmente!

Um dia paguei um “mico”,
escorreguei no salão.
Não sei se encolho ou se fico
estatelada no chão.

Vendo este mundo violento,
irmão a matar o irmão,
pergunto: - Será que há tempo
de Deus nos dar seu perdão?...
_______________
Fontes:
José Feldman (org.) Florilégio de Trovas. Maringá/PR, agosto de 2017.

José Feldman (org.) O Encanto das Trovas. Seção UBT São José dos Campos. Tomo IX. Vol.1. Marijngá/PR, 2017.

União Brasileira de Trovadores Porto Alegre - RS. Trovas de Myrthes Mazza Masiero e Lilinha Fernandes. Coleção Terra e Céu vol. LXXII. Cachoeirinha/RS: Texto Certo, 2016.

Thereza Myrthes Mazza Masiero (1937)

Natural de Lorena/SP, radicou-se em São José dos Campos/SP.

Especialista em Educação, Professora, foi Diretora de Escolas, Palestrante sobre trovas e Poesia, Escritora, Poeta e Declamadora Premiada.

Membro fundadora da Academia de Letras de Lorena (ALL- Cadeira nº 12), membro efetivo da Academia Joseense de Letras (AJL- Cadeira nº 09) e membro da UBT de São José dos Campos.

Vencedora em diversos Concursos de Trovas, Poemas e Declamação no Brasil e fora do Brasil.

Em 1983, título de “Destaque do Ano em Educação” do Litoral Norte e a Medalha “Cassiano Ricardo” da Câmara Municipal de São José dos Campos, por serviços relevantes prestados na área da Educação e Cultura. Em 2015 foi Condecorada pela Divine Académie Française des Arts, Lettres et Culture, tendo sido elevada: À La Dignité D’ Ambassadeur.

Autora de Poemínimos, O Homem e o Signo. Coautora de Mulheres de São José, Bons Autores, Mulheres de São José e Outros Poemas, Rio grande Trovador, Charadas em Trovas I, Charadas em Trovas II, Coletâneas da Academia de Letras de Lorena I, II , III, IV, V, VI e VII e outras Antologias. Tem poemas, trovas e sonetos publicados em várias Revistas e Jornais do Brasil.

Fontes:
José Feldman (org.) O Encanto das Trovas. Seção UBT São José dos Campos. Tomo IX. Vol.1. Marijngá/PR, 2017.

União Brasileira de Trovadores Porto Alegre - RS. Trovas de Myrthes Mazza Masiero e Lilinha Fernandes. Coleção Terra e Céu vol. LXXII. Cachoeirinha/RS: Texto Certo, 2016.

Antonio Carlos de Barros (O Gaúcho e o seu Cavalo)


O cavalo, por sua importância histórica e social, como instrumento de trabalho, de recreação ou até mesmo nas peleias históricas deste Rio Grande velho, constituiu-se, através dos tempos, em um dos temas que mais cativaram e ainda permeiam a sensibilidade dos escritores Gaúchos, tanto em prosa como em versos. 

Para quem desconhece as raízes do tradicionalismo, talvez fique difícil entender essa relação entre um homem e seu cavalo: é comum dizer que, um não existe sem o outro.

No interior dos municípios Gaúchos, é comum a utilização do cavalo para os diversos serviços de campo, ou como montaria para passeio, para ir às carreiras*, para fazer compras no bolicho*; para conduzir as crianças à escola; ir a um Fandango*, e até cerimônias de casamento. Além de ser usado como montaria, o cavalo muitas vezes é utilizado para tração de carroças, charretes, etc.
Gaúcho que é Gaúcho sabe muito bem cuidar do seu pingo*, conversa com o animal, trata-o muito bem, é a sua forma de dizer que gosta, é o respeito e o comprometimento com o animal. Como citado no verso da música com o conjunto Os Monarcas, famosa por relatar a amizade entre O Gaúcho e o Cavalo:

Quem sou eu sem meu cavalo
O que será dele sem mim
Talvez dois seres perdidos
A vagar pelo capim.
Quem sou eu sem meu cavalo
O que será dele sem mim
Porque quando morre um cavalo
Morre um pedaço de mim.

O grande escritor, poeta, EDILBERTO TEIXEIRA, afirma em seu livro Dicionário Gaúcho do Cavalo, que não é temeridade afirmar-se que o Rio Grande do Sul é uma das “Províncias Idiomáticas” mais ricas do Brasil em razão do cavalo. Ele é a maior fonte inspiradora do Gaúcho ao metaforizar conceitos.

Na poesia, na trova e na sua fraseologia peculiar, sempre, há de estar o cavalo como um símbolo, uma comparação, um dito rimado. No seu viver diário, nas suas lides campeiras, nas suas festas, carreiras, rodeios, sempre junto ao cavalo, dele tira as conclusões por força do hábito.

O grande poeta Guilherme Schultz Filho, em sua magistral poesia PINGOS, trás nos versos a comparação de cada fase da nossa existência, infância, mocidade, adulto e na idade madura ou na melhor idade, analogicamente, com os cavalos. Vejamos os versos:

Em cada ronda da vida
eu tive um pingo de lei.
Montado, sou como um rei,
pelo garbo e o entono.
Cavalo pra mim é um trono:
e neste trono me criei.

De piazito* já encilhava
um peticinho* faceiro,
que era cria de um overo*
e de uma egüinha bragada*:
era da cor da alvorada
o meu petiço luzeiro!*

Rosado como as manhãs,
do pelo da própria infância,
mascando o freio com ânsia,
parece que até sorria...
Chamava-se "Fantasia"
e era a flor daquela estância.

Já mocito, o meu cavalo
era um ruano*, ouro nas crinas,
festejado pelas chinas*
que o chamavam - "Sedutor".
Formava um jogo de cor
sob os reflexos da aurora
com os cabrestilhos* da espora
e os flecos* do tirador*.

Naqueles tempos de quebra,
nos bolichos*, ao domingo,
sempre floreando* meu pingo
todos me viram pachola*
com o laço a bate-cola*
e virando balcão de gringo.

O meu cavalo de guerra
chamava-se "Liberdade"!
Chomico!* Quanta saudade
me alvoroça o coração!
Era um mouro* fanfarrão,
crioulo* da própria marca
e eu ia como um monarca*
na testa de um esquadrão.

Em uma carga das feias,
como aquela do Seival*,
o mesmo que um temporal
rolamos por um lançante*
e até o próprio comandante
ficou olhando o meu bagual*.

Homem feito e responsável,
o meu flete* era um tostado*,
tranco macio, bem domado,
êita pingo macanudo*!
desses que "servem pra tudo",
segundo um velho ditado.

Mui amestrado na lida,
um andar de contra-dança;
de freio, era uma balança,
campeiro, solto das patas...
Gaúcho, mas sem bravatas,
e o batizei de "Confiança"

O cavalo que encilho
nesta quadra da existência,
dei-lhe o nome de "Experiëncia".
É um picaço* de bom trote
e levando por diante o lote
rumbeio* à Eterna Querência.

E, assim, vou descambando,
ao tranco e sem escarcéu,
sempre tapeado o chapéu
por orgulho de Gaúcho,
e se Deus me permite o luxo
entro a cavalo no céu!

