sábado, 2 de novembro de 2019

Varal de Trovas n. 105


Olivaldo Júnior (Trovas sobre Saudade)


02 de novembro: Dia de Finados

No caminho da existência,
vão-se as flores da saudade!...
Todas unas pela essência,
mas, na essência, sem idade...

Cemitério, no Finados,
vira, enfim, contradição:
bate pelos sepultados,
mas 'sepulta' o coração.

Cada lágrima que escorre
por aquilo que eu não tive
vira a benção que socorre
quem, por mim, ainda vive...

Por não ter quem eu queria,
fui querer quem não me quis;
mas, ao largo, eu nunca via
que, no fundo, eu fui... feliz.

Sob a lápide, e sem flores,
jaz meu corpo já sem sangue;
feito céu sem beija-flores,
ou palmeiras sem o mangue...

Meu amor não crê no fim,
mas bem sabe que jamais
sobre as ondas do jardim
nosso barco chega ao cais...

Minha lágrima, meu bem,
faz de um pobre o vencedor;
venço a morte, sigo além,
quando choro, e é por amor.

Antonio Carlos de Barros (Lenda de Imembuí)


MITOS E LENDAS DO RIO GRANDE DO SUL

Mito – segundo o dicionário da língua Portuguesa de Silveira Bueno,  seria coisa inacreditável, sem realidade.

Lenda – segundo o mesmo dicionário, é conto, história fantástica, imaginosa.

Temos também a definição do escritor, pesquisador, folclorista, poeta, Antônio Augusto Fagundes, onde afirma que Mitos e Lendas são partes importantes do folclore de um povo e estuda-los é fundamental para o aprofundamento na alma popular. Os mitos e as lendas são a história do País, (em seu verdadeiro sentido), contada pelo seu povo.  Enquanto o Mito é Universal, a Lenda é Local.

A 100 km de Rosário do Sul, localiza-se a bela Cidade de Santa Maria da Boca do Monte ou simplesmente Santa Maria. Foi de lá que soubemos dessa Lenda.

A LENDA DE IMEMBUÍ

Uma tribo de fala Guarani habitava a região rodeada de cerros, onde hoje está a cidade de Santa Maria, também conhecida como Santa Maria da Boca do Monte e cuja localização, os Gaúchos dizem: No Coração do Rio Grande.
Conta a lenda que na tribo dos Minuanos, um dos grupos indígenas habitantes nas margens do Arroio Itaimbé, morava Imembuí, uma índia muito bonita, de tez clara, cabelos longos e olhos muito negros. Seu nome significa a salva das águas, pois ela nasceu quando sua mãe, a índia Yboquitã, banhava-se nas águas do Arroio Itaimbé.

Era uma jovem muito querida e admirada por todos de sua tribo e despertava interesse dos jovens índios das tribos vizinhas. Acangatu, um jovem índio da tribo dos Tapes, que habitavam a outra margem do Arroio Itaimbé, apaixonou-se por Imembuí, e para testemunhar seu amor e sua coragem, todos os dias, trazia-lhe uma caça como presente. Porém, a jovem índia tinha por ele somente uma afeição de irmã. Certo dia encheu-se de coragem e disse a Acangatu o que sentia por ele. O índio, decepcionado, ferido em seu amor próprio, embrenhou-se na floresta e ninguém mais o viu na aldeia.

Nessa época, um grupo de Bandeirantes que regressava da Colônia do Sacramento, provavelmente, na segunda metade do século XVII, onde haviam ido levar provisões para a Guarnição Portuguesa, avistou a Aldeia dos Minuanos e julgaram eles presa fácil, pois só avistaram de longe, uma manada de cavalos, pacificamente pastando. Os Bandeirantes costumavam apreender índios, escravizá-los e levá-los para São Paulo, a fim de trabalharem nas lavouras. De longe, viram apenas uma cavalhada tranquila. E atacaram a Aldeia. Entretanto, surpreendente engano: em cada cavalo, um guerreiro escondia-se no flanco oculto da montaria. Os minuanos, avisados por seu vigia, do perigo que se avizinhava, em violenta carga dizimaram os atacantes. Os que não foram mortos fugiram, ou foram feitos prisioneiros.

O Bandeirante Português, Rodrigo, que estava entre os prisioneiros, foi também condenado à morte. O prisioneiro tocava uma música dolente no seu violão e cantava a saudade de sua terra e o destino triste que o levava a um doloroso fim. Era um moço simpático e valente.

