sábado, 28 de setembro de 2019

Filemon F. Martins (Poemas Escolhidos) IV


A JANGADA

Ei-la singrando a imensidão dos mares
tão frágil, tão veloz e independente,
deixando a praia, busca outros lugares
sem medo, sem temor, inconsequente...

Lançada ao mar... As ondas pelos ares...
Vai conquistando o mar azul, fremente,
não há tristezas, dores, nem pesares...
Só a jangada deslizando à frente.

As ondas vêm e vão... E chega a tarde,
aflora um sentimento de saudade
e ela retorna cheia de emoções...

Quantos sonhos viajam na jangada?
mas ao raiar da fresca madrugada
vai para o mar repleta de ilusões!

COISAS DE AMOR

É noite calma. A lua está brilhando,
namorados passeiam pela rua,
enquanto aqui a sós fico sonhando,
- como dói no meu peito a ausência tua.

Quisera, nesta noite, estar amando
tranquilo a contemplar a luz da lua
e seguirmos, unidos, procurando
novos sonhos, que a vida continua...

Meu coração, porém, desconfiado,
parece reviver triste passado,
— não acredita mais nesta emoção. '

Se a vida não perdeu o encantamento
desse sonho de amor, desse momento,
— coisas de amor não têm explicação.

IPUPIARA
(Retratada no livro “Coronelismo no Antigo Fundão de Brotas," de Mário Ribeiro Martins)

Cravada no Sertão, jardim de flores
nasceu uma cidade hospitaleira.
Seus campos coloridos, sedutores,
tornam a vida bela e corriqueira.

Berço de heróis, poetas, escritores,
produzem versos na cidade ordeira.
O clima é quente, bom e aviva as cores
da alegria que é sempre verdadeira.

Ipupiara é flor cheia de encanto,
cuja beleza inspira o bem, porquanto
as alegrias são puras e completas.

Há de brilhar no céu, mesmo à distância,
esta Terra de amor e de elegância,
pois tu és a cidade dos Poetas!

OLAVO BILAC

Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac,
estrela de primeira, um verso alexandrino.
Perfeito no soneto, o vate foi destaque
e primou pela forma, ourives diamantino.

Como parnasiano revelou-se um craque
com seu verbo fluente e forte foi divino.
Palestrou, escreveu, amou e sem sotaque
"ora (direis) ouvir estrelas," seu destino.

Orador, literato e um grande sonetista,
foi também pensador, ardente jornalista,
gigante na palavra, um poeta de escol.

"Ultima Flor do Lácio" o vate da Esperança,
amante do Saber, da Pátria e da Criança,
por isso és fulgurante como a luz do Sol!

PERSISTÊNCIA

Sou persistente como o garimpeiro
que busca a joia rara e deslumbrante,
cavando a terra, construindo aceiro,
para encontrar, altivo, o diamante.

Sou incansável pelo tempo inteiro,
busco a palavra e o brilho fascinante
do verso ardente, puro e verdadeiro
que brilha como o sol, inebriante.

Ninguém me deterá neste garimpo,
irei, se for preciso até o Olimpo
buscar minha divina inspiração.

E nestes versos pobres, mas floridos
meus sonhos ficarão mais coloridos,
oriundos do Amor, do coração!

VERSOS DA NOITE

É noite. O céu azul, todo estrelado,
a brisa perfumada vem do mar,
lembrando aquele sonho do passado,
a teu lado viver, sorrir e amar...

Por que será, destino malfadado,
que a ventura se foi sem começar?
Hoje vejo em ruínas meu reinado
nesta noite tão bela a me saudar.

Breve os clarões da loura madrugada
vão surgir, como prece, em clarinada,
e em borbotões meus versos vão jorrar.

Para que ao lê-los, saibas da verdade:
aqui tens um poeta sem vaidade
que, os teus pés, inspirado vem beijar!

VIVENDO A DOIS

Recordo, com saudade, a caminhada
que fizemos ao longo desta vida.
Curtimos nosso amor na madrugada,
sem medo de cansaço na subida.

O tempo foi passando em disparada,
como a brisa que sopra na avenida,
e a ventura chegou tão encantada
que nos levou à Terra Prometida.

Andamos devagar pelos caminhos,
trocamos beijos como os passarinhos
e nos amamos com intensidade.

Mas, quando terminar esta jornada,
serás ainda a minha doce amada,
pois te amarei por toda a eternidade!

Fonte:
Livro cedido pelo poeta.
Filemon Francisco Martins. Anseios do coração. São Paulo: Scortecci, 2011.

Malba Tahan (Um Noivado em Bagdá)

    


Quando eu tinha vinte anos de idade, fui, certa vez, a Bagdá.

No dia seguinte ao de minha chegada - tendo a necessária licença do Valli (1) - armei uma grande tenda junto à praça de Otmã e preparei-me para vender aos vaidosos "bagdalis" perfumes, tapetes e as mil quinquilharias que lhe trouxera das terras longínquas da índia e da China.