_____________________________
* GLOSSÁRIO:

- Bagual – animal ainda não domado.
- Bate cola – o laço entre a cauda do animal.
- Bolicho – armazém de campanha.
- Bragada – pelo do cavalo que tem a virilha ou a barriga branca e o resto do corpo de outra cor.
- Cabrestilhos – correias de couro que seguram as esporas aos pés.
- Carreiras – corridas de cavalos.
- Chinas – descendente ou mulher de índio, morena.
- Chomico – interjeição de espanto.
- Contra dança – macio, leve.
- Crioulo – natural de determinado lugar, região, estado, País.
- Fandango – bailes campeiros.
- Flecos – franjas.
- Flete – cavalo bom e de bela aparência.
- Floreando – manejar com destreza.
- Lançante – descida, qualquer terreno em declive.
- Luzeiro – claro como a luz.
- Macanudo – bom, poderoso, superior.
- Mocito – mocinho.
- Monarca – gaúcho que monta com garbo e elegância.
- Mouro – pelo do animal negro salpicado de branco.
- Overo ou Oveiro – diz-se do animal malhado.
- Pachola – metido.
- Peticinho – ou Petiço - cavalo pequeno, curto, baixo.
- Piazito – gurizinho.
- Picaço – cavalo de pelo escuro com a testa e as patas brancas.
- Pingo – cavalo bom, corredor, bonito, vistoso.
- Ruano – pelo de cavalo arruivado.
- Rumbeio – rumar, encaminhar-se para certo lugar ou direção.
- Seival – banhado extenso, alagadiço. Local de uma batalha próximo à Bagé, na Revolução Farroupilha.
- Tirador – espécie de avental de couro macio, que os laçadores usam pendente da cintura.
- Tostado – cor de canela, meio ruivo.


Fonte:
Texto enviado pelo autor

terça-feira, 3 de setembro de 2019

Varal de Trovas n. 67


André Kondo (A Espada [ou A Katana])


Nas proximidades de Kamakura, a cidade do grande Buda de bronze, o velho mestre se concentrava em sua última obra. A sua profissão era a mais respeitada, a mais nobre de todas: forjador de almas. O espírito do samurai residia na lâmina da katana, a própria vida do guerreiro em forma de espada. Sendo assim, grandes samurais se curvavam diante do mestre, honrando o homem que afiou os seus espíritos.

Mestre Konosuke nunca havia falhado na confecção de uma katana. Nunca. Seu jovem discípulo, não jovem em idade, mas em experiência, pois ele forjava espadas há apenas dez anos, admirava a perfeição do mestre. Nenhuma lâmina que nascera das mãos do velho Konosuke havia se partido, nenhuma havia sequer se riscado em combate, A espada de mestre Konosuke era o próprio Bushido, o código samurai, escrito em aço.

Quando todo o Japão descobriu que o grande mestre da katana iria se recolher às montanhas, para terminar seus dias meditando até que a sua alma fosse levada ao vento, tal qual uma pétala de flor de cerejeira, muitos foram os guerreiros que bateram à sua porta. Para demonstrarem valor e merecimento, chegaram a exibir suas habilidades, organizando duelos mortais. Mas o velho Konosuke se mostrava impassível. Como sempre, esperava o guerreiro ideal para a espada que estava forjando.

Acreditava-se até que não era ele quem fabricava as espadas, mas os próprios deuses, que conduziam as mãos do mestre para levarem honra ao coração do samurai. Sendo assim, não era o guerreiro que encomendava a espada. Pelo contrário, era a espada que encomendava o guerreiro. Para entregar tanto poder a um homem, era preciso primeiro aliar o senso de justiça em seu coração...

Konosuke esperava pelo samurai que mereceria a sua última katana. Haveria de ser um guerreiro excepcional, por isso, Konosuke concentrava-se ainda mais em sua última espada.

Durante o processo de afiar uma alma, o bloco de aço passa por um longo processo, revezando-se entre fornalha e martelo, até que a liga perfeita nasce e o mestre passa a moldar seu caráter. Com o olhar, Konosuke golpeia o aço. Com as lágrimas, o esfria. Com o sopro da vida, o define. Com a alma percorre cada detalhe, cada partícula do aço que se transforma em espada. Porém, é apenas na etapa final que a lâmina pode se tornar venerável. Assim como a vida afia o homem mais forte e quebra o mais fraco, é nessa fase que o mestre descobre do que realmente é feita a sua espada.

Os dias se afiaram em semanas e as semanas cortaram os meses. Sem parar, o mestre se esmerava na lâmina de sua última espada. Começou com uma lixa grossa, passando a outras cada vez mais finas. Quando as lixas se tomaram mais delicadas do que papel de arroz, passou a usar apenas pó com água, esfregando a lâmina com o dedo. Retirando o pó, usava só a digital para afiar. E, por fim, apenas o próprio sopro.

Os guerreiros sobreviventes se cansaram de tanta espera e partiram. Mas enquanto partiam, outro guerreiro chegou naquele instante. Impaciente e desrespeitoso, o recém-chegado arrebentou a porta da oficina do velho Konosuke. Olhou-o com fúria, exigindo a espada. O mestre não se moveu. O guerreiro, indignado, sacou a espada e velozmente a fez zunir.

Konosuke manteve-se impassível. O guerreiro avançou com a espada, congelando sua extremidade a um milímetro do olho do mestre. Da inerte órbita, uma lágrima caiu sobre o aço da espada que estava sendo afiada. Uma única lágrima. O guerreiro recolheu a katana, dizendo que o próximo golpe lhe arrancaria a cabeça. O velho Konosuke despencou o olhar para a lágrima no metal, que tanto tempo havia sido afiado. Nunca havia passado tanto tempo em uma única lâmina. De fato, após tanto acariciar o aço, com os olhos marejados, não quis entregar a última katana ao guerreiro. Hesitava, mas nada pôde fazer para evitar a iminente separação.

Com os rumores do que se passava na casa do velho mestre, alguns aldeões para lá acorreram. Mas ninguém tinha coragem de enfrentar o ameaçador guerreiro, pois aquele era Goemon, o mais temido de todos os ronins. Aquele era o homem que havia desonrado todos os samurais, matando o seu próprio senhor. Muitos tentaram acabar com o monstro, mas nem trinta samurais foram capazes, tombando todos mortos.

O que poucos podiam compreender era por que Goemon havia poupado a vida do velho Konosuke. Ninguém nunca havia sobrevivido depois que o ronin desembainhava a espada. O que ninguém sabia era que Goemon era filho de Konosuke. Restava, ainda, uma gota de piedade filial no corpo do monstro.

Antes de se tomar um mestre em forjar espadas, Konosuke também havia sido samurai. E a sua habilidade em usar a espada era ainda maior do que a de afiá-la. Era um mestre destinado aos maiores feitos. Quando o filho nasceu, decidiu que faria dele um guerreiro insuperável. Ensinou-o com devoção. Sob sol e chuva, Konosuke o treinou. O pequeno Goemon não brincava. Nunca brincou. Nunca recebeu sequer um carinho do pai. Apenas treinava.