Imembui, ouvindo seu canto e admirando aquele rosto bonito, comoveu-se e sempre se aproximava dele para ouvi-lo cantar. Seu coração jovem e sensível apaixonou-se por Rodrigo, e sabendo do destino cruel que o aguardava, foi suplicar a seu pai, o Cacique Apacani, para que o poupasse da dura sorte. Este que não negava nenhum pedido de sua filha, atendeu, tendo Rodrigo passado a viver com os índios.

Foi realizado o casamento de Imembuí e Rodrigo, em grandes festas, de acordo com o ritual indígena. A partir daí, Rodrigo passou a chamar-se Morotin que significa branco na linguagem Guarani. Casaram-se mais tarde nas Missões, onde também foi batizado o filho deles José.

O indiozinho José tornou-se um jovem forte e corajoso, e começou a afastar-se de casa, exercitando-se como caçador. Sua mãe sempre o recomendava para que tomasse cuidado, pois, como ele ainda era um menino, poderia ser uma presa fácil a alguma fera faminta.

Um dia, José embrenhou-se na mata para caçar e se perdeu. Não conseguiu encontrar o caminho de volta. Seus pais procuraram-no por toda a parte em vão. O menino havia desaparecido. Talvez um animal o tivesse ferido, ou uma cobra venenosa o tivesse picado.

Imembuí muito chorou o desaparecimento do filho. José, perdendo o caminho de casa, foi andando, andando pela mata, até que anoiteceu. Aconchegou-se no oco de uma árvore, abrigando-se do frio e das feras e aí passou a noite. E no dia seguinte, continuou a andar. Muito andou, até que chegou às margens de um grande rio, encontrando uma choupana, habitada por um índio que o acolheu.

Conversando com o índio, José contou-lhe sua história. O homem, comovido, dispôs-se a ajudá-lo, conduzindo José até a sua aldeia. José, considerado perdido, teve um retorno alegremente comemorado por toda a sua aldeia.

Imembuí e Morotin, agradecidos ao homem que encontrara o seu filho, convidaram-no a participar da alegria de toda a tribo. Reconheceram nesse homem, o índio Acangatu que já havia se curado de sua paixão por Imembuí.

De acordo com essa lenda, Santa Maria teve sua origem no amor que uniu uma índia com um branco, nas margens do Arroio Itaimbé, que hoje corre canalizado sob o calçamento do Parque Itaimbé nessa cidade.

Esse parque até hoje possui o formato de quando iniciava o rio. Eu sempre que posso, dou uma passada lá, costumo saudar os antigos que ali moravam, pois a sensação de paz e tranquilidade que esse local nos passa é imensamente incrível.

No Coração do Rio Grande
Interprete: Délcio Tavares

No coração do Rio Grande
Um dia eu fui morar
Lá encontrei muito amor
Lá aprendi a amar
Naqueles pagos chegado
Qual aconchego de um lar
Domei a força gauderia
E me apeguei ao lugar.

Nas entranhas do Rio Grande
A cultura e a tradição
Os valores se entrelaçam
Em confraternização
Lá eu vi a gauchinha
Vi também o velho peão
A cantar a prenda minha
A cantar a prenda minha
Com sua canha e o chimarrão

Na convivência crioula
O Rio Grande me mostrou
Toda a beleza da vida
O seu sentido e o que sou
Vi o guasca e a chinoca
O minuano e o pampeiro
Vi bandos de quero-quero
O chicote e o cavalo do Negro do Pastoreio.
__________________

NOTAS
O Major João Cezimbra Jacques, que era Santa-Mariense de nascimento, publicou uma versão romanceada da Lenda de Imembuí, em seu “Assumptos do Rio Grande do Sul” (Officinas Graphicas da Escola de Engenharia, Porto Alegre, 1912, pag. 110 a 133). As coletâneas de Dante de Laytano “Lendas do Rio Grande do Sul. Coletânea de mais de 80 lendas dos diversos ciclos do folclore Gaúcho conforme os textos de sua literatura regionalista”. Publicação nº 9 da Comissão Estadual do Folclore do RGS, Rio de Janeiro, 1956. O autor faz a sistematização das lendas Gaúchas. A lenda de Imembuí está no Ciclo do Índio (p.44 a 46). E republicou o ensaio em seu livro “Folclore do Rio Grande do Sul” (Martins Livreiro, Porto Alegre, 1984, Capitulo V) e de Luiz Carlos Barbosa Lessa (Estórias e Lendas do Rio Grande do Sul”, Literart, São Paulo, 1960, “A Índia Missioneira e o Prisioneiro Paulista”, p. 151 a 155) apoiam-se declaradamente em Cezimbra Jacques.
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VOCABULÁRIO:

Arroio – riacho
Canha – cachaça
Cerros – monte, morro.
Chinoca – caboclinha, filha de china (mulheres que apresentam características de indígena).
Crioula – natural de determinado lugar.
Gaudéria(o) – denominação dada aos antigos gaúchos
Guasca – tem duplo sentido. Nesse caso era assim que os habitantes da cidade grande chamavam aos moradores do interior.
Minuano – vento frio e seco que sopra do sudoeste no inverno.
Pagos – lugar em que se nasceu.
Pampeiro – vento impetuoso que sopra de sudoeste, vindos dos pampas Argentinos.
Quero Quero – ave símbolo do Rio Grande do Sul

Fontes:
Texto enviado pelo autor.
Imagem da Lenda – https://santamariafoto.blogspot.com/lenda-de-imembui.html

Retalhos Poéticos I


Amilton Maciel Monteiro
São José dos Campos/SP

MINHAS QUATRO ESTAÇÕES


Foi plena Primavera a minha infância
vivida com carinhos de meus pais ,
sentindo sempre, em toda circunstância,
que o amor dos dois é o que valia mais!

Na juventude tive a incrível ânsia
de tudo ver bem rápido demais!
E abrasador Verão, em discordância
ao que hoje sei que não terei jamais!

E todo o Outono meu, de certa forma
foi de pacata vida cidadã:
fiel marido e pai, dentro da norma...

E agora neste inverno em que convivo
com as dores próprias de minha alma anciã,
traço poesia como lenitivo!

Elisa Alderani
Ribeirão Preto/SP

CREPÚSCULO


Quantas vezes nos surpreendemos
à frente da realidade...
Inútil a fuga...
estragos do tempo
vestem nossos corpos
cansados...

Mas, em nosso olhar
o brilho da alma aparece
mantém acesa
a chama dos sonhos
que jamais se apagam!

A idade nos dá liberdade...
cada dia bem vivido
com novo sabor!
No crepúsculo tem
do dia, a mais bela luz!

O sopro divino
mistura-se com a realidade
doando-nos sabedoria,
brilha igual as estrelas
em nosso olhar!

Francisco José Pessoa
Fortaleza/CE

UMA DÉCIMA


Resolvi apagar a solidão
E acender uma luz dentro do peito
Renegar que problema não tem jeito
E parti pra encontrar a solução
Sob a luz do farol da intuição
Entreguei meu destino, meu porvir,
Aprendi que a dor ensina a sorrir
E nesse labirinto que é a vida
Você hoje não tem mais a saída
A não ser que me chame pra dormir

João Batista Xavier Oliveira
Bauru/SP

DESPERTAR


Nesta esfera conturbada
onde o tempo é açodamento,
o amor é flor digital,
auroras sem firmamento...
o poeta resvalando
vai catando os resquícios
das cantigas de ninar...
vai juntando, vai formando,
e um anjo vai despertar!

Desenha um bosque florido,
redes e meditações.
Os arrebóis agradecem,
tecem elucubrações...
O poeta continua
vai catando os pingos d´ouro
das cantigas de viver...
vai amando, vai criando,
e um novo céu vem soer!

Assim é o ciclo da vida:
o amor é o cerne de tudo,
nesta esfera conturbada
que forja um poema mudo...
mas os eflúvios são fortes;
não há resquício que morra
nas cantigas de ninar...
a esperança fortalece
e até o anjo faz chorar!!

Olivaldo Júnior
Mogi Guaçu/SP

UM RESTINHO DE POESIA

31 de outubro: Dia Nacional da Poesia
Contra tudo o que é ruim,
no balcão do dia a dia,
um vislumbre do sem-fim,
um restinho de poesia...

Cravo e rosa no jardim,
um João e mais Maria,
um travesso querubim,
um restinho de poesia...

Voz em prol dos oprimidos,
tão valentes pe(s)cadores,
a poesia em meus ouvidos!...

Não bastante, só rumores,
um restinho dos sentidos,
a poesia, os seus cantores.

Pedro Du Bois
Balneário Camboriú/SC

EXIGÊNCIAS


O rito exige o desassossego
do artista no plano
em que se apresentam
cenas improvisadas

o rito exige respeito ao momento
em que o poeta desrespeita
o tempo na hora em que palavras
atropelam o rigor e o texto explode
no papel

o rito exige o cumprimento
negado ao que ocorre
na memória recuperada
quando me vejo em você.

