terça-feira, 26 de novembro de 2019

Varal de Trovas n. 126


Raul Pompéia (O Fruto da Formosura)


Em princípio, ele era pequenino; uma ligeira elevação de carne infantil, macia como a polpa de um fruto esquisito; tinha um biquinho, rubro como uma cereja microscópica; tinha dois anos, então: recebia as carícias maternas de uns lábios ardentes e amorosos.

Foi crescendo... crescendo...

Já lhe notavam tendências para a bela forma redonda. A carne branca, polpuda, elevava-se pouco a pouco.

Foram-no cobrindo, zelosamente de cambraias e fitas.

Em pequenino, andava tantas vezes nu, gozando o contato suave do ar livre e fresco a passar-lhe pela epiderme. Exatamente quando mais lindo ficava, é que o queriam esconder como uma coisa indigna.

Este escrúpulo avultava com o tempo.

Esconderam-no cada vez mais, e cada vez mais, do fundo do seu retiro de linhos e cambraias finíssimas, o indiscreto erguia-se, cercado de rubores incertos e nômades, que percorriam-lhe a epiderme, semeando calor; erguia-se como quem sabe que vai a fazer-se sedutor e deseja que o vejam e o adorem...

Mas a cruel cambraia subia também, com uma impertinência ciosa e avara; o pobre via-se condenado àquela prisão cálida e escura, que o sufocava ferozmente.

Ah! quem lhe dera sentir as auras frescas da tarde e os orvalhos da madrugada; viver à luz dos sóis e dos luares, despido, desembaraçado e nu, como os jambos rosados e venturosos!...

Despiam-no, é certo, mas unicamente para respirar o ambiente morno e viciado das alcovas.

Era nessas ocasiões que ele via como estava belo; mirava-se nas banheiras e nos espelhos, namorava-se como um narciso, o pobre...

E como torturavam-no, depois, aquelas faixas com que o comprimiam!

Parece que havia empenho em deformá-lo, contrariando a natureza que o aviventava. Entretanto, ele resistia e triunfava!

A delicada forma cônica dilatava-se-lhe, encurvava-se, sobressaía com a íntima energia de um botão de magnólia que vai desabrochar em largas pétalas. Sedutor cada vez mais.

Tornou-se tímido. O recato da cambraia que o contrariava agrada-lhe então.

O próprio ambiente morno da alcova parece feri-lo com um contato sacrílego.

O sofrimento que então o tortura já não é a contrariedade daqueles panos que o abafavam.

O sofrimento consiste em pancadas íntimas, violentas, que o agitam e mortificam.

Está amando, o pobre...

Por fim, expande-se.

Rasgam-se os linhos e as cambraias, e dois lábios impetuosos, sedentos, vão lá ao fundo violar o recato do amante misterioso e invisível.

Mudou-se-lhe de todo a natureza, ele engorgita-se em plena maturidade.

Uma criaturinha vem sofregamente sugar-lhe a seiva e nutrir-se dele como a parasita que vive da vitalidade alheia...
..................................................................

Então começa a decadência.

O belo seio, outrora rijo de virgindade e frescura, estremecendo às emoções elétricas do amor, desprende-se tristemente da antiga firmeza escultural e cai, como os frutos caem no fim do outono...

Em breve, há de apodrecer no campo, alimento dos vermes famintos, húmus fecundos da terra, como o fruto que o outono deixa, repasto das novas primaveras, vorazes, egoístas...

É quase a história comum de todos os frutos.

Fonte:
Raul Pompéia. Contos.

Odenir Follador (Poemas Avulsos) 2


ALMEJADA AMADA

Amar é sentirmos o coração
pulsar em nosso âmago, intensamente...
Inflar-se na volúpia da paixão
queimando toda alma, impetuosamente!

Um amor platônico que buscamos
encontrar, em nossa almejada amada;
e, sob as estrelas nos entregarmos
lascivos, à bruma da madrugada...

Cáustica chama do amor a sentirmos
no lampejo de uma nova alvorada!
E, num fiel anseio prosseguirmos...

Em desejos frementes, sensuais...
Entregarmo-nos à relva orvalhada
ao brilho das estrelas magistrais!

COMPARAÇÃO

Fazendo comparação
entre a canção e uma flor:
numa produz emoção
e noutra produz amor.

O momento encantador
ficará sempre guardado;
canção, amor e uma flor,
que oferece enamorado.

E o poeta à sua bela,
dedica-lhe com ternura
uma seresta à janela.

Brotando do coração,
lindos versos com candura
só de amor e sedução!

FOLHA DE PAPEL EM BRANCO

Em uma folha de papel em branco
eu escrevo contos e poesias;
descrevo a natureza e seu encanto,
inda as ocorrências do dia a dia!

Todas as folhas em branco contêm
muitos textos escritos ao leitor...
Cuja destinação vai muito além,
da mente criativa do escritor!

Folhas rabiscadas que não dão certo
são amassadas e vão para o cesto;
mas, uma irá ao leitor ou leitora...

Uma por todas e todas por uma,
diz-nos um adágio épico, em suma,
após muito trabalho... “A vencedora”!

NOSSA SENHORA DOS NAVEGANTES
E IEMANJÁ


A Nossa Senhora dos Navegantes,
Iemanjá, na fé afro-brasileira...
Cultuada por fiéis simpatizantes
praticando homenagem derradeira.

Seu dia é festejado em fevereiro
movimentando imensas multidões;
em muitas urbes do Brasil inteiro
festejam nas ruas em procissões!

Salve Nossa Senhora protetora...
Nos rios e nos mares és benfeitora
dos navegantes de nossa nação!

Também na crença afro-brasileira,
eles preparam a semana inteira
a festa de Iemanjá, com oblação.

O MAR

Observando o mar, o seu movimento...
O vai e vem das ondas agitadas
quebrando na praia, a todo momento,
esparramando espumas prateadas.

Avisto um pescador, que destemido...
Lança seu barco no mar agitado
com coragem,  não receia o perigo!
São suas redes que o tem sustentado.

Vejo gaivotas, com olhar atento...
A planarem sobre as ondas do mar,
ávidas, a procura de alimento!

À tarde, o sol deitava no ocidente,
derradeiros raios, para adornar
seus últimos brilhos, para o poente.

SALVADOR - BAHIA

Falam muito de ti frequentemente,
Salvador de belezas naturais...
Os poetas te exaltam fartamente
em versos, teus valores culturais!

Falam também de ti, principalmente:
do Dique Tororó , Orixás e Axé,
do Elevador Lacerda... , especialmente
das comidas: vatapá e acarajé!

Quisera decantar-te em muitos versos.
Exaltar toda a tua exuberância
do passado, e de hoje, os teus  progressos!

Quem já te conheceu, feliz professa...
Que cantará em versos tua importância
ao Senhor do Bom Fim..., Uma promessa!

SEU OLHAR

Uma breve esperança, em seu olhar,
simula apenas amar, e mais nada;
não é mais, que uma esperança, a brilhar,
por uma grande paixão, revogada.

O perene olhar, de um amor desfeito,
olhar que torna pura, a alma inquieta,
é um desejo feliz, meio sem jeito;
que arde, e queima, toda a alma, irrequieta.

E num olhar de amor, nós almejamos,
reatar a paixão, com que sonhamos,
íntegra, pura e branca em densas brumas.

E num olhar apenas, alcançamos,
a felicidade que nós deixamos
que voasse, como douradas plumas.

Fonte:
Sonetos enviados pelo poeta.

Alcântara Machado (Tiro de Guerra n. 35)


No Grupo Escolar da Barra Funda, Aristodemo Guggiani aprendeu em três anos a roubar com perfeição no jogo de bolinhas (garantindo o tostão para o sorvete) e ficou sabendo na ponta da língua que o Brasil foi descoberto sem querer e é o país maior, mais belo e mais rico do mundo. O professor Seu Serafim todos os dias ao encerrar as aulas limpava os ouvidos com o canivete (brinde do Chalé da Boa Sorte) e dizia olhando o relógio:

– Antes de nos separarmos, meus jovens discentes, meditemos uns instantes no porvir da nossa idolatrada pátria.

Depois regia o hino nacional. Em seguida o da bandeira. O pessoal entoava os dois engolindo metade das estrofes. Aristodemo era a melhor voz da classe. Berrando puxava o coro. A campainha tocava. E o pessoal desembestava pela Rua Albuquerque Lins vaiando Seu Serafim.

Saiu do Grupo e foi para a oficina mecânica do cunhado. Fumando Bentevi e cantando a Caraboo. Mas sobretudo com muita malandrice. Entrou para o Juvenil Flor de Prata F. C. (fundado para matar o Juvenil Flor de Ouro F. C.). Reserva do primeiro quadro. Foi expulso por falta de pagamento. Esperou na esquina o tesoureiro. O tesoureiro não apareceu. Estreou as calças compridas no casamento da irmã mais moça (sem contar a Joaninha). Amou a Josefina. Apanhou do primo da Josefina. Jurou vingança. Ajudou a empastelar o Fanfulla que falou mal do Brasil. Teve ambições. Por exemplo: artista do Circo Queirolo. Quase morreu afogado no Tietê.

E fez vinte anos no dia chuvoso em que a Tina (namorada do Linguiça) casou com um chofer de praça na policia.

Então brigou com o cunhado. E passou a ser cobrador da Companhia Autoviação Gabrielle d’Annunzio. De farda amarela e polainas vermelhas.

Sua linha: Praça do Patriarca – Lapa. Arranjou logo uma pequena. No fim da Rua das Palmeiras. Ela vinha à janela ver o Aristodemo passar. O Evaristo era quem avisava por camaradagem tocando o cláxon do ônibus verde. Aristodemo ficava olhando para trás até o Largo das Perdizes.

E não queria mesmo outra vida.

Um dia porém na seção "Colaboração das Leitoras" publicou A Cigarra as seguintes linhas de Mlle. Miosótis sob o título de Indiscrições da Rua das Palmeiras:

"Por que será que o jovem A. G. não é mais visto todos os dias entre vinte e vinte e uma horas da noite no portão da casa da linda Senhorinha F. R. em doce colóquio de amor? A formosa Julieta anda inconsolável! Não seja assim tão mauzinho, Seu A. G.! Olhe que a ingratidão mata…"

Fosse Mlle. Miosótis (no mundo Benedita Guimarães, aluna mulata da Escola Complementar Caetano de Campos) indagar do paradeiro de Aristodemo entre os jovens defensores da pátria.

E saberia então que Aristodemo Guggiani para se livrar do sorteio ostentava agora a farda nobilitante de soldado do Tiro-de-Guerra n. 35.

– Companhia! Per… filar!

No Largo Municipal o pessoal evoluía entre as cadeiras do bar e as costas protofônicas de Carlos Gomes para divertimento dos desocupados parados aos montinhos aqui, ali, à direita, à esquerda, lá, atrapalhando.

