terça-feira, 3 de dezembro de 2019

Sinclair Pozza Casemiro (O Homem da Enxada)


Este causo é verdadeiro e eu mesma presenciei. Bem, não é que tenha presenciado a história no momento do acontecido, da aparição. Mas eu estava lá, ouvi no outro dia os depoimentos ainda calorosos e sôfregos da Dora, da Santine. E participei daquela magia, daquele friozinho assustador e gostoso que dá na gente pelas histórias de assombrações. Foi na terceira peregrinação da COMCAM no Caminho de Peabiru, na fazenda São Jorge, da casa da Penha. Penha é uma senhora maravilhosa, bondosa, generosa, dadivosa, alegrosa, osa...osa...osa. Ela é esposa (ôsa) do administrador da Fazenda, trabalha no postinho de saúde da fazenda, atende a todos com carinho, dedicação e, além disso tudo, é mãe acolhedora e amiga. Bem, não sei como sobra espaço, mas ela é tudo isso e muito mais. Mentira, sei sim: energia é como sentimento, quanto mais você dá, você divide, mais tem, mais se multiplica.

Pois muito bem: a gente foi se alojar, no segundo dia de peregrinação, na fazenda São Jorge, tudo organizado janta, banho, pouso e café da manhã por dona Penha. Os quitutes, os causos, o clima da fazenda, de amizade, etc, etc, a meditação do Amani e tal, tudo isso, nem precisa descrever. É só imaginar o melhor. Na hora de dormir, tinha a igreja, a escola e as casas. Era só cada um escolher o seu cantinho pra relaxar e sonhar.

Teve um timinho que escolheu, de pronto, a igreja. Claro, mais protegidos, seguros. E tinha uma novidade nessa peregrinação: o casal Santine e Déferson, que estavam de lua-de-mel, haviam se casado naquela semana. E gente boa tava ali: ele e ela prestativos, dedicados, amorosos. Também quiseram ficar na igreja. A igreja era, de fato, um encanto: pequenininha, limpinha, organizadinha, bem arrumada. Penha tinha mesmo pensado em tudo para receber bem os peregrinos.

Depois da janta, das visitas, dos causos, das orações, das fotos, da contemplação ao luar, etc, etc, o recolhimento. E, depois do recolhimento, o sono pesado, afinal, foram 16 km mais ou menos de caminhada e pra quem estava de apoio, um dia de tensão e preocupação que, graças a Deus, tinha terminado maravilhosamente bem. Pra completar, bem que faltava mesmo algum "inusitado". E ele aconteceu.

Depois do primeiro sono, longo e pesado, um e outro precisava ir no matinho. Tudo bem. Rotina. Mas, o casalzinho foi junto. E ele a protegendo sempre, é claro. Quando eles já estavam quase de volta, ele se apavora:

– Santine, olha lá...

– Olha o quê, morzinho? Onde?

– Ali, um homem com uma enxada... de branco... carpindo...

– Onde? Meu Deus! Onde, homem?

– Ali...

E apontava, os dois olhando para o mesmo ponto, ele vendo tudo e ela, nada.

– Morzinho, cê tá sonhando... num tem nada ali.

– Tem sim... Ele tá carpindo, de branco... Olha!

Mas ela não viu, mesmo. Olhou para o marido, ele estava atônito, incontrolado. Olhou para o homem da enxada, de branco e não viu nada. E ele desistiu de mostrar, ela não via mesmo. Começaram a voltar, devagarinho, de fato, alcançaram a porta da igrejinha, entraram. Quase não conseguiam contar o que aconteceu, não o que viram, pois quem viu foi só o marido.

Quem estava na igrejinha ficou em pânico. A Dora, que estava estourando de vontade, catou o cobertor e o colchão que estavam no chão, abaixo do altar, logo na frente, mas buscou ainda um lugar mais santo, mais protegido: debaixo, bem debaixo da mesa do altar. Mesmo estourando, nem quis saber de ir lá fora. Não sei como se arranjou, ela não conta. Só diz que encobriu cabeça, corpo, tudo que pôde, rezou, rezou até de manhã cedo...

De manhã cedo, outra história, São Jorge do céu!

Quando eles contaram pro povo da equipe de apoio, a Eloah, que cuidava do pouso dos peregrinos, falou:

– Não te falei, Sirlene? Eu escutei, de madrugada, uma chinela arrastando lá fora... e chegou até a porta da casa e bateu, deu uns toques... Não te falei? Não era ninguém!

Nessas alturas, mais gente havia ouvido as chinelas se arrastando e os toques à porta, de madrugada... Dona Penha chamou num canto alguns desses narradores:

– Gente, vou pedir um favor... Não espalhem. Esse homem da enxada vem assustando muita gente por aqui, mesmo. Ele chega, de branco, arrasta chinela, dá umas carpidinhas... e sai. Não espalhem que vocês também viram, senão as pessoas daqui ficam mais aterrorizadas ainda. Uns dizem que foi matado... Outros dizem que é alma penada, que matou muita gente... A gente não sabe dizer o que é. Nem reza adianta. Por favor, não espalhem.

Pois é... agora, quem quiser acreditar...

Fonte:
Sinclair Pozza Casemiro. Causos do Coração do Paraná (por entre as beiras do Ivaí e do Piquiri). Campo Mourão/PR: Singrafm 2005.