SÁ de Carvalho
Angra dos Reis/RJ

VOCÊ


Eu sou você, mas não tenho você.
Você me possui, mas não possuo você.
Você arrebata-me, nocauteia-me, abate-me
e de mim se apossa por inteiro.
Prisioneira desse algoz,
recolho toda dor chorada,
enrosco em mim a tristeza, mergulho num poço de fel
e tenho de mim muita pena.
Por que meu coração não me obedece?
Por que meus olhos ficam opacos
quando não vejo a luz dos olhos teus?
Por que devo sentir-me um trapo
quando tantos outros ,de mim, querem um trato?
por que é para você minha vontade, minha vida?
Então, sem respostas, em prece, rogo,
que você se entregue a mim,
que nos meus braços se abandone,
que retribua os meus beijos,
que se delicie com meus afagos,
enfim, que se deixe amar por mim..
Tendo você assim subjugado, inerte, impotente
ficarei feliz por finalmente tê-lo como meu prisioneiro!

Samuel da Costa
Itajaí/SC

CAMPOS ELÍSEOS


Eu ainda lembro...
Das partidas & dos desencontros
Do nosso ocaso
Do amor
Como se fosse hoje…

E você não está mais ao meu lado
Contudo, eu ainda lembro
Mas não deveria lembrar
Da minha hora do ocaso
Das partidas...
Das despedidas...
Dos encontros casuais...
Ali no meio da rua
De você na minha vida...
Da minha vida
Sem sua doce presença

Eu ainda lembro
De você na minha vida
Mas não deveria lembrar...
Mesmo assim ainda lembro
Do seu sorriso
Da sua hora do ocaso
Da sua doce presença na minha vida
Sempre marcante...
Das suas marcas
Do seu sorriso marcado
Do seu corpo marcado
Eu sempre lembrarei
Mas não deveria
Mesmo assim, ainda lembro...
Da sua doce presença
Na minha vida...

Silmar Bohrer
Caçador/SC

quem lê
sabe mais
e
não vai atrás
de tantos mitos
que contaminam
os mundos
nos tornando
mais moribundos

Teresinka Pereira
Estados Unidos

NÓS


Nós que escrevemos no papel,
no computador, no guardanapo,
no recibo do mercado,
na beirada do jornal,
no prato ou nas árvores,
nós que falamos ao vento
com voz de poesia
e palavras de pedra,
somos incansáveis
transeuntes da noite,
nômades sem sono
loucos e defeituosos
bruxos descuidados.
Nós vamos sonhando
e seguimos acreditando
no poder do amor.

Vivaldo Terres
Itajaí/SC

ALMA ILUDIDA


Como é bela a juventude,
Nos áureos tempos da vida.
Enche-nos de esperanças,
E nos deixa a alma iludida.

Pensando que essa alegria,
E plena felicidade...
Seguira por toda vida,
Sem tristeza e sem saudade.

Pobres jovens desconhecem.
O transcorrer da existência,
Depois de muita alegria.
Dos amores do passado,
Vem-nos a melancolia...
A angústia e o desagrado.

Ah! Se a vida nos fosse sempre,
O fulgor da juventude.
De alegria e felicidade,
Sem tristeza e sem saudade.

Fonte:
Poemas enviados pelos poetas

Luiz Poeta (O Homem Importante)


O homem importante chega e os aplausos explodem no grande teatro. Os aplausos estavam preparados para o homem importante e os espaços entre as mãos separadas fechar-se-iam a cada palavra bonita ou idiota que o homem importante proferisse.

O homem importante começou a discursar e cada sílaba ecoava mais grave e musical que a outra.

Os aplausos espocavam e o homem importante prosseguia entusiasmado com suas próprias palavras, que tornavam-se brados e seus brados tornavam-se explosões emotivas e suas emoções atraiam outras emoções.

Abruptamente, entretanto, uma voz soou mais alto que a mais alta voz do homem importante: era a voz de um homem sem importância.

Alguém o interrompeu, outro censurou-o, mais um xingou-o - o homem sem importância continuou a falar.

O homem importante silenciou, sorriu seu riso irônico como se não se importasse com o homem sem importância; os outros, ensaiados, riram com ele. Mas o homem sem importância continuava e suas palavras sem crédito atravessaram os ouvidos feitos para ouvir sem sensibilidade, entretanto o ouvir deixou, paulatinamente, de ser fisiológico para ser gradativamente metafísico.