– Meia volta! Vol… ver!

O sargento cearense clarinava as ordens de comando. Puxando pela  rapaziada.

– Não está bom não! Vamos repetir isso sem avexame!

De novo não prestou.

– Firme!

Pareciam estacas.

– Meia volta!

Tremeram.

– Vol… ver!

Volveram.

– Abém!

Aristodemo era o base da segunda esquadra.

Sargento Aristóteles Camarão de Medeiros, natural de São Pedro do Cariri, quando falava em honra da farda, deveres do soldado e grandeza da pátria arrebatava qualquer um.

Aristodemo só de ouvi-lo ficou brasileiro jacobino. Aristóteles escolheu-o para seu ajudante-de-ordens.

– Você conhece o hino nacional, criatura?

– Puxa, se conheço, Seu Sargento!

– Então você não esquece, não? Traz amanhã umas cópias dele para o pessoal ensaiar para o Sete de Setembro? Abom.

Aristodemo deu folga no serviço. Também levou um colosso de cópias.

E o primeiro ensaio foi logo à noite.

Ou-viram do I-piranga as margens plá-cidas…

– Parem que assim não presta não! Falta patriotismo. Vocês nem parecem brasileiros. Vamos!

Ou-viram do I-piranga as margens plácidas Da Inde-pendência o brado re-tumbante!

– Não é assim não. Retumbante tem que estalar, criaturas, tem que retumbar! É palavra. Como é que se diz mesmo?… é palavra… ah!… onomatopaica: RETUMBANTE!

E o hino rolou ribombando:

… a Inde-pendência o brado re-TUMBAN-te! E o sol da li-berdade em raios ful…

De repente um barulho na segunda esquadra.

– Que isbregue é esse aí, criaturas?

Isbregue danado. O alemãozinho levou um tabefe de estilo. Onde entrou todo o muque de que pôde dispor na hora o Aristodemo.

– Está suspenso o ensaio. Podem debandar.

– Eu dei mesmo na cara dele, Seu Sargento. Por Deus do céu! Um bruto tapa mesmo. O desgraçado estava escachando com o hino do Brasil!

– Que é que você está me dizendo, Aristodemo?

– Escachando, Seu Sargento. Pode perguntar para qualquer um da esquadra. Em vez de cantar ele dava risada da gente. Eu fui me deixando ficar com raiva e disse pra ele que ele tinha obrigação de cantar junto com a gente também. Ele foi e respondeu que não cantava porque não era brasileiro. Eu fui e disse que se ele não era brasileiro é porque então era… um… eu chamei ele de… eu ofendi a mãe dele, Seu Sargento! Ofendi mesmo. Por Deus do céu. Então ele disse que a mãe dele não era brasileira para ele ser… o que eu disse. Então eu fui. Seu Sargento, achei que era demais e estraguei com a cara do desgraçado! Ali na hora.

– Vou ouvir as testemunhas do fato, Aristodemo. Depois procederei como for de justiça. Fiat justitia como diziam os antigos romanos. Confie nela, Aristodemo.

"Ordem do Dia

De conformidade com o ordenado pelo Exmo Sr. Dr. Presidente deste Tiro-de-Guerra e depois de ouvir seis testemunhas oculares e auditivas acerca do deplorável fato ontem acontecido nesta sede do qual resultou levar uma lapada na face direita o inscrito Guilherme Schwertz, n. 81, comunico que fica o citado inscrito Guilherme Schwertz, n. 81, desligado das fileiras do Exército, digo, deste Tiro-de-Guerra visto ter-se mostrado indigno de ostentar a farda gloriosa de soldado nacional Delas injúrias infamérrimas que ousou levantar contra a honra imaculada da mulher brasileira e principalmente da Mãe, acrescendo que cometeu semelhante ato delituoso contra a honra nacional no momento sagrado em que se cantava nesta sede o nosso imortal hino nacional. Comunico também que por necessidade de disciplina, que é o alicerce em que se firma toda corporação militar, o inscrito Aristodemo Guggiani, n. 117, único responsável pela lapada acima referida acompanhada de equimoses graves, fica suspenso por um dia a partir desta data. Dura lex sed lex. Aproveito porém no entretanto a feliz oportunidade para apontar como exemplo o supracitado inscrito Aristodemo Guggiani, n. 117, que deve ser seguido sob o ponto de vista do patriotismo, embora com menos violência apesar da limpeza, digo, da limpidez das intenções.

Aproveito ainda a oportunidade para declarar que fica expressamente proibido no pátio desta sede o jogo de futebol. Aqui só devemos cuidar da defesa da Pátria!

São Paulo, 23 de agosto de 1926.
(a) Sargento-Inspetor Aristóteles Camarão de Medeiros."

Aristodemo Guggiani logo depois apresentou sua demissão do cargo de cobrador da Companhia Autoviação Gabrielle d’Anunuzio. Sob aplausos e a conselho do Sargento Aristóteles Camarão de Medeiros. Trabalha agora na Sociedade de Transportes Rui Barbosa, Ltda.

Na mesma linha: Praça do Patriarca – Lapa.

Fonte:
Alcântara Machado. Brás, Bexiga e Barra Funda.

Projeto Apparere (Coletânea de Natal) Poemas Selecionados

Capa: Adriano Vox


Adnelson Borges de Campos – Nas trilhas dos carroções
Adriana Ferreira da Silva – Natal
Airton Rodrigues – O Gari
Antônio C. S. Santos - Meu primeiro Natal
Antonio Stegues Batista – Um Natal diferente
Aucenir Gouveia – Meditação Natalina
Brenda Sales – Papai Noel
Caio Fraga – Soneto de Natal
Caliel Alves – A cidade sem chaminés
Camila dos Santos Santana – Minha Festa
Cárlisson Galdino – Pesquisa Espacial
Carlos José Ferreira Lopes – Aldravias de natal
Carlos Marcos Faustino – Velhos Natais
Danilo de Oliveira Pessôa – Eu não gosto de Natal
Divino Antonio – Um conto de Natal - O retrato
Edilma Maria da Silva – Predestinado no Natal
Elio Moreira – É Natal
Fátima Alves – Nosso Natal ...
Garbo Nael – Pedido de Natal
Gil Nascimento – O Natal de Deus é assim!
Gilberto de Guedes Vaz – Quatro Jovenzinhos e o Dilema de Papai Noel
Ilma Pereira Nunes Moreira – 1000 dias para o Natal
Ivan de Oliveira Melo – Canto Natalino
Jairo Alves – Os Natais da Minha Vida
Jorge de Palma – A cantata natalina de Pedrinho Peixoto
José Feldman – Quase um Soneto: Mais Um Natal
José Luiz Teixeira da Silva – Noite de Natal
Júlio César Freid'Sil – Feliz Natal
Juna Guimarães – Presente de Natal
Kelly Cristina Araujo – Encontrando Noel
Kleyser Ribeiro – Natal de verão
Laércio Vieira – O Papai Noel Robô
Lenilson Silva – Espelho do Natal
Léo Guimarães – O antigo Natal
Leomaria Mendes Sobrinho - Natal
Luiz Loureiro – Conto de Natal
Marcelo Oliveira – Os Espíritos do Natal
Marilia de Souza Abduani – Natal
Mauricio da Costa Carvalho Vidigal – Natal e Carolinas
Miguel Jorge da Silva Fortes – Natal em família
Mirelle Cristina da Silva – Feliz
Neri França Fornari Bocchese – É Natal
Roberto de Jesus Moretti – Um conto PM de Natal
Roberto Minadeo – Natal no Hospital
Rodrigo Mendes – Um brinde ao renovo
Roger Ribeiro – Nada de Papai Noel
Rosa Acassia Luizari – Papai Noel contemporâneo
Sergio de Souza Merlo – Noel
Tainá Custódio – Visita inesperada
Tarique Layon Lima Vilhena – Renovação da Esperança
Thiago Sabino Leite – Ah Natal
Valéria Guerra Reiter – O Natal de Iniguaçu...

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Varal de Trovas n. 125


António Lobo Antunes (Elogio do Subúrbio)


Cresci nos subúrbios de Lisboa, em Benfica, então quintinhas (casa de campo), travessas, casas baixas, a ouvir as mães chamarem ao crepúsculo

- Víiíiíííítor

num grito que, partido da Rua Ernesto da Silva, alcançava a cegonhas no cume das árvores mais altas e afogava os pavões no lago sob os álamos. Cresci junto ao castelito das Portas que nos separava da Venda Nova e da Estrada Militar, num país cujos postos fronteiriços eram a drogaria do senhor Jardim, a mercearia do Careca, a pastelaria do senhor Madureira e a capelista Havaneza do senhor Silvino, e demorava-me à tarde na oficina de sapateiro do senhor Florindo, a bater sola num cubículo escuro rodeado de cegos sentados em banquinhos baixos, envoltos no cheiro de cabedal e miséria que se mantém como o único odor de santidade que conheço.

A dona Maria Salgado, pequenina, magra, sempre de luto, transportava a Sagrada Família, numa caixa de vivenda em vivenda, e os meus avós recebiam na sala durante quinze dias essas três figuras de barro numa redoma embaciada que as criadas iluminavam de pavios de azeite. Cresci entre o senhor Paulo que consertava com guitas e caniços as asas dos pardais, e os Ferra-a-Bico cuja tia fugiu com um cigano e lia a sina nas praias, embuçada de negro como a viúva de um marujo que nunca deu à costa. Os meus amigos tinham nomes próprios tremendos (Lafaiete, Jaurés) e habitavam rés-do-chão de janelas ao nível da calçada onde distinguiam aparelhos de rádio gigantescos, vasos de manjerico e madrinhas de chinelos. O cão da fábrica de curtumes acendia latidos fosforescentes nas noites de julho, quando o pólen me chovia nas pálpebras, eu, morto de amores pela mulher de Sandokan, descobria-me unicórnio trancado na retrete (vaso sanitário) da escola, e o brigadeiro Maia, de boina basca, descia à Adega dos Ossos a gesticular contra o regime. Na época em que aos treze anos me estreei no hóquei em patins do Futebol Benfica, o guarda-redes enchumaçado como um barão medieval apontou-me ao pasmo dos colegas

- O pai do ruço (grisalho, desbotado) é doutor.

No que constituiu de imediato a minha primeira glória desportiva e a primeira tenebrosa responsabilidade, a partir do momento em que o treinador, a apalpar-me os músculos com os olhos, preveniu numa careta de dúvida

  - Sempre estou para ver se lhes chegas, ó ruço, que o teu pai no ringue era lixado para a porrada.