    Em dado momento aproximou-se de minha tenda uma mulher, já velha, magra e esfarrapada, o rosto descoberto, o andar curto e arrastado. Depois de examinar, com o olhar distraído, talvez por mera curiosidade, as bugigangas espalhadas sobre grossos tapetes hindus, disse-me:

- Ó jovem e formoso mercador! Seja Allah o teu guia e o teu amparo! Há quarenta anos passados, um homem do teu tipo escolheu-me para esposa e tirou-me do serralho de meus pais! E a felicidade sempre me sorriu no harém (2) de meu amado!

Ao ouvir palavras tão bondosas, cuja simplicidade parecia aliar-se a uma emoção sincera, fiquei profundamente lisonjeado.

- Agradeço-vos - respondi-lhe - a expressão amável e a forma gentil do vosso salã! Seja a paz a vossa estrada e a alegria sã e perfeita a luz dos olhos de vossos filhos!

- Ualá! - acudiu a velha. - Vejo que és afável e eloquente. Desejo verificar agora se a generosidade que aflora nos teus lábios provém realmente de teu coração. Escuta, mercador: sou pobre e não tenho de meu um único dinar. Queres, ainda, assim, fazer comigo uma transação?

- Ouço a vossa proposta, senhora! - retorqui, sem hesitar. - Asseguro-vos, porém, que já está aceita.

- Dá-me, então - atalhou a anciã - um frasco de perfume. Prometo, em troca, ensinar-te alguns versos de um antigo poeta de Mossul.

Tomei de um dos mais belos e valiosos frascos de essência e entreguei-o à misteriosa criatura.

E ao tempo em que ela ocultava sob as vestes rotas, a obra-prima de um perfumista de Basra, disse-lhe:

- Aguardo ansioso o vosso pagamento, senhora!

- Oh, jovem bem dotado! - exclamou - os versos com que pretendo retribuir a tua desmedida generosidade jamais deverão desamparar os teus pensamentos. Escuta-os:

"Só é digno mil vezes da misericórdia infinita de Deus aquele que em si próprio encontra forças para resistir à tentação do pecado!"
    
E, sem mais palavra, afastou-se, o andar arrastado, impelindo para diante o cascalho do caminho.

Era a hora triste do ezzã (3).

A voz cantante do muezim (4) cego chamava os crentes à oração:

- Allah é grande e Maomé é o Enviado de Deus! Vinde à prece, ó muçulmano; vinde à prece! Lembrai-vos de que, na vida, tudo é pó, exceto Allah! Lembrai-vos de que...

Voltei-me na direção da Cidade Santa (5), retirei as sandálias, estendi o meu tapete e em Allah Onipotente, criador do céu e da terra, concentrei meus pensamentos, isolando-me da vida material e vil.

- Ualá! - acudiu a velha. - Vejo que és afável e eloquente. Desejo verificar agora se a generosidade que aflora aos teus lábios provém realmente de teu coração. Lembrai-vos de que tudo é pó, exceto Allah!

E o eco ressoando ao longe, nas montanhas de Kilv, parecia repetir:

- Exceto Allah! Exceto Allah!

Cinco dias volvidos achava-me descuidado junto à tenda, quando avistei um cheique que passava solene em garboso camelo que um escravo negro, seminu, conduzia vagarosamente pela rédea.

    - Cheique dos cheiques! - exclamei, dirigindo-lhe amistoso salã (saudação). - Maahaba ahlã na Sahlã na anastina! Aqui tenho à vossa disposição os únicos perfumes dignos das mulheres encantadoras do vosso harém.

O desconhecido ergueu o rosto para mim, e num sorriso afável traduziu o agradecimento com que retribuía a saudação carinhosa que acabara de ouvir.  Parecia ainda relativamente moço. Os traços enérgicos de sua fisionomia serena faziam pensar que um escudo possante de energia devia revestir-lhe a alma. Ostentava, num requinte de bom-gosto, riquíssimo keffié (6) de três pontas, todo de seda branca, com barras azuis.

O cheique fez parar o camelo, ordenou ao escravo que o fizesse apear-se do matuflê (7) e concedeu-me a honra de vir examinar de perto as ricas alcatifas que eu  vendia, com paciência e probidade, sem ferir um só versículo do Alcorão!

Quis a vontade de Allah (glorificado seja o Eterno!) que o olhar do cheique fosse incidir sobre um pequeno quadro de madeira no qual eu escrevera em belos caracteres negros os tais versos que, à guisa de pagamento, ouvira da anciã.

Mostrou-se o cheique tomado do mais vivo espanto ao se lhe deparar a legenda poética do quadro, as mãos tremiam-lhe e uma onda de acentuada palidez invadiu-lhe as faces.

    - Mercador - interpelou-me, num tom seguro e autoritário - quem te ensinou esses versos?