Vivaldo Terres (Poemas Escolhidos) XII


A BEM AMADA

Procurava-te, ó bem amada, em todos os lugares!
Mas a hora ainda não me era chegada...
Procurava-te no mar, nos céus e nas estradas...
Em sonho, sempre tu me aparecias,
Com um belo sorriso, e um corpo divinal!
Talvez quisesse fazer-me o bem...
Mas acabavas fazendo–me o mal

Isto porque, ao acordar-me...
Pesando que fosse verdade...
Eu te procurava, e te procurava com uma ânsia louca...
Para acariciar teu corpo e beijar-te a boca

Ficava novamente triste...
E recomeçava a dura caminhada!
Foi então que no facebook...
Eu consegui te encontrar, ó minha amada.
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ESTE AMOR QUE REJEITAS

Sinto por ti um amor que clama!
E vive a implorar-te a todo instante...
Que cures a minha alma enferma,
Que por lhe faltar esse amor...
Vive cheia de dor e desencanto.

Ah! Como seria a minha vida?
Se minh’alma recebesse esse carinho...
Pois ficaria curada e viveria feliz,
Como um casal de passarinhos.

Esperarei com paciência!
Quem sabe um dia tu reconheceras...
Que depois de tantos desencantos,
E esse amor que rejeitas e aceitaras.
E então será o bálsamo...
Para eu não sofrer mais!
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NUNCA ESMOREÇA


Quando tu me perguntas!
Se te amo ou se te quero.
Sabes que sempre te amei...
E se te mentisse isto seria um sacrilégio.

Pós quando se ama...
Mostra-se amor e bondade,
E não existem mentiras e sim a sinceridade.

Meu amor tu és aquela que me faz renascer...
Nas minhas tristezas e mágoa.
Me dás forças pra viver,
Pra vencer os obstáculos e nunca esmorecer.

Portanto minha querida e meu amor divinal!
Sonhos dos meus sonhos,
Acredite sempre em mim que nunca terás rival.
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QUANDO O AMOR ACABA

Quando o amor estiver definhando,
E a tristeza no peito morar,
Não se iluda com falsas
Promessas,
São quimeras e só vão complicar.

E se o beijo já não existe, e se desviam o olhar!
Se o dialogo já findou,
E se não tem mais nada para conversar
É porque o amor já não há.

Quando o amor acaba,
O coração diz não,
Isto porque já não existe na alma.
Afeto, ternura, meiguice e compreensão.
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RENASCER O AMOR

Porque fizestes renascer o amor,
Num peito já tão amargurado.
De tanto sofrer de amor,
Meu coração está magoado.
Por uma existência de lutas e fracassos,
De tanto amar estou virando trapo,
Sempre sem nunca ter sido compreendido.

A minha vida já não tem mais sentido,
Porque tu eras a minha única esperança,
Fingiste amar-me,
E eu, como criança,
Agradecido com belo presente,
Pus-me a sonhar feliz sorridente.

Mas como o sonho não é realidade,
Agora, sinto que foi tudo ilusão,
Por que brincar com um pobre coração?
Se tu sabias que irias fazê-lo sofrer.
Tu te divertes, com meu padecer,
Alegrarás-te com sofrimento meu?
Se for assim até ficarei feliz,
Por saber que agindo assim, tu tens felicidade,
E em troca do meu amor, tu me devolves maldade.
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SEM EXAGERO

Há muitos anos...
Acreditei no amor,
Pensei que o mesmo.
Era só felicidade,
Sem mentira e sem saudade.

Como me iludi por assim pensar...
Fui traído e humilhado,
Por no amor acreditar.

O amor se apresenta,
Sem mágoa e desilusão.
E penetra sutilmente,
No inexperiente coração.

Pois aconteceu!
Com o meu coração coitado...
O amor entrou de mansinho,
Depois viu o resultado.
Acabei de bar em bar,
Para matar esta saudade.

Caros jovens vou falar...
Sem exagero.
Cuidado com o tal do amor,
Ele vem como quem, não quer nada.
Todo brilhante e faceiro,
Depois de ele penetrar...
No coração muitas vezes.
De lágrimas faz molhar,
Seu travesseiro.
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SEM OSTENTAÇÃO

Quando fomos viver juntos,
A vida não era bela.
Tínhamos cadeira sem fundo,
E sem alças as panelas.

Apesar desses problemas,
Não podíamos reclamar.
Pois as cadeiras sem fundos...
e as panelas sem alças,
As únicas que tínhamos para usar.

E ainda pra culminar fiquei desempregado.
Mesmo assim não reclamamos,
Porque nosso lar era abençoado.

E depois com sacrifício...
E fé em nosso Deus verdadeiro,
Começamos a trabalhar.
Ambos lutando feitos guerreiros...
Mas hoje apesar de tudo.
Temos casa, temos carros,
Nunca nos faltou o pão.
Mas temos o equilíbrio,
Nada de ostentação.
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SÓ EU SEI O QUE É AMAR

Ainda que os amigos digam...
Que não devo perdoá-la.
Não ligo para o que dizem,
Pois o que eu sinto, a eles não os abala.

Só eu sei o que é amor,
Apesar de ser esquecido.
E sentir aquela dor,
De ser marido traído!

Sofro tanto por este amor,
Que me deixa amargurado.
Triste e desiludido...
Que atua como tiro,
No meu peito já ferido.

Mas o que fazer se assim eu sou!
Se ela voltar...
Dar-lhe-ei carinho e muito amor.
É mais uma chance,
Que a vida nós dá...
De sermos felizes
Se eu a perdoar
__________________________
Fonte:
Poemas enviados pelo poeta.

Monteiro Lobato (Fábulas) A Formiga Boa – A Formiga Má


I – A formiga boa

Houve uma jovem cigarra que tinha o costume de chiar ao pé de um formigueiro. Só parava quando cansada; e seu divertimento então era observar as formigas na eterna faina de abastecer as tulhas*.