   O dono da Farmácia União jogava o pau, a esposa do proprietário da Farmácia Marques era uma grega suntuosa de nádegas de ânfora e pupilas acesas, que me fazia esquecer a mulher de Sandokan ao vê-la aos domingos a caminho da igreja, o sineiro a quem chamavam Zé Martelo e que tocava o Papagaio Louro na Elevação da missa do meio-dia em vez do A treze de Maio obrigatório, possuía uma agência funerária cujo prospecto-reclame começava "Para que teima Vossa Excelência em viver se por cem escudos pode ter um lindo funeral?", e eu escrevia versos nos intervalos do hóquei, fumava às escondidas, uma das minhas extremidades tocava Jesus Correia e a outra Camões, e era indecentemente feliz.

Hoje, se vou a Benfica não encontro Benfica. Os pavões calaram-se, nenhuma cegonha na palmeira dos Correios já não existe a palmeira dos Correios, a quinta dos Lobo Antunes foi vendida, o senhor Silvino, o senhor Florindo e o senhor Jardim morreram, ergueram prédios no lugar das casas, mas eu suspeito que por baixo destes edifícios de cinco e seis e sete e oito e nove andares, num ponto qualquer sob marquises e sucursais de banco, o senhor Paulo ainda conserta, com guitas e caniços, as asas dos pardais, a dona Maria Salgado ainda trota de vivenda em vivenda com a Sagrada Família na sua redoma embaciada, o Lafaiete e o Jaurés jogam ao Virinhas na Calçada do Tojal cercados de vasos de manjerico e madrinhas de chinelos. Não há avezões nem cegonhas e contudo a acácia dos meus pais, teimosa, resiste. Talvez que só a acácia resista, que só ela sobeje desse tempo como o mastro, furando as ondas, de um navio submerso. A acácia basta-me. Arrasaram as lojas e os pátios, não tocam o Papagaio Loiro no sino, mas a acácia resiste. Resiste. E sei que junto do seu tronco, se fechar os olhos e encostar a orelha ao seu tronco, hei de ouvir a voz da minha mãe chamar - Antóóóóóóóónio!

E um miúdo ruço atravessará o quintal, com um saco de berlindes na algibeira, passará por mim sem me ver e sumir-se-á lá em cima no quarto, a sonhar que ao menos a mulher de Sandokan não o obrigaria nunca a comer purê de batata nem sopa de nabiças* durante o tormento do jantar.
__________________________
Nota:
Nabiça é a folha comestível de uma planta cuja raiz é o nabo.

Fonte:
António Lobo Antunes. Livro de Crônicas. Lisboa: Dom Quixote, 1998.

Professor Garcia (Trovas do Meu Cantar) III


Alguém me bateu no peito,
de um jeito tão sedutor..,
Que o coração, sem ter jeito,
virou mocambo do amor!

Ao ver tantos esplendores,
das nuvens brancas, ao léu...
Comparo a velhos pastores,
tangendo sonhos, no céu!

Ao ver-te, ó velha tapera,
senti, na dor dos teus ais...
Meus sonhos de primavera
e o silêncio de meus pais!

Canta Iguaçu!... Que os teus cantos,
feitiços das verdes matas,
afastam mágoas e prantos,
no canto das Cataratas!

Chega a idade!... E eu já sem graça,
na ousadia dos meus planos,
finjo que o tempo não passa
e escondo os meus desenganos!

Mãe que tem fé, não se esquece,
de orar pelos filhos seus!...
Pois, no silêncio da prece,
toda mãe fala com Deus!

Na manjedoura, em Belém,
nasce um mistério profundo:
Uma luz vinda do além,
que se fez a Luz do mundo!

Não há pior desconforto
nem um crime mais tirano,
que aquele, de um filho morto,
no ventre de um ser humano!

Nosso amor guarda, em segredo,
dois escrutínios fatais;
Na primavera, foi cedo,
no outono, tarde demais!

O amor guarda a sutileza,
de uma taça de cristal,
que quando trinca, a beleza
perde o encanto original!

O artista que a tarde pinta,
mostra aos ateus e ao descrente,
que alguém, sem pincel nem tinta,
pinta a cor do sol poente!

O beija-flor pequenino,
astucioso artesão…
Tece, no galho mais fino,
o altar de sua mansão!

O ocaso chega, de leve,
toda tarde, e vem me ver!...
Sutil, no meu peito escreve:
Ama o teu entardecer!

Prendi-me, aos braços da cruz,
por seus laços fui tomado,
tentando encontrar a luz
que ofusque a luz do pecado!

Quando enfim, tu te ajoelhas,
e o teu perdão te refaz:
Serás luz entre as centelhas
do fogo aceso da paz!

Rompe a aurora, o galo canta,
o sol põe riso na flor;
e o sabiá, da garganta,
liberta um hino de amor!

Se a brisa cai, sorrateira,
e arrasta a flor que morreu...
Deixa mais triste a roseira,
chorando a flor que perdeu!

Se a cruz redime o pecado,
seu peso, nos leva à Luz.,.
Eu quero o peso dobrado,
nos braços de minha cruz!

Se em silencio, ó primavera,
partiste, sem dar adeus...
Sei que o silêncio me espera,
no outono dos dias meus!

Tapera - foste o meu rancho!
E hoje, apesar da distância...
Tu guardas, num velho gancho,
molambos de minha infância!

Tenho um jardim diferente...
E entre nós, há uma aliança:
Por mais que eu mude a semente,
só nasce a flor da esperança!

Vejo, em dois braços abertos,
o meu viver peregrino:
Se um me aponta os rumos certos,
o outro indica o meu destino!

Venci marés violentas,
ondas e mares sem fim...
Só não venci as tormentas
que existem dentro de mim!

Vivi tão pouco ao teu lado!
Mamãe!... Contigo sonhei...
Devia ter te beijado,
bem mais do que te beijei!

Vivo entre a paz e o temor
de uma dúvida malvada:
Ter tudo, sem teu amor,
ou teu amor, sem ter nada!

Fonte:
Francisco Garcia de Araújo. Cantigas do meu cantar. Natal/RN: CJA Edições, 2017.
Livro enviado pelo autor.

Edwaldo Camargo Rodrigues (Passageiros da Noite)


    Desde que o sol se pusera, era o terceiro espírito errante com que se deparava naquela estrada maldita. Já nem se assustava mais, havia-se acostumado com o fenômeno. Mais esta vez, lívida, a aparição acenou, surgida como que do nada, interpondo-se de repente à frente dos cavalos, que estacaram em pânico, corcoveando. Relincharam dolorosamente e escarvavam com os cascos ferrados o solo duro e pedregoso, com fúria, até produzir faísca; mas foi em vão, tiveram enfim de acalmar-se e submeter-se, bufando, os olhos esbugalhados a brilharem na escuridão da noite.

    Este último, pelo menos, comportou-se educadamente, ao contrário dos anteriores, que simplesmente se apoderaram da brida com um gesto desabrido das mãos descarnadas, cujos ossos alvejavam à luz da lua para, em desabalada carreira, conduzirem eles próprios a parelha alvoroçada até onde lhes interessava, apeando em seguida sem proferir uma única palavra e desaparecendo em meio às trevas da noite, tragados pelas as portas do Inferno, talvez. Pois ele, ainda que o instigasse a curiosidade, prudentemente não os seguiu, a fim verificar seu fatídico paradeiro.

    - Em nome de Cristo, permita-me subir, meu senhor, pois vou cansado – solicitou, polido. – Minhas velhas pernas já não conseguem conduzir-me, e é imperativo que chegue a meu destino antes do alvorecer. – A voz gutural provinha de algum ponto qualquer situado entre as costelas agudas que o albornoz puído mal encobria e as vértebras expostas do longo pescoço, em torno do qual pendiam frouxos os restos encardidos de uma golilha de gorgorão*.

    Porém, seu aspecto geral não era melhor que o das almas penadas anteriores. Os olhos, amolecidos e pegajosos, flutuavam soltos, e seus movimentos descoordenados dentro das órbitas negras faziam lembrar gemas de ovos que se fritam em óleo, a contrastar com o fundo requeimado da frigideira. Era nojento.

    - Por favor... – respondeu entretanto o viajante. E suspirou conformado, desferindo palmadinhas sobre o assento do banco ensebado de madeira, indicando o lugar junto de si na boleia. – Desde que a Vossa Senhoria não aborreça sentar-se aqui comigo, ao lado deste homem rústico, já que a caçamba vai repleta de esterco para o replantio das cepas. – E acrescentou: – Minha viagem é longa e espero em Deus que o itinerário lhe seja conveniente, prezado andarilho. Pois é meu dever avisar que meu patrão não permite, em nenhuma hipótese, qualquer desvio na rota estabelecida por ele; muito menos toleraria atrasos que isto viesse acarretar a seus negócios, se o senhor me compreende. O homem é enérgico e não hesitaria em castigar-me, caso lhe desobedecesse.

    Aceita essa condição, o convidado acomodou-se e pôs-se logo à vontade. Descalçou as botas e arriou o capuz, que lhe velava parcialmente a carantonha* feroz. Que bruto camarada, louvado fosse o Senhor! A ossatura do crânio mostrava-se totalmente exposta e parecia esfarinhar. E por toda a superfície, viam-se interstícios esverdinhados, como se a criatura tivesse há pouco se erguido de um pântano qualquer em que se espojara, e através dos quais despontavam, aqui e ali, falripas mucilaginosas* com a aparência exata de algas apodrecidas. Quanto aos dentes então, restavam-lhe apenas alguns dos incisivos, o que lhe dava, em tudo, o aspecto de uma caveira de burro. E pior: emanava-se dele um mau cheiro execrável de ratazana apodrecida, que nem a brisa da noite que circulava ao redor e tampouco o movimento da velha traquitana* conseguiam dispersar por completo. De todos os seus passageiros, aquele, sem dúvida, prometia ser o mais incômodo, apesar dos modos corteses que exibia.

    Entretanto, uma vez instalado, suspirou e pareceu aquietar-se. – Chamam-me Dom Antônio Alonso – fez ele, estendendo a mão, gesto que o condutor, protegido pela obscuridade que os envolvia, afetou não perceber, hirto de pavor mediante a iminência de um contato com o sinistro desconhecido. Apenas um simples toque daqueles dedos de esqueleto poderia ser fatal, drenando-lhe a alma do corpo, sabia-se lá, e que Deus o protegesse ao longo daquela jornada.

    - Prazer... – gaguejou depois de algum tempo, sem afrouxar as rédeas, que empunhava com firmeza, e sem desgrudar os olhos da estrada, cuja superfície de cascalhos frouxamente embranquecida sob um luar indeciso serpeava adiante. – Meu nome é Pedro Valdez, conhecido também como Pedro, o Troca, pois que atualmente ando por este mundo a mercadejar. Na verdade, trabalho a soldo para um adelo* espertalhão; segundo comentam, um foragido da lei que se homiziou lá para as bandas do meu povoado, um fim de mundo esquecido por Deus. O biltre, apesar de paralítico e avarento, é mais ladino que uma raposa, que nem mesmo o diabo o engabela. Mas é a ele e mais ao meu suor que devo o pão do meu sustento. 