Era afiado por Konosuke para se tomar o guerreiro perfeito... Goemon cresceu, sendo aguçado ao extremo. Até que, um dia, Goemon se revoltou. E tão cortante era a sua revolta, que acabou ceifando muitas vidas. Desde esse dia, Konosuke nunca mais ousou levantar uma espada, a não ser para avaliar-lhe a curvatura.

Pois era esse o Goemon que, após anos espalhando o terror pelo Japão, reencontrava o velho pai para tomar-lhe a sua última espada. E foi esse Goemon que foi parado ao sair da oficina de Konosuke, por um camponês, cujo pai havia sido assassinado pelo monstro. Todos lançaram ao camponês um olhar que se joga a um morto.

O pobre rapaz segurava apenas um pedaço de pau, enquanto Goemon portava a espada mais afiada do mundo. Isso sem contar com as habilidades de guerreiro, que o camponês sequer possuía. Goemon riu tanto que não percebeu o avanço do camponês, que com um golpe visou a cabeça do oponente. Goemon defendeu-se com a espada, elevando-a entre o pedaço de pau e a sua cabeça.

Uma espada como aquela deveria fatiar até o tronco de um pinheiro. Entretanto, incrivelmente, a espada se partiu, Goemon recebeu o golpe na cabeça e tombou.

Konosuke correu em direção ao filho. Ajoelhou--se, Goemon olhou para o pai. O sangue cobrindo a face. Pela primeira vez na vida: a carícia no rosto do filho. Pediu-lhe perdão. Goemon balbuciou:

"Agora... que sei o que é o carinho de um pai... arrependo-me por todos os pais que matei... Estou pronto para reencontrar todos... E, depois, receber o castigo que mereço". Dizendo isso, o filho partiu antes do pai.

Dolorosos dias depois, Konosuke, com os olhos voltados para as distantes montanhas, disse ao seu discípulo:

— Nunca busque a perfeição em seu ofício...

— Como assim, mestre? Acaso isso tem a ver com a falha de sua última espada? — o aprendiz disse, arrependendo-se em seguida. — Perdoe-me, mestre. Não tive a intenção...

Não havia o que perdoar. A última espada de Konosuke havia apenas cumprido o seu destino. O mestre ergueu a cabeça e disse:

— Quando focava a última espada, imaginava para quem ela seria destinada. Todas as outras espadas haviam encontrado um guerreiro honrado. Quando eu terminava de afiar a espada, quando usava a última lixa, o guerreiro certo sempre aparecia e eu lhe entregava a katana... Mas nunca havia demorado tanto para que a espada e o guerreiro se encontrassem. Há muito já havia terminado de afiar a última espada, mas não podia acreditar que o serviço estivesse terminado até que o guerreiro certo a tomasse em suas mãos. Continuei afiando uma espada que já estava afiada. Persisti, pois imaginava que o momento de parar ainda não havia chegado. Pensei que os deuses queriam que eu atingisse a perfeição, porque, sendo aquela a última espada, deveria estar destinada ao guerreiro perfeito.

O discípulo ouvia com atenção.

— Fiquei surpreso quando, após tanta espera, o meu filho apareceu. Imaginei que os deuses haviam sido bondosos comigo. O meu amado filho havia voltado. Havia voltado para receber a última katana do velho pai. Meu coração estava tão repleto de alegria que nem percebi que o meu filho me apontava uma espada. E tão emocionado fiquei que derramei, sobre a lâmina que afiava, uma lágrima... Refeito, observei a lágrima sobre a lâmina. Ela escorria sobre uma minúscula fissura. Estava tão cego em minha missão de afiar ao máximo a espada, que não percebi que com isso eu a arruinava... Foi assim com o meu filho também. Queria que ele fosse perfeito e por isso eu o arruinei... Foi por isso que o meu filho não foi capaz de enxergar o amor em meus olhos. Ameaçou-me, exigindo a espada que eu já lhe desejava entregar, de coração, junto com um abraço que há tanto esperava dar...

Konosuke fez uma pausa, suspirou e continuou;

— Na busca pela perfeição, imaginava que quanto mais afiada fosse uma espada, mais perfeita ela seria. Agora, só no fim, aprendi que a perfeição reside em tornar a espada suficientemente afiada para nos defender de quem nos quer mal, mas sempre mantendo a capacidade de receber uma lágrima... de quem nos quer bem.

O mestre partiu. As cerejeiras já desabrochavam nas montanhas. A brisa era gentil, acariciava as flores... Mas tão apaixonada pelas pétalas estava a brisa, que não percebeu quando o seu intenso sentimento se tornou vento... que arrancou as flores de cerejeira, em um último suspiro.

[2. lugar no XV Concurso Literário da Academia Caxiense de Letras/RS; menção honrosa no XIV Concurso de Contos Alípio Mendes, do Ateneu Angrense de Letras e Artes (RJ); menção honrosa no XVI Prêmio Jorge Andrade, da Academia Barretense de Cultura/SP]

Fonte:
André Kondo. Contos do Sol Renascente. Jundiaí/SP: Telucazu Ed., 2015.

Marco Aurélio Cremasco (Poemas Avulsos)


ACASO

sou um pintor
de escasso talento

lanço tintas ao vento
pra ver se dou colorido

a um pássaro distraído

ALMA

ainda que o corpo
deixe de sê-lo

ainda que o corpo
dissolva

sou alma
não sou degelo

A UVA

tome a uva vasculhe-a

ouça o seu sussurro
o que ela quer? deseja?

(vinho ou sobremesa?)

deixe-a à mercê dos lábios
não lhes permita que intumesçam
na voracidade para devorá-la

recomponha-se enamore-se
traga-a entre os dentes
toque-a mordisque-a

umedece-a, primeiro, com a saliva
depois com a lágrima insana

que a tudo corrói e
consome na explosão

que não cabe no corpo
sim no abrigo da uva

para transformar o que era uva
em sumo

e do sumo o gozo do universo
na derradeira herança

de uma videira
ou de uma vida inteira

BREVE

não tem essa de pressa agora
pode-se passar dessa pra melhor
e deixar o pior por fazer

o rio banha o peixe
o céu levita a asa
o que passa
não disfarça

mostra a face
e o rosto da faca
num corte seco e rápido
pondo pano final ao teatro

tudo o que aqui acontece
pouco depois desaparece
na fração de beijo celeste

e quando brilha uma estrela
nasce o que é para ser nato
fenece o que é para ser finito

indo da fonte à correnteza
e desta ao fim com a certeza
que o mais breve dos dias
foi o mais intenso de uma vida

ENTREVISTA

diga lá, meu velho,
como é ser você?

ser noite ser dia
ser prosa poesia

ruído harmonia?
peça de fantasia?

pedaço de vidro
espelha o que vê

vamos, diga lá,
como é ser você?

ESTUDO PARA UM EPITÁFIO

na hora da minha morte
derramem lágrimas, caso queiram

caso não, sorriam de algum caso

que fiz ou deixei de fazer
que fez sorrir que fez chorar

rezem uma ave-maria
ou deixem pra lá

a vida é uma oração insubordinada

FLOR DO DESERTO

a flor do deserto
sob areia escaldante

aguarda impaciente
ser colhida

quem localizará
este jardim impossível?

quem meterá as mãos
no seio do inferno

para colher
precioso poema?