Mas o bom tempo afinal passou e vieram as chuvas. Os animais todos, arrepiados, passavam o dia cochilando nas tocas.

A pobre cigarra, sem abrigo em seu galhinho seco e metida em grandes apuros, deliberou socorrer-se de alguém.

Manquitolando, com uma asa a arrastar, lá se dirigiu para o formigueiro. Bateu

– tique, tique, tique...

Aparece uma formiga friorenta, embrulhada num xalinho de paina*.

– Que quer? – perguntou, examinando a triste mendiga suja de lama e a tossir.

– Venho em busca de agasalho. O mau tempo não cessa e eu...

A formiga olhou-a de alto a baixo.

– E que fez durante o bom tempo, que não construiu sua casa?

A pobre cigarra, toda tremendo, respondeu depois de um acesso de tosse:

– Eu cantava, bem sabe...

– Ah!... – exclamou a formiga recordando-se. – Era você então quem cantava nessa árvore enquanto nós labutávamos para encher as tulhas?

– Isso mesmo, era eu...

– Pois entre, amiguinha! Nunca poderemos esquecer as boas horas que sua cantoria nos proporcionou. Aquele chiado nos distraía e aliviava o trabalho. Dizíamos sempre: que felicidade ter como vizinha tão gentil cantora! Entre, amiga, que aqui terá cama e mesa durante todo o mau tempo.

A cigarra entrou, sarou da tosse e voltou a ser a alegre cantora dos dias de sol.

II – A formiga má

Já houve, entretanto, uma formiga má que não soube compreender a cigarra e com dureza a repeliu de sua porta.

Foi isso na Europa, em pleno inverno, quando a neve recobria o mundo com o seu cruel manto de gelo.

A cigarra, como de costume, havia cantado sem parar o estio inteiro, e o inverno veio encontrá-la desprovida de tudo, sem casa onde se abrigar, nem folhinhas que comesse.

Desesperada, bateu à porta da formiga e implorou – emprestado, notem! – uns miseráveis restos de comida. Pagaria com juros altos aquela comida de empréstimo, logo que o tempo o permitisse.

Mas a formiga era uma usurária* sem entranhas. Além disso, invejosa. Como não soubesse cantar, tinha ódio à cigarra por vê-la querida de todos os seres.

– Que fazia você durante o bom tempo?

– Eu... eu cantava!

– Cantava? Pois dance agora, vagabunda! – e fechou-lhe a porta no nariz.

Resultado: a cigarra ali morreu enrijecida pelo frio; e quando voltou a primavera o mundo apresentava um aspecto mais triste.

É que faltava na música do mundo o som estridente daquela cigarra morta por causa da avareza da formiga. Mas se a usurária morresse, quem daria pela falta dela?

Os artistas – poetas, pintores, músicos são as cigarras da humanidade.
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– Esta fábula está errada! – gritou Narizinho. – Vovó nos leu aquele livro do Maeterlinck sobre a vida das formigas – e lá a gente vê que as formigas são os únicos insetos caridosos que existem. Formiga má como essa nunca houve.

Dona Benta explicou que as fábulas não eram lições de História Natural, mas de Moral.

– E tanto é assim – disse ela – que nas fábulas os animais falam e na realidade eles não falam.

– Isso não! – protestou Emília. – Não há animalzinho, bicho, formiga ou pulga que não fale. Nós é que não entendemos as linguinhas deles.

Dona Benta aceitou a objeção e disse:

– Sim, mas nas fábulas os animais falam a nossa língua e na realidade só falam as linguinhas deles. Está satisfeita?

– Agora, sim! – disse Emília muito orgulhosa com o triunfo. – Conte outra.

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Glossário
Tulha - é um local onde se guardam os cereais, alimentos.
Paina é uma fibra natural semelhante ao algodão, oriunda dos frutos da paineira. É usado como enchimento para colchões e travesseiros.
Usurária - Agiota; aquela que empresta dinheiro com usura, com juros muito altos.

 Fonte:
 Monteiro Lobato. Fábulas.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

Isabel Furini (Os Olhos do Céu)



(Conto infanto-juvenil)

Era o vigésimo ano do Governo Correto. O Imperador de Jade Amarelo se regozijava em seu trono de ouro. Em um dia como tantos, das areias do deserto de Gobi, chegou um viajante com as vestes gastas, deteve-se ante o muro dos espíritos e contemplou os dezesseis dragões imperiais. Depois avançou entre as impecáveis colunas lisas e poligonais e solicitou que o levassem até a presença do Magnífico Imperador.

O ilustre Filho do Céu permitiu ao viajante se deleitar com sua presença, porque era orgulhoso e estava satisfeito com sua fama de misericordioso. O estranho ancião foi encaminhado para a ampla sala. Realizou as respeitosas reverências indicadas no ritual chinês, percorreu com o olhar os dezoito trípodes e por último observou o Dono das Cinco Regiões dizendo:

– Viajei pelo Reino do Norte, pelo Reino do Leste, pelo Reino do Sul, pelo Reino do Oeste e pelo Reino Médio. Todos te pertencem, oh, Grande Imperador. Mas após essa longa viagem, encaminhei-me ao zênite e por direito próprio converti-me em rei de mim mesmo. Então, aprendi a observar a flor que se abre ao sol e o voo dos pássaros. Aprendi a não desejar, a não planejar, a não me projetar ao exterior, a permanecer em mim mesmo e me converti no Imperador do Infinito.

O excelentíssimo Governador do Império Celeste mexeu-se intranquilo em seu trono sem poder ocultar seu desgosto. Compreendeu, nesse instante, que o velho possuía um império mais vasto que o seu. Sua mente se movimentou aceleradamente, como as lavas de um vulcão, como uma violenta tormenta de areia.