Contei-lhe - e não via razão para ocultar a verdade - a invulgar transação que, dias antes, fizera com a velha, repetindo-lhe fielmente as palavras gentis que dela ouvira naquela tarde!

    - Louvado seja Allah, o Justiceiro! - exclamou o cheique. - Acabo de descobrir, graças ao teu auxílio, ó mercador, o paradeiro de uma criatura que há três anos procuro pelas terras do Islã.

Naquele momento a desconfiança e a dúvida invadiram-me o espírito. Teria o infeliz cheique a razão perturbada pela loucura? Ou que sentido oculto haveria em suas palavras?

O rico muçulmano, esclarecendo o caso, contou-me o seguinte:

- Meu nome é Abd-el-Uhad, e sou filho do poeta El-Bagavi, de Mossul. Compelido pelas necessidades da vida e forçado, muito cedo, por um destino ingrato, deixei minha família e fui tentar a vida no país de Candahar, na índia, onde graças a Allah, tive um largo período de prosperidade. Passados vinte anos, como já me satisfizessem as riquezas que então possuía e também para livrar minha filha Sálua de um rajá perverso que a queria desposar, resolvi voltar ao meu velho torrão natal. Soube, chegando a Mossul, que meu pai havia falecido alguns anos antes, mas do paradeiro de minha mãe não me souberam dar notícia alguma. E há três anos que a procuro inutilmente pelas cidades e aldeias. Já desanimado, depois de fatigantes pesquisas, deliberei, a conselho de um velho imã de Basra, fazer uma peregrinação a Meca. Cheguei ontem a esta cidade e daqui pretendia partir dentro era breve, com uma caravana de xiitas (8) para o Santuário da Fé. Quis, porém, Allah, o Exaltado, que eu viesse agora encontrar na tua tenda - naquele quadro que ali está - alguns dos mais belos versos de meu saudoso pai. Não me foi difícil inferir - na narrativa que fizeste - que a misteriosa anciã que levou o teu perfume era precisamente aquela que foi a esposa única de meu pai. Na certeza de que ela se acha nesta cidade, espero encontrá-la sem mais canseiras nem jornadas.

    E, ao terminar, pousou no meu ombro a sua larga mão bronzeada e perguntou-me, como se tivesse tomado, no momento, uma resolução inabalável.

    - Quanto queres, mercador, pela tua tenda, com tudo o que nela se encontra?

    Meditei, em silêncio, durante  algum  tempo, e  compreendi  que  o  dadivoso  cheique entendia ter encontrado uma forma delicada de manifestar a sua gratidão. O céu e a generosidade do árabe - ensina um provérbio - não tem limites no possível.

- Pela minha pobre tenda - respondi, fitando-o com desembaraço - nada quero! Considerai-a, desde já, como coisa vossa! Mas pelos versos, que estão naquele quadro, quero - se for possível - a mão de Vossa filha Sálua!

A minha audaciosa proposta causou não pequena surpresa ao rico Abd-el-Uhad.

- Ó mercador! - exclamou. É singular! Acabas de pedir em casamento uma jovem sobre os predicados da qual não tens a menor informação (9). Sálua será formosa ou terá os traços deformados pela feiura?

- Cheique dos cheiques - retorqui, no mesmo instante. - Tenho sobre a beleza incomparável de minha futura noiva, duas indicações preciosas, de grande valor. Primeiro: Sálua é vossa filha!

- E qual é a outra? - indagou o cheique, lisonjeado na sua vaidade de pai.

- Houve um rajá que a desejou para esposa. Não conheço vossa filha, é certo, mas conheço muito bem os rajás; e sei que são homens que não caminham de olhos vedados pelas estradas da vida!

    - Aceito o teu pedido - replicou, risonho o cheique. - És, ó jovem, mais inteligente do que eu pensava. Dou-te minha filha em casamento e tomo-te, de hoje em diante, sob minha proteção.

Foi assim que fiquei noivo em Bagdá. O sol anunciava no horizonte azulado do Islã a hora da prece do crepúsculo.

A voz clara do muezim perdia-se em ondas vagarosas pelo céu.

E naquele momento, precisamente, em que o Destino parecia concluir a página mais feliz da minha louca existência, apontando-me o caminho da Ventura e do Amor, chegava-me aos ouvidos aquelas palavras eternas, que me arrancavam do mundo dos sonhos para a realidade triste da Vida.

    - Lembrai-vos de que tudo é pó, exceto Allah...
_____________________________________
Notas
1- Valli – Prefeito da cidade, governador de uma província.
2- Harém - Vocábulo derivado do árabe harã - proibido. Harém é a parte da casa de um muçulmano onde ficam suas esposas.
3- Ezzã - Oração da tarde.
4- Muezim - Pregoeiro. O muezim chama do alto dos minaretes os fiéis à oração. Os muezins, em geral, são cegos.
5- Meca.
6- Peça do vestuário.
7- Espécie de palanquim que se coloca no camelo.
8- Xiitas - Seita protestante dentro do Islã.
9- Eram, em geral, as velhas que frequentavam os haréns que davam aos namorados indicações sobre os predicados das jovens casamenteiras.