HOMEM BOM

queria ser homem bom
compreensivo
companheiro sensível

do tipo que ao andasse
um ou outro apontasse
lá vai um homem bom

mas deus, se é que existe,
não me fez santo nem anjo
me fez à semelhança

de ser homem
na esperança
de ser bom

JORNADA

existe um deserto
para atravessar

um deserto
sem fim

este deserto
dentro de mim

LÉXICO

adie o dia de ódio
adie até o dia
em que a palavra ódio

não esteja no dicionário
não encontre sinônimo
em ira gana raiva rancor

e a razão de ter existido

é a de um dia ter sido
antônimo esquecido
de afeto ternura amor

SANTOS E LOUCOS

fiz de tudo um pouco
fui santo fui louco

tive o prazer do mundo
de poder encher
um copo sem fundo

Arthur de Azevedo (Os Dois Andares)


Um dos mais importantes estabelecimentos da capital de província onde se passa este conto, era, há vinte anos, a casa importadora Cerqueira & Santos, na qual se sortiam numerosos lojistas da cidade e do interior.

O Santos era pai de família e morava num arrabalde; o Cerqueira, solteirão, ocupava, sozinho, o segundo andar do magnífico prédio erguido sobre o armazém.

No primeiro andar, que era menos arejado, moravam os caixeiros, e se hospedavam, de vez em quando, alguns fregueses do interior, que vinham à cidade "fazer sortimento", e bem caro pagavam essa hospedagem.

* * *

O principal caixeiro era o Novais, moço de vinte e cinco anos, apessoado e simpático.

De uma janela do primeiro e de todas as janelas do segundo andar avistavam-se os fundos da casa do Capitão Linhares, situada numa rua perpendicular à de Cerqueira & Santos.

Esse Capitão Línhares tinha uma filha de vinte anos, que era, na opinião geral, uma das moças mais bonitas da cidade.

Helena (ela chamava-se Helena) costumava ir para os fundos da casa paterna e postar-se, todas as tardes, a uma janela da cozinha, precisamente à hora em que, fechado o armazém, terminado o jantar e saboreado o café, o Novais por seu turno se debruçava à janela do primeiro andar.

O caixeiro pensou, e pensou bem, não ser coisa muito natural que, desejando espairecer à janela, a rapariga deixasse a sala pela cozinha, a frente pelos fundos, e logo se convenceu de que era ele o objeto que a atraía todas as tardes a um lugar tão impróprio.

As duas janelas, a dela e a dele, ficavam longe uma da outra, e o Novais, que não tinha olhos de lince, não podia verificar, num sorriso, num olhar, num gesto, se efetivamente era em sua intenção que Helena se sujeitava àquele ambiente culinário.

Uma tarde lembrou-se de assestar contra ela um binóculo de teatro, e teve a satisfação de distinguir claramente um sorriso que o estonteou.

Entretanto, a moça, desde que se viu observada tão de perto, fugiu arrebatadamente para o interior da casa.

O Novais imaginou logo que a ofendera aquela engenhosa intervenção da ótica; ela, porém, voltou à janela da cozinha, trazendo, por sua vez, um binóculo, que assestou resolutamente contra o vizinho.

* * *

Ficou radiante o Novais, e lembrou-se então de que certo domingo, passando pela casa do Capitão Linhares, a filha, que se achava à janela, cuspiu-lhe na manga do paletó. Ele olhou para cima, e ela, sorrindo, disse-lhe: – Desculpe.

Agora via o ditoso caixeiro que aquele cuspo tinha sido o meio mais simples e mais rápido que no momento ela encontrou para chamar-lhe a atenção.

Não era um meio limpo nem romântico; original, isso era.

* * *

A princípio, não passou o namoro de inocentes sorrisos, porque os binóculos, ocupando as mãos, impediam, naturalmente, os gestos; mas, passados alguns dias, tanto ela como ele pegavam no binóculo com a mão esquerda e com a direita atiravam beijos um ao outro.

* * *

Aconteceu que o Novais apanhou um resfriado e foi obrigado a ficar alguns dias de cama, ardendo em febre. Quando se levantou, pronto para outra, o seu primeiro cuidado foi, necessariamente, mostrar-se a Helena. Esperou com impaciência pela hora costumada, que nunca lhe tardou tanto.

Afinal, às cinco e meia correu à janela; mas, antes de abri-la, ocorreu-lhe espreitar por uma fresta… Ficou pasmado! A moça lá estava, de binóculo, a atirar beijos de longe!. – Mas a quem?… Ela não o via, não o podia ver: a janela estava fechada!… Quem era o destinatário daqueles beijos?…

Uma ideia atravessou-lhe o cérebro: o Novais debruçou-se a janela contígua e olhou para cima… O seu patrão, o Cerqueira, na janela do segundo andar, munido também de um binóculo, namorava a sua namorada!…

A coisa explica-se:

O negociante, surpreendendo, alguns dias antes, os beijos da rapariga, supôs que eram para ele e correspondeu imediatamente.

Helena, que era paupérrima e ambiciosa, fez consigo esta reflexão prática:

– Que feliz engano! Apanhei um marido rico! O Novais é um simples caixeiro… o Cerqueira é o chefe de uma firma importante. . . Aquele namora para divertir-se… este casa-se…

E o seu coração passou com armas e bagagens do primeiro para o segundo andar.

* * *

Três meses depois, Helena casava-se com o patrão de Novais, e ia morar no segundo andar, convenientemente preparado para recebê-la.

Ela e o caixeiro encontravam-se diariamente ao almoço e ao jantar. Os patrões, a patroa, o guarda-livros, os hóspedes e o Novais comiam em mesa comum.

Durante os primeiros dias que se seguiram ao casamento, não se atrevia Helena a encarar o ex-namorado, mas pouco a pouco foi se desenvergonhando, e por fim já lhe dizia: – Bom dia, seu Novais! – Boa tarde, seu Novais!

* * *

Certa manhã em que o rapaz acordou muito cedo e foi para a janela antes que abrissem o armazém, viu cair-lhe na manga do paletó um pequeno círculo de saliva, muito alvo, que parecia um botão.

Olhou para o segundo andar, e deu com os olhos em Helena, que lhe disse muito risonha: – Desculpe -, e em seguida lhe deu uns bons dias sonoros e argentinos.

O cuspo da moça avivou-lhe as recordações do seu namoro pulha; mas o Novais teve juízo: não abusou da situação…

* * *

O Cerqueira, que um ano depois de casado foi pai de uma linda criança, não gozou por longo tempo as delícias da paternidade; morreu.

Morreu, e a viúva, passado o luto, casou-se com o Novais, que se tornara o "braço direito da casa".

O moço a princípio protestou briosamente, rejeitando a posição que a fortuna lhe deparava; mas, como era feito da mesma lama que a maioria dos homens, cedeu às seduções e às lágrimas de Helena, e passou do primeiro para o segundo andar.

* * *

Aí está por que a casa Cerqueira & Santos é hoje Santos & Novais.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos Possíveis

segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Silmar Böhrer (Lampejos) XXII


Caldeirão Poético XXXII


BENI CARVALHO
(1886-1959)

ESSÊNCIA IMPERECÍVEL


De ti, de teu casulo material
Todo o eflúvio de carne embriagador
Há de passar, há de fugir, tal qual
Se vai, da murcha rosa, o aroma e a cor.