O Filho do Céu, o Imperador dos Cinco Elementos, pensou na sua fama. “O que será de mim quando os homens conhecerem o poder deste velho... Ainda que não seja o dono de um Império Infinito, sua atitude é comprometedora, e se suas ideias se espalharem, não mais me temerão”, pensou. O que fazer? Por fim, a mão fina e aristocrática fez um leve sinal. A Guarda Imperial se mobilizou e o ancião foi feito prisioneiro e executado naquele mesmo dia. Enquanto os soldados o arrastavam, deu um último olhar de compaixão ao poderoso Governador e aprofundou-se no seu silêncio interior.

Morreu sem sequer dar um grito, e somente uma mancha de sangue foi a testemunha de uma vida que se afastava.

À noite, depois de passear pelo jardim e contemplar a lua crescente refletida no lago, o Senhor do Império Médio se dedicou ao descanso. De repente, observou uma torrente de sangue que se deslizava por baixo da porta. O ilustríssimo Governador da China levantou-se rapidamente, como um raio tremendo em seu coração. Antes que pudesse gritar, da mancha de sangue elevou-se uma névoa que formou uma estrutura diferenciada e na qual o Imperador pode reconhecer... o velho viajante.

O velho sorriu com tristeza e disse:

– Honorável Senhor, não foste justo.

– Não, venerável ancião, eu não fui justo – respondeu com humildade. Seus joelhos tremiam, as mãos suavam e um nó parecia aninhar na sua garganta – mas quero que saibas que até então sempre fui justo.

– Ninguém te desafiou?

– Jamais – respondeu o Imperador com voz firme, recuperando-se do choque que lhe produzira a presença inesperada do velho.

– Meu governo se chama o Governo Correto. Admito que fui injusto por ter ordenado tua morte, mas amanhã irei ao Templo Ancestral e pedirei a meus antepassados a purificação por esse ato de impiedade.

– Ilustríssimo Imperador, cada um deve assumir suas próprias faltas e purificar-se a si próprio. Além do mais, senhor, nunca foste realmente justo. Todas tuas ações estão contaminadas.

– O que queres dizer?

– As tuas ações somente são boas em aparência.

– O que queres dizer, ancião?

– Tuas boas ações somente são boas em aparência.

– Como é possível? – perguntou atordoado.

– Oh, Filho do Céu! Tua intenção sempre foi egoísta. Com tuas ações procuras obter a fama do governante justo, mas nunca tiveste como objetivo o benefício de teu povo. Só estavas interessado em tua própria pessoa. Tu és superficial, egocêntrico e orgulhoso. Não és realmente bom. Com teus atos de aparente bondade buscavas beneficiar só a ti. Por isso ordenaste a minha morte. Teu coração não pode suportar a existência de alguém que seja livre, de alguém mais poderoso do que tu.

– Não compreendo, venerável ancião – disse mexendo a cabeça, com o olhar confuso – não consigo entender nem tuas palavras, nem tua presença.

– Talvez não queiras compreender, nobre Senhor. Eu era o encarregado de te revelar os mistérios do céu e de te dar o néctar da instrução. Não permitiste que eu cumprisse com meu dever... Agora não poderás cumprir corretamente o teu dever.

Uma nova luz espalhou-se pelo aposento real.

– Agora compreendo meu erro – confessou o Imperador – como poderei corrigir minha falta?

– Não será fácil, Senhor do Império Médio; não será fácil, Governador das Cinco Cores; não será fácil, Amo dos Cinco Animais Sagrados.

– Que devo fazer, Venerável Mestre? – perguntou num murmúrio. Ao pronunciar essas palavras, a voz do Imperador Celeste tremeu. Seus olhos negros se encheram de tristeza.

– Deves esquecer a tua fama, a tua condição, a tua glória. Deves ser tu mesmo. Cumprir teu dever, que é servir ao povo.

Ao dizer isso, a imagem do viajante começou a desvanecer-se, e o Imperador esqueceu sua glória, sua condição de aristocrata e gritou desesperado:

– Senhor, Mestre, preciso te ver.

– Aprenda a me ver em cada coisa. Eu estou em Tudo. Olhe minha forma verdadeira.

O Imperador das Cinco Regiões permaneceu atônito, contemplando a imagem do ser que havia reverenciado desde sua juventude. Diante dele estava Yu-Huang-Chang-Ti, o Supremo Imperador Augusto de Jade, o Senhor do Céu.

O sol avançava entre as nuvens quando o Imperador de Jade Amarelo acordou. Fez reunir na sala dourada todos os sábios conselheiros de seu reino e, ao narrar a causa de sua aflição, o mais velho lhe disse:

– Filho do Céu, vives dramaticamente centralizado na tua própria pessoa. Nosso venerado Yu-Huang-Chang-Ti, o Senhor do Céu, quer que te esqueças de ti mesmo e então ganharás o Império da Eternidade.

O Imperador de Jade Amarelo sorriu feliz e abriu suas portas interiores ao altruísmo. Então iniciou o Ano Primeiro do Governo Perfeito.

Fonte:
Literatura de Isabel Furini

J. G. de Araújo Jorge (Líricas) 1


LÍRICA Nº 03
  
Para onde foste
depois que saíste dos meus braços,
se já conhecias todos os caminhos?...

Vais te perder à toa,
agora que eu já tinha te achado...

LÍRICA Nº 04
   
Consolo triste
este o de repetir inutilmente
que restará a lembrança
de que vivemos a eternidade
em algum tempo...

Consolo triste.
Chego a pensar que seria preferível
continuar a viver o efêmero
eternamente...