Fonte:
Malba Tahan. Os segredos da alma feminina.

sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Carolina Ramos (Desilusão)


Azuis! Tão azuis quanto um retalho de céu de abril, os olhos de Cássio. Qualquer emoção mais forte lhes acentuava a cor, tornando-os ainda mais bonitos.

A aula terminara mais cedo. Os garotos, cuja idade não chegava aos nove, valiam-se da folga para dirimir dúvidas e acertar as turmas.

Interiorana, a cidade vibrava com o acontecimento. Papai Noel chegaria de helicóptero, na tarde seguinte, para distribuição farta de presentes á criançada.

A meninada fervilhava como formigueiro em tempo de correição.

Os grupos dividiam-se. De um lado, os sabichões que não acreditavam no bom velhinho de barbas brancas. Do outro, aqueles, talvez mais jovens, talvez mais ingênuos, que nem sequer admitiam a possibilidade de dúvidas. Cássio liderando-os.

Houve provocações, e Cássio não fugiu à polêmica. No dia imediato, todos haveriam de ver de que lado estava a razão!

O garoto que chefiava os céticos, metido a valentão, foi além:

— "Seus bobocas... Papai Noel não existe!... é o pai da gente! Será que vocês não entendem? Pai Noel é o pai da gente!"

— "Bobocas!... Bobocas!..." — o coral de vozes provocativas fez ferver o sangue de Cássio. Sentiu-se ofendido dos pés à cabeça. Sequer tinha pai. E, nem por isso, em todos os natais, seus sapatos deixavam de estar cheios de presentes, modestos, sim, mas, sempre os que mais desejara! Os olhos azuis brilhavam mais azuis do que nunca!

Retrucou, triplicando o insulto:

~ "Bobocas são vocês... seus trouxas... seus burros! Esperem só... amanhã, quero ver quem tem cara pra abrir o bico!"

As faces coradas e os pequenos punhos em guarda, falavam ainda com maior veemência.

Engalfinhados, os dois chefes rolaram na calçada, trocando sopapos, sob o estímulo vibrante dos dois grupos adversos.

Finda a luta, tão logo o diretor da escola apareceu, chamando os brigões à realidade, sobraram, como rescaldo, algumas escoriações sem importância, rasgões nas roupas e botões arrancados.

Sem sacudir as roupas, Cássio correu para casa levando joelhos esfolados e um nariz que sangrava. Relutou em entregar à mãe as causas do entrevero. Acabou cedendo. Olhos fitos nos dela, disparou a pergunta, esperando, tenso, e torcendo pela resposta afirmativa:

— Mãe, Papai Noel existe mesmo, não é? — afirmava duvidando... duvidava afirmando.

Surpresa, a mãe hesitou. Perdera o marido quando Cássio estava para nascer. Para o menino, o pai era um ídolo. Ídolo criado e alimentado pelo carinho materno, através dos tempos. Um mito que tinha raízes na ausência da figura paterna. Agora, sem coragem de roubar ao filho a ilusão que o fazia feliz, defrontava-se com um dilema. Após um segundo de hesitação, mentiu, uma vez mais; — Claro... claro que Papai Noel existe! Amanhã você vai vê-lo, não vai?

Assunto encerrado. O menino sorriu aliviado, esquecido das dores e das marcas da contenda, convicto, plenamente, de que valera a pena ter lutado pela verdade. Palavra de mãe é sagrada!

O sábado amanheceu azul, combinando com os olhos de Cássio. O almoço foi engolido às pressas, e as pernas do garoto, espigadas para a idade, foram curtas ante a ansiedade de chegar à praça.

Com meia hora de atraso, pintou, lá no alto, o helicóptero, que, em linha de modernidade, substituía com maior eficiência, o tradicional e romântico trenó tirado a renas.

Quando a porta se abriu e a cara risonha do velhinho barbudo apareceu, reinava silêncio respeitoso, que nem os mais incrédulos ousavam romper.

Fascínio absoluto! Os presentes não deslumbraram tanto os olhos de Cássio quanto a própria figura do querido velhinho! Se bem que o achou mais magro que o esperado, embora acentuadamente barrigudo. Também, os tempos não andavam fáceis e as contínuas viagens do bom Noel deveriam ser profundamente desgastantes para alguém que, mesmo não tendo idade definida, já nascera velho, O menino aquietou-se, aceitando as próprias ponderações.

Após o pasmo da chegada, veio a algazarra da distribuição dos brinquedos. E tão logo os braços cheio, as formiguinhas humanas retornaram aos lares, transportando, jubilosos, as prendas recebidas. A dúvida quanto à existência ou não do mito natalino fora banida ou momentaneamente esquecida. Mãos cheias, e tchau! — solução simplista.