    E após pigarrear um pouco, informou ainda: – Outrora fui também tanoeiro*, ofício aprendido de meu falecido mestre e compadre, o artesão João Dorta, vassalo dos senhores de Valdez, proprietários das quintas de Valdez, e de quem adotei o nome ao sair evadido de seus domínios, lá nas províncias mais ao norte, já que o de um de pai ou de uma mãe não possuo, por desconhecer quem a mim me gerou. Em pequeno, fui colocado na roda, conforme se diz dos enjeitados.

    O homem tinha esse temperamento: quando tenso, disparatava; refugiava-se talvez no som da própria voz, sem conceder muita importância ao significado do que dizia. Não era seu intento falar tanto assim de si, revelar sua vida de supetão, despejando tudo mais ou menos sem propósito, quanto mais a um completo estranho. Amaldiçoou-se por isso, mas era tarde, cumpria conter-se dali em diante, e manter a boca fechada.

    Mas o outro não demonstrou a mais leve perturbação. Pareceu nada ter escutado de toda aquela eloquência despropositada. Aristocrático, com sua voz vácua e quase ininteligível, emitiu comentários imprecisos a respeito do clima, talvez para dissipar qualquer constrangimento pressentido entre os dois, conforme procederia um autêntico cavalheiro.

    Depois de perscrutar a paisagem, negra e indecifrável, prognosticou finalmente chuvas, a virem pela madrugada, com certeza. E assim, aprumando-se com galhardia, sem desmantelar-se aos solavancos do veículo, voltava a cada instante a cabeça para os lados e para o céu, aparentemente sem dar conta do incômodo rangido provocado pelas vértebras ressequidas que se atritavam com aspereza e que se repetia a cada movimento, enquanto falava.

    - Pouco além desta colina junto à qual agora passamos – disse e apontou com o indicador amarelecido, semelhante a uma antiga batuta entalhada em marfim, uma massa escura apenas perceptível em meio à vegetação intrincada que margeava o caminho –, avistaremos em seguida um frondoso sicômoro*. Rogo-lhe que paremos um pouco sob suas ramagens. De modo que os cavalos poderão descansar – justificou. Mas logo a seguir, inclinou-se para o outro, acrescentando em tom confidente, as mandíbulas trêmulas a tatalarem com enleio: – E é lá também que espero encontrar uma pessoa que me é muito cara, se o senhor não se opõe, é claro.

    Tão logo ali chegaram, abrigaram-se sob a vasta copa da árvore, pois, conforme previra a distinta assombração, uma tempestade ameaçadora, anunciada pelos graves ribombos das trovoadas, aproximava-se rapidamente. Sob os lívidos clarões de relâmpagos intermitentes, Pedro Valdez entreviu, em sucessivos relances, um vulto encaminhar-se em direção a eles. Pareceu-lhe uma mulher. Vinha trilhando uma vereda inculta, desviando-se de túmulos e capelas que mal se podiam distinguir, tal a confusão de urzes, heras e mandrágoras, que medravam por tudo, incontroláveis e bravias, compondo um cenário desolador de abandono e ruína.

    Os animais, que até então, aproveitando a pausa, roçagavam* a relva em sossego, pressentiram aproximar-se a desconhecida e assustaram-se novamente, reagindo irrequietos, nutrindo com sofreguidão desconfiada. – Calma, Penedo! Quieto Ferrabrás! – sofreava-os o dono, empunhando a brida com energia.

    - Permita-me que lhe apresente, senhor Valdez – interveio, nesta manobra difícil, o muito solícito Dom Antônio, exibindo a palma estendida num meneio gracioso, como quem oferece um ramo florido, amparando-o entre o polegar e o indicador –, eis aqui a senhora dona Risoleta Alonso y Olavarria, minha falecida esposa e companheira perpétua. – E, sem esperar por resposta, estendeu os braços, ajudando-a a embarcar, fazendo com que ela se sentasse, apertando-se, com artríticos estralejos*, no exíguo espaço que restava entre os dois na estreita boleia.

    Era arriscado supor que a mulher sorrisse, pois nenhum vestígio de pele se lhe restava aderido ao carão escaveirado, de forma que a única expressão facial possível para a infeliz era aquele esgar impudico a expor permanentemente os dentes arreganhados. Os quais, entretanto, permaneciam em excelente estado de conservação, condição que permitia com que a maxila e a mandíbula, quando unidas, se ajustassem mutuamente com admirável elegância, sem que se percebesse a mínima falha ao longo das arcadas.

    Em todo caso, relanceou o condutor e acenou altivamente com a cabeça, em cuja fronte, ocupando as cavidades que em vida contiveram olhos provavelmente belos, lampejaram momentaneamente, bem lá no fundo, dois minúsculos glóbulos esverdeados, ambos semelhantes a vaga-lumes feridos que agonizassem, quase ocultos em meio à vegetação sombria. E – mais inacreditável! – no cocuruto daquele crânio limpo e alvadio*, equilibrava-se uma touça* de cabelos ressequidos como palha, sobre a qual a vaidade feminina havia espetado um largo pente de tartaruga cujas pontas sustinham a orla de uma mantilha negra e rendada, que descia abundante e cascateava-lhe pelas costas e em redor da figura esquálida da morta, chegando-lhe às ancas, no melhor estilo andaluz, nobre e suntuoso.

    Uma vez colocados os três em seus respectivos lugares, nenhuma alternativa lhes restava senão espremerem-se entre si, caso desejassem prosseguir viagem. Apesar disso, a dama recuava tentando evitar a proximidade do humilde carroceiro, cujo contato parecia repugná-la. De modo que, com gestos impacientes de repulsa e desdém, cosia-se o mais possível junto ao marido, agarrando-se-lhe aos braços, inclinada sobre ele a protestar com um murmúrio cavo e continuado, que se escapava provavelmente através dos desvãos da grade torácica.

    - Não, vida minha – replicava-lhe o conciliador Dom Antônio aos cochichos, tentando a custo conter as diatribes da companheira e, ao mesmo tempo, não ser ouvido pelo outro –, desista, por favor, não é possível viajar lá atrás. Transporta-se estrume do gado, compreende?... Porque é assim mesmo, é a estação, é para o plantio das vides*... – E ensinava paciente: – Recorda-se de como acontecia em nossa herdade e na quinta de seu pai, no início da primavera? Pois é igual; acredito que as práticas não mudaram desde aquele tempo, e é com certeza o procedimento que ainda hoje utilizam os labregos* na lide das glebas.

    A mulher todavia inquietava-se, não compreendia, salmodiava sem parar sua queixa exaltada, quase incorpórea, provinda do além. – Você está confusa, meu bem – ponderava o esposo –; provavelmente ainda não despertou por completo de seu longo sono – cogitou ele, segurando-lhe carinhosamente o queixo pontudo. E esclareceu: – O homem não é um salteador, um birbante*... Trata-se apenas de um camponês, um trabalhador, e está nos ajudando sem nada exigir em contrapartida. Isto é mais do que se pode esperar de um rústico cristão.

    E, após ouvir-lhe uma modulação sibilante, que deveria expressar ainda alguma dúvida que a atormentava, garantiu-lhe em tom cabal, no qual se percebia uma leve ponta de contrariedade, o osso do polegar direito a indicar perfurante para trás: – Não, é claro... Não é dele. O cheiro provém do maldito carregamento que o coitado tem de distribuir por aí, pelos campos, por dever de ofício, conforme já lhe expliquei, ou por outras razões que apenas a ele dizem respeito, sei lá, mulher.

    Entrementes, seguia o grupo, madrugada adentro, assim composto: o arrieiro*, muito inteiriçado e esgazeado, e o heteróclito* casal entrelaçando reciprocamente as mãos alvacentas, ambos coniventes a respeito de seu destino sobrenatural, que somente eles conheciam. E seus corpos chocalhavam a cada solavanco da viatura, que rolava estrídula*, as rodas resvalando sobre a via tortuosa, atapetada de seixos irregulares. Era de admirar que as duas múmias não se desconjuntassem de todo, esfacelando-se de uma vez por todas, como um jogo de varetas sobre um tabuleiro, ou que se reduzissem finalmente a pó.

    Não obstante, passados alguns momentos, rouquejou o nobre, apontando os restos de uma edificação que se erguia um pouco recuada, apenas vislumbrada a assomar entre a vegetação espessa, talvez um antigo portal ou peristilo*, cujos fragmentos branquejavam ainda por um instante sob o luar evanescente da madrugada:

    - Eis acolá onde desejamos finalmente ficar, meu amigo; e o senhor, depois disto, poderá prosseguir em paz, sob as bênçãos do Céu.

    - Oooo! – Ouviu-se na paisagem silente. E, mais alguns passos, a parelha estacou, homem e bestas aparentemente aliviados.

    - Estamos muito agradecidos – disse o falecido, ajudando apear a sua cara metade, que, naquela simples operação, cambaleava a cada movimento, muito indecisa, enroscando-se na trama dos seus complicados véus. E, infaustamente, apesar das atenções e cuidados com que a cercava o devotado esposo, alguma coisa saíra errada, talvez que enganchasse os pés quebradiços no estribo enferrujado, resultando com que a infeliz tropeçasse e se estatelasse inteira contra a lama do chão, todo encharcado da chuva recente. A brava senhora reduziu-se instantaneamente a uma ruma* de ossos, de cambulhada* com rendas e tecidos que se esgarçavam desfibrados, tudo aquilo se confundindo numa patética mixórdia, asquerosa e irreconhecível.

    - Aqui residimos e vivemos os melhores dias das nossas vidas – explicou Dom Antônio, em sua fleuma incorrigível, acenando com um gesto abrangente a seu redor, tão amplo que então indicaria o próprio céu, estrelado e prenunciador da aurora. Porém, humilde, agachou-se em seguida, e via-se que tentava com seus dedos, quebradiços e desajeitados, organizar uma trouxa transportável daquela massa confusa que se espalhava pelo solo à sua frente, os despojos de sua amada. O companheiro fez menção de acudi-lo naquela tarefa penosa, porém o cavalheiro não lho permitiu. Afastou-o com um meneio da mão impositiva, declarando, formalizado: – Vou levá-la para nossa alcova, onde repousará – justificou, erguendo-se lentamente, a sobraçar com dificuldade o volume amorfo. – Lá, eu a recomporei, pedaço por pedaço, e ela ressurgirá da maneira exata como a conheci, tão jovem e fascinante, e cuja lembrança, passado tanto tempo, ainda agora me deslumbra e me faz perder o fôlego, emocionado. – E após um suspiro profundo, completou, contemplativo: – Seremos felizes novamente, pode ter certeza. A morte ainda não nos venceu, nem poderá separar-nos definitivamente.