LÍRICA Nº 05
   
As vezes me surpreendo
a olhar minhas mãos vazias
como taças sem finalidade
depois que a festa acabou...
Que outras mãos tremulas e bêbadas,
deslumbradas de beleza e de prazer,
te tomarão, num brinde?

LÍRICA Nº 06
   
Falo em volta,
para iludir minha tristeza...
Como se enganam as crianças,
distraindo-as
à hora da morte sair...

LÍRICA Nº 07


Bem sei eu estou pagando caro,
em sofrimento,
a alegria que colhi.

Mas valeu.

Felizes os que ainda tem
a lembrança do sol
quando chega a invernia.

E porque o conheceram,
e o sabem além das nuvens,
ainda sonham e esperam 
por um novo dia.

LÍRICA Nº 08

Antes
nos adivinhávamos.

E de súbito,
não nos vimos mais.

LÍRICA Nº 10

Sigo carregando este amor
dentro de mim...

Chorar por ele, quem há de ?

Tenho a impressão
de que hei de levá-lo assim
até onde eu for,
embalsamado em minha saudade...

- ...Amor
de eternidade.

LÍRICA Nº 12
   
Chorar, seria fraqueza,
apesar de não poder evitar
que os olhos se turvem.
Morrer, talvez fosse a solução.

Mas, e quando voltares?

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 3. SP: Ed. Theor, 1965.

Aluísio de Azevedo (Rendas e Fitas)


I

- Olá! exclamei eu, vendo saltar do bonde de Botafogo o meu querido Ernesto Branco. Bons ares te tragam! Como vais tu? Mas que diabo de cara tens agora? Estás zangado?

- Ora! Não me fales! Não estou zangado; estou aborrecido. Aborrecido com esta vida infernal do Rio de Janeiro; aborrecido com este calor selvagem, este calor inimigo da civilização e do trabalho; e aborrecido principalmente com as nossas patrícias, esses monstros de olhos sedutores e sorrisos virginais!

- Ó diabo! a coisa agora é mais grave... Dar-se-á o caso de que o meu espirituoso amigo levasse tábua de alguma moça com quem estivesse para casar?...

- Hein?! Casar?! Eu?! Com quem?!

- Oh! com qualquer moça do teu gosto...

- Por quê ! Que mal fiz eu, para me condenarem assim, sem apelação nem agravo!... Casar! Casar com uma dessas criaturinhas que neste instante acabam de encher-me de indignação e de vergonha? Casar com uma dessas moças ignorantezinhas, pretensiosas e malcriadas? Oh, nunca! Nunca! Nunca! Antes ser cão de cego; antes ser ministro do Sr. Floriano; antes ser leitor do Fígaro!

- Mas, que te fizeram, Santo Deus! para te ver neste estado de cólera contra o sexo mimoso?... para te ver assim terrível e feroz contra essas belas flores com alma, que são o encanto da nossa vida, o perfume do nosso lar, a segurança da nossa felicidade?...

- Que me fizeram? perguntas tu! Oh! dir-se-ia que nunca viajaste em um bonde em que vão patrícias nossas! Dir-se-ia que nunca cedeste o lugar a uma senhora, para vê-la aceitar a tua fineza, sem voltar sequer o rosto, quanto mais dizer "Muito obrigada!"

- Acanhamento!...

- Qual acanhamento! São acanhadas para cumprir com tão insignificante preceito de boa educação, mas não lhes falta desembaraço para protestar com uma careta, e às vezes até com um muxoxo, quando lhes chega a vez de se incomodarem para te dar passagem!

E o modo afrontoso e impertinente com que elas observam e esmerilham, medindo da cabeça aos pés, as pessoas que entram no bonde, será também acanhamento ...

- Curiosidade de mulher...

- De mulher mal-educada! E' muito feio que uma moça, pressuposta inocente e virginal, ou mesmo uma senhora já casada ou viúva, não possam ver entrar uma cocote no bonde, sem se voltarem de nariz torcido, sem a medirem com desprezo e azedume, arriscando-se a ouvirem uma merecida resposta! E não é preciso que seja uma de chapéu tapageur e vestido de cor criard a pessoa que entre no bonde, para ser analisada deste modo; basta ser uma estrangeira, uma estrangeira que não se vista pelo detestável gosto com que se vestem as nossas damas; quer dizer que não venha coberta de seda e veludo por um dia de sol ardente e não traga em cima de si todas as cores do céu e do inferno!

- Tu exageras!

- Não exagero tal! Agora mesmo acabo de presenciar revoltado uma dessas cenas. Estava uma família ocupando o banco em frente do meu: uma velha, uma senhora de meia idade, e duas moças de quinze a vinte anos; todas as quatro tudo que há de mais tipo brasileiro e de mais ridículo.

O grupo formava uma orgia de cores, de flores e de fitas; uma loucura de sedas, de lãs, de veludo, e de algodão.

Entra um casal americano do norte. O homem de calça e paletó de brim, chapéu de palha com toalha em volta, e guarda-sol de pano claro, a mulher com um singelo vestido de linho cor de palha, enfeitado de rendas da mesma cor, e na cabeça um abajur de linho branco, preso despretensiosamente ao pescoço por duas pontas largas de cadarço.

Pois, meu amigo, não imaginas o rebuliço que se produziu naquela família com a chegada deste casal, que aliás, nada mais fez do que entrar, assentar-se e pôr-se a conversar em voz baixa, natural e discretamente.

Oito olhos arregalados cravaram-se imediatamente sobre a americana com tal insistência que a nobre senhora começou a examinar-se, e perguntou depois ao seu cavalheiro se ela tinha em si alguma coisa que chamasse a atenção.