Com Cássio, contudo, não foi o que aconteceu. A respeitável distância, seguiu o bom velhinho que, volta e meia, ajeitava o ventre bojudo e fazia soar as pedras da calçada com o taco de suas botas de verniz negro. Pai Noel deveria estar com fome, por isso, o encaminhavam para uma lanchonete. Cássio seguiu-o sem pressa, esgueirando-se para dentro do estabelecimento. Colado à parede, esqueceu-se de tudo, enlevado na contemplação da mesa privilegiada. Cada gesto do velhinho o fascinava! Quase não acreditou, quando seus olhos se encontraram e um aceno convidou-o a aproximar-se. Tímido, achegou-se, devagarinho.

Ao ver-lhe as mãos vazias. Papai Noel indagou:

— Então, meu filho... você não ganhou nenhum presente?!

Ainda fascinado, o garoto sacudiu a cabeça negativamente, sem coragem de balbuciar qualquer palavra.

O bom velho vasculhou os bolsos à procura de algum brinquedo esquecido. Pescou alguns confeitos e um chaveiro, que estendeu, sorridente, ao menino:

— Olha... sei que é pouco, mas foi o que restou. O chaveiro é meu... talvez, por isso tenha mais valor, que tal?

Cássio agradeceu os regalos, deslumbrado, principalmente, com o chaveiro. Jamais poderia imaginar ter um dia nas mãos um objeto do próprio uso de Papai Noel! Melhor do que qualquer brinquedo! E além disso, falara com ele e tinha provas! Papai Noel existia, sim, como lhe dissera a mãe... Mãe não mente! Queria ver agora que boboca teria coragem de chamá-lo de boboca!

Num impulso agradecido, abraçou o velhinho, voltando a correr para o seu ponto de observação, escondido, desta vez, entre as dobras da cortina. Não fugia à tentação de acompanhar, por mais algum tempo, a ação de alguém tão querido. Apertado na mão, o presente precioso.

Papai Noel, por sua vez, logo esqueceu a criança, pondo-se à vontade. Enquanto conversava com o acompanhante, desvencilhou-se de tudo quanto poderia perturbar-lhe a refeição.

A barba foi a primeira a ser retirada. Logo, o travesseiro que lhe avolumava a cintura foi parar na cadeira vizinha. O gorro vermelho trouxe consigo a cabeleira branca e uma careca lustrosa, despudoramente nua, apareceu.

Atônitos, os olhos extraordinariamente azuis do menino transbordavam perplexidade. O chaveiro escorregou-lhe da mão. Deixou-o cair. Pisou-o!

Um desapontamento irado tomou conta de Cássio.

Antes de abandonar o recinto, cuspiu a bala que lhe adoçava a boca e chutou o chaveiro, acintosamente, em direção ao farsante.

Mãos vazias, correu para casa. Levava de volta um coração agitado, duplamente desiludido e que só não lhe saltava pela boca, porque um soluço magoado lhe amarrava a garganta.

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.

Lição (3)


Lenda Cherokee 
Estados Unidos

CONFLITO ENTRE DOIS LOBOS

Um velho cherokee dava lições de vida aos seus netos. Disse-lhes:
“Está se travando uma luta dentro de mim. Luta terrível, entre dois lobos.
Um é o medo, a cólera, a inveja, a tristeza, o remorso, a arrogância a auto-piedade, a culpa, o ressentimento, a inferioridade e a mentira.
O Outro é a paz, a esperança, o amor, a alegria, a delicadeza, a benevolência, a amizade, a empatia, a generosidade, a verdade, a compaixão e a fé.
A mesma luta está se travando dentro de vocês e de todas as outras pessoas…”
As crianças puseram-se a refletir sobre o assunto e uma delas perguntou ao avô: ” Qual dos lobos vencerá?”
O ancião respondeu:
” Aquele que for alimentado…”
_______________________
Olympio Coutinho
Belo Horizonte/MG

Curvas no curso dos rios
nos dão lição exemplar:
mesmo enfrentando desvios
eles sempre chegam ao mar.
____________________
Paulo Coelho 
Rio de Janeiro/RJ

LIÇÃO DE VIDA

Um velho, ao se aposentar, comprou uma fazenda para que seu filho administrasse, e resolveu passar seus dias na varanda. 
O Filho trabalhou durante três anos e ficou com raiva: "Meu pai não faz nada e ainda tenho que alimenta-lo".
Construiu uma grande caixa de madeira, foi até a varanda e ordenou: "Entre aí". 
O pai obedeceu. O filho colocou a caixa no carro e dirigiu até a beira de um precipício. 
Quando ia jogá-la, escutou a voz do pai: "Filho, pode atirar-me no despenhadeiro, mas guarde a caixa. Você está dando o exemplo e seus filhos vão querer usá-la com você".
__________________
Vanda Fagundes Queiroz
Curitiba/PR