    E, voltando-se, afastou-se com seu fardo precioso, penetrou entre as ramagens hirsutas dos tojos* retorcidos e das tanchagens* peçonhentas que bordejavam o caminho e foi corajosamente transpor a barreira formada por partes de empenas* e colunas que, em meio à penumbra indecisa da alvorada, divisavam-se além, derrocadas sobre a relva, espalhadas em confusão, e atrás da qual, amparando-se precariamente, desapareceu por fim, enquanto o pipilar dos primeiros pássaros despertados ecoava pelas frondes sombrias das árvores em redor.

    Pedro Valdez suspirou, uma comoção indefinível picou-lhe o coração piedoso. Desatrelou os machos e estapeou-lhes as ancas, amistosamente, dando-lhes liberdade, a fim de que debandassem e se apascentassem finalmente tranquilos, depois daquela noite extenuante.

    Um regato oculto entre a vegetação rumorejava por perto. Descobriu-o sem muito esforço. E, bebendo da água fresca, viu refletir-se na superfície encrespada que resvalava buliçosa sobre claros seixos, iluminado pelo sol da manhã, que surgia radiante, seu semblante cansado. Também este se desfazia, o rosto cadavérico parecendo diluir-se, puxado pelo movimento borbulhante da modesta corredeira.

    Lembrou de seu patrão, o Abílio Tornado, que lhe parecia o próprio demônio, da primeira mulher, a Aldonça, e dos filhos pequenos, cujos nomes restavam apenas nas lápides mesquinhas em que haviam sido talhados, em algum lugar, remoto e esquecido, e viu-se morto, de repente morto, só não sabia desde quando e por que ainda vagava sobre a terra.
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Glossário em Ordem Alfabética:
Adelo – aquele que compra ou vende roupas e objetos usados.
Alvadio – alvacento, esbranquiçado.
Arrieiro – arreeiro, tropeiro.
Birbante – que ou aquele que vagueia, sem pouso ou trabalho certos; vagabundo, viajante, vadio.
Cambulhada – reunião de coisas diversas; mistura.
Carantonha – cara fechada; cara feia; carranca.
Diatribe – discurso escrito ou oral, em tom violento e geralmente afrontoso, em que se ataca alguém ou alguma coisa.
Empenas – qualquer parede lateral, especialmente as construídas nas divisas do terreno.
Estralejo – o mesmo que estalejo, estalar.
Estrídula – som agudo, ruidoso, penetrante,
Falripas mucilaginosas – cabelos curtos e ralos viscosos.
Golilha – Gola.
Gorgorão – tecido encorpado de seda, com relevos formando finos cordões, originalmente fabricado na Índia.
Heteróclito – pouco comum; bizarro, extravagante, excêntrico, singular.
Labrego – certo tipo de arado, munido de um varredouro entre as aivecas com que limpa da terra as raízes.
Peristilo – pátio rodeado por colunas.
Plantio das vides – plantio das videiras.
Roçagar – passar levemente por; roçar, arrastar-se.
Ruma – pilha, montão.
Sicômoro – árvore de até 20 m (Acer pseudoplatanus) da família das aceráceas, nativa da Europa e Oeste da Ásia, de folhas com cinco lobos e flores pêndulas, cultivada como ornamental, pela madeira branca, especialmente usada em instrumentos musicais e mobiliário, como melífera, dando ao mel cor esverdeada, e pela tintura vermelha que se extrai da raiz.
Tanchagem – design. comum a diversas plantas do gênero Plantago, da fam. das plantagináceas, de ervas ou arbustos geralmente de uso medicinal e cujo pólen é notoriamente um causador da febre do feno.
Tanoeiro – aquele que fabrica tonéis, pipas, barris etc.; toneleiro.
Tojo – arbusto de até 2 metros.
Touça – conjunto, agrupamento.
Traquitana – automóvel velho, maltratado, de mau aspecto; lata-velha.
(Fonte do glossário: Dicionário Houaiss)


Fonte:
Texto enviado por João Libero

domingo, 24 de novembro de 2019

Varal de Trovas n. 124


Luiz Poeta (Texto para um Natal)


É tempo de Natal. Das vitrines mais sofisticadas aos ambulantes mais simplórios, os chamarizes natalinos convidam as pessoas que passam, para ornamentarem suas salas, ambientando-as para a celebração do nascimento de Jesus. Para os comerciantes, mais do que falar do nascimento do menino de Belém, é preciso vender porque, afinal, o cliente está com dinheiro e comprar é o verbo mais conjugado e qualquer presente orçamentário é sempre uma bênção.

As propagandas para fomentar a aquisição de produtos do gênero são específicas: ou exibem o glamour de uma delicatessen, cujas sofisticadas cestas de vime expõem gêneros importados sob o brilho de neon das luminárias cuidadosamente preparadas para esse fim, ou espalham-se pelos luminosos corredores dos shopping centers repletos de gorduchos e sorridentes papais noéis - artificiais - cujo movimento para trás e para frente, mecanicamente repetitivo, parece reverenciar o dinheiro do gastador compulsivo diante de tantas ofertas em cada uma das lojas.

Aleatórias à inteligente metodologia das vendas, do outro lado da rua movimentada, precisamente nas calçadas, as instigantes e estridentes vozes dos camelôs, mais do que convidar, intimam o comprador. Eles espalham seus produtos geralmente contrabandeados sobre enormes plásticos e dão logo o seu recado: - Aí, freguesa: Papai Noel a bateria! Pisca-pisca! Árvores de natal de todos os tamanhos! Leva duas e paga uma! Seu filho vai adorar!

Mas quando se trata de vender e comprar - ressalvada a natural hipocrisia para cada caso - povo é povo em qualquer situação. A premente necessidade de adquirir e exibir o objeto conquistado, mesmo quando os recursos são ínfimos, é irrevogável. É preciso mostrar mostrando-se, presentear e presenteando-se. O resultado das compras natalinas é diversificado, mas o cenário é único para cada celebração.

Nas casas mais luxuosas, os anfitriões exibem suas mesas enormes, modeladas caprichosamente por cozinheiros e maitres contratados, repletas de iguarias que parecem posar para o paladar mais exigente, num delicioso mosaico desenhado por talheres e travessas de prata e pratos de porcelana contendo o melhor bacalhau, perus, chesteres, pernis, tortas, bolos e pudins, além das cerejas, tâmaras, figos, pêssegos, nozes, castanhas, amêndoas, avelãs, frutas cristalizadas e afins, cujos nobres obeliscos de toda aquela deliciosa panorâmica da ceia são garrafas e cálices de vinhos do Porto e champanhas franceses.

Sem a menor cerimônia, dão-se ou trocam presentes valiosos: casas, carros, iates, colares de pérolas e diamantes, pingentes, cordões, anéis, alianças e pulseiras de ouro do mais nobre quilate, passagens para cruzeiros com destino às ilhas fiscais, além de uma infinidade de essências importadas, roupas, bolsas, cintos e sapatos de grife.

Sem grandes cômodos que possibilitem a movimentação natalina, um número expressivamente maior de cidadãos comuns comemora este evento à sua maneira, contentando-se com suas cervejas, feijoadas, farofas, refrescos, rabanadas, pastéis e aletrias, realizando seus alvoroçados e espumantes brindes às vezes no próprio quintal, onde é exibido um portentoso churrasco de asas e coxas de frango e carnes de segunda. Tudo é festa!

Sua troca de presentes é modesta: camisas, blusas, lenços, edredons, toalhinhas-de-mão, meias, perfumes baratos, panelas e móveis de questionável durabilidade, mas o que importa mesmo é a reciprocidade produzida pela alegria do dar e receber.

Porém, longe do fogo do carvão que assa carne ou da lareira que conforta os pés, tendo por cama apenas os papelões que embalam os melhores presentes, e por telhado o brilho das estrelas que desconhecem Belém, os ditos miseráveis amargam a solidão de mais um dia sem calendário, sem mesa posta... sem presentes, sem Natal.

Enquanto o Jesus verdadeiro teima em nascer sublimemente no melhor e mais fervoroso silêncio das pessoas mais sensíveis... em várias casas, no aconchego das líricas manjedouras, os aparentemente eternos sorrisos desenhados nos rostos de gesso e louça de diversos menino Jesus artificiais parecem demonstrar, em lugar da compreensão por cada um dos sentimentos humanos, um divino enlevo diante do atraente marketing produzido pelo premiadíssimo vendedor e simpaticíssimo herói natalino Santa Claus.

Fonte:
Luiz Gilberto de Barros (Luiz Poeta). Canção de Ninar Estátuas. 1.ed. Ilhéus/BA: Mondrongo, 2014.
Livro enviado pelo autor.

Baú de Trovas VIII


Benditos são os mecenas!
Não deixam a arte morrer!
São os pilares das cenas
na cultura e no saber!
Abílio Kac
Rio de Janeiro/RJ


Quem não aprende em menino,
tem que aprender na velhice,
que ter pai pobre é destino
mas sogro pobre é burrice!…
Aloisio Alves da Costa
Umari/CE, 1935 – 2010, Fortaleza/CE


Para que tanta igualdade
nesta partilha de amor?
- Fique com tudo: a saudade,
esta tristeza e esta dor!
Antonio Carlos Rodrigues
Rio de Janeiro/RJ

Diz o velhote à mocinha,
mal disfarçando o cansaço:
"Eu já te guardo, todinha,
no fundo do marca-passo!"
Antonio Carlos Teixeira Pinto
Brasília/DF


As paredes que sustentam
meus sonhos, meus ideais,
são tão sólidas que aguentam
os mais fortes vendavais!
Antonio Siécola Moreira
S. Rita do Sapucaí/MG


Esse mesmo pai que um dia
Deus me ofertou ao nascer,
é o pai que eu escolheria,
caso pudesse escolher!
Carolina Ramos
Santos/SP


Na esperança verde e bela
há o otimismo de luz.
Se a porta fecha, a janela
se abre em paz e o sol reluz!
Dinair Leite
Paranavaí/PR


Minhas mágoas disciplino
com a força da oração:
tenho um médico divino
que jamais deixa o plantão!
Elbea Priscila S. Silva
Caçapava/SP


Só se salva de verdade,
nesta enchente de amargor,
quem faz da fraternidade
o seu barco salvador
Flávio Roberto Stefani
Porto Alegre/RS


Qual um pastor diligente
cuidando do seu rebanho,
pastoreio no presente
minhas saudades de antanho!
Gutemberg L. Andrade
Fortaleza/CE