"Deus te livre!" disse a velha, com arrelia, dando um estalo de língua e torcendo enojada a cabeça, como para não continuar a ver um espetáculo indecoroso.

"Iche! desdenhou por sua vez a quarentona. Esta gente não tem vergonha de sair assim à rua?... Parecem mascarados, Deus me perdoe!"

E as duas moças começaram, de lenço contra a boca, a emitir consecutivas gaitadas de riso, e a remexerem-se no banco, e a cochicharem tão impertinentemente, que os americanos voltavam a cabeça de vez em quando, patenteando na fisionomia o mais completo ar de intriga e de assombro.

Não ouvi o que eles disseram lá entre si; vi, apenas, o desdenhoso movimento dos seus lábios e senti venetas de estrangular aquela família brasileira, tão tola, tão ridícula, tão chinfrim!

E ainda me vens falar em casamento! Mas a ideia que me dá ânimo para continuar a viver; a única razão por que não me atiro ao mar; o meu único momento de felicidade, é quando me lembro de que aqui no Rio de Janeiro, onde todos são mais ou menos casados, eu me conservo solteiro como no dia em que nasci! E, juro-te que não é da febre-amarela, que tenho medo, nem das bexigas, nem do beribéri, nem da legalidade do Sr. Floriano, nem da queixada do Sr. Aristides, é daquilo que ali vem. - Olha!

E Ernesto apontou para um grupo de três mocinhas que se aproximavam de nós, muito risonhas, acompanhadas pela mamãe; e deitou a fugir como um louco em direção contrária, a gritar.

- Livra! Livra!

E foi-se.

II

Não, Ernesto, vem cá. Senta-te aqui; conversemos tranquilamente. Não comeces a gesticular como um louco e a dardejar paradoxos a torto e a direito! Ouve-me quieto e responde com bons modos, se não me queres ver tomar o chapéu e desaparecer pela porta da rua.

- Vamos lá!

- Foste ontem injusto e severo demais com as nossas patrícias. Concordo que nem todas as brasileiras mereçam a minha defesa; sei que há por aí muita mocinha impertinente e muita senhora insuportável, mas ninguém pode negar que a brasileira em geral é meiga, virtuosa e asseada,

- Não foi disso que tratei!

- Ouve. Tu conheces bem o tipo da inglesa, com a sua barriga de tábua, com o seu cabelinho louro grudado à cabeça e enrolado pobremente sobre a nuca; com a sua cintura de lâmina, muito estreita vista de lado, muito larga vista de frente; com os seus pés espalmados e longos, como uma canoa de pescador emborcada sobre a praia; conheces a famosa Miss, tão celebrada pelo lápis de Gavarni; essa misteriosa criatura de olhos celestiais, que em viagem se parece com um guarda-chuva inglês, metido cuidadosamente dentro da capa, e que em casa, no interior, lembra um vaporoso e fino caramelo encimado por uma trouxa de fios de ovos. Conheces a mulher inglesa?.

- Se conheço! Theóphile Gautier, o meridional romântico, o beduíno francês, que viveu para adorar as mulheres, e que amava e cultivava os gatos, por não poder fazer o mesmo com a pantera (que, depois da mulher, é o bicho mais feroz de criação), Theóphile Gautier dizia e repetia que as inglesas são as mulheres mais formosas do mundo!

- É exato. O que não impede que os outros franceses, ao vê-las atravessar o boulevard, tenham, sempre para ela as pilhérias mais terríveis e os ditos mais ridículos. Mas, passemos adiante: conheces igualmente a espanhola?

- Oh! Pergunta-me antes se conheço Byron! Não conhecer o tipo da espanhola!... Dançante seguidilha de amor que se transforma em mulher! Oh! se conheço! Mantilha, leque, castanholas e touros! Sou louco por ela! Vamos adiante!

- Pois, meu amigo, fica sabendo que as espanholas têm coisas detestáveis nos seus costumes. Â mesa, por exemplo: não há espanhola, por mais bem educada, que não leve a faca à boca, como se fosse um saltimbanco engolidor de espadas; e todas elas lambem os dedos; tiram com a língua o que fica de comida entre os dentes, e...

- É falso! É mentira! Não prossigas, ó caluniador! que te estrangulo aqui mesmo!

- E a italiana?...

- Oh! oh! O velho amor cavalheiresco! Beijos e punhaladas. Lábios grossos e quentes; punhais frios e penetrantes. Um conde assassinado ao luar, debaixo de uma ponte; a condessa veneziana fugindo com um tenor de olhos ardentes!...

Conheço! conheço! mas tudo isso cheira-me um pouco a macarrão e realejo!

- Quando não cheira pior... porque, meu caro, debaixo de todo aquele romanesco lírico e daqueles transportes de paixão, com punhal, cabelos soltos e dentes cerrados, mal sabes o que vai! A italiana em geral é boa para ser vista de longe. Só tem efeitos cenográficos. Não te aproximes muito dela, se queres conservar a bela impressão artística que recebeste!

- E da francesa? que me dizes tu da encantadora francesa?...

- Digo-te que é a mais vulgar de todas as mulheres... a que menos tem a linha original...

- Socorro! Socorro! Este homem acaba de enlouquecer!

- Não! Não enlouqueci! Não confundas a francesa com a parisiense. Fala-me desta, e eu te direi que a parisiense é a mulher mais feia e mais sedutora entre todas as filhas de Eva; eu te direi que só ela tem o segredo do amor que ri, e canta, e brinca; o segredo da amabilidade que satiriza e confunde como um piparote na ponta do nariz. Não é uma mulher, é uma bonita fantasia feita de cançonetas, aljôfares de champagne e rendas valencianas!