A mais sublime lição
de grandeza, amor e fé,
foi ver um homem sem mão
pintando flores com o pé.
_________________
“Não faças da tua vida um rascunho, poderás não ter tempo de passá-la a limpo”.
Mário Quintana
Alegrete/RS, 1906 – 1994, Porto Alegre/RS
__________________
Domitilla Borges Beltrame
São Paulo/SP

Foste embora e, na saudade,
a ofensa se fez lição:
– descobri que o amor-verdade
se alicerça no perdão!
_________________
Cora Coralina
Cidade de Goiás/GO, 1889 – Goiânia/GO, 1985

ASSIM EU VEJO A VIDA

A vida tem duas faces:
Positiva e negativa
O passado foi duro
mas deixou o seu legado
Saber viver é a grande sabedoria
Que eu possa dignificar
Minha condição de mulher,
Aceitar suas limitações
E me fazer pedra de segurança
dos valores que vão desmoronando.
Nasci em tempos rudes
Aceitei contradições
lutas e pedras
como lições de vida
e delas me sirvo
Aprendi a viver.
_________________________
Archimimo Lapagesse
Florianópolis/SC, 1897 – 1966, Rio de Janeiro/RJ

Renego a lição dos sábios
que nada sabem do amor...
Com um beijo só de teus lábios
tirei carta de doutor!
_________________________
David Chericián
Havana/Cuba, 1940 – 2002, Bogotá/Colômbia

LIÇÃO DE GRAMÁTICA

Eu estou, você está,
e ela está, e ele também;
e todos os que estavam estiveram
e estão muito bem.

Estamos, estaremos
nós, ela e ele
estarão lado a lado, e eu, que estive,
estarei.

E, se acaso estivesse
alguém que não tenha estado naquela vez,

bem-vindo!, porque estar é o que importa
-- e que todos estejam.
______________
Lucília Alzira Trindade Decarli
Bandeirantes/PR

Nas ruas de minha vida,
cada esquina uma lição,
e em cada etapa vencida,
muito zelo… de antemão!
_________________________
Goiá
Coromandel/MG, 1935 – 1981, Uberaba/MG

Julião Saturno
????

LIÇÃO DE CABOCLO

Enquanto o Trindade louvava o Divino
Surgiu um grã-fino num certo salão
Falando horrores com ares de troça
Da gente da roça que cuida do chão
Mais entre os presentes um moço que ouvia
Com diplomacia chamou-lhe atenção
Eu venho pedir-te se mau brasileiro
Que trate o roceiro com educação

Jogando pra trás os cabelos compridos
Num gesto atrevido falou arrogante
Quem és oh caipira com esta roupança?
Te dar confiança me é humilhante!
Meu pai tem riqueza e na sociedade
Só faço amizade com gente importante
E quem te apóia caipira atrasado
Procura atestado de ignorante

Respondeu o moço com educação
Vim ver o sertão onde fui criado
Agora a verdade tem que vir à tona
Não me impressiona teu papo furado
Que vale essa estampa de rico fingido
Se és atrevido e mal educado
Sou pobre e humilde mais digo a verdade
Que na faculdade eu fui diplomado

Respeito e defendo o nosso roceiro
Que ganha o dinheiro lavrando o chão
Tem deles coitados de alguns que enriquecem
E às vezes se esquecem que comem feijão
Ouvindo esta frase toda a caboclada
Em fila formada apertaram-lhe a mão
E o moço granfino vencido bradava
Eu não esperava por esta lição
_______________________
Vinicius de Moraes
Rio de Janeiro/RJ, 1913 – 1980

AULA DE PIANO

Depois do almoço na sala vazia
A mãe subia pra se recostar
E no passado que a sala escondia
A menininha ficava a esperar
O professor de piano chegava
E começava uma nova lição
E a menininha, tão bonitinha
Enchia a casa feito um clarim
Abria o peito, mandava brasa
E solfejava assim:
Ai, ai, ai
Lá, sol, fá, mi, ré
Tira a mão daí
Dó, dó, ré, dó, si
Aqui não dá pé
Mi, mi, fá, mi, ré
E a agora o sol, fá
Pra lição acabar
Diz o refrão quem não chora não mama
Veio o sucesso e a consagração
E finalmente deitaram na fama
Tendo atingido a total perfeição
Nunca se viu tanta variedade
A quatro mãos em concertos de amor
Mas na verdade, tinham saudade
De quando ele era seu professor
E quando ela menina e bela
Abria o berrador
Ai, ai, ai
Lá, sol, fá, mi, ré
Tira a mão daí
Dó, dó, ré, dó, si
Aqui não dá pé
Mi, mi, fá, mi, ré
E a agora o sol, fá
Pra lição acabar (3X)
_________________
Jeanette de Cnop
Maringá/PR