Galgo nuvens montanhosas,
sou na vida um alpinista;
mesmo em trilhas perigosas,
busco os sonhos da conquista.
Jessé F. Nascimento
Angra dos Reis/RJ

Sentimento? Que universo
de verdade e imaginário!
Mundo de verso e reverso;
formidável relicário!
João Bosco dos Santos
Salvador/BA


Sob a marquise silente
sem futuro, ao rés do chão,
dorme o menino carente,
sem lar, sem porvir, sem pão!
José Valdez C. Moura
Pindamonhangaba/SP


Queres definir o amar?
Dentro de minha visão
amar é não precisar
jamais pedir perdão!
Loris Turrini
Tremembé/SP


Cidade dos passarinhos,
Arapongas, Paraná.
Aqui se constroem ninhos
que a todos acolhem cá!
Maria Granzoto
Arapongas/PR


Quando novos, nós dizemos
que o tempo é detalhe à toa.
Só mais tarde percebemos
que ele passa...e não perdoa!
Maria Helena O. Costa
Ponta Grossa/PR

O presente mais bonito
fui eu mesma que me dei:
num momento de conflito,
dei-me a paz… e perdoei.
Maria Ignez Pereira
Mogi-Guaçu/SP


Volte agora com vontade,
ser o amor que me encantou.
traga consigo a saudade.
que ao partir, você deixou!
Maria Luíza Walendowsky
Brusque/SC

Paciência é necessário
quando meus versos escando:
os dedos viram rosário
e pensam que estou rezando!
Maurício Leonardo
Ibiporã/PR


Num relógio, vendo a hora,
no outono de minha lida,
vejo que não há demora
no ocaso de minha vida!
Mauricio N. Friedrich
Curitiba/PR


Quem tem coração de paz
vive de culpa liberto,
porque faz do bem que faz
um céu de sol mais aberto!
Nilton Manoel
Ribeirão Preto/SP

Revendo entulhos e tacos,
na tapera dos meus sonhos,
chorei por ver tantos cacos
dos meus dias mais risonhos!
Professor Garcia
Caicó/RN

No refúgio desmanchamos,
quando ficamos a sós,
esses nós que carregamos
no fundo de todos nós!
Selma Patti Spinelli
São Paulo/SP


No poente desta vida,
já sentindo os membros lassos,
eu desisto da corrida
e me abrigo nos teus braços.
Zeni de Barros Lana
Belo Horizonte/MG

Nilto Maciel (Eles têm Olhos Azuis?)


Eu lia Jorge Garstman, quando ouvi gritos vindos da rua. Preocupado, fechei o livro e, enquanto me dirigia à janela, repetia o nome de Jacó Rabbi, como se do outro lado da parede ele estivesse sendo assassinado. O doido Manuel açoitava o tempo com os braços, pregando à pequena multidão de moleques e vagabundos do bairro.

– Os holandeses vão chegar. Já estão nas proximidades de Jacaúna – bradava o orador.

Vaias estrondavam em meio a gargalhadas escandalosas e assobios estridentes. O pregoeiro ria um riso de satisfação, olhos além da plateia, do casario, como se alcançasse a praia distante, escondida pela cidade. Decerto orgulhava-se de ser o primeiro a dar a notícia.                         

Ao me avistar, aproximando em zum os olhos para pouco além do foco dos canalhas, avançou em minha direção, rompendo o cerco caçoísta.

– Você é filho do Clemente?

Disse sim e o convidei a entrar. Não me importava estivesse em dia de insânia. Ele sabia mais do que todos aqueles cegos que só viam guerras nos cinemas e o mar aos domingos. E eu nutria uma admiração estranha por aquele sábio menosprezado e insultado, aquele irmão vindo não sei de onde, talvez neto de cariris, de adoradores do Boi Santo, ensandecido por herança. Imagino seus ancestrais dizimados a ferro frio pelos Amaro Maciel Parente e caterva.

Dirigiu-se à porta, que fui abrir, apressado, como se atendesse ordem sua. A multidão acercava-se da casa, sequiosa de novo espetáculo, saudosa do palhaço fugitivo. Fechei porta e janela, ciumento daqueles olhos de esquina, daquelas bocas impiedosas.

Já sob a sombra de minhas telhas, o homem era outro. Transfigurara-se, branco feito vela, trêmulo como chama, nem louco nem Manuel.

– Marina, traz um copo com água para este senhor – gritei.

Indiquei-lhe a cadeira, retirando o livro do assento, enquanto tentava copiar-lhe todas as feições. Enganara-me, de fato – não se tratava do maluco do bairro, a alegria dos que dormiam na coxia e se embriagavam de música todo santo dia.

Marina trazia em uma bandeja um copo com água quente e, oferecendo-o a Manuel, cochichou ao meu ouvido:

– Quero ver se ele é doido mesmo. Eu estava ouvindo a lengalenga dele lá da cozinha.

Não recebeu o copo. Deixasse sobre a mesinha. Apanhou meu livro, abriu-o e dirigiu-se a mim:

– Quero ver se ela não esfria hoje.

Veio-me à cabeça, de imediato, a figura acesa de minha mulher, que logo apaguei, olhos na água.

Pôs-se a ler, em voz alta: "Os nativos dessa zona solicitaram ao Conde Maurício e ao Conselho que tomassem o forte português lá existente a fim de libertá-los da opressão em que viviam."

Eu quis dizer a Marina que ela estava enganada. Fosse buscar água gelada, deixasse de rir daquele jeito de moleca. Porém, ao olhar novamente para o homem, reconheci nele o doido Manuel. Para tirar as dúvidas, interrompi-lhe a leitura:

– Não serão os alemães?

– Holandeses – gritou, ferindo-me com seus olhos de mensageiro.

– Mas eles não vêm pelo ar?

Não me deu segunda resposta e continuou a ler e rir. Voltei-me para Marina e pensei em lhe pedir desculpas. Não, não estava enganada, deixasse a água quente ali mesmo, esquecesse a geladeira, risse à vontade, assobiasse, vaiasse, molecadamente.

– Acho que vêm de Recife – respondeu-me, por fim.

Em tom de brincadeira e para forçá-lo a dizer de que estava falando, imaginei um hippie nordestino:

– Na certa, são cangaceiros de cabelos oxigenados.

Pareceu não ouvir ou não aceitar minha provocação. E, como se desse por encerrada a conversa e se tratasse de velho amigo nosso, frequentador habitual de nossa mesa, parente muito próximo, levantou-se e dirigiu-se ao corredor, sempre a ler. Tropicou na mesinha, o copo rolou e espatifou-se ao chão, enchendo a sala de água. Nem sequer olhou para o estrago e muito menos pediu desculpas.

Marina levou as mãos à cabeça e ajoelhou-se, irritada. Queria impedir que os cacos de vidro se estilhaçassem ainda mais e a água inundasse toda a sala. Conteve-se e, olhos em mim, como a pedir perdão por ter agido ao primeiro impulso, falou em ir buscar uma estopa à cozinha.

Seguimos os três pelo corredor, ele à frente, seguido dela.

– Aqui está a notícia por inteiro – gritou o visitante, já pisando a sala de jantar. – “Fundeará amanhã na enseada do Mucuripe o navio Nieuw Nederlandt, trazendo índios pernambucanos, cuja missão será a de preparar o terreno para a tomada do Siará pelos batavos.”

Não tive mais dúvidas: estávamos com um louco dentro de casa. E, pior, na cozinha, perto do fogo e das facas. Pensei em pedir socorro a Marina, mas ela voltara à sala e, ajoelhada junto aos cacos de vidro, cantarolava, mirando-se na água, que não esfriava. Talvez fosse possível esconder facas, garfos e fósforos, e convencer Manuel a publicar sua notícia caduca na esquina.

Odiei-me, chamei-me ingênuo, apiedei-me de minha piedade por aquele pobre diabo, aquele maníaco que transformava bulas em tratados de teologia. Amaldiçoei meu cristianismo tantas vezes negado da boca para fora. Desesperado, desejei a invasão imediata de minha terra por tropas estrangeiras. De preferência, holandesas. E seu primeiro ato de brutalidade atingisse Manuel.

Assim pensando, não ouvi quando me pediu água gelada. E, como não lhe atendesse, escancarou a porta da geladeira e despejou goela adentro todo o conteúdo de uma garrafa, em tempo de a engolir.

Só alertei com o vozeirão do louco, livro aberto no rumo das bananeiras do quintal, biquinho, a recitar: “Monsieur le major Garstman, ci-devant commandant de la milice à Siara...”

Fonte:
Nilto Maciel. Tempos de Mula Preta, contos. Secretaria da Cultura do Ceará: 1981.
Livro enviado pelo autor.

sábado, 23 de novembro de 2019

Varal de Trovas n. 123


Malba Tahan (A Lenda Singular do Vaso Torto)


Era assim. Louvado seja Allah!

Era assim que Amid, o velho oleiro de Samarcanda, fazia todos os dias.

Terminada a tarefa, ao cair da tarde, examinava atentamente um por um, os vasos que o jovem Namedin, seu discípulo dileto, havia modelado. Orgulhava-se com o progresso daquele adolescente na difícil e delicada arte da cerâmica. Revelava o principiante, na execução das obras mais finas e delicadas, invulgar talento.

Havia, entretanto, uma particularidade que fazia negrejar a dúvida no espírito do mestre. Todos os dias, entre os vasos impecáveis, esguios e bem torneados, repontava, fabricada pelas mãos ágeis do artífice, uma peça (e uma só!) lamentavelmente mal feita, torta e deformada. Como explicar a presença daquele aleijão único no meio de tantas perfeições e belezas? Decorreria a multidão de uma falha insanável ou não passaria tudo de um simples capricho do aprendiz?

Amid, intrigado com o caso, resolveu desvendar o mistério. Como apurar a verdadeira origem daquele desacerto, daquela anomalia? Vou observar o trabalho (pensou o oleiro) a fim de precisar o momento em que Namedin claudica e erra. E assim fez. Um dia, da manhã até a quarta prece, o mestre acompanhou atento a faina do jovem. Era preciso descobrir a razão de ser do vaso torto...

Afinal, o velho oleiro, sempre vigilante, viu satisfeita a sua curiosidade.
    
Quando o vulto sedutor da namorada surgia, o aprendiz desorientava-se; suas mãos tremiam...
   
Todos os dias, a uma certa hora, graciosa menina que residia para além da mesquita de Chan-Sindah, cruzava vagarosamente a rua. Namedin apaixonara-se por ela; e, por isso, ao vê-la passar sentia-se confuso, perturbado.

Ali estava, afinal, a explicação do mistério. Quando o vulto sedutor da namorada surgia, o aprendiz desorientava-se; suas mãos tremiam e o vaso que se achava, naquele momento, na roda girante, sob os cuidados de seus dedos ágeis, sofria as consequências daquela desatenção.