- Seduzem-no mais o espírito do que os sentidos. E' a primeira mulher do mundo.

- Não! A primeira mulher do mundo, meu querido Ernesto, é a brasileira.

- E por que não a portuguesa?

- Porque a portuguesa aos trinta anos, idade da grande afeição da beleza feminil, em geral começa a barbear e a criar umas singulares bochechinhas ao lado do queixo, que lhe tiram todo o encanto e lhe dão ares de abadessa.

- E a brasileira então? A brasileira aos trinta anos está coberta de sardas; já se não aperta; já se não penteia; anda em casa com o roupão desabotoado sobre o ventre; arrasta os chinelos, e, às vezes, fuma até cachimbo!

- Não é verdade! Ou tens consciência de que estás mentindo ou não sei que diabo de brasileiras conheces tu! Repito: a brasileira é a primeira mulher do mundo. Sela se reúne tudo o que as outras possuem de melhor; ela tem a graça e o donaire da espanhola; tem o calor e o arrebatamento da italiana; tem o coquetismo da francesa, tem o asseio e a virtude das inglesas e o talento doméstico da alemã.

- Só lhe faltam, para ser completa, as barbas à portuguesa!

- Mas tem uma coisa ideal, que nenhuma outra possui como ela, e é a meiguice, o carinho profundamente sincero, a dedicação sem limites pela pessoa amada. Só a brasileira, só ela no mundo, tem o segredo de dar cafunés e de fazer certos quitutes e certos doces que nos arrebatam! Só ela...

Mas Ernesto não me deixou prosseguir, ergueu-se indignado e exclamou, enterrando o chapéu na cabeça:

- Ora, vai-te para o diabo! Estás apaixonado por alguma pasteleira! E eu a dar ouvidos a este comilão!

E foi-se.

domingo, 1 de dezembro de 2019

Varal de Trovas n. 130


Arthur de Azevedo (Por não se Entenderem)


    O Zeca Borges, pequeno lavrador do Bananal, tinha um irmão cônsul na Alemanha, e, quando soube que esse irmão chegara ao Rio de Janeiro, com licença, ficou satisfeitíssimo, e ansioso por abraçá-lo, tanto mais tendo recebido imediata comunicação de sua residência, na Rua do Catete.

    O Zeca meteu-se no trem, e na manhã seguinte estava no Hotel dos Estados, onde se demorou apenas o tempo necessário para tomar banho, mudar de roupa, fazer a barba e almoçar.

    Depois do almoço, lá se foi ele a pé, Rua da Lapa acima, em busca do irmão saudoso.

    Na casa indicada estava à janela uma senhora loura e bonita.

    - Querem ver, pensou ele, que o Chico se casou na Alemanha com a filha do tal arquiteto, de quem tanto me falava nas suas cartas? Não foi outra coisa! o patife não me mandou dizer nada!...

    O Zeca Borges tirou o chapéu à senhora, que lhe correspondeu com um sorriso amabilíssimo.

    - Naturalmente conhece-me de retrato, pensou ele - e entrou.

    Ela esperava-o de braços abertos no tope da escada, e deu-lhe muitos abraços e muitos beijos.

    O paulista não estranhou a natureza de tão excessivas manifestações, que aliás nada tinham de fraternais; apenas achou, de si para si, que na Alemanha o sentimento da família estava mais desenvolvido que no Brasil.

    - O Chico? - perguntou ele - não está?

    Ela teve um olhar estúpido.

    - A Senhora não é a mulher do Chico, meu mano?

    Ela respondeu, com muita dificuldade, que não falava português.

    - É justo, cunhada, é muito justo, mas como também eu não falo alemão, não haverá meio de nos entendermos! Que pena o Chico não estar em casa! Olhe, o melhor é voltar logo!

    E deu um passo para a porta; mas a mulher passou-lhe um braço em volta ao pescoço, e levou-o até à porta da alcova, que abriu com um gracioso pontapé, mostrando-lhe a cama.

    Tudo isso pareceu muito esquisito ao Zeca Borges, mas como este era um rapaz inteligente, o que o leitor sem dúvida já percebeu, disse consigo que ela supunha, e com razão, que ele precisasse descansar porque vinha de viagem e passara, talvez, a noite em claro.

    E mais se convenceu de que tal era a intenção da cunhada, quando esta lhe desatou o laço da gravata e desabotoou-lhe o paletó e o colete.

    - Não! Isto agora é demais! Eu mesmo dispo-me! Pode ir! Pode ir!...

    Ela saiu muito risonha, sempre depois de lhe dar mais um beijo e de lhe recomendar, por gestos, que a esperasse (o irmão, ao que ele supunha) e o nosso Zeca, mal se apanhou sozinho, entendeu que o melhor que tinha a fazer era despir-se, deitar-se e dormir.

    Mas não havia três minutos que estava deitado, refletindo sobre o extraordinário desenvolvimento do sentimento da família na sociedade alemã, quando a mulher voltou e se dirigiu saltitante para ele, tendo vestida apenas uma camisola de seda escandalosamente diáfana.

    Calcule-se o espanto do paulista, que deu um pulo como se visse o demônio e foi agachar-se a um canto da sala, gritando:

    - Não se aproxime, cunhada, não se aproxime!...

    Ela convenceu-se então de que tinha em casa um doido e começou a gritar.

    Acudiram outras mulheres, que felizmente falavam português, e tudo se esclareceu. O Zeca Borges tomara um algarismo por outro, entrara numa casa de mulheres julgando entrar em casa do irmão.

    Houve grande risota entre o mulherio, e o próprio Zeca foi obrigado a rir da sua ingenuidade, oferecendo uma nota de cinquenta mil-réis à húngara, que não era alemã, e ainda menos sua cunhada.