Enorme sabedoria
vem nesta simples lição:
doar afeto e alegria,
pra burlar a solidão.
____________________________
A única lição que é possível transmitir com beleza e receber com proveito; A única eterna, digna, valiosa: O respeito pela vida.
Cecília Meireles
Rio de Janeiro RJ, 1901-1964
_______________________
Magdalena Léa
Rio de Janeiro/RJ (1913 – 2001)

É nos elos que nós vemos
união e força patentes.
Porque é que não aprendemos
esta lição das correntes?
_____________________________
Risonaldo Costa
Belo Jardim/PE

A LIÇÃO DA BORBOLETA

Um dia, uma pequena abertura apareceu em um casulo, um homem sentou e observou a borboleta por várias horas conforme ela se esforçava para fazer com que seu corpo passasse através daquele pequeno buraco.
Então  pareceu que ela parou de fazer qualquer progresso. Parecia que ela tinha ido o mais longe que podia, e não conseguia ir mais longe. Então o homem decidiu ajudar a borboleta, ele pegou uma tesoura e cortou o restante do casulo.
A borboleta então saiu facilmente.
Mas seu corpo estava murcho e era pequeno e tinha as asas amassadas. O homem continuou a observar a borboleta porque ele esperava que, a qualquer momento, as asas dela se abrissem e esticassem para serem capazes de suportar o corpo, que iria se afirmar a tempo.
Nada aconteceu! Na verdade, a borboleta passou o resto da sua vida rastejando com um corpo murcho e asas encolhidas.  Ela nunca foi capaz de voar.
O que o homem, em sua gentileza e vontade de
ajudar, não compreendia era que o casulo apertado e o esforço necessário à borboleta para passar através da pequena abertura era o modo com que Deus fazia com que o fluido do corpo da borboleta fosse para as suas asas de modo que ela estaria pronta para voar uma vez que estivesse livre do casulo.
Algumas vezes, o esforço é justamente o que precisamos em nossa vida.
Se Deus nos permitisse passar através de nossas vidas sem quaisquer obstáculos, ele nos deixaria aleijados.
Nós não iríamos ser tão fortes como poderíamos ter sido.
Nós nunca poderíamos voar.
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Jaime Ribeiro da Silva
Cruzeiro/SP

Espera que, nesta vida,
tudo tem explicação.
- Não há causa que, perdida,
não nos traga uma lição.
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Marina Valente
Bragança Paulista/SP

O esforço de uma formiga,
mais que exemplo é uma lição:
seu objetivo persiga
com fé e determinação.

Fonte:
Parte integrante do Folhetim Desiderata n. 10 - Tema: Lição

Arthur de Azevedo (Fatalidade)


I

O Tenente de Cavalaria Remígio Soares, teve a infelicidade ver, uma noite, D. Andréia num camarote do teatro Lucinda, ao lado do seu legítimo esposo, e pecou, infringindo impiamente o nono mandamento da lei de Deus.

A “mulher do próximo”, notando que a “desejavam”, deixou-se impressionar por aquela farda, por aqueles bigodes, e por aqueles belos olhos negros e rasgados.

Ao marido, interessado pelo enredo do dramalhão, que se apresentava, passou completamente despercebido o namoro aceso entre o camarote e a plateia.

Premiada a virtude e castigado o vício, isto é, terminado o espetáculo, o Tenente Soares acompanhou, a certa distância, casal até o Largo de São Francisco e tomou o mesmo bonde que ele – um bonde do Bispo -, sentando-se, como por acaso, o lado de D. Andréia.

Dizer que no bonde o pé do tenente e o pezinho da moça não continuaram a obra encetada no Lucinda, seria faltar à verdade. Acrescentarei até que, ao sair do bonde, na pitoresca Rua Malvino Reis, D. Andréia, com rápido e furtivo aperto de mão, fez ao namorado as mais concludentes e escandalosas promessas.

Ele ficou sabendo onde ela morava.

II

O Tenente Remígio Soares foi para a casa, em São Cristóvão, e passou o resto da noite agitadíssimo, — pudera! Às dez horas da manhã atravessava já o Rio Comprido ao trote do seu cavalo!

Mas – que contrariedade! -~ as janelas de D. Andréia estavam fechadas.

O cavaleiro foi até a Rua de Santa Alexandrina, e voltou patati, patatá, patati, patatá! e as janelas não se tinham aberto!

O passeio foi novamente renovado à tarde, – o tenente passou, tornou a passar, – continuavam fechadas as janelas!

Malditas janelas!…

Durante quatro dias o namorado foi e veio, a cavalo, a pé, de bonde, fardado, à paisana: nada! Aquilo não era uma casa: era um convento!

– Mas, ao quinto dia – 0h! ventura! – ele viu sair do convento um molecote que se dirigia para a venda próxima. Não refletiu: chamou-o de parte, untou-lhe as unhas e interpelou-o.