Como poderia o enfeitiçado oleiro, naquele instante de comoção, guiar com segurança os seus dedos, dominar os voos de seu pensamento e aquietar os anseios de seu coração?

Rejubilou-se o mestre de Samarcanda com a descoberta, e, a partir daquele dia, com mais carinho e interesse dedicou-se à nobre tarefa de orientar o discípulo querido. Ao amor, sim, e não à imperícia do artista deveria ele incriminar o aparecimento do vaso defeituoso. E que importava, afinal, a mutilação de uma peça no meio das outras? A mulher amada, com a sua presença perturbadora, fazia surgir uma obra defeituosa; mas com sua ausência, entretanto, inspirava dezenas de perfeições.

E, ao ter notícia do caso, um poeta árabe, servo de Allah, escreveu três ou quatro poemas admiráveis que foram gravados em ouro e bronze no deslumbrante palácio de Tamerlão. O terceiro poema - lembro-me até hoje, muito bem! - começava exatamente assim:
   
    Ao ver aquele vaso torto
    Entre outros de forma esguia,
    Penso no destino, absorto:
    - A mão do oleiro tremia!...
   
    Louvado seja Allah que criou a Poesia, a Beleza e o Amor!
   
Fonte:
Malba Tahan. Os Segredos da Alma Feminina nas Lendas do Oriente.

J. G. de Araújo Jorge (Prelúdios)


Prelúdio N°. 1
(Paradoxos)


Perdoa, meu amor...
- na alegria imprevista do reencontro
a nos perturbar ,-
este véu de tristeza, vaga nuvem
em meu olhar...

(O amor é mesmo assim, de paradoxo e extremos...)
Perdoa, meu amor,
só agora que te encontro é que me ponho a pensar
no tempo que perdemos...

Prelúdio N°. 2
(embriaguez)


Ah! encher minhas mãos com os teus cabelos louros
assim... nervoso como me vês...
E tomar tua cabeça, e beber, lentamente,
teus beijos, enternecidamente,
até a embriaguez...

Prelúdio N°. 3
(razão da noite)

Enchi minhas mãos de sol, com os teus cabelos
e eles escorreram como luz entre os meus dedos...

Agora que tenho as mãos vazias,
compreendo a razão desta noite
em meus dias...

Prelúdio N°. 4
(Tua boca)


Na tua boca entreaberta, úmida, viva
colhi o último suspiro do anjo
que expirava em teus olhos...

Prelúdio N°. 5
(Desejo)


Ao toque de tuas mãos, esse desejo que arde
em minha fronte, com a ardência de um sol de verão
serena
oh! minha amada,
( e é doce e misteriosa essa estranha emoção),
como o instante de sombra fresca e amena
quando uma nuvem cobre o sol, e sopra
na folhagem ressecada
a viração…

Prelúdio N°. 6
(Lembrança)

Ficou tua lembrança...

A lembrança de teus olhos vidrados
semicerrados,
de tua cabeça num gesto de criança
recostada em meu peito,
de teu cabelo desfeito...
(de teus cabelos em ondas de ouro
em teus ombros...)

Ficou tua lembrança
como uma flor azul de pólen de ouro,
a romper imprevistamente, de um modo que ruiu
em escombros…

Prelúdio N°. 7
(Traição)


Foi traição do destino bipartir nossos rumos
como um caminho frente a uma montanha,
para fazê-los de novo se encontrarem
muito tempo depois...

Para quê? Se cada um de nós podia ser um
isoladamente,
- se tínhamos que ser dois...

Dois, assim
como as margens de um mesmo caminho
que seguem, lado a lado, paralelamente,
até o fim...

Prelúdio N°. 8
(Era uma vez...)

O último anjo entremostrou-se nos restos
de tua timidez...

E eu te contava uma história:
Era uma vez…

Prelúdio N°. 9
(A eleita)

Que importa, se não és ?

Foste e serás a eleita,
a lembrança que foi, e há de ser onde eu for...
Que haja pois, se preciso, a renúncia perfeita
se não pode afinal ser perfeito esse amor...

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 3. SP: Ed. Theor, 1965.

Contos e Lendas do Mundo (África: Os Filhos das Cabaças)


Bem no alto da montanha morava um espírito poderoso que velava pelo dia a dia do povo Chaga, que vivia no vale que se estendia em baixo. Uma das pessoas de quem gostava especialmente era da Viúva Velha, que vivia sozinha.

Na aldeia, o som que predominava era o do riso das crianças; no entanto, na casa da Viúva Velha, que não tinha filhos nem netos, reinava um silêncio triste.

Quando era preciso ir buscar alguma coisa, ela tinha de ir buscá-la. Quando era preciso carregar, ela tinha de carregar. Quer se tratasse de água, alimentos ou outra coisa qualquer, ela mesma precisava de fazer tudo. Para dizer a verdade, a Viúva Velha só se tinha a si própria como companhia, levando a sua vida por diante o melhor que podia.

Nos seus tempos de jovem, aquela que era agora a Viúva Velha, casara com um bom homem e os dois tinham sido muito felizes juntos. Mas, como acontecia com muitos homens bons, também o seu morrera, ainda por cima antes de terem filhos, e ela jurara nunca mais voltar a casar.

Havia muito pouca mobília na sua casa minúscula. Poucos eram os seus pertences, e tudo o que se encontrava dentro da habitação andava empoeirado e muito descuidado. O mesmo já não se podia dizer em relação à pequena machamba (horta) onde cultivava frutos e legumes. Adorava aquele cantinho e não se passava um dia sem que, protegida pela sombra das bananeiras do vizinho, não cuidasse das suas plantas. Arrancava as ervas daninhas, regava, tirava as pedrinhas e espantava os animais nocivos. Mas as suas plantas preferidas eram as cabaças.

Os aldeões troçavam dela por causa desse gosto. Costumavam dizer que ela amava aquelas cabaças como se fossem seus filhos.

O espírito da montanha não perdia pitada do que diziam. Olhava para a Viúva Velha, como sempre fizera no decorrer da vida desta. Vira-a envelhecer, mas lembrava-se da jovem linda que ela fora no dia do seu casamento, com as costas direitas e os olhos brilhantes. Agora via-a encurvada pelos anos, com os olhos enevoados e os dedos encarquilhados.

A Viúva Velha cultivava as suas cabaças para fazer delas vasos. Deixava-as secar até a casca endurecer, depois transformava-as em vasos de cabaça que vendia no mercado local, arranjando assim o pouco dinheiro de que dispunha.

O espírito que vivia na montanha, ao refletir sobre as piadas dos outros aldeões acerca da Viúva Velha que tratava das cabaças como se fossem seus filhos, resolveu ajudá-la. Dar-lhe-ia filhos a sério - filhos mágicos - que lhe trariam felicidade.

No dia seguinte, estava a Viúva Velha na machamba, a cuidar, como de costume, dos seus frutos e legumes, quando um mensageiro do espírito lhe apareceu por trás. Voltou-se para olhar para ele, mas como o sol lhe dava nas costas, não conseguiu distinguir-lhe o rosto. A sua cabeça desenhava-se como uma silhueta negra contra um sol ofuscante.

- Que deseja? - perguntou-lhe.

- Cuida das próximas quatro cabaças que apanhares com um cuidado especial - disse o mensageiro -, pois elas serão como quatro filhos para ti.

- Que quer dizer? - perguntou a velha. - Como poderei cantar uma canção de ninar a uma cabaça ou dar-lhe amor? Como será ela capaz de me ajudar nas minhas tarefas diárias?

- Confia em mim - disse o mensageiro -, pois fui enviado pelo espírito da montanha.

A Viúva Velha pestanejou e o mensageiro desapareceu. Ela acreditava piamente no espírito e todos os dias lhe rezava... mas o que queria o mensageiro dizer?

Foi então colher as suas quatro cabaças seguintes. Uma delas era a maior e mais gorda que já lhe aparecera em muitos anos.

A Viúva Velha recordou as palavras do mensageiro, no entanto elas continuavam a fazer pouco sentido para si. As cabaças eram de origem vegetal... como poderia ela cultivar vegetais como se fossem seus filhos? Começou a desconfiar que, se calhar, não passava tudo de mais uma das brincadeiras maldosas de algum aldeão.

O melhor lugar para secar as suas cabaças recém colhidas era nas vigas que tinha na sua casa minúscula. Pendurar as quatro cabaças mais pequenas nas vigas não custou muito, mas quando chegou a vez da quarta - a que era enorme, bem cheia - o caso mudou de figura, pois o seu tamanho e peso não permitiram que levasse o mesmo caminho. Ficou, portanto, ao pé do canto onde acendia a lareira.

No dia seguinte, estava a Viúva Velha no mercado, o mensageiro misterioso entrou-lhe em casa e tocou nas três cabaças que estavam nas vigas, depois de o ter feito à que ficara ao pé do lume. Mal isso aconteceu, elas transformaram-se em crianças. A seguir, o mensageiro retirou-se.

As três crianças que se encontravam no cimo das vigas, olharam para baixo e acharam que era demasiado alto para saltarem.

- Ajuda-nos a descer, irmão mais velho - pediram à criança maior, a que saíra da cabaça que ficara junto da lareira. Chamaram-lhe «mais velho» porque sabiam que o mensageiro tocara nele em primeiro lugar.

O irmão mais velho ajudou os outros três a descer e não tardou que se pusessem todos a correr pela casinha da Viúva Velha, rindo e gritando de tanta alegria e brincadeira.

A certa altura, resolveram que era tempo de tratar um pouco da casa. Foram buscar coisas, carregaram-nas, arrumaram e limparam. O irmão mais velho ficou sentado a observá-los, sorridente. Era diferente dos outros. Faltava-lhe esperteza, mas tinha um papel importante a desempenhar: depois do trabalho feito, levantou-os de novo até os instalar nas suas vigas e a seguir foi para o mesmo sítio, junto da lareira.

Quando a Viúva Velha chegou do mercado, encontrou a casa limpa e arrumada como já não acontecia há muitos anos e uma carrada de lenha à porta. Não conseguiu compreender o que se passava. Olhou de relance para as quatro cabaças, mas não lhe passou pela cabeça outra ideia além dos esplêndidos vasos que dariam.

No dia seguinte, encontrava-se a Viúva Velha na sua pequena machamba quando uma das aldeãs mais amigáveis foi ter com ela.

- Quem eram aquelas crianças que ontem andavam a rir, correr, trabalhar e brincar pela tua casa? - perguntou-lhe.

- Crianças? - admirou-se a Viúva Velha. - Não sei de que crianças falas. Quantas eram?

- Que eu visse, umas três - replicou a aldeã -, mas mexiam-se a tal velocidade que pareciam uma vintena delas.