O homem sem importância falava e agora eram suas sílabas que se tornavam vibrantes, sonoras... e eram suas frases que inundavam todos os espaços auriculares do teatro.

Os ruídos alheios foram sumindo a cada sussurro subordinado à síncope do estupor.

O homem importante afundava-se na soberba poltrona reclinável reservada para sua importância e as palavras do homem sem importância perfuravam-lhe os tímpanos e a pele gelada, suada e pálida.

O homem importante quis interromper, mas seus argumentos arranhavam-lhe a garganta e seus dedos trêmulos e indecisos impossibilitavam-no de gesticular.

O homem sem importância falava e suas palavras feias pela sua própria condição de homem sem importância eram compreendidas por todos que o cercavam e que, repentinamente, perceberam-se também homens igualmente "desimportantes".

Um aplauso ecoou na carona de uma das frases emitidas pelo homem sem importância; outro juntou-se ao primeiro, mais outro, outro mais... todo o teatro explodiu freneticamente na unanimidade da compreensão e da aceitação, e o homem sem importância tomou-se impetuosamente importante e continuou a falar, a gritar, a bradar coisas que todos entendiam.

O homem que "era importante" sumiu na escuridão das galerias e bastidores do teatro e de si mesmo porque, agora, ele não era mais importante; sua roupa importada já não era importante, suas parábolas e paráfrases copiadas não eram importantes; não era importante o fio de ouro que tinha em um dos caninos... suas palavras debilitaram-se na reação espontânea de cada um dos presentes; tomaram-se indigentes nas marquises de sua amarga solidão silenciosa... sua gravata de seda, suas abotoaduras de cristal, seu relógio Cartier, seu documentos microfilmados, suas teorias decoradas previamente aos discursos, nada disso importava mais.

O outro indivíduo, "o ex-homem sem importância" não mais precisava falar, porque as palavras saídas dele fizeram-se de todas as bocas e o seu nome e sua imagem sem nome elevaram-se no ar e se propagaram como oxigênio purificado.

Quando o teatro esvaziou-se, uma vassoura movida por dois braços sem importância empurraram para a lata de lixo, o impecável discurso do homem... Importante.

Fonte:
Luiz Gilberto de Barros (Luiz Poeta). Canção de Ninar Estátuas. 1.ed. Ilhéus/BA: Mondrongo, 2014.
Livro enviado pelo autor.

sexta-feira, 1 de novembro de 2019

Varal de Trovas n. 104


Vinicius de Moraes (A Arca de Noé)


Sete em cores, de repente
O arco-íris se desata
Na água límpida e contente
Do ribeirinho da mata.

O sol, ao véu transparente
Da chuva de ouro e de prata
Resplandece resplendente
No céu, no chão, na cascata.

E abre-se a porta da Arca
De par em par: surgem francas
A alegria e as barbas brancas
Do prudente patriarca

Noé, o inventor da uva
E que, por justo e temente
Jeová, clementemente
Salvou da praga da chuva.

Tão verde se alteia a serra
Pelas planuras vizinhas
Que diz Noé: "Boa terra
Para plantar minhas vinhas!"

E sai levando a família
A ver; enquanto, em bonança
Colorida maravilha
Brilha o arco da aliança.

Ora vai, na porta aberta
De repente, vacilante
Surge lenta, longa e incerta
Uma tromba de elefante.

E logo após, no buraco
De uma janela, aparece
Uma cara de macaco
Que espia e desaparece.

Enquanto, entre as altas vigas
Das janelinhas do sótão
Duas girafas amigas
De fora as cabeças botam.

Grita uma arara, e se escuta
De dentro um miado e um zurro
Late um cachorro em disputa
Com um gato, escouceia um burro.

A Arca desconjuntada
Parece que vai ruir
Aos pulos da bicharada
Toda querendo sair.

Vai! Não vai! Quem vai primeiro?
As aves, por mais espertas
Saem voando ligeiro
Pelas janelas abertas.

Enquanto, em grande atropelo
Junto à porta de saída
Lutam os bichos de pelo
Pela terra prometida.

"Os bosques são todos meus!"
Ruge soberbo o leão
"Também sou filho de Deus!"
Um protesta; e o tigre - "Não!"

Afinal, e não sem custo
Em longa fila, aos casais
Uns com raiva, outros com susto
Vão saindo os animais.

Os maiores vêm à frente
Trazendo a cabeça erguida
E os fracos, humildemente
Vêm atrás, como na vida.

Conduzidos por Noé
Ei-los em terra benquista
Que passam, passam até
Onde a vista não avista.