Soube nessa ocasião que ela se chamava Andréia. Soube mais que o marido era empregado público e muito ciumento: proibia expressamente à senhora sair sozinha e até chegar à janela quando ele estivesse na rua. Soube, finalmente, que havia em casa dois cérebros; uma tia do marido e um jardineiro muito fiel ao patrão.

Mas o providencial moleque nesse mesmo dia se encarregou de entregar à patroa uma cartinha do inflamado tenente, e a resposta – digamos-lo para vergonha daquela formosa desmiolada – a resposta não se fez esperar por muito tempo.

Ei-la:

“O senhor pede-me uma entrevista e não imagina como desejo satisfazer a esse pedido, porque também o amo. Mas uma entrevista como?… onde?… quando?… Saiba que sou guardada à vista por uma senhora de idade, tia dele, e por um jardineiro que lhe é muito dedicado. Pode ser que um dia as circunstâncias se combinem de modo que nos possamos encontrar a sós… Como há um deus para os que se amam, esperemos que chegue esse dia: até lá, tenhamos ambos um pouco de paciência. Mande-me dizer onde de pronto o poderei encontrar no caso de ter que preveni-lo de repente. O moleque é de confiança.”

Na esperança de que o grande dia chegasse, o Tenente Remígio Soares mudou-se imediatamente para perto da casa de D. Andréia; procurou e achou um cômodo de onde se via, meio encoberta pelo arvoredo, a porta da cozinha do objeto amado. Dessa porta D. Andréia fazia-lhe um sinal convencionado todas as vezes que desejava enviar-lhe uma cartinha.

III

Diz a clássica sabedoria das nações que o melhor da festa é esperar por ela.

Não era dessa opinião o tenente, que há dezoito meses suspirava noite e dia pela mulher mais bonita e mais vigiada de todo aquele bairro do Rio Comprido, sem conseguir trocar uma palavra com ela!

Os namorados, graças ao molecote, correspondiam-se epistolarmente, é verdade, mas essa correspondência, violenta e fogosa, contribuía para mais atiçar a luta entre aqueles dois desejos e aumentar o tormento daquelas duas almas.

IV

Os leitores, – e principalmente as leitoras – me desculparão de não pôr no final deste ligeiro conto um grão de poesia: tenho de concluí-lo um pouco à Armando Silvestre. Em todo o caso, verão que a moral não é sacrificada.

O meu herói andava já obcecado, menos pelo que acreditava ser o seu amor, que pelos dezoito meses de longa expectativa e lento desespero.

Um dia, o Barroso, seu amigo íntimo, seu confidente, foi encontrá-lo muito abatido, sem ânimo de se erguer da cama.

– Que tens tu?

– Ainda me perguntas!

– Paciência, meu velho; Jacó esperou quatorze anos.

– Esta coisa tem-me posto doente… – Bem sabes que gozava uma saúde de ferro… Pois bem neste momento a cabeça pesa-me uma arroba…. tenho tonteiras!

– Isso é calor; a tua Andréia não tem absolutamente nada que ver com esses fenômenos cerebrais. Queres um conselho? Manda buscar ali à botica uma garrafinha de água de Janos. É o melhor remédio que conheço para tonteiras!

O tenente aceitou o conselho, e o Barroso despediu-se dele depois que o viu esvaziar um bom copo de benemérito laxativo.

Vinte minutos depois dessa libação desagradável, Remígio Soares viu assomar ao longe, na porta da cozinha, o vulto de D. Andréia, anunciando-lhe uma carta.

Pouco depois entrava o molecote e entregava-lhe um bilhete escrito às pressas.

“A velha amanheceu hoje com febre, e não sai do quarto. O jardineiro foi à cidade chamar um médico da confiança dela. Vem depressa, mal recebas este bilhete: há de ser já, ou nunca o será talvez.”

O tenente soltou um grito de raiva: a água de Janos começava a produzir os seus efeitos fatais; era impossível acudir ao doce chamado de D. Andréia!

Era impossível também confessar-lhe a causa real do não comparecimento; nenhum namorado faria confissões dessa ordem…

O mísero pegou na pena, e escreveu, contendo-se para não fazer outra coisa:

“Que fatalidade! Um motivo poderosíssimo constrange-me a não ir! Quando algum dia houver certa intimidade entre nós, dir-te-ei qual foi esse motivo, e tenho certeza de que me perdoarás.”

V

Quando, no dia seguinte, ele contou ao Barroso a desgraça de que este fora o causador involuntário, o confidente sorriu, e obtemperou:

– Vê tu que grande remédio é a água de Janos! Um só copo serviu para três cabeças!

– Como três?

– A tua, que tinha tonteiras, – a de D. Andréia que estava cheia de fantasias, – e a do marido que andava muito arriscada.

Efetivamente, a moça não perdoou.

O Tenente Remígio Soares nunca mais a viu.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos vários.