A Viúva Velha começou a dar voltas à cabeça, interrogando-se se recebera, de facto, a visita de um mensageiro do espírito da montanha... Afinal de contas, ela rezava-lhe todos os dias... De modo que resolveu voltar sorrateiramente a casa, a fim de investigar. Ali chegada, deparou, realmente, com três crianças a limpar e a arrumar, perante o olhar do irmão mais velho.

Ao entrar em casa, o irmão mais velho agarrou rapidamente nos mais novos e pendurou-os nas vigas, antes de, também ele, se transformar de novo numa cabaça.

- Não, esperem! - exclamou ela. - São meus filhos, não meus servos. Quero ajudar-vos, mas também desejo amar e cuidar de vocês. Não voltem a transformar-se em cabaças. Deixem-me alimentar-vos e vestir-vos em troca da vossa ajuda.

Então, as cabaças que estavam nas vigas voltaram à sua forma de criança, assim como o irmão mais velho, que depois os colocou novamente no chão da cabana.

Dali em diante nunca mais deixou de se ouvir o som alegre de risos a sair da casa da Viúva Velha e da machamba de frutos e legumes onde as crianças trabalhavam. Eram tão esforçadas e dedicadas que conseguiram cultivar mais frutos, legumes e cabaças do que a Viúva Velha poderia algum dia conseguir sozinha. Não tardou que ela dispusesse de dinheiro para comprar mais terras, chegando mesmo a ficar com as bananeiras do vizinho. A seguir, poupou o suficiente para arranjar algumas cabras... Depois, o bastante para um rebanho inteiro!

Depressa se tornou uma fazendeira rica e não precisou mais de trabalhar nos dias da sua vida.

Nunca mais voltou à velha machamba, mas continuou a cozinhar para ela própria e para os filhos... até que, um dia, tropeçou no rapaz mais velho que, sentado no sítio do costume, junto da lareira, sorria beatificamente.

A Viúva Velha trazia uma panela de guisado nas mãos, guisado esse que se espalhou por tudo quanto era sítio, o que a deixou furiosa.

- Quantas vezes te disse já para não ficares aí sentado que nem um... que nem um... que nem o vegetal inútil que és! - gritou. - Não sei porque hei de dar-me ao trabalho de cozinhar para ti e para os outros três. Afinal de contas, vocês não passam de... de uns vegetais!

Mal acabou de proferir a última palavra, o irmão mais velho transformou-se de novo numa cabaça e as risadas alegres deixaram de se ouvir. A Viúva Velha correu até fora de casa e onde, momentos antes, tinham estado crianças felizes, viam-se agora três cabaças pequenas.

Percebendo o erro que cometera, a Viúva Velha voltou para dentro de casa encharcada em lágrimas.

Viveu ainda durante muitos anos, sentindo-se ainda mais solitária do que antes, pois ter tido filhos e depois perdê-los era bem pior do que nunca os ter tido. Morreu pobre, infeliz... e sozinha.

Fonte:
Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Varal de Trovas n. 122


André Kondo (O Castelo)


Em tempestade, milhares de guerreiros trovejaram contra o grandioso castelo de Himeji*. Os olhos dos samurais, incendiados pelo brilho de suas espadas, relampejavam na escuridão da guerra. Os senhores feudais lançaram-se todos contra o universal domínio do xogum*. Cada qual pleiteava para si uma parcela do poder, desejando, no íntimo, não uma parte, mas a soberania total. Este era um tolo plano de guerra: primeiro destruir o xogum; depois, destruir-se uns aos outros. Quem sobrevivesse seria o governante de uma nação em ruínas,

Não seria uma guerra rápida. Tomar o castelo de assalto era uma tarefa quase impossível. Primeiro, os invasores deveriam ultrapassar o profundo fosso e a colossal muralha que cercavam todo o complexo fortificado. Em seguida, deveriam vencer um confuso labirinto de passagens. Surgiria outra muralha interna... E mais outra. Enquanto isso, lançada das torres, uma chuva de flechas, pedras e óleo fervente cairia sobre suas cabeças. Se chegassem ao coração da fortaleza, a torre principal de cinco andares, os violadores estancariam diante de uma base de impenetráveis rochas.

Portanto, tomar o castelo não era apenas uma questão de força. Era principalmente uma questão de paciência. Se não podiam invadir o castelo, deveriam esperar que o oponente saísse. Sitiar a fortaleza. Com essa conclusão, os inimigos se prepararam para um longo cerco. Os conselheiros procuraram o xogum, que caminhava tranquilamente pelo jardim. Apresentaram uma lista de provisões e cálculos, demonstrando que poderiam resistir por meses dentro das muralhas. Porém, em um cenário como aquele, a vitória seria quase impossível. A verdade era que a situação estava perdida. Mesmo assim, o xogum parecia mais interessado nas pacíficas flores de seu jardim do que na guerra.

— A florada das cerejeiras deste ano me parece a mais bela de todas... Nunca haverá outra mais bela do que esta.

Conselheiros, guerreiros e cortesãos demonstraram grande inquietação ante o aparente descaso do xogum.

— Perdoe-me, senhor. Mas como pode pensar em flores quando as nossas vidas correm perigo?

Uma brisa soprou, arrancando uma solitária pétala. Com um movimento preciso, o xogum a apanhou no ar, envolvendo-a com a mão.

— Posso impedir que esta pétala caia agora... Entretanto, não posso evitar a sua queda para sempre. Lamento que as suas vidas estejam em minhas mãos, pois não serei capaz de mantê-las eternamente.

Dizendo isso, o xogum desabrochou os dedos, permitindo que a pétala fosse carregada pela brisa que começava a se intensificar em vento.

Houve grande comoção, pois parecia que o xogum já havia desistido de lutar, abraçando a derrota. Acompanhado por todos os guerreiros, um dos generais insistiu em trazer a mente do líder à situação de guerra. Abrindo uma planta do castelo, exibiu o seu plano de defesa. Após ouvir as preocupações do general e de todos os conselheiros, o xogum ergueu o mapa, dizendo:

— Penso que todos acreditam que esta planta é uma representação do castelo. Para mim, nada mais vejo do que a imagem de um homem... Observem o fosso que ele rasga para se separar de tudo aquilo que julga ser "invasor", isto é, diferente de suas convicções. Vejam as muralhas que ele edifica, mascarando as suas fraquezas para enganar os seus medos. Observem o confuso labirinto de aparências que ele traça para enganar outras pessoas, para confundir todos os que querem chegar à torre principal: o seu coração...

Todos ouviam o xogum com grande emoção. Sentiam que faziam parte das pedras de seu castelo. E o xogum continuou:

— Todos os homens são castelos de si mesmos. Mas o que temos de diferente de todos os outros? O que o nosso castelo de Himeji em cada um de nós tem de especial? Quando todos observam de fora a nossa torre principal, o coração de nossa fortaleza, eles só enxergam cinco andares. Mas nós sabemos que existe um sexto pavimento, oculto, na câmara superior. Esse andar, que os estranhos desconhecem e de que até nós nos esquecemos de sua existência, não tem nome. A partir dele, temos a visão geral dos quatro cantos do castelo, temos a consciência de tudo o que nos cerca. Este andar oculto, da consciência em nosso coração, é o mistério da vida. E por ser inominável, invisível e inexplicável... faz do nosso coração um mistério capaz de alcançar o impossível!

Todos os guerreiros no interior do castelo sentiram o coração bater mais forte. O vento soprava. Os olhares, antes receosos, decidiram-se de súbito, Os olhos do xogum se iluminaram:

— Agora, observem a verdadeira força que este castelo possui — dizendo isso, o xogum percorria com o dedo o traçado da fortaleza. — As muralhas, que parecem arraigadas à terra, tomam a forma de um pássaro prestes a alcançar os céus!

Talvez seja por isso que, a partir daquele dia, o castelo de Himeji passou a ser conhecido como Shirasagi-jo, o castelo da garça branca, pois, de fato, o traçado de suas muralhas retrata um pássaro se preparando para alçar voo.

Dizendo isso, o xogum bradou, suas palavras sobrepondo-se aos rumores do vento:

— Não podemos nos tornar prisioneiros de nosso próprio castelo. Somos homens livres! Não devemos deixar que o medo nos aprisione. Não podemos nos permitir sobreviver se o preço do resgate é deixar de viver, pois uma vida aprisionada é um suicídio sem morte! Lutemos para conquistar as nossas asas!

De um só golpe, o vento rugiu ainda mais forte, ultrapassando as muralhas do castelo, fazendo com que as pétalas das flores de cerejeira rodopiassem em fúria, abraçando o xogum e seus guerreiros, que bradavam a uma só voz. Suas espadas voaram contra os inimigos, que foram totalmente surpreendidos por aquele ataque. Os papéis haviam se invertido. Aturdidos e preparando-se para uma situação de sítio e não de combate imediato, pereceram diante da maior arma da vitória: o valor secreto que se revela inesperadamente no coração de um homem livre,

E aquela batalha memorável nunca mais seria esquecida, porque mostrou a todos que um homem não merece o poder apenas por ser forte como um castelo, mas também por ter a coragem de abandonar a segurança de seu ninho, erguendo as suas asas em audaciosos voos.

Após a grande vitória, caminhando ao lado do xogum entre as exauridas cerejeiras do jardim, um dos conselheiros afirmou:

— De fato, meu senhor, nunca houve e nem haverá uma florada mais bela do que a deste ano.

E o xogum respondeu:

— Imagino, agora, que a do ano que vem será ainda mais bela...
_____________________
Notas:
 Castelo de Himeji (em japonês: Himeji-jo), também conhecido como Hakurojō ou Shirasagijō devido ao seu brilhante exterior branco, é um complexo palaciano com 82 edifícios de madeira, localizado na cidade de Himeji, Província de Hyogo, no Japão.
Uma das mais antigas estruturas ainda existentes do Período Sengoku, é considerado como um Tesouro Nacional do Japão, tendo sido classificado como Património Mundial da Humanidade pela UNESCO, em Dezembro de 1993. Juntamente com o Matsumoto-jo e com o Kumamoto-jo, é um dos "Três Famosos Castelos" do Japão e o mais visitado do país. (wikipedia)

Xogum (literalmente "comandante do exército", em português), é a abreviação do termo japonês Seii Taixogum (literalmente "Grande General Apaziguador dos Bárbaros"), foi um título militar, usado no período do Japão feudal, concedido diretamente pelo Imperador ao general que comandava o exército (enviado a combater os emishi, habitantes do norte do país). Até 1192, este título possuia nomeação temporária.
Desde o século XII até 1868 o xogum constituiu-se como o governante de facto de todo o país, embora teoricamente o Imperador fosse o legítimo governante e depositasse a autoridade no xogum para governar em seu nome. (wikipedia)


Fonte:
André Kondo. Contos do Sol Renascente. Jundiaí/SP: Telucazu Ed., 2015.