    Meia hora depois abraçavam-se os dois irmãos. O cônsul estava ainda solteiro.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos vários.

Olivaldo Júnior (Sonetilhos e Versos Afins)


SOLITÁRIA FLOR
(Ceciliana)


No jardim sem fim,
entre sonho e dor,
vive a flor em mim:
solitária flor.

No jardim - sem mar -,
entre pesca e amor,
vive alguém sem par:
solitária flor.

Pois, por ser assim,
tão sozinha e triste,
lembra até Cecília,

a Meireles, sim:
flor que só existe
para seu jardim.

SONETILHO DE NATAL Nº 01

Olho as ruas de noitinha,
penso em tudo que passou,
tanta luta que era minha
e, num vento, ao céu voou...

Olho as ruas em dezembro,
penso em todos que não têm
o Natal do qual me lembro,
com os presentes, paz e bem...

Olho as praças, minha mãe,
e me deixo ao meu destino,
panetone com champanhe!...

Sonho, enxergo enfim meu pai,
todo aflito, um pai menino,
que, em seu rosto, a chuva cai...

SONETILHO DE NATAL Nº 02
(O Natal daquela avó)


Na cadeira já vazia,
paira um novo conhecido,
cuja vã fisionomia
lembra bem a do marido...

Na poltrona sem ninguém,
sobem netos e bisnetos,
quando o sino, o de Belém,
reverbera sobre os tetos...

O Natal daquela avó
sai da "toca" com setembro,
dia a dia, mesmo só...

Logo vem - cocoricó! -
num trenó, já em dezembro,
o Natal daquela avó!...

SONETILHO PARA OS MÚSICOS
(22 de novembro: Dia do Músico)

Porque a música tem cheiro,
tem sabor e tem textura,
vejo e escuto o povo inteiro
dar-se à música: ternura.

- Porque a música tem jeito
de contar o que é que eu sinto,
sinto a música em meu peito
ser verdade enquanto eu minto...

Porque a música tem lábios
que não beijam já faz tempo,
beijo a boca de "mil" sábios...

Porque é mero passatempo,
já não vivo mais sem rádio,
pois sou músico: contemplo.

AS MIL FLORES DOS TEUS OLHOS

Vou fingir que não te amo até você acreditar no meu amor
(Eu mesmo)


Manhã cedo, colho as flores,
as mil flores dos teus olhos,
e as desmancho pela estrada
dos que, cegos, são o amor.

Manhã cedo, colho as flores,
as mil flores dos teus olhos,
e as disponho frente à casa
dos que, nômades, são sós.

Manhã cedo, colho as flores
para o enterro desse amor,
que agoniza seus rancores...

Manhã cedo, colho as flores
para um dia em novos nós,
os mil nós, amor, teus olhos.

A FLOR QUE APANHAS
(19 de novembro: Dia Internacional do Homem)

Sem que existam mais pedradas,
nem piadas, nem maldade
contra um parça de mãos dadas
com outro cara, na Cidade...

Sem que existam mais muralhas
entre os homens e as mulheres,
nem "machões" e nem canalhas,
que mastigam bem-me-queres...

Sem que existam tantos "ismos"
para os homens que são deuses,
mas se encontram nos abismos...

Sem que existam mais campanhas
pra que os homens sejam "deuses",
honre, amigo, a flor que apanhas.

SER GENTIL É SER PRESENTE
(13 de novembro: Dia Mundial da Gentileza)

Ante um homem do futuro,
com seu ar de indiferente,
que declaro ao pé do muro:
- Ser gentil é ser presente.

Ser gentil é não ser duro
quando o próximo, silente,
se fechar, for tão escuro
quanto o caos adolescente.

- Ser gentil é ser humano,
ser Carlitos com o garoto,
que resiste ao desengano!...

- Ser gentil é ser o "hermano"
de quem traz o olhar tão roto,
mas, presente, tem um plano.

MINHA LÍNGUA EM SUA VIDA
05 de novembro: Dia Nacional da Língua Portuguesa
 
Para o "Anjo de Lisboa"

Minha língua em sua vida
não importa nem um pouco,
mas eu driblo a despedida,
marco um gol e acabo rouco...

Uno as línguas que há no mundo
numa língua condoreira,
que, ao morrer no mar profundo,
funda a língua brasileira...

Feito um santo do pau oco,
canto versos para um "anjo"
que me deixa quase louco...

Anjo luso, de asas rubras,
traga paz a este marmanjo
e esta língua redescubras!

NOSSA LÍNGUA PORTUGUESA
05 de novembro: Dia Nacional da Língua Portuguesa

Deixe que lhe beije os lábios,
que não apenas os sábios
devem render-se à grandeza
de uma língua portuguesa...

Que essa língua portuguesa
faz minguar toda a tristeza
na crescente de um abraço,
maré cheia ante o cansaço...

Pois, nos braços dessa língua,
deixo as línguas do Brasil
e de toda e qualquer terra

que se rendam a essa língua,
lusa, louca, em pleno ardil,
que Camões, eterno, encerra.

À ESPERA DO CUPIDO
(Para o Dia dos Namorados)

Meu Cupido bonachão,
na "Quadrilha" de Drummond,
faz partir meu coração,
para eu ver o que é que é bom.

Na quadrilha da paixão,
perco o passo, baixo o tom,
sem saber que a solidão
não tem gosto de bombom...

Junho a junho, à luz da lua,
namorados sabem bem
o que é ter alguém "na sua"...

Namorado de ninguém,
inda espero, ao frio, na rua,
do Cupido, meu alguém...

Fonte:
Versos enviados pelo poeta.