De teu olhar o cálido fulgor,
De teus lábios a música auroral,
Tudo se extinguirá, quando se for
De teu corpo a dinâmica vital.

Não morrerás, no entanto; eterna e viva,
Brilharás nos lampejos de tua alma,
Que a Morte não domina, não cativa.

E, então, como Virtude, hás de viver
Desfeita em branda luz, na suave, e calma
E espiritual essência do teu Ser!

BRUNO BARROSA
(1886-1956)

ÂNSIA INFINITA


Alma! sobe, desvenda, alcança outras planuras,
Quebra o grilhão fatal, quebra a maldita algema
Que te prende no chão, e voa nas alturas,
Embora o sol desmaie, embora a nuvem trema.

Povoa a solidão das noites mais escuras...
Tira da luz a crença, esta verdade extrema
Que te falta e, se um deus é o que, ardente, procuras,
Faze um deus que contigo as dores sinta e gema.

Mas, que vejo? Voaste, asas abertas, frio
O ar, a nuvem que passa e foge, a imensidade
Viste e viste sem luz o espaço, ermo e vazio.

Baldado é teu esforço, inútil é teu grito:
És pequena demais, mesquinha humanidade,
E esmaga-te a cabeça o peso do infinito.

COSTA E SILVA
(1885-1950)

EGO


Sou, talvez, o mais triste ser humano
Que vive sob o céu ou sobre o solo,
Porque possuo o espírito de Apolo
Na feia catadura de Vulcano.

Malgrado esta desdita e o desengano
A que Amor me votou, eu me consolo
Na esperança de ainda sobre um colo
De Nereida dormir tranquilo e ufano.

É que, sem mesmo as correções marmóreas
Que teve o deus para os cinzéis helenos,
Com a sacra flama e com os pulmões de Bóreas,

Hei de, em carnes polífonos, ao menos,
Vencendo as glaucas vastidões equóreas,
Enternecer o coração de Vênus.

HEITOR LIMA
(1887-1945)

RENÚNCIA


Fugir, deixando um bem que o braço já tocava
Pela incerteza atroz de uma fé que redime...
Fugir para ser livre, e sentir, na alma escrava,
A sujeição fatal de uma paixão sublime.

Fugir, e, surdo à voz da consciência, que oprime,
Opor diques de gelo a torrentes de lava,
Sentindo, na renúncia, o alvoroço de um crime
Que a ingratidão aumenta e a covardia agrava.

Fugir, tão perto já da enseada, vendo, ao fundo,
Gaivotas esvoaçando entre velas e mastros,
Na glorificação triunfal do sol fecundo.

Fugir do amor - fugir do céu, fugir de rastros,
Sufocando um clamor que abalaria o mundo
E abafando um clarão que incendiaria os astros!

HERMES FONTES
(1888-1930)

IN EXCELSIS!


Glória a ti, que és perfeita, em quanto, humanamente,
possa alguém atingir à perfeição moral!
Glória! Ao desabrochar dessa alma redolente
o incenso do meu culto, o hino do meu ritual!

Glória a Ti, só a Ti, pois é em Ti, somente,
ó Expressão Natural do Sobrenatural,
é só em Ti que encontro a invisível semente
com que, assim, frutifico em pensamento e ideal!

Glória, em Ti, alma irmã! Milagre, que conferes
a todos os que atrais e a mim, que repudias,
a alta revelação da maravilha que és!

Glória, em Ti, ao Amor! Glória, em Ti, às mulheres!
A Ti, que reduziste a glória dos meus dias
a degrau do teu Sólio, a escrínio dos teus pés!...

OSCAR LOPES
(1883-1938)

O FIM


Um de nós morrerá primeiro... Eis a verdade,
Eis o que é natural, sendo embora monstruoso!
Um ficará na terra, envolto na saudade,
Depois de o outro ir buscar o absoluto repouso.

Quem de nós transporá primeiro a eternidade?
Eu ou tu? - Quanta vez, nos momentos de gozo,
Sinto em mim a aflição dessa curiosidade
Devorar o meu ser, como um cancro horroroso!

Tu ou eu? Tu, que és linda, e que és moça, e que és boa,
Ou eu, que não sou mais do que um farrapo humano?
- Não sei o que me diz que irás na minha frente...

Irás... E eu ficarei como uma coisa à toa,
Como um cão para o qual é tudo desengano
E que chora o seu dono inconsolavelmente...

RAUL DE LEONI
(1895-1926)

DESCONFIANDO


Tu pensas como eu penso, vês se eu vejo,
Atento tu me escutas quando falo;
Bem antes que te exponha o meu desejo
Já pronto estás correndo a executá-lo.

Achas em tudo um venturoso ensejo
De servir-me de servo e de vassalo;
Perdoa-me a verdade num gracejo.
Serias, se eu quisesse, o meu cavalo...

Mas não penses que estólido eu te creia
Como um Patroclo abnegado, não:
De todos os excessos se receia...

O certo é que, em rancor, por dentro estalas;
Odeias-me, que eu sei, mas, histrião,
Beijas-me as mãos por não poder cortá-las...

RONALD DE CARVALHO
(1893-1935)

AVATAR


Antes, a alma que tenho andou perdida.
Porque mundos rolou, que mão sutil
Pôs tão nobre fulgor, e estranha vida,
Nesse bocado de ouro e barro vil?

Decerto, árvore foi: verde jazida
De ninhos, sob o céu de espuma e anil,
E foi grito de horror, na ave ferida,
E, na canção de amor, sonho febril!

Foi desespero, sofrimento mudo,
Ódio, esperança que tortura e inferna;
E, depois de exsurgir, triste, de tudo,

Veio para chorar dentro em meu ser,
A amarga maldição de ser eterna,
E a dor de renascer, quando eu morrer!

Malba Tahan (O Marido Alugado)


Rachid Biram, homem generoso e rico, que negociava em joias e sedas, procurou-me um dia, muito aflito, em minha tenda.

A sua situação era delicada e, na verdade, apresentava não pequena dificuldade. Dentro de algumas horas, antes de surgir a lua, deveria partir com uma grande caravana de mercadores damascenos para a feira de Hil. Queria, porém, antes de iniciar essa longa jornada, casar-se outra vez com a encantadora Naziha, sua ex-esposa, que oito dias antes, num momento de exaltação, levado pelo ciúme, havia repudiado segundo a fórmula sagrada.

    - Conheço aqui em Kufa - disse-lhe, sem muito hesitar, - um certo Musa ibn-David (1) que se aluga para marido. Por que não o procuras? Deves obter, agora mesmo, um "marido desligador".

Antes de prosseguir, devo um esclarecimento aos leitores que ainda não percorreram, ao passo lento das caravanas, os intermináveis desertos da Arábia.

Segundo as instituições muçulmanas, quando um marido repudia a esposa uma ou duas vezes, pode recuperá-la, sem mais formalidades, ao fim de três meses e dez dias; quando, porém, o repúdio é feito pela terceira vez ou mediante a fórmula: - "Eu te repudio três vezes" - o casamento está definitivamente rompido e o ex-marido só poderá contrair novo casamento com essa mesma mulher, no caso em que ela se case com outro homem, sendo pelo novo marido igualmente repudiada!