Na serra o arco-íris se esvai...
E... desde que houve essa história
Quando o véu da noite cai
Na terra, e os astros em glória

Enchem o céu de seus caprichos
É doce ouvir na calada
A fala mansa dos bichos
Na terra repovoada.

Francisco José Pessoa (Se eu fosse…)


Um Malba Tahan, calcularia em segundos as horas de alegria que a vida nos dá.

Um Einstein, criaria um antídoto para entibiar a bomba que certo dia flamejou o céu de Hiroshima.

Um Alexandre, o grande, teria conquistado o cotação do incrédulo, fazendo-o crer no Grande Arquiteto.

Um Ataúlfo Alves, no meu arrependimento, diria como ele disse: aquilo sim, é que era mulher.

Um Graham Bell, teria inventado um telefone que, pudesse eu, sentir o odor dos teus lábios, e que minhas frases ouvisse maviosas.

Um Braille, transportaria os dedos para uma zona do cérebro.

Um Barnard, só transplantaria coração de um homem bom para um homem de bem.

Um Bill Gates, tornaria virtual a violência que envolve os povos.

Um Karl Marx, repensaria nos seus propósitos, pois, minha mulher é só minha.

Um Pedro, teria registrado a Igreja para alguém não tomar posse.

Um Santos Dumont, não me contentaria em dar só uma voltinha em torno da Torre Eiffel.

Uma Iemanjá, ordenaria que suas sereias retirassem suas escamas para nosso bel-prazer.

Um Fernando, nunca queria ter Cardoso como sobrenome.

O sol, tiraria umas férias para o deleite dos enamorados.

A lua, tiraria umas férias para não aumentar a população chinesa.

Um Salomão, eu seria um sábio e teria trezentas mulheres... acorda, Pessoinha!

Fonte:
Francisco José Pessoa de Andrade Reis. Isso é coisa do Pessoa: em prosa e verso. Fortaleza/CE: Íris, 2013.
Livro enviado pelo autor.

Cecim Calixto (Cajado de Sonetos) II


DOIS AMORES
( Ao trovador A. A. de Assis)

Vou postergar toda ventura minha
E dedicar-me, inteiramente, à trova.
Toda obsessão que no passado eu tinha
Deixou meu senso e suportou a prova.

Mas, por amá-lo o deixarei na linha
E semi-aberta vou manter a cova.
E sei que o irmão, com todo afeto, aninha
No relicário sua irmã mais nova.

Os quatro versos me darão a glória
De pela frente penetrar na história,
Levando ao colo primorosa filha.

E no esplendor da fama em seu coreto,
Verei passar a trova e o irmão soneto
De braços dados pela nova trilha.

FIDELIDADE

Ao me deitar um doce aroma sinto
Que se desprende do lençol vetusto.
Ao velho amigo, tudo a mais consinto,
Pois fez de mim um ser humano justo.

Mantenho-o limpo e com rigor distinto,
Dou-lhe aparência de servente augusto,
Tanto me vela que eu até pressinto
Certa promessa de elevado custo.

Leito vazio... companheira ausente...
O possessivo, sei, jamais consente
Estranha fêmea se deitar na cama.

Se por acaso, ingenuamente aceito,
Ele de pronto desarruma o leito
Na injusta ausência da primeira dama.

ÚLTIMO DESEJO

Quando eu morrer quero caixão de pobre,
Sem adereço, sem jargão de luto.
Não quero tampa de madeira nobre
E nem legenda de mortal tributo.

A terra roxa que o defunto cobre
Será por certo, meu final reduto.
E na capela, que o sineiro dobre
O sino agudo, só por um minuto.

Carro de luxo para o meu transporte;
Vileza certa pela minha morte;
Versão perversa repudiada um dia.

Mas quero sim a musa ao meu redor,
A declamar sonetos meus de cor
Na solidão da minha tumba fria.

FRUSTRADA TENTAÇÃO
A honestidade justifica a luta,
Não vou ceder-lhe o cobiçado espaço.
E não me afeta essa trivial conduta
Na exposição do seu perfil devasso.

Mentira existe - carcomida astuta. -
Fidelidade eu sei fazer e faço.
Meu coração não me propõe permuta
E outro carinho, com prazer, rechaço.

Do meu enlace, ante o Senhor legado,
O anel ostenta este cristão honrado
De cuja cama um só perfume exala.

Não me atormente, cortesã vulgar,
Não vou quebrar o que jurei no altar:
Ser dela sempre e eternamente amá-la.