Tal exigência do Alcorão - que os doutores afirmam ser justificável em teoria - é na prática uma fonte fecunda de situações cômicas e extravagantes, pois, muita vez, um marido, desejoso de reatar relações com a esposa que repudiou impensadamente, prepara para ela a farsa ridícula de um casamento com um "marido alugado". Homens há que se prestam, mediante boa remuneração, a desempenhar o papel de marido "desligador" - preenchendo as formalidades de um casamento burlesco que dura, às vezes, pouco mais de uma hora.

Musa ibn-David era um dos tais que se "alugavam" para marido. Era provável, pois, que servisse ao rico Rachid Biram.

    "- Já o procurei - declarou Rachid. - Ofereci-lhe uma boa recompensa, mas ele não a aceitou.

    - Por Allah! - exclamei. - Não é possível! Musa sempre se prestou ao ignóbil papel de marido alugado e não será, portanto, capaz de recusar uma oferta desta ordem.

    Montei a cavalo e, acompanhado de um guia negro, dirigi-me no mesmo instante para a tenda do marido mercenário.

    Encontrei sentado à porta um velho de longas barbas brancas. Era o pai de Musa.
      
    - Naharak, sahid, ia qhawaja! (2) - saudei-o, ao chegar. - Onde está Musa, ó David?

    - Partiu há pouco para o deserto de Hajar - respondeu-me o ancião - e só voltará depois da outra lua!

    - Sabes, ó cheique! - Perguntei - por que motivo Musa não quis servir de "marido desligador" ao rico Biram?

    - Sei, sahheb (3) - respondeu-me. -- Meu filho, quando ainda muito jovem, conheceu Naziha e apaixonou-se por ela. E bem sabes que um homem digno não poderia fazer, com a mulher amada, o papel de marido alugado!

    - Uallah! - exclamei. - Ridícula desculpa! Arrojada tolice! Um homem que exerce a degradante profissão de teu filho não pode ter semelhantes escrúpulos! A formosa Naziha conhece-o bem e considera-o, por certo, mais desprezível que o chacal!

    - Por Maomé! - exclamou o velho erguendo-se, colérico. - És um covarde! Procuras ofender meu filho quando sabes que já não tenho forças para repelir os teus insultos! Queira Allah que sejas castigado como mereces, pois o castigo de Deus está mais perto do pecador do que as pálpebras o estão dos olhos!

    E o eco dessa praga terrível acompanhou-me os passos pelo deserto.

    Nesse mesmo dia, ao cair da tarde, achava-me sentado à porta de minha tenda, meditando sobre o caso de Musa ibn-David, quando de mim se acercou uma jovem, completamente velada, que se fazia acompanhar de duas escravas.

    Saudei-as respeitosamente e perguntei-lhe o que de mim desejava.

    Respondeu-me, com voz terna e maviosa:

    - Que Allah te cubra de dons, ó jovem! Informaram-me hoje, pela manhã, que estavas de passagem por esta cidade com uma caravana de mercadores do Cairo e de Damasco, e que hoje mesmo partirás para Bagdá e daí para Basra. Quero comprar alguns vestidos, peças de adornos e joias.

    E, enquanto falava, a jovem foi pouco a pouco erguendo o seu espesso véu, deixando descoberto o pequenino rosto, em cujas linhas o Divino Artista fizera aparecer os mil segredos da sedução. Fiquei deslumbrado! Exaltado seja Allah, o Único, que soube reunir tanta beleza no olhar e tanto encanto no sorriso de uma mulher formosa!

    Seduzido pela incomparável beleza da jovem desconhecida, prontifiquei-me a mostrar-lhe, no mesmo instante, todos os ricos artigos que levava: sedas, vestidos, tapetes, casimiras da índia, colares, cafetãs de veludo, telas riquíssimas do Industão, véus bordados a ouro, sapatos da Pérsia, peles do Cáucaso e mil outras coisas igualmente preciosas e deslumbrantes.

    Duas horas ficou a jovem em minha tenda a examinar e escolher os objetos que pretendia comprar. Durante todo esse tempo, Hadija - assim se chamava a linda muçulmana - falou-me  de sua  vida  no  harém de seus pais, que eram ricos e viviam num grande serralho junto ao Eufrates.

    - Hadija - declarei, afinal, num ímpeto, tomando-lhe as mãos entre as minhas - devo partir amanhã para Bagdá. Confesso-te, porém, que estou loucamente apaixonado por ti! Queres casar comigo?

    Com um sorriso encantador, que por timidez parecia procurar refúgio nas covinhas das faces, ela assim me respondeu:

    - Ó jovem tão bem dotado! Teu pedido traz grande alegria ao meu coração! As tuas palavras, como o vento no deserto, erguem bem alto a areia ardente dos meus desejos! Quero ser tua esposa e acompanhar-te pelo mundo na tua vida aventureira e incerta de mercador!

    E, como não houvesse tempo a perder, ficou resolvido que o casamento se faria imediatamente.

    Uma hora depois, no grande salão do palácio em que morava Hadija, realizou-se o casamento, segundo os preceitos muçulmanos, na presença do cádi e das testemunhas.

    Terminada a cerimônia, deixei rapidamente o salão e fui falar com alguns amigos e empregados que me tinham acompanhado.

    Quando voltei para junto dos convidados, aguardava-me a mais dolorosa das surpresas. Fui encontrar minha esposa, em um canto do salão reclinada sobre um rico divã que um largo reposteiro ocultava; estava abraçada a um jovem, que a beijava apaixonadamente nos olhos negros e na boca nacarina e fresca.

    - Ó falsa criatura! - bradei, tomando de grande furor. - Ainda não há uma hora que nos casamos e já tens um amante! Longe de mim, mulher indigna, filha de Cheitã (4)

     E, revoltado com o procedimento da desleal que eu escolhera, para esposa, gritei, cheio de cólera, a fórmula definitiva do divórcio:
   
     - Ó falsa criatura! - bradei, tomado de grande furor. - Ainda não há uma hora que nos casamos e já tens um amante!

    - De ti me divorcio três vezes!

    Ao ouvir tais palavras, ergueu-se a jovem, e, com voz calma, irônica, disse-me:

    - Julgas então que eu tenho amante? És um tolo, um pateta! Olha! Olha bem! Este "jovem" que me abraçava e beijava é a minha boa escrava Zobeida, que fiz vestir com trajes masculinos! Foste completamente ludibriado e estou de ti para sempre divorciada!

    Foi com espanto que percebi o engano que cometera num momento em que o ciúme e a paixão me haviam tornado cego. A pessoa que estava com Hadija era realmente uma escrava disfarçada com os cabelos cortados e vestida à maneira dos homens.

    - Hadiji! - exclamei. - Não sei como explicar o teu estranho proceder. Se não querias ser minha esposa, por que aceitaste o meu pedido de casamento?