REVIVESCÊNCIA

A verve explode no quintal da mente,
Replanta a flor que o menestrel almeja.
No espaço surge a floração nascente
Num colorido que a emoção corteja.

A natureza tudo aplaude e sente
Quanto lirismo o trovador planeja,
No sentimento de espalhar semente
Se enche de orgulho e na doação sobeja.

Cuida da messe em devoção constante,
Escreve e lê sem nunca achar bastante
Raros sonetos que em sua alma abriga.

Eis o recado ao escritor moderno:
Que busque a luz do parnasiano eterno
Na revivência da canção antiga.

CORAÇÃO MATERNO

A vida dela se partiu ao meio
Por um amor que glorifica a gente.
Faz tanto bem ao coração alheio
E aquece o meu com afeição ardente.

Acolhe o pobre sem nenhum receio,
Tranquila atende a quem se diz carente.
Seu cofre santo de bondade cheio
Doa saúde ao sofredor doente.

Consolo e amparo é tudo que ela dá
Para os carentes que passam por lá
No desespero de comer um pão.

Ela no seio tem, do leite, a fonte
Para a criança que o destino afronte
E todo arrimo ao desprezado ancião.

SACERDÓCIO

Veementemente eu agradeço a graça
Da convivência fraternal, bendita!
Além de tudo, sem nenhuma jaça,
Na minha casa a paz perene habita.

Bendigo e muito a exuberante raça
Que a venturança ao santo Ser credita,
E o meu caráter manda que eu refaça
O nobre gesto que a emoção agita.

Visito o pobre assim preciso
Para ensinar-lhe o singular sorriso
Que eu aprendi na festival igreja.

No cumprimento de afagar alguém,
Minha missão inclui doar também
Sem permitir que a mão esquerda veja!

Fonte:
Cecim Calixto. Flores do meu cajado: sonetos. Curitiba: Juruá, 2015.
Livro enviado por Vania Ennes.

Carolina Ramos (Conto Natalino)


– Papai Noel não existe!

— Existe, sim! Já disse que existe!

— Deixa disso, vô. Se Pai Noel existisse, eu "tava" assim de presentes! E o que é que eu ganho todo o ano?! — Nada de nada!

O velho engoliu em seco. Verdade! Todo final de ano, era sempre a mesma coisa. Um bruto remorso, como bola de gude das grandes, vinha rolando, rolando e embocava, certinho no seu coração. Remorso de tanta coisa... principalmente, das visitas ao bar do Maneco, à tardinha. Juntasse o que deixava por lá, e, talvez a bola cobiçada pelo neto estivesse ao alcance do seu bolso. Mas, o amor próprio logo arranjava jeito de dividir a culpa. Era isso: — Por que tinha o neto de ser complicado?! Não pedia uma bola qualquer, não! Tinha que ser uma bola fabulosamente colorida! E colorida com todas as cores do arco-íris! Sem faltar nenhuma! Que bobeira! Lá isso existia? Talvez fosse mais fácil encontrar na rua o bom velhinho de barbas brancas comandando o seu trenó de renas, do que achar aquela bola maluca! Maluco era o neto! Onde se viu?

— Queria todas as cores numa bola só, para, num chute, riscar no céu o mais lindo arco-íris e, correndo, cruzá-lo, em seguida, só para ver se do lado de lá havia, realmente, uma vida melhor!

— Tá loco, seu! — para um sonho impossível, só mesmo um possível desinteresse! E era o que acontecia todos os anos. Depois do Natal é que o desaponto do garoto lhe pesava no coração.

Neste ano, até que o vô andara alerta. Vasculhara todos os cantos e não vira bola alguma semelhante à sonhada pelo neto. Até a roubá-la se dispusera, caso a encontrasse. As sobras no bolso, não eram bem sobras e, sim, carências. Faltava tanto para isto; faltava, outro tanto para aquilo. Sobras que poderiam ser o princípio de tudo, mas, não davam para nada.

Coçou a barba encardida. Parou no barzinho do Maneco. Se as sobras não davam para nada, uma paradinha a mais ou a menos, não alteraria o orçamento familiar. Família pequena. Ele e o neto. E o garoto não passava fome nunca. A vizinhança era pobre, mas, sempre restava algo para o guri de olhos negros, brilhantes, pernas finas e ligeiras. E as sobras de um neto chegavam para fartar o fastio de um velho vô.

Na véspera do Natal, o velho, barba encardida, alargou seu giro pelas redondezas. Terra de contrastes! Suntuosos casarões esbanjando luxo pelas portas e janelas. Não longe dali, velhos cortiços e casebres empilhados nas favelas amparavam-se uns aos outros para não beijarem o chão. Chão esse, terra essa, que merecia mesmo ser beijada. Beijada com amor. Beijada como rosto de mãe que tudo dá e nada pede. Os filhos, sim, ingratos ou tolos, tendo tudo à mão, preferiam a miséria.

Parou de filosofar à sua moda, frente a um casarão ostensivo:

— Céus! Que festival de luzes! O largo portal entreaberto convidava. Descuido, talvez. O velho esgueirou-se, contornando o prédio.

A escalada não foi difícil. Não era tão velho assim. A pinga é que lhe pesava feio nas pemas! Ninguém por perto. Todos ocupados. O espírito do Natal borbulhando nas taças. Em algum lugar daquela casa, haveria um Menino entre palhas e presentes. Onde?

No terraço superior, forçou a porta. Com jeito, cedeu. Fácil!

Para vencer a penumbra, apertou os olhos ao invadir o quarto.

Um espelho refletiu-lhe a imagem. Atrás de si, um leito. A decoração não mentia. Quarto de criança. E dois olhos de criança, negros como os do neto, seguiam-lhe atentamente os movimentos.

A mão pequenina apagou a luz de cabeceira. Voz frágil quebrou o silêncio:

— Pai Noel, você enxerga mesmo no escuro?!

O velho pasmou. Pai Noel? Ele?! E por que não?! Era a saída,..

Não... não, garoto… deixa essa luzinha acesa… sempre ajuda... sabes, eu já sou muito velhinho...

— Cadê a sua roupa vermelha, Pai Noel?

— O calor… É… o calor brasileiro… quem aguenta?! Fui obrigado a trocar de roupa ou não poderia entregar os brinquedos.

— E os brinquedos? Pai Noel? Onde estão?

— Tudo entregue. Tudinho!

— Então… o que é que você veio fazer aqui?!

Pai Noel pensou rápido: — Bem, o negócio é o seguinte: Todas as crianças deste mundo já ganharam presentes. Mas, faltou unzinho só. Um guri, assim da tua idade. Obediente, bonzinho... que também merece ganhar alguma coisa. E não tenho nada... nada mesmo, para dar a ele. Como és um menino bom... com certeza já ganhaste muitos presentes, não é verdade? Vim pedir a tua ajuda. Pode ser? Eu só quero um presentinho à toa... qualquer coisinha... aquilo que menos te agrade. Tá?

O garoto ouvia iluminado: — Pai Noel, abra aquele armário. Pegue aquela bola linda que você me trouxe no ano passado. Está novinha! Sabe, eu não gosto muito dela. Ela sempre foge de mim... rolando pra longe...

Só então o velho notou as botas ortopédicas, encostadas ao leito.

Sentiu as lágrimas afogarem a imagem do menino triste. Enxugou-as com a barba encardida. Abriu o armário. Exultou! Lá estava a bola mais bonita que jamais vira! Todas as cores do arco-íris, sem faltar uma sequer e muita bem casadas! O sonho do neto! Beijou-a sonoramente. Ao ouvir passos, despediu-se apressado:

~ Tchau... menino bonzinho... Obrigado! Sara logo que, no ano que vem, Pai Noel vai te trazer a bola do mundo de presente!

Por um instante, o olhar tristonho da criança, rodeada de mimos, mas, tremendamente solitária, trouxe-lhe à memória a lembrança de um certo Menino, de quase dois mil anos, esquecido entre palhas, em plena noite de Natal!

Na rua, o velho coração batia apressado... leve... leve... nem mesmo o bar do Maneco logrou alterar-lhe o ritmo. Em casa, enfatizava:

— Eu não te disse que Pai Noel existe? Taí, garoto teimoso, olha o teu sapato... olha!

Os olhos do neto brilhavam mais do que a Estrela de Belém! A custo, conseguiu balbuciar: - A bola... a bola que eu queria!... como é que ele adivinhou?! Ah!?, vô, agora eu sei que Pai Noel existe! Existe, sim! Desta vez eu nem pedi nada, mas, ele adivinhou direitinho o que eu queria!

Triunfante, o coração do velho deu um pinote e piscou, maroto, para o próprio dono.

"Pai Noel" de barba encardida, sorria feliz... Feliz como nunca, imaginando o arco-íris, mais lindo do mundo que um garoto de olhos negros, pernas finas e ligeiras, iria riscar no céu... logo... logo...

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.
Livro enviado pela autora.