    - Devo-te uma explicação, ó muçulmano - tornou a jovem. - Há dois meses, mais ou menos, meu marido, Salim Hamed, num momento de exaltação, divorciou-se de mim, pronunciando três vezes a fórmula sagrada do divórcio. Ontem, porém, procurou-me e propôs a reconciliação e um novo casamento. Infelizmente, segundo as nossas leis, eu não poderia casar com ele sem ter casado antes com outro homem que me repudiasse. Na falta de um "desligador" de confiança, resolvi lançar mão de um estratagema. Casei contigo e procurei dar-te um pretexto, embora falso, para que me rejeitasses imediatamente. Agora, sim, posso casar com Salim Hamed!

    E voltando-me as costas, deixou-me estupefato diante do cádi e das testemunhas que se riam de mim.

    Eu havia feito, sem querer, o ridículo e ignóbil papel de marido desligador!

    O castigo de Deus está realmente, mais perto do pecador, do que as pálpebras o estão dos olhos!
___________________________________________
Notas:
1- Musa ibn-David. - Musa, filho de David.
2- Bom dia, ó chefe!
3- Sahheb - Título honroso. Corresponde a Senhor.
4 - Cheitã - Demônio.


Fonte:
Malba Tahan. Os Segredos da Alma Feminina nas Lendas do Oriente.

UBT Curitiba (Programação)


A União Brasileira de Trovadores Seção Curitiba, tem a satisfação de convidá-lo e a vossa família, para Sessão Magna em comemoração aos 53 anos de sua fundação e premiação nos âmbitos nacional/internacional, estadual, bem como, do Concurso Paralelo dos XX Jogos Florais de Curitiba.

Dia: 13 de setembro de 2019
 
Hora: 19:30h
Local: Plenário da Câmara Municipal de Curitiba - Rua Barão do Rio Branco, 720 - Palácio Rio Branco. Curitiba-PR

Durante a solenidade serão homenageados os trovadores Lourdes Strozzi, Maurício Norberto Friedrich, Nei Garcez, Angelo  Batista, Theresinha Dieguez Brisolla e Vânia Maria Souza Ennes.

Abaixo segue nossa Programação Completa, sua presença é muito importante para nós.

De 10 a 20 de setembro: Exposição de trovas -  Abertura dia 10 às 14h 
Centro Cultural SESI- Casa Heitor Stockler de França. Rua Marechal Floriano Peixoto, 458. Centro.

Dia 12 de setembro: (Quinta - feira)
 
17h00min: Premiação Estudantil. Exposição da Trovas Premiadas
Local: Auditório Paul Garfunkel - 2º andar da Biblioteca Pública do Paraná. - Rua Cândido Lopes, 133 Centro.

Dia 13 de setembro: (Sexta - feira)
 
19h30min: Sessão Magna – Solenidade de Premiação dos classificados nos âmbitos nacional, internacional e estadual. Homenagens especiais.
Local: Câmara Municipal de Curitiba - Rua Barão do Rio Branco, 720, Anexo II. Centro

Dia 14 de setembro: (Sábado)
 
15h ás 18h: Sarau 
Centro Cultural SESI- Casa Heitor Stockler de França. Rua Marechal Floriano Peixoto, 458. Centro.

16h – Lançamento – Magia do Natal, trovas e poemas, organização Vânia Souza Ennes

19h00min: Jantar – por Adesão.
Local: Restaurante do Hotel Del Rey. Rua Ermelino de Leão, 18 – Centro

Dia 15 de setembro: (Domingo)
 
11h30mim – Missa em Trovas 
Santuário Cristo Rei e São Judas Tadeu. Rua Pe. Germano Mayer 410, Alto da XV.

Atenciosamente,
Andréa Motta
UBT-CURITIBA

domingo, 1 de setembro de 2019

Varal de Trovas n. 66


Nilto Maciel (Romos)


Os teus príncipes são como os gafanhotos, e os teus chefes como os gafanhotos grandes, que se acampam nas sebes nos dias de frio; em subindo o sol voam embora e não se conhece o lugar onde estão. Os teus pastores dormem, ó rei da Assíria; os teus nobres dormitam; o teu povo se derrama pelos montes, e não há quem o ajunte.
Naum, 17.18.


Chamou-nos de lá, do alto ou do fundo da terra, um Messias novo, uma voz interior apocalíptica, a necessidade de salvação urgente ou seja lá o que for. Abrimos os olhos, avistamos a névoa misturando-se às nuvens, o verde empalidecendo, e corremos irmanados pela estrada que leva aos píncaros da serra, lá onde os jesuítas ergueram um castelo no meio de seu feudo.

Já pisamos meio caminho de subida. Ainda avistamos a via-sacra, que não mais tocamos com os pés, para não nos comprometermos com as obras dos que fabricaram nossa desgraça. As borboletas ainda pousam sobre nossas cabeças, enchendo-as de fantasia. Recordamos as mãos invisíveis que nas noites intermináveis suspendiam nossas redes até as telhas. Embora nos firamos nas urtigas traiçoeiras, estamos catando flores silvestres, para não nos esquecermos destas cores, quando penetrarmos as grutas sem luz. Já chupamos todas as mangas que o tempo derrubou no meio do caminho e debaixo das mangueiras dos sítios que ladeiam a estrada. Já nos lavamos dez vezes nas águas apressadas e frias das levadas. Descemos, os mais afoitos, ao Poço da Moça, para nos banharmos de coragem, e pulamos as altas e gigantescas pedras por onde as águas do rio deslizam e onde as lavadeiras passam seus dias. Penetramos as hortas e devoramos as verduras que os moradores cultivam para a ceia dos padres. Como se para assistir à destruição das cidades da campina, voltamo-nos de defronte ao castelo para uma última visão da nossa, sem medo de nos convertermos em estátuas de sal. Tudo pequeno e distante.  Uma nódoa esbranquiçada no meio do verde do vale. Decididos e medrosos do passado e do embaixo, vasculhamos os três pavimentos do velho seminário e escutamos as vozes perdidas dos meninos que lá brincaram, rezaram e estudaram. Na saída, batemos a cachorra, para assustar os fantasmas que habitam a tristeza das noites. Corremos, suados e sedentos, para a bica da barragem e nos lavamos um a um. Subimos a parede e nos ensopamos de sujeira. Pelas enormes fendas as águas escorriam, ameaçando estourar a sólida parede. Por precaução, voltamos à estrada e tomamos o rumo de Caridade. Não mais uma estrada, apenas uma vereda. Cansamos mais e parávamos de instante a instante. Entretinhamo-nos a ver as grandes formigas pretas, chupávamos os coquinhos das babaçus descomunais que nascem no fundo dos abismos e vêm mostrar suas folhas no alto onde a vereda se fez, e escutávamos os cantos dos pássaros, para esquecermos os ferimentos que as pedras faziam em nossos pés. Mil vezes cansamos, mil vezes descansamos. Quando lá chegamos, mal tivemos curiosidade de escancarar as portas e janelas do casarão. Acampamos nos treze degraus e na calçada em sombra, voltados para o vale já muito distante e já muito embaixo. No quintal, porcos comiam jaca, galinhas beliscavam o chão, laranjas e tangerinas apodreciam nas árvores. Mais adiante, engenhos de cana tomados de mato. Um abandono completo. Estávamos novamente suados e sedentos. Sabíamos que havia uma bica mais no alto. Subimos por outra vereda. Encontramos uma casinha de taipa, a casa do antigo morador, desabitada e prestes a cair. No chão, uma baladeira. Voando e cantando, pássaros variados. Bebemos água límpida que escorria de um cano. A bica estava cercada. Nada mais havia a ver sobre o chão. Restava buscar as grutas. Regressamos para tomarmos a vereda perigosa que leva à Gruta dos Morcegos. Outro abismo nos esperava. Seguimos, prudentes. Tropeçamos em árvores caídas, em galhos ressequidos, em folhas de palmeiras. Chegamos à gruta e tratamos de escalá-la. A areia era negra e fina como pó de carvão. Sujos, arrastamo-nos sobre a grande pedra e partimos em busca da caverna. Espantamos os morcegos e as cordas que pendiam dos tetos de monólito e descemos pela profunda grota que leva ao interior da terra.

Nós já fomos pacatos, trabalhadores e puros. Construímos esta cidade em mais de cem anos. Alimentamos meio sertão de frutas e legumes. Exportamos café para os brancos do Sul e gênios a quem nunca erigiram uma estátua. Outrora aqui os primeiros homens da terra viviam no Éden. Depois vieram os portugueses e os jesuítas e começou nossa ruína. Odiamos-nos, matamos-nos, roubamos-nos, caluniamos-nos, atraiçoamos-nos, tornamos-nos madalenas, traímos nossos esposos e nossas esposas. Nossos comerciantes faliram nos bares, cassinos e cabarés. As moças foram desvirginadas e os moços se entregaram à vadiagem. De adoradores da Natureza, passamos a adoradores de estátuas. E, não suportando mais nossa traição, assaltamos os altares e profanamos os templos, mesmo antes da fuga dos padres, que abandonaram os conventos, os seminários e as igrejas. Esquecemos o latim, a missa, as orações e a Bíblia. E, inexplicavelmente, pisoteamos os jardins, desfolhamos os benjamins, desmatamos a serra, sujamos de sabão e sangue as geladas e límpidas águas de nossos rios, agora divididos por cercas de pau e arame aqui e acolá, margeados por cruzes e monumentos aos que roubaram os pobres, queimamos os cafezais e nos alimentamos hoje unicamente de banana e manga, que mal alimentam os poucos pássaros que não fugiram para o sertão. Derrubamos os velhos casarões ou deles fizemos bares e albergues de mulheres longínquas para nossos homens corrompidos. Erigimos por todas as cercanias casebres de taipa, fazendo de nossa cidade uma Canudos pequena. E, num passado recente, adoramos os ditadores europeus e nos destroçamos em defesa de ideais diabólicos, esquecidos de nosso verde e de nossos cento e tanto anos. Hoje, morremos raquíticos aos trinta anos, quando não nos assassinamos aos vinte ou somos levados pelas águas ardentes aos quinze, frágeis que já somos, degenerados que já estamos.

Por tudo isto, estamos fugindo, por tudo isto, temos que fugir, abandonar esta Sodoma serrana, esta Jerusalém de taipa, e nos refugiar nas grutas mais escuras e mais profundas desta serra farta.

Estamos descendo este rio, sem rumos, sem ramos, sem remos, mas rimos, rimos, rimos.

Fonte:
Livro enviado pelo autor.
Nilto Maciel. Tempos de Mula Preta, contos. Secretaria da Cultura do Ceará: 1981.

sábado, 31 de agosto de 2019

Isabel Furini (O Círculo do Poema)


Carlos Drummond de Andrade (A Viúva do Viúvo)


Conheceram-se, namoraram, amaram, casaram, tiveram filhos, desamaram, separaram-se, depois de tanto verbo conjugado em comum. Ele sumiu por aí, no anonimato sem responsabilidades. Ela ficou criando a trinca sem pai. Sem notícia um do outro, tempo passando, acontecimentos acontecendo, vida no corre-corre.

Ela até nem se lembrava mais de que fora casada. Eis que o marido reaparece na lembrança, quando uma filha lhe diz:

— Mãe, o pai está no hospital.

Que pai? Não sabia de pai nenhum, o seu morrera há tanto tempo, depois de dar tanto trabalho. (Descansa em paz, deixando a família descansada.) Há outros pais vivos por aí? De quem?

— O meu, uai.

Ah, sim. O pai dessa moça que está à sua frente, essa moça que é sua filha, e que antigamente tivera um pai. Um pai que fora seu marido, e que nunca mais aparecera, jogando sobre suas costas a obrigação de criar e educar os filhos.

Como as coisas emergem de um poço escuro, de repente! Pois não é que o ex-marido voltava à tona, com seus sinais particulares, seu modo de falar, seu jeito de ser e viver? Tão antigo, tão inexistente — mas ali.

Ela parecia não dar mais atenção ao que a filha ia dizendo.

— Escutou o que eu disse?

— Hem?

— O pai está no hospital.

— Que é que ele foi fazer lá? Vender seguro de vida aos doentes? (Agora se recordava de que ele fora corretor de seguros.)

— Está doente.

— Como você soube?

— Mandou me avisar. Não tem ninguém com ele, só a gente do hospital.

Então estava sozinho, depois de muitos anos, e se lembrava da filha para ter companhia no hospital. Não chegou a ter pena. Estavam tão distanciados os dois, que era como se soubesse que um japonês em Yamagata sofria de dor de dentes. A filha esperava um comentário, uma reação.

— Vai lá, querida.

Mais do que isso não poderia dizer, porque não havia nada mais a exprimir. Amores fanados não reverdecem, quando a vida caprichou em esmagá-los bem.

Se alguma coisa tivesse ficado exposta à luz, se um gesto dele, mínimo que fosse, ao longo de tanto tempo, alimentasse um resto possível de sentimento, ela agora teria pena. Mas pena de quê? de quem? se nem de si mesma sentia mais pena, conformada que estava com o irremediável das coisas, e refugiada, também, no pequeno mundo que se construíra e em que convivia com artistas obscuros do passado, através de estudos e pesquisas que eram uma fonte de prazer, compensador de alegrias que não tivera no casamento?

— Vai, minha filha, e vê o que ele precisa.

A filha foi e voltou contando que ele estava mal, parece que dessa não escapava. Como de fato não escapou. Sem pessoa alguma para cuidar do enterro, nem bens que pudessem custear a despesa, quem tomaria providências?

Então a ex-esposa, pessoa decidida, acostumada a fazer na hora certa o que é necessário fazer, decidiu presentear o ex-marido com o enterro decente que ele não tinha merecido, e que a ela custaria uma nota desarrumadora do seu orçamento modesto. Procurou a funerária, disse que pagaria tudo.

O empregado perguntou-lhe, entre xereta e reticente:

— A senhora… era companheira do falecido?

— Companheira? Sou viúva dele!

— Perdão, mas o falecido, quando se internou no hospital, declarou que era viúvo. A senhora quer ver? Vamos lá na Secretaria.

— Pois eu sou a viúva do viúvo, entende? E não estou fazendo nada para ficar com a herança dele, que não deixou um tostão de seu, além de me matar no papel. E vamos com esse serviço depressa, que eu preciso cuidar da minha vida de viúva-desquitada há muito tempo, tá bom?

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas.