quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

Regina Céli Alves da Silva (A Ciranda do Tempo na Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar)


No romance Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar, a leitura dos elementos narrativos, tais como, espaço, tempo, narrador, linguagem, mostra-se bastante reveladora, permitindo uma análise consistente da obra.

Neste artigo, voltaremos o foco para a categoria temporal no texto de Nassar. O título da narrativa, nesse sentido, já é bastante revelador, pois inscreve no sintagma “lavoura arcaica” as dimensões de espaço e tempo para a qual está voltado. Portanto, mais do que observar um aspecto óbvio nas construções ficcionais, isto é, o investimento temporal que as perpassa, chamamos a atenção para o fato de esse investimento ser de suma importância para o estudo da obra citada. Antes, porém, de iniciarmos as reflexões sobre o tempo, torna-se necessário um brevíssimo resumo do romance, sem o qual, talvez, nossas incursões fiquem prejudicadas.

A história é narrada, em primeira pessoa, por André, personagem principal da trama. Ele é o filho pródigo, aquele que retorna a casa, pelas mãos do irmão mais velho, que o encontra e implora por sua volta. A partir desse reencontro com Pedro, André inicia o retorno, tanto através da memória, relembrando os acontecimentos que o marcaram enquanto ainda vivia na casa dos pais, quanto pela experiência da chegada ao lar, agora com uma visão mais apurada. Os pais e os outros irmãos, especialmente Ana, com quem tem (ou quer ter) uma relação incestuosa, e Lula, o irmão mais novo, ficam satisfeitos em revê-lo.

De antemão, percebemos que a exposição das ocorrências na obra está sujeita ao crivo da memória de André, e, portanto, está condicionada ao seu singular olhar, à sua percepção. Isso é reafirmado pela voz narrativa, na passagem em que diz: “...as coisas deixam de ser vida na corrente do dia a dia para ser vida na corrente da memória” (NASSAR, 1982, p. 86).

Assim, nesse movimento de volta às origens, à casa do pai, o narrador parte numa volta circular e onde se lê a partida se lê também o retorno, e vice-versa. O presente reencontra o passado e este retorna ao presente, pois “para onde estamos indo” (NASSAR, 1982, p. 30), pergunta-se André, “estamos indo sempre para a casa”, (Idem, ibidem), ele mesmo responde.

Não é à toa, por conseguinte, que o texto esteja dividido em duas partes, "A partida" e "O retorno". Na primeira, "A partida", ocorre uma evocação no tempo, da época em que André, ainda vivendo em uma pensão interiorana, recebe a visita do irmão. A chegada de Pedro aciona no narrador a partida/retorno ao passado, na memória/imaginação, quando ainda vivia na fazenda do pai. André, voltando os olhos para o passado, entrelaça tempos, misturando-os em fatos, lembranças, sonhos, e interpretando livremente os fios lançados no solo narrativo, buscando a si próprio nas tramas temporais. Ocorre no romance um investimento na subjetividade, A experiência interior do indivíduo, já inscrita no discurso em primeira pessoa, é reafirmada em toda a construção do corpo literário. Dessa forma, a compreensão do tempo, passando pelo filtro interno do narrador, abre possibilidades muito amplas de leitura, liberando o solo textual da linearidade da cronologia oficial.

O olhar narrativo, afetado pela vivência do presente, volta ao passado, assimilando-o por um novo prisma no qual pode rever o que foi e o que poderia ter sido. Modifica-se, pela narrativa do presente, o texto daquilo que passou, pois a reflexão atual de André leva-o a redescobrir em si mesmo dimensões que lhe foram (re)veladas com o grifo social, garantindo, até sua partida, a obediência às regras da casa do pai. Por isso mesmo, as palavras do pai vêm à tona no discurso do narrador, expondo as raízes que lhe fundamentaram a conduta desde a infância.

O tempo é o maior tesouro de que um homem pode dispor; embora inconsumível, o tempo é o nosso melhor alimento; se medida que o conheça, o tempo é contudo nosso bem de maior grandeza; não tem começo, não tem fim; [...] (NASSAR, 1982, p. 45)

[...] em tudo ele nos atende, mas as dores da nossa vontade só chegarão ao santo alívio seguindo esta lei inexorável: a obediência absoluta à soberania incontestável do tempo, não se erguendo jamais o gesto neste culto raro; é através da paciência que nos purificamos, em águas mansas é que devemos nos banhar [...] (Ibidem, p. 50)

[...] a paciência é a virtude das virtudes, não é sábio quem se desespera, é insensato quem não se submete. (Ibidem, p. 53)

Ao cultuar a paciência como a grande virtude, o pai concebe o homem como paciente de sua própria história, de modo que o tempo vivido se estreita numa eterna espera. Incapacitado de atuar, só resta ao indivíduo receber pacientemente o fruto plantado por outros, passando-os adiante, para compor um ciclo, sempre igual, “sem começo nem fim” (Ibidem, p. 45).

As palavras do pai, no decorrer do relato de André, estarão sempre voltadas para esse tipo de atitude paciente, imóvel, não aberta às mudanças. Mas como a vida não é só uma espera, às palavras do pai juntarse-ão as do filho, ampliando e revendo o entendimento do tempo e de sua passagem.

O tempo é versátil, o tempo faz diabruras [...]. (Ibidem, p. 82)

[...] porque existe o tempo de aguardar e o tempo de ser ágil (Ibidem, p. 84)

[...] o tempo, o tempo, esse algoz às vezes suave, às vezes mais terrível, demônio absoluto conferindo qualidade a todas as coisas, é ele ainda hoje e sempre quem decide e por isso a quem me curvo cheio de medo e erguido em suspense me perguntando qual o momento preciso da transposição? Que instante, que instante terrível é esse que marca o salto? Que massa de vento, que fundo de espaço concorrem para levar ao limite? (Ibidem, p. 85-6)

A versatilidade do tempo assinalada no discurso do narrador aponta para a visão mais ampla, e mais fecunda, da passagem temporal. E, mesmo reconhecendo a soberania do tempo sobre a vida, pois o entende como um algoz, suave e terrível, também o sente como um demônio capaz de fazer diabruras, imprimindo no homem uma competência. Tal competência o narrador demonstrou, ao agir sobre seu próprio percurso existencial, partindo da casa do pai, abandonando a segurança dos seus limites e das palavras paternas, para encontrar seu verbo singular, ainda que para isso tivesse que se expor às diversas ações do tempo: a chuva, o sol, o frio, a fome. Por isso, mesmo identificando em sua história os fundamentos originários do mito do filho pródigo bíblico, André amplia as dimensões do mito, renovando-o, porque ao se apropriar da história mítica, incorpora-a ao seu domínio particular, transgredindo códigos culturais que, até então, eram de domínio coletivo.

É na história do filho pródigo, refeita com requintes proporcionados pela capacidade de reflexão do narrador, que vamos encontrar a escritura do romance, percebendo nele o trabalho múltiplo, diversificado e pessoal, não só com o tempo, mas também com todas as outras dimensões que participam da armação literária. A parábola bíblica conta a história do filho pródigo, que deixa a casa paterna levando sua parte nos bens da família e, após andança pelo mundo, retorna à casa do pai que, para comemorar, festeja com a carne de um bezerro, vinho e dança a chegada do filho.

O texto bíblico põe em evidência suas características dogmáticas, formativas, construindo, pela representação simbólica do filho pródigo, uma fábula que vai além da simples partida e retorno do filho a casa, revelando um conteúdo no qual a paciência e a comiseração do patriarca são virtudes ressaltadas nas mãos de quem retém o poder, pois acolher aquele que retorna, que no excesso de suas ações rebelou-se contra o pai, significa recuperar com “magnificente bondade” a ordem onde esta havia sido quebrada.

Encontra-se, ainda, na parábola bíblica, um reforço a respeito do retorno à origem e à repetição eterna e circular das lições do pai/Pai. Essa circularidade faz aparecer outro mito, o do eterno retorno. Mas, como bem o compreende André, a passagem do tempo produz marcas e o indivíduo, envolvido no processo histórico, na dinâmica dos acontecimentos, se depara, a todo o momento, com novos rumos, novos projetos, mesmo que venham revestidos em suas velhas roupagens.

Assim, por exemplo, o século XX revistou a tradicional fonte bíblica através do texto escrito pelo autor francês André Gide. Intitulada “A volta do filho pródigo”, a narrativa gideana aborda a parábola original, desfazendo, no entanto, a ideia das repetições eternas e iguais. Nessa obra, Gide faz um acréscimo humano, aumentando o número de personagens, inserindo a mãe, o irmão caçula e um filho pródigo que, ao retornar, não vem resignado e humilde, mas marcado pela diferença de quem viu o mundo, conheceu outras pessoas, outros lugares, alargando suas fronteiras, seus limites.

Tanto a escritura francesa quanto a Lavoura arcaica, de Nassar, fazem mais do que relatar a volta ao lar do filho resignado e submisso. Ambas investem no questionamento, na não aceitação gratuita da submissão, pois, afinal, o mundo e suas relações já não são mais os mesmos.

Em Lavoura arcaica, uma grande diferença se estabelece já na primeira linha da narrativa, uma vez que, de forma oposta à parábola bíblica, a história é narrada pelo próprio filho pródigo. Ou seja: ele conta o que viu, sentiu, aprendeu. Não há outra pessoa manipulando sua pessoal versão dos fatos. Lendo sua história, participamos, junto a ele, dos desejos, sentimentos, emoções, fantasias, enfim, de tudo o que compôs a sua fuga.

Compreendemos, portanto, que, se André se identifica com a mítica figura do filho pródigo, é porque percebe que, diante das situações capazes de gerar algum tipo de mudança, que não se sabe aonde vai dar, é muito mais fácil apostar nas conhecidas fórmulas, no retorno de antigos equilíbrios. Mas ele se coloca em outro lado, aquele de quem simplesmente não olhou o frio ou a fome de outra pessoa, mas de quem os sentiu no próprio corpo.

A preocupação de André em registrar, em contraponto com as palavras do pai, esse lado do discurso, o verso e o reverso da moeda, fica bem clara, por exemplo, quando ele relembra a Pedro que o pai, sentado à cabeceira da mesa, na hora das refeições, com toda a família a sua volta, costumava contar a história de um faminto. É a história de um homem que, estando com muita fome e passando diante de um palácio, resolve parar e pedir uma refeição aos guardiões do local. Como resposta, ouve que o amo, o dono do palácio seria o único capaz de oferecer-lhe tudo de que necessitava. Uma vez na presença do senhor, um ancião de barbas brancas, explica-lhe sua difícil situação e o homem, compadecido, concorda em lhe dar comida e bebida à vontade.

Mas, o que o faminto pensava ser o fim de sua fome, pareceu-lhe, ao contrário, uma tortura, pois o ancião, em vez de mandar servir comida de verdade, mandou trazer, para testar a paciência e o caráter do outro, um grande banquete fictício, isto é, não havia o que comer, tudo não passava de encenação.

Diante da cena, o necessitado não se dá por vencido e entra no jogo, elogiando as iguarias, os vinhos, fingindo, inclusive, estar embriagado, pois, pensa consigo mesmo: “os pobres devem ter muita paciência diante dos caprichos dos poderosos, abstendo-se por isso de mostrar irritação” (NASSAR, 1982, p. 69).

Finalmente, estando o rico satisfeito com o que presenciara, afinal havia encontrado um homem com o “espírito forte” (Idem, ibidem, p. 73), o caráter firme, e, sobretudo, que “revelou possuir a maior das virtudes de que um homem é capaz: a paciência” (Idem, ibidem, p. 53), resolve então convidar o faminto a morar em sua casa, prometendo-lhe que nunca mais passaria fome ou sede. Logo em seguida, manda servir um pão robusto e verdadeiro.

Terminando de narrar e lembrar a Pedro a velha história que o pai tantas vezes contara nos seus sermões, ao redor da mesa de refeições, André pergunta ao irmão: Como podia o homem que tem o pão na mesa, o sal para salgar, a carne e o vinho, contar a história de um faminto? Como podia o pai, Pedro, ter omitido tanto nas tantas vezes que contou aquela história oriental? (Ibidem, p. 53)

E, então, André narra para o irmão uma das cenas omitidas pelo pai; aquela em que, fingindo-se embriagado com o vinho fictício, e antes mesmo de receber o elogio por sua paciência, o faminto, com a força de sua fome, surpreende o anfitrião, aplicando-lhe violento murro. Mas logo trata de esclarecer o incidente, proclamando-se extremamente agradecido pela bondade do outro, satisfeitíssimo com o banquete e com o vinho, que, no entanto, subira-lhe à cabeça, levando-o a desfechar o soco contra o benfeitor.

Esse outro lado da história é, com certeza, muito menos interessante para todos os que detêm o poder, sendo, por isso mesmo, omitido em nome da conservação da ordem e de posturas de subserviência e aceitação. No entanto, André, que durante muito tempo em sua vida, conhecera apenas a versão do pai, o lado dos que sempre comeram os frutos plantados por outros, agora podia, conhecendo novas versões das histórias, o lado dos famintos, por exemplo, reconhecer a si próprio como uma face diferente na história da família.

Não é por acaso que ele, reexaminado a parábola do filho pródigo, reconduz sua memória ao contexto religioso que tanto influenciou sua vida desde pequeno. Mas, ironicamente, o menino que teve os dogmas religiosos da tradição judaico-cristã como suportes e argumentos em sua educação, no decorrer do tempo, se vê envolvido no mais transgressivo dos comportamentos, a relação incestuosa que deseja manter com sua irmã Ana.

E é essa manifestação incestuosa da sexualidade que abre em sua vida a impossibilidade maior de reconduzi-lo, mesmo que quisesse, ao retorno igual, a um reequilíbrio dentro do código tradicional de sua família. Em suas palavras, “era Ana a minha enfermidade, ela a minha loucura, ela o meu respiro, a minha lâmina, meu arrepio, meu sopro, o assédio impertinente dos meus testículos” (NASSAR, 1982, p. 94).

A enfermidade, a loucura, o sopro, enfim, a reunião de manifestações tão diversas em seu amor pela irmã, conjuga-se, porém, no discurso de seu corpo, contaminando-o e levando-o a ultrapassar, com sua prodigalidade, conteúdos normativos.

Na divisão entre a sua fé e seu lado objetivamente carnal, André reúne os pedaços que o constituem como ser humano completo e inicia o aprendizado de si próprio, para tentar enxergar quem ele é na realidade e na história da família.

O retorno no tempo em busca de sua narrativa existencial revela que sua história tem atrás de si muitas outras histórias, como a parábola do filho pródigo, eternamente gravado na escritura bíblica. Mas o aprendizado acontece quando percebe que o seu não é mais um texto compilado.

A experiência pessoal narrada pelo filho pródigo de Lavoura arcaica reconduz a trama romanesca de modo que ela não mais traduza os anseios e necessidades de pessoas que não a viveram (como acontece com o texto bíblico). Ao contrário, faz com que seja uma versão singular, um registro diferente de quem quer escrever sua história como um profeta, mas “não aquele que alça os olhos para o alto, antes o profeta que tomba o olhar com segurança sobre o s frutos da terra” (Idem, ibidem, p. 76).

Repetir as palavras do pai, dos velhos textos, não caracterizou a narrativa como uma cópia alienada do ato de viver projetado por outros, mas como resultado do exercício pleno da vontade de conhecer, transformado na compreensão de que a sabedoria está em aprender a conjugar os diversos tempos com a devida reverência a cada um deles, sem que um não anule o outro.

A escritura do texto constitui o grande lucro de André, porque, ao fazê-lo, ele se capacitou, na medida em que, olhando para frente e para trás, reinterpretou sua trajetória de vida, para abrir o diálogo entre o que foi e o que é, remexendo o solo cultural e familiar em busca de suas raízes, sem medo de enxergá-las.

Sendo assim, André faz com o seu texto aquilo que o agricultor zeloso faz com a sua terra: utiliza as ferramentas com amor e carinho para lavrar seu campo, nutrindo-o com os implementos necessários ao crescimento da vegetação e fazendo-a florescer e frutificar, não como uma fala desvinculada do todo cultural, mas sim, como uma palavra respeitada em sua diferença.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

A PARÁBOLA do filho pródigo. In: Bíblia sagrada. Novo testamento. São Paulo: Edigraf, 1961. T. 4. Lucas, c. 15: 11-32.
GIDE, André. A volta do filho pródigo. Trad. Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1984.
MENDILOW, A. A. O tempo e o romance. Trad. Flávio Wolf. Porto Alegre: Globo, 1972.
NUNES, B. O tempo na narrativa. São Paulo: Ática, 1988.
POUILLON, J. O tempo no romance. Trad. Heloysa de Lima Dantas. São Paulo: Cultrix, 1974.
NASSAR, Raduan. Lavoura arcaica. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
TODOROV, T. As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, 1979.

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Sobre a autora do artigo:
Regina Celi Alves da Silva possui graduação em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1984), Mestrado em Letras (Letras Vernáculas) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1990), Doutorado em Letras (Ciência da Literatura) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1999) e Pós-Doutorado em Letras (Teoria da Literatura e Literatura Brasileira) pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2011). Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Teoria da Literatura e Literatura Brasileira, atuando principalmente nos temas: Roland Barthes, semiologia, crítica e teoria literárias; Literatura e cultura brasileiras. Já atuou também como professora de Língua portuguesa, com ênfase na Produção Textual, em Faculdades de Direito, Administração e Ciências Contábeis. (Fonte: Currículo Lattes)

Fonte:
Revista Soletras. Ano XI, Nº 22, jul./dez. 2011. São Gonçalo/RJ: UERJ, 2011.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

Varal de Trovas n. 132


Jessé Nascimento (Uma Noite)


Quando a madrugada espreguiçou-se, despertada pelos primeiros clarões do dia, ele ainda caminhava sem destino, ao encontro do nada. Há horas vagueava sem conseguir entender porque e para que. Seus pensamentos emaranhados, aturdidos, afugentados, não o deixavam situar-se. Sentia-se terrivelmente só. Só e vazio. Já não sabia quantas vezes sentara-se no meio-fio e levantara-se para continuar aquela estranha caminhada.

Procurava, no entanto, lembrar-se de como tudo começou. Haveria uma razão. Mas, qual? Por que a sua mente teimava em não ajudá-lo?

Apalpou a cabeça ainda dolorida, penteou com os dedos os cabelos em desalinho, tentou recompor-se. E maquinalmente, febrilmente,  continuou tentando decifrar a charada que uma pseudo-amnésia lhe apresentava. Um encontro que não se deu? Uma fuga do não-sei-o-quê? Uma briga? E depois a bebida...

Por que, Senhor, ali estava a velar a sonolenta noite, a acompanhar as silenciosas horas da fria madrugada? Já estava, por certo, cansado de encontrar as mesmas esquinas, saudar os mesmos postes. Seus olhos dormitavam alternadamente, exaustos por um longo dia. Finalmente entregou os pontos. Deixou-se vencer pelo sono, pela fadiga.
                                  ...

De um sobressalto ergueu-se assustado pelo som das buzinas e com as bruscas freadas dos ônibus que já cuspiam seus passageiros aqui e ali. O sol já se fazia alto. Soberano e altaneiro.

O seu ontem deixou de existir. Estava refeito - refeito? - para um novo dia...

Fonte:
Recanto das Letras, 22/05/2015.

Antonio Cabral Filho (9. Colar de Trovas) Tema: Educação


01
A educação  almejada
ganha espaço  e  ressonância,
se a semente for plantada
*no Jardim da nossa infância.*
Abílio  Kac (RJ)


02
No jardim da nossa infância
louvável foi a educação,
com muito amor e constância
*eu guardo  no coração!...*
Luiz Cláudio (RN)

03

Eu guardo no coração
um sentimento profundo.
Pois na minha educação,
*tenho toda paz do mundo.*
Neiva Fernandes (RJ)

04
Tenho toda paz do mundo
enquanto potencial,
o bem se torna fecundo
*no campo educacional.*
Gilberto Cardoso (SC)

 05
No campo educacional
serei eterno aprendiz,
esse ato fenomenal
*um anjo sempre me diz!...*
Luiz Cláudio (RN)

06
Um anjo sempre me diz ,
que devemos sempre amar.
Então  para ser feliz,
*o amor vou compartilhar!*
Gleyde Costa Campos (RJ)

07
O amor vou compartilhar
com a minha felicidade.
Para sempre vou te amar
*e ser feliz de verdade.*
Neiva Fernandes  (RJ)

08
Vou ser feliz de verdade,
agradeço a professora,
que ensinou-me a liberdade,        
*pela luz libertadora.*
Antônio Cabral Filho (RJ)

09
Pela luz libertadora
eu conjuguei o verbo amar,
minha eterna professora
*me incentivava estudar!....*
Luiz Cláudio (RN)

10
Me incentivava a estudar
para que eu pudesse um dia,
aprender e me formar
*naquilo que eu mais queria.*
Adriano Bezerra (RN)

11
Naquilo que eu mais queria
estava entrar na sala,
onde eu sempre poderia
*captar uma culta fala.*
Prof. Roque (RS)

12
Captar uma culta  fala,
provinda de muito humor,
sempre regozija e embala,
*o aprimorar com valor.*
Agostinho Rodrigues (RJ)

13
O aprimorar com valor
faz parte da educação,
ensinar com mais calor
*com muita dedicação.*
Maria Zilnete de M. Gomes (RJ)

14
Com muita dedicação
nos fazemos ensinar.
Feitos com coração
*todos irão desfrutar.*
Madalena Cordeiro (ES)
15
Todos irão desfrutar
de um Brasil mais consciente
do respeito a se mostrar,
*com educação latente.*
Oliveira Caruso (RJ)

16
Com educação latente
do adulto e da criança,
o país vai para a frente
*e se renova a esperança.*
Antonio Francisco Pereira (MG)

17
E se renova a esperança
que dias melhores  virão;
nos deixando  para  sempre,
*uma bonita lição.*
Neiva Fernandes (RJ)

18
Uma bonita lição

de  educação cidadã;
justiça e humanização,
*à mulher concidadã.*
Maria Zilnete de M. Gomes (RJ)

19
A mulher concidadã

que leva o país avante,
sua luta não é vã
*a educação é constante.*
Aurineide Alencar (RJ)

20
A educação  é  constante

onde existe sentimento;
com alegria incessante
*surgida do pensamento.*
Neiva Fernandes (RJ)

21
 Surgida do pensamento

de uma mestra abençoada,
nosso aperfeiçoamento:
a educação almejada.
Antonio Cabral Filho (RJ)
TROVAS DO FECHAMENTO

A
*Surgida do pensamento*

e por Deus abençoada,
todo meu contentamento
*a educação almejada!*
Neiva Fernandes (RJ)
B
*Surgida do pensamento*
uma ideia desejada;
todos tenham cem por cento,
*a educação almejada.*
Maria Zilnete de M. Gomes (RJ)

C
*Surgida do pensamento,*
de uma mestra abençoada,
nosso aperfeiçoamento:
*a educação almejada*.
Antônio Cabral Filho (RJ)
D
*Surgida do pensamento,*
ideia realizada.
Vou dar graças no momento,
*a educação almejada !*
Gleyde Costa (RJ)

Fonte:
Trovadores do Brasil

Vinicius de Moraes (O Camelô do Amor)


Parai tudo o que estais fazendo, homens de gravata e sem gravata, funcionários burocráticos e deambulantes, mercadores e fregueses, professores e alunos, íncubos e súcubos - e escutai o que eu vos tenho a dizer.

Chegai-vos a mim e vinde ver toda a beleza que estou vendendo a preço de banana! Homens da Cifra e da Sigla, de Toga e de Borla-e-Capelo, de Fardão e de Sobrepeliz: esquecei por um momento vossas conjunturas e aproximai-vos de olhar sincero e coração na mão.

É favor suspender por alguns minutos a partida. Senhor Juiz Armando Marques! Conserva-te assim, o pé no ar, meu bom Pelé, qual fantástico dançarino. Feras da Seleção: atenção! Alerta, aviadores do Brasil! Capitães de mar: estamos no ar!

A postos, emissoras em cadeia! Câmaras de cinema e televisão: ação! Estações de rádio e radioamadores: ligai os receptores! Atenção, Intelsat quatro... três... dois... um... Aqui fala o poeta, o jogral, o menestrel, o grande Camelô do Amor!

O Amor tonifica o cabelo das mulheres, torna-os vivos e dá-lhes um brilho natural. Mise en plis? Só de Amor! nada melhor que divinos cafunés para as moléstias do couro cabeludo!

Olhos opacos? Amores fracos! Olhos sem brilho? Amor-colírio! Olhos sem cor? Amor! O Amor branqueia a córnea, acende a íris, dilata as pupilas cansadas. E ainda dá as mais belas olheiras naturais. Dois beijos, dois minutos: dois olhos claros de veludo!

O Amor limpa de rugas a fronte das mulheres, elimina os pés-de-galinha e acrescenta lindas covinhas ao sorriso. Tende sempre em mente: o Amor coroa as mulheres de pesados diademas invisíveis. Amai, coroas! A mulher que ama reinventa o Paraíso. A mulher que é amada move-se majestosamente!

O Amor pitanguiza o nariz das mulheres, torna-os frementes, com delicados tiques, particularmente nas asas. Narizes gordurosos, com propensão a cravos e espinhas? Muitas, muitas festinhas contra o nariz amado!

O Amor horizontal é melhor e não faz mal. Bocas rosadas, frescas, palpitantes? Beijos de amor constantes! As bocas mais beijadas são mais bem lubrificadas. Só isso dá à sua boca o máximo!

Qual Nardem, qual Rubinstuff ! - morte às pomadas! Pomadas, cremes, só de Amor, amadas! Pele jovem e macia? Amai, se possível, todo dia: e ante o esplendor de vossa pele há de ruborizar-se a madrugada.

Juventude noite e dia? - Carne sem banha! Ela tem mais freguesia? - Sempre se banha! Aliás, uma coroa - Que coisa boa! Bem que ela tem seu lugar. E... sabor de loucura!
O Amor estimula extraordinariamente a higiene bucal, pois como todos sabem, a água-e-sal é o composto químico da saliva, que consequentemente se ativa, impedindo a halitose e tornando a carícia palatal!

Se é de Amor, é bom! Não sabe aquela que não põe desodorante? Perdeu o marido e hoje não pega nem amante ... Sim, cuide o subextrato de suas asas, anjo meu, mas nada de exagero ... Uma axila sem cheiro pode levar um homem ao desespero. E não bobeie, não dê bola, não se iluda: um homem ama uma axila cabeluda! Siga o exemplo da mulher italiana: não usa lâmina e é mulher superbacana. Ponha um tigre debaixo do braço!

E basta de pastas, ó tu que levas o leite contigo - bom até a última gota! Se amares, o sangue circulará melhor em tuas glândulas mamares, e consequentemente terás seios sinceros, autodidatas, substantivos! Algo mais que o Amor lhe dá...

Casamento serve bem ao grande e ao pequeno. Serve bem à beça! Veja, ilustre passageiro, o belo tipo faceiro que viaja ao lado seu. Pois, no entretanto, eu lhe digo: quase ela fica a perigo... Salvou-a um justo himeneu. Alivia, acalma e reanima! Todo homem que chega em casa deve levar beijos mil: da mãe e da menininha. E como é bom ter seu amor junto ao corpo... É a pausa que refresca... Quem a casar se mete, repete!

Um mínimo de cirurgias plásticas, dietas patetas e essas ginásticas fantásticas... Vivei e amai ao Sol! Para aquele que ama, vossos senões são poesia. Nada mais lindo que as feiurinhas da mulher amada!

Por isso, eu grito aqui: regulador? - besteira! A saúde da mulher está em ser boa companheira. Não há pílula para a percanta que se preza. Seja mulher! conserve o seu sorriso! valha o quanto pesa! Use o auge da bossa e namore o quanto possa: na praça, na praia, no prado - no banco que está ao seu lado!

Eu sempre digo, e faço figa do que diga seu melhor, muito melhor que óleo de fígado. Porque, além de excitar o metabolismo basal, para o vago-simpático é o tônico ideal!

Eis seu mal: não amar. Daí, decerto, a causa dessas suas tonteiras, dessas náuseas... Ame king-size! E se lembre sempre o espetáculo começa quando a senhora chega! Quem não é o maior tem que ser o melhor! Por isso, espere um pouco, por favor... E repita comigo, assim... A-m-o-r!

Fonte:
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 31/12/1969

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

Varal de Trovas n. 131

Atenção: Aos assinantes que recebem as postagens em seu e-mail
Desconsidere o Varal de Trovas n. 131 de ontem, onde haviam erros em minha trova, observado pela irmã Carolina Ramos e considerem o varal abaixo, com a trova do Mestre Assis substituindo a minha, mas dentro do mesmo tema. 

Sinclair Pozza Casemiro (O Homem da Enxada)


Este causo é verdadeiro e eu mesma presenciei. Bem, não é que tenha presenciado a história no momento do acontecido, da aparição. Mas eu estava lá, ouvi no outro dia os depoimentos ainda calorosos e sôfregos da Dora, da Santine. E participei daquela magia, daquele friozinho assustador e gostoso que dá na gente pelas histórias de assombrações. Foi na terceira peregrinação da COMCAM no Caminho de Peabiru, na fazenda São Jorge, da casa da Penha. Penha é uma senhora maravilhosa, bondosa, generosa, dadivosa, alegrosa, osa...osa...osa. Ela é esposa (ôsa) do administrador da Fazenda, trabalha no postinho de saúde da fazenda, atende a todos com carinho, dedicação e, além disso tudo, é mãe acolhedora e amiga. Bem, não sei como sobra espaço, mas ela é tudo isso e muito mais. Mentira, sei sim: energia é como sentimento, quanto mais você dá, você divide, mais tem, mais se multiplica.

Pois muito bem: a gente foi se alojar, no segundo dia de peregrinação, na fazenda São Jorge, tudo organizado janta, banho, pouso e café da manhã por dona Penha. Os quitutes, os causos, o clima da fazenda, de amizade, etc, etc, a meditação do Amani e tal, tudo isso, nem precisa descrever. É só imaginar o melhor. Na hora de dormir, tinha a igreja, a escola e as casas. Era só cada um escolher o seu cantinho pra relaxar e sonhar.

Teve um timinho que escolheu, de pronto, a igreja. Claro, mais protegidos, seguros. E tinha uma novidade nessa peregrinação: o casal Santine e Déferson, que estavam de lua-de-mel, haviam se casado naquela semana. E gente boa tava ali: ele e ela prestativos, dedicados, amorosos. Também quiseram ficar na igreja. A igreja era, de fato, um encanto: pequenininha, limpinha, organizadinha, bem arrumada. Penha tinha mesmo pensado em tudo para receber bem os peregrinos.

Depois da janta, das visitas, dos causos, das orações, das fotos, da contemplação ao luar, etc, etc, o recolhimento. E, depois do recolhimento, o sono pesado, afinal, foram 16 km mais ou menos de caminhada e pra quem estava de apoio, um dia de tensão e preocupação que, graças a Deus, tinha terminado maravilhosamente bem. Pra completar, bem que faltava mesmo algum "inusitado". E ele aconteceu.

Depois do primeiro sono, longo e pesado, um e outro precisava ir no matinho. Tudo bem. Rotina. Mas, o casalzinho foi junto. E ele a protegendo sempre, é claro. Quando eles já estavam quase de volta, ele se apavora:

– Santine, olha lá...

– Olha o quê, morzinho? Onde?

– Ali, um homem com uma enxada... de branco... carpindo...

– Onde? Meu Deus! Onde, homem?

– Ali...

E apontava, os dois olhando para o mesmo ponto, ele vendo tudo e ela, nada.

– Morzinho, cê tá sonhando... num tem nada ali.

– Tem sim... Ele tá carpindo, de branco... Olha!

Mas ela não viu, mesmo. Olhou para o marido, ele estava atônito, incontrolado. Olhou para o homem da enxada, de branco e não viu nada. E ele desistiu de mostrar, ela não via mesmo. Começaram a voltar, devagarinho, de fato, alcançaram a porta da igrejinha, entraram. Quase não conseguiam contar o que aconteceu, não o que viram, pois quem viu foi só o marido.

Quem estava na igrejinha ficou em pânico. A Dora, que estava estourando de vontade, catou o cobertor e o colchão que estavam no chão, abaixo do altar, logo na frente, mas buscou ainda um lugar mais santo, mais protegido: debaixo, bem debaixo da mesa do altar. Mesmo estourando, nem quis saber de ir lá fora. Não sei como se arranjou, ela não conta. Só diz que encobriu cabeça, corpo, tudo que pôde, rezou, rezou até de manhã cedo...

De manhã cedo, outra história, São Jorge do céu!

Quando eles contaram pro povo da equipe de apoio, a Eloah, que cuidava do pouso dos peregrinos, falou:

– Não te falei, Sirlene? Eu escutei, de madrugada, uma chinela arrastando lá fora... e chegou até a porta da casa e bateu, deu uns toques... Não te falei? Não era ninguém!

Nessas alturas, mais gente havia ouvido as chinelas se arrastando e os toques à porta, de madrugada... Dona Penha chamou num canto alguns desses narradores:

– Gente, vou pedir um favor... Não espalhem. Esse homem da enxada vem assustando muita gente por aqui, mesmo. Ele chega, de branco, arrasta chinela, dá umas carpidinhas... e sai. Não espalhem que vocês também viram, senão as pessoas daqui ficam mais aterrorizadas ainda. Uns dizem que foi matado... Outros dizem que é alma penada, que matou muita gente... A gente não sabe dizer o que é. Nem reza adianta. Por favor, não espalhem.

Pois é... agora, quem quiser acreditar...

Fonte:
Sinclair Pozza Casemiro. Causos do Coração do Paraná (por entre as beiras do Ivaí e do Piquiri). Campo Mourão/PR: Singrafm 2005.

Vivaldo Terres (Poemas Escolhidos) XII


A BEM AMADA

Procurava-te, ó bem amada, em todos os lugares!
Mas a hora ainda não me era chegada...
Procurava-te no mar, nos céus e nas estradas...
Em sonho, sempre tu me aparecias,
Com um belo sorriso, e um corpo divinal!
Talvez quisesse fazer-me o bem...
Mas acabavas fazendo–me o mal

Isto porque, ao acordar-me...
Pesando que fosse verdade...
Eu te procurava, e te procurava com uma ânsia louca...
Para acariciar teu corpo e beijar-te a boca

Ficava novamente triste...
E recomeçava a dura caminhada!
Foi então que no facebook...
Eu consegui te encontrar, ó minha amada.
__________________________

ESTE AMOR QUE REJEITAS

Sinto por ti um amor que clama!
E vive a implorar-te a todo instante...
Que cures a minha alma enferma,
Que por lhe faltar esse amor...
Vive cheia de dor e desencanto.

Ah! Como seria a minha vida?
Se minh’alma recebesse esse carinho...
Pois ficaria curada e viveria feliz,
Como um casal de passarinhos.

Esperarei com paciência!
Quem sabe um dia tu reconheceras...
Que depois de tantos desencantos,
E esse amor que rejeitas e aceitaras.
E então será o bálsamo...
Para eu não sofrer mais!
__________________________

NUNCA ESMOREÇA


Quando tu me perguntas!
Se te amo ou se te quero.
Sabes que sempre te amei...
E se te mentisse isto seria um sacrilégio.

Pós quando se ama...
Mostra-se amor e bondade,
E não existem mentiras e sim a sinceridade.

Meu amor tu és aquela que me faz renascer...
Nas minhas tristezas e mágoa.
Me dás forças pra viver,
Pra vencer os obstáculos e nunca esmorecer.

Portanto minha querida e meu amor divinal!
Sonhos dos meus sonhos,
Acredite sempre em mim que nunca terás rival.
__________________________
 
QUANDO O AMOR ACABA

Quando o amor estiver definhando,
E a tristeza no peito morar,
Não se iluda com falsas
Promessas,
São quimeras e só vão complicar.

E se o beijo já não existe, e se desviam o olhar!
Se o dialogo já findou,
E se não tem mais nada para conversar
É porque o amor já não há.

Quando o amor acaba,
O coração diz não,
Isto porque já não existe na alma.
Afeto, ternura, meiguice e compreensão.
__________________________

RENASCER O AMOR

Porque fizestes renascer o amor,
Num peito já tão amargurado.
De tanto sofrer de amor,
Meu coração está magoado.
Por uma existência de lutas e fracassos,
De tanto amar estou virando trapo,
Sempre sem nunca ter sido compreendido.

A minha vida já não tem mais sentido,
Porque tu eras a minha única esperança,
Fingiste amar-me,
E eu, como criança,
Agradecido com belo presente,
Pus-me a sonhar feliz sorridente.

Mas como o sonho não é realidade,
Agora, sinto que foi tudo ilusão,
Por que brincar com um pobre coração?
Se tu sabias que irias fazê-lo sofrer.
Tu te divertes, com meu padecer,
Alegrarás-te com sofrimento meu?
Se for assim até ficarei feliz,
Por saber que agindo assim, tu tens felicidade,
E em troca do meu amor, tu me devolves maldade.
__________________________
 
SEM EXAGERO

Há muitos anos...
Acreditei no amor,
Pensei que o mesmo.
Era só felicidade,
Sem mentira e sem saudade.

Como me iludi por assim pensar...
Fui traído e humilhado,
Por no amor acreditar.

O amor se apresenta,
Sem mágoa e desilusão.
E penetra sutilmente,
No inexperiente coração.

Pois aconteceu!
Com o meu coração coitado...
O amor entrou de mansinho,
Depois viu o resultado.
Acabei de bar em bar,
Para matar esta saudade.

Caros jovens vou falar...
Sem exagero.
Cuidado com o tal do amor,
Ele vem como quem, não quer nada.
Todo brilhante e faceiro,
Depois de ele penetrar...
No coração muitas vezes.
De lágrimas faz molhar,
Seu travesseiro.
__________________________
 
SEM OSTENTAÇÃO

Quando fomos viver juntos,
A vida não era bela.
Tínhamos cadeira sem fundo,
E sem alças as panelas.

Apesar desses problemas,
Não podíamos reclamar.
Pois as cadeiras sem fundos...
e as panelas sem alças,
As únicas que tínhamos para usar.

E ainda pra culminar fiquei desempregado.
Mesmo assim não reclamamos,
Porque nosso lar era abençoado.

E depois com sacrifício...
E fé em nosso Deus verdadeiro,
Começamos a trabalhar.
Ambos lutando feitos guerreiros...
Mas hoje apesar de tudo.
Temos casa, temos carros,
Nunca nos faltou o pão.
Mas temos o equilíbrio,
Nada de ostentação.
__________________________
 
SÓ EU SEI O QUE É AMAR

Ainda que os amigos digam...
Que não devo perdoá-la.
Não ligo para o que dizem,
Pois o que eu sinto, a eles não os abala.

Só eu sei o que é amor,
Apesar de ser esquecido.
E sentir aquela dor,
De ser marido traído!

Sofro tanto por este amor,
Que me deixa amargurado.
Triste e desiludido...
Que atua como tiro,
No meu peito já ferido.

Mas o que fazer se assim eu sou!
Se ela voltar...
Dar-lhe-ei carinho e muito amor.
É mais uma chance,
Que a vida nós dá...
De sermos felizes
Se eu a perdoar
__________________________
Fonte:
Poemas enviados pelo poeta.

Monteiro Lobato (Fábulas) A Formiga Boa – A Formiga Má


I – A formiga boa

Houve uma jovem cigarra que tinha o costume de chiar ao pé de um formigueiro. Só parava quando cansada; e seu divertimento então era observar as formigas na eterna faina de abastecer as tulhas*.

Mas o bom tempo afinal passou e vieram as chuvas. Os animais todos, arrepiados, passavam o dia cochilando nas tocas.

A pobre cigarra, sem abrigo em seu galhinho seco e metida em grandes apuros, deliberou socorrer-se de alguém.

Manquitolando, com uma asa a arrastar, lá se dirigiu para o formigueiro. Bateu

– tique, tique, tique...

Aparece uma formiga friorenta, embrulhada num xalinho de paina*.

– Que quer? – perguntou, examinando a triste mendiga suja de lama e a tossir.

– Venho em busca de agasalho. O mau tempo não cessa e eu...

A formiga olhou-a de alto a baixo.

– E que fez durante o bom tempo, que não construiu sua casa?

A pobre cigarra, toda tremendo, respondeu depois de um acesso de tosse:

– Eu cantava, bem sabe...

– Ah!... – exclamou a formiga recordando-se. – Era você então quem cantava nessa árvore enquanto nós labutávamos para encher as tulhas?

– Isso mesmo, era eu...

– Pois entre, amiguinha! Nunca poderemos esquecer as boas horas que sua cantoria nos proporcionou. Aquele chiado nos distraía e aliviava o trabalho. Dizíamos sempre: que felicidade ter como vizinha tão gentil cantora! Entre, amiga, que aqui terá cama e mesa durante todo o mau tempo.

A cigarra entrou, sarou da tosse e voltou a ser a alegre cantora dos dias de sol.

II – A formiga má

Já houve, entretanto, uma formiga má que não soube compreender a cigarra e com dureza a repeliu de sua porta.

Foi isso na Europa, em pleno inverno, quando a neve recobria o mundo com o seu cruel manto de gelo.

A cigarra, como de costume, havia cantado sem parar o estio inteiro, e o inverno veio encontrá-la desprovida de tudo, sem casa onde se abrigar, nem folhinhas que comesse.

Desesperada, bateu à porta da formiga e implorou – emprestado, notem! – uns miseráveis restos de comida. Pagaria com juros altos aquela comida de empréstimo, logo que o tempo o permitisse.

Mas a formiga era uma usurária* sem entranhas. Além disso, invejosa. Como não soubesse cantar, tinha ódio à cigarra por vê-la querida de todos os seres.

– Que fazia você durante o bom tempo?

– Eu... eu cantava!

– Cantava? Pois dance agora, vagabunda! – e fechou-lhe a porta no nariz.

Resultado: a cigarra ali morreu enrijecida pelo frio; e quando voltou a primavera o mundo apresentava um aspecto mais triste.

É que faltava na música do mundo o som estridente daquela cigarra morta por causa da avareza da formiga. Mas se a usurária morresse, quem daria pela falta dela?

Os artistas – poetas, pintores, músicos são as cigarras da humanidade.
__________________________

– Esta fábula está errada! – gritou Narizinho. – Vovó nos leu aquele livro do Maeterlinck sobre a vida das formigas – e lá a gente vê que as formigas são os únicos insetos caridosos que existem. Formiga má como essa nunca houve.

Dona Benta explicou que as fábulas não eram lições de História Natural, mas de Moral.

– E tanto é assim – disse ela – que nas fábulas os animais falam e na realidade eles não falam.

– Isso não! – protestou Emília. – Não há animalzinho, bicho, formiga ou pulga que não fale. Nós é que não entendemos as linguinhas deles.

Dona Benta aceitou a objeção e disse:

– Sim, mas nas fábulas os animais falam a nossa língua e na realidade só falam as linguinhas deles. Está satisfeita?

– Agora, sim! – disse Emília muito orgulhosa com o triunfo. – Conte outra.

___________________________________
Glossário
Tulha - é um local onde se guardam os cereais, alimentos.
Paina é uma fibra natural semelhante ao algodão, oriunda dos frutos da paineira. É usado como enchimento para colchões e travesseiros.
Usurária - Agiota; aquela que empresta dinheiro com usura, com juros muito altos.

 Fonte:
 Monteiro Lobato. Fábulas.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

Isabel Furini (Os Olhos do Céu)



(Conto infanto-juvenil)

Era o vigésimo ano do Governo Correto. O Imperador de Jade Amarelo se regozijava em seu trono de ouro. Em um dia como tantos, das areias do deserto de Gobi, chegou um viajante com as vestes gastas, deteve-se ante o muro dos espíritos e contemplou os dezesseis dragões imperiais. Depois avançou entre as impecáveis colunas lisas e poligonais e solicitou que o levassem até a presença do Magnífico Imperador.

O ilustre Filho do Céu permitiu ao viajante se deleitar com sua presença, porque era orgulhoso e estava satisfeito com sua fama de misericordioso. O estranho ancião foi encaminhado para a ampla sala. Realizou as respeitosas reverências indicadas no ritual chinês, percorreu com o olhar os dezoito trípodes e por último observou o Dono das Cinco Regiões dizendo:

– Viajei pelo Reino do Norte, pelo Reino do Leste, pelo Reino do Sul, pelo Reino do Oeste e pelo Reino Médio. Todos te pertencem, oh, Grande Imperador. Mas após essa longa viagem, encaminhei-me ao zênite e por direito próprio converti-me em rei de mim mesmo. Então, aprendi a observar a flor que se abre ao sol e o voo dos pássaros. Aprendi a não desejar, a não planejar, a não me projetar ao exterior, a permanecer em mim mesmo e me converti no Imperador do Infinito.

O excelentíssimo Governador do Império Celeste mexeu-se intranquilo em seu trono sem poder ocultar seu desgosto. Compreendeu, nesse instante, que o velho possuía um império mais vasto que o seu. Sua mente se movimentou aceleradamente, como as lavas de um vulcão, como uma violenta tormenta de areia.

O Filho do Céu, o Imperador dos Cinco Elementos, pensou na sua fama. “O que será de mim quando os homens conhecerem o poder deste velho... Ainda que não seja o dono de um Império Infinito, sua atitude é comprometedora, e se suas ideias se espalharem, não mais me temerão”, pensou. O que fazer? Por fim, a mão fina e aristocrática fez um leve sinal. A Guarda Imperial se mobilizou e o ancião foi feito prisioneiro e executado naquele mesmo dia. Enquanto os soldados o arrastavam, deu um último olhar de compaixão ao poderoso Governador e aprofundou-se no seu silêncio interior.

Morreu sem sequer dar um grito, e somente uma mancha de sangue foi a testemunha de uma vida que se afastava.

À noite, depois de passear pelo jardim e contemplar a lua crescente refletida no lago, o Senhor do Império Médio se dedicou ao descanso. De repente, observou uma torrente de sangue que se deslizava por baixo da porta. O ilustríssimo Governador da China levantou-se rapidamente, como um raio tremendo em seu coração. Antes que pudesse gritar, da mancha de sangue elevou-se uma névoa que formou uma estrutura diferenciada e na qual o Imperador pode reconhecer... o velho viajante.

O velho sorriu com tristeza e disse:

– Honorável Senhor, não foste justo.

– Não, venerável ancião, eu não fui justo – respondeu com humildade. Seus joelhos tremiam, as mãos suavam e um nó parecia aninhar na sua garganta – mas quero que saibas que até então sempre fui justo.

– Ninguém te desafiou?

– Jamais – respondeu o Imperador com voz firme, recuperando-se do choque que lhe produzira a presença inesperada do velho.

– Meu governo se chama o Governo Correto. Admito que fui injusto por ter ordenado tua morte, mas amanhã irei ao Templo Ancestral e pedirei a meus antepassados a purificação por esse ato de impiedade.

– Ilustríssimo Imperador, cada um deve assumir suas próprias faltas e purificar-se a si próprio. Além do mais, senhor, nunca foste realmente justo. Todas tuas ações estão contaminadas.

– O que queres dizer?

– As tuas ações somente são boas em aparência.

– O que queres dizer, ancião?

– Tuas boas ações somente são boas em aparência.

– Como é possível? – perguntou atordoado.

– Oh, Filho do Céu! Tua intenção sempre foi egoísta. Com tuas ações procuras obter a fama do governante justo, mas nunca tiveste como objetivo o benefício de teu povo. Só estavas interessado em tua própria pessoa. Tu és superficial, egocêntrico e orgulhoso. Não és realmente bom. Com teus atos de aparente bondade buscavas beneficiar só a ti. Por isso ordenaste a minha morte. Teu coração não pode suportar a existência de alguém que seja livre, de alguém mais poderoso do que tu.

– Não compreendo, venerável ancião – disse mexendo a cabeça, com o olhar confuso – não consigo entender nem tuas palavras, nem tua presença.

– Talvez não queiras compreender, nobre Senhor. Eu era o encarregado de te revelar os mistérios do céu e de te dar o néctar da instrução. Não permitiste que eu cumprisse com meu dever... Agora não poderás cumprir corretamente o teu dever.

Uma nova luz espalhou-se pelo aposento real.

– Agora compreendo meu erro – confessou o Imperador – como poderei corrigir minha falta?

– Não será fácil, Senhor do Império Médio; não será fácil, Governador das Cinco Cores; não será fácil, Amo dos Cinco Animais Sagrados.

– Que devo fazer, Venerável Mestre? – perguntou num murmúrio. Ao pronunciar essas palavras, a voz do Imperador Celeste tremeu. Seus olhos negros se encheram de tristeza.

– Deves esquecer a tua fama, a tua condição, a tua glória. Deves ser tu mesmo. Cumprir teu dever, que é servir ao povo.

Ao dizer isso, a imagem do viajante começou a desvanecer-se, e o Imperador esqueceu sua glória, sua condição de aristocrata e gritou desesperado:

– Senhor, Mestre, preciso te ver.

– Aprenda a me ver em cada coisa. Eu estou em Tudo. Olhe minha forma verdadeira.

O Imperador das Cinco Regiões permaneceu atônito, contemplando a imagem do ser que havia reverenciado desde sua juventude. Diante dele estava Yu-Huang-Chang-Ti, o Supremo Imperador Augusto de Jade, o Senhor do Céu.

O sol avançava entre as nuvens quando o Imperador de Jade Amarelo acordou. Fez reunir na sala dourada todos os sábios conselheiros de seu reino e, ao narrar a causa de sua aflição, o mais velho lhe disse:

– Filho do Céu, vives dramaticamente centralizado na tua própria pessoa. Nosso venerado Yu-Huang-Chang-Ti, o Senhor do Céu, quer que te esqueças de ti mesmo e então ganharás o Império da Eternidade.

O Imperador de Jade Amarelo sorriu feliz e abriu suas portas interiores ao altruísmo. Então iniciou o Ano Primeiro do Governo Perfeito.

Fonte:
Literatura de Isabel Furini

J. G. de Araújo Jorge (Líricas) 1


LÍRICA Nº 03
  
Para onde foste
depois que saíste dos meus braços,
se já conhecias todos os caminhos?...

Vais te perder à toa,
agora que eu já tinha te achado...

LÍRICA Nº 04
   
Consolo triste
este o de repetir inutilmente
que restará a lembrança
de que vivemos a eternidade
em algum tempo...

Consolo triste.
Chego a pensar que seria preferível
continuar a viver o efêmero
eternamente...

LÍRICA Nº 05
   
As vezes me surpreendo
a olhar minhas mãos vazias
como taças sem finalidade
depois que a festa acabou...
Que outras mãos tremulas e bêbadas,
deslumbradas de beleza e de prazer,
te tomarão, num brinde?

LÍRICA Nº 06
   
Falo em volta,
para iludir minha tristeza...
Como se enganam as crianças,
distraindo-as
à hora da morte sair...

LÍRICA Nº 07


Bem sei eu estou pagando caro,
em sofrimento,
a alegria que colhi.

Mas valeu.

Felizes os que ainda tem
a lembrança do sol
quando chega a invernia.

E porque o conheceram,
e o sabem além das nuvens,
ainda sonham e esperam 
por um novo dia.

LÍRICA Nº 08

Antes
nos adivinhávamos.

E de súbito,
não nos vimos mais.

LÍRICA Nº 10

Sigo carregando este amor
dentro de mim...

Chorar por ele, quem há de ?

Tenho a impressão
de que hei de levá-lo assim
até onde eu for,
embalsamado em minha saudade...

- ...Amor
de eternidade.

LÍRICA Nº 12
   
Chorar, seria fraqueza,
apesar de não poder evitar
que os olhos se turvem.
Morrer, talvez fosse a solução.

Mas, e quando voltares?

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 3. SP: Ed. Theor, 1965.

Aluísio de Azevedo (Rendas e Fitas)


I

- Olá! exclamei eu, vendo saltar do bonde de Botafogo o meu querido Ernesto Branco. Bons ares te tragam! Como vais tu? Mas que diabo de cara tens agora? Estás zangado?

- Ora! Não me fales! Não estou zangado; estou aborrecido. Aborrecido com esta vida infernal do Rio de Janeiro; aborrecido com este calor selvagem, este calor inimigo da civilização e do trabalho; e aborrecido principalmente com as nossas patrícias, esses monstros de olhos sedutores e sorrisos virginais!

- Ó diabo! a coisa agora é mais grave... Dar-se-á o caso de que o meu espirituoso amigo levasse tábua de alguma moça com quem estivesse para casar?...

- Hein?! Casar?! Eu?! Com quem?!

- Oh! com qualquer moça do teu gosto...

- Por quê ! Que mal fiz eu, para me condenarem assim, sem apelação nem agravo!... Casar! Casar com uma dessas criaturinhas que neste instante acabam de encher-me de indignação e de vergonha? Casar com uma dessas moças ignorantezinhas, pretensiosas e malcriadas? Oh, nunca! Nunca! Nunca! Antes ser cão de cego; antes ser ministro do Sr. Floriano; antes ser leitor do Fígaro!

- Mas, que te fizeram, Santo Deus! para te ver neste estado de cólera contra o sexo mimoso?... para te ver assim terrível e feroz contra essas belas flores com alma, que são o encanto da nossa vida, o perfume do nosso lar, a segurança da nossa felicidade?...

- Que me fizeram? perguntas tu! Oh! dir-se-ia que nunca viajaste em um bonde em que vão patrícias nossas! Dir-se-ia que nunca cedeste o lugar a uma senhora, para vê-la aceitar a tua fineza, sem voltar sequer o rosto, quanto mais dizer "Muito obrigada!"

- Acanhamento!...

- Qual acanhamento! São acanhadas para cumprir com tão insignificante preceito de boa educação, mas não lhes falta desembaraço para protestar com uma careta, e às vezes até com um muxoxo, quando lhes chega a vez de se incomodarem para te dar passagem!

E o modo afrontoso e impertinente com que elas observam e esmerilham, medindo da cabeça aos pés, as pessoas que entram no bonde, será também acanhamento ...

- Curiosidade de mulher...

- De mulher mal-educada! E' muito feio que uma moça, pressuposta inocente e virginal, ou mesmo uma senhora já casada ou viúva, não possam ver entrar uma cocote no bonde, sem se voltarem de nariz torcido, sem a medirem com desprezo e azedume, arriscando-se a ouvirem uma merecida resposta! E não é preciso que seja uma de chapéu tapageur e vestido de cor criard a pessoa que entre no bonde, para ser analisada deste modo; basta ser uma estrangeira, uma estrangeira que não se vista pelo detestável gosto com que se vestem as nossas damas; quer dizer que não venha coberta de seda e veludo por um dia de sol ardente e não traga em cima de si todas as cores do céu e do inferno!

- Tu exageras!

- Não exagero tal! Agora mesmo acabo de presenciar revoltado uma dessas cenas. Estava uma família ocupando o banco em frente do meu: uma velha, uma senhora de meia idade, e duas moças de quinze a vinte anos; todas as quatro tudo que há de mais tipo brasileiro e de mais ridículo.

O grupo formava uma orgia de cores, de flores e de fitas; uma loucura de sedas, de lãs, de veludo, e de algodão.

Entra um casal americano do norte. O homem de calça e paletó de brim, chapéu de palha com toalha em volta, e guarda-sol de pano claro, a mulher com um singelo vestido de linho cor de palha, enfeitado de rendas da mesma cor, e na cabeça um abajur de linho branco, preso despretensiosamente ao pescoço por duas pontas largas de cadarço.

Pois, meu amigo, não imaginas o rebuliço que se produziu naquela família com a chegada deste casal, que aliás, nada mais fez do que entrar, assentar-se e pôr-se a conversar em voz baixa, natural e discretamente.

Oito olhos arregalados cravaram-se imediatamente sobre a americana com tal insistência que a nobre senhora começou a examinar-se, e perguntou depois ao seu cavalheiro se ela tinha em si alguma coisa que chamasse a atenção.

"Deus te livre!" disse a velha, com arrelia, dando um estalo de língua e torcendo enojada a cabeça, como para não continuar a ver um espetáculo indecoroso.

"Iche! desdenhou por sua vez a quarentona. Esta gente não tem vergonha de sair assim à rua?... Parecem mascarados, Deus me perdoe!"

E as duas moças começaram, de lenço contra a boca, a emitir consecutivas gaitadas de riso, e a remexerem-se no banco, e a cochicharem tão impertinentemente, que os americanos voltavam a cabeça de vez em quando, patenteando na fisionomia o mais completo ar de intriga e de assombro.

Não ouvi o que eles disseram lá entre si; vi, apenas, o desdenhoso movimento dos seus lábios e senti venetas de estrangular aquela família brasileira, tão tola, tão ridícula, tão chinfrim!

E ainda me vens falar em casamento! Mas a ideia que me dá ânimo para continuar a viver; a única razão por que não me atiro ao mar; o meu único momento de felicidade, é quando me lembro de que aqui no Rio de Janeiro, onde todos são mais ou menos casados, eu me conservo solteiro como no dia em que nasci! E, juro-te que não é da febre-amarela, que tenho medo, nem das bexigas, nem do beribéri, nem da legalidade do Sr. Floriano, nem da queixada do Sr. Aristides, é daquilo que ali vem. - Olha!

E Ernesto apontou para um grupo de três mocinhas que se aproximavam de nós, muito risonhas, acompanhadas pela mamãe; e deitou a fugir como um louco em direção contrária, a gritar.

- Livra! Livra!

E foi-se.

II

Não, Ernesto, vem cá. Senta-te aqui; conversemos tranquilamente. Não comeces a gesticular como um louco e a dardejar paradoxos a torto e a direito! Ouve-me quieto e responde com bons modos, se não me queres ver tomar o chapéu e desaparecer pela porta da rua.

- Vamos lá!

- Foste ontem injusto e severo demais com as nossas patrícias. Concordo que nem todas as brasileiras mereçam a minha defesa; sei que há por aí muita mocinha impertinente e muita senhora insuportável, mas ninguém pode negar que a brasileira em geral é meiga, virtuosa e asseada,

- Não foi disso que tratei!

- Ouve. Tu conheces bem o tipo da inglesa, com a sua barriga de tábua, com o seu cabelinho louro grudado à cabeça e enrolado pobremente sobre a nuca; com a sua cintura de lâmina, muito estreita vista de lado, muito larga vista de frente; com os seus pés espalmados e longos, como uma canoa de pescador emborcada sobre a praia; conheces a famosa Miss, tão celebrada pelo lápis de Gavarni; essa misteriosa criatura de olhos celestiais, que em viagem se parece com um guarda-chuva inglês, metido cuidadosamente dentro da capa, e que em casa, no interior, lembra um vaporoso e fino caramelo encimado por uma trouxa de fios de ovos. Conheces a mulher inglesa?.

- Se conheço! Theóphile Gautier, o meridional romântico, o beduíno francês, que viveu para adorar as mulheres, e que amava e cultivava os gatos, por não poder fazer o mesmo com a pantera (que, depois da mulher, é o bicho mais feroz de criação), Theóphile Gautier dizia e repetia que as inglesas são as mulheres mais formosas do mundo!

- É exato. O que não impede que os outros franceses, ao vê-las atravessar o boulevard, tenham, sempre para ela as pilhérias mais terríveis e os ditos mais ridículos. Mas, passemos adiante: conheces igualmente a espanhola?

- Oh! Pergunta-me antes se conheço Byron! Não conhecer o tipo da espanhola!... Dançante seguidilha de amor que se transforma em mulher! Oh! se conheço! Mantilha, leque, castanholas e touros! Sou louco por ela! Vamos adiante!

- Pois, meu amigo, fica sabendo que as espanholas têm coisas detestáveis nos seus costumes. Â mesa, por exemplo: não há espanhola, por mais bem educada, que não leve a faca à boca, como se fosse um saltimbanco engolidor de espadas; e todas elas lambem os dedos; tiram com a língua o que fica de comida entre os dentes, e...

- É falso! É mentira! Não prossigas, ó caluniador! que te estrangulo aqui mesmo!

- E a italiana?...

- Oh! oh! O velho amor cavalheiresco! Beijos e punhaladas. Lábios grossos e quentes; punhais frios e penetrantes. Um conde assassinado ao luar, debaixo de uma ponte; a condessa veneziana fugindo com um tenor de olhos ardentes!...

Conheço! conheço! mas tudo isso cheira-me um pouco a macarrão e realejo!

- Quando não cheira pior... porque, meu caro, debaixo de todo aquele romanesco lírico e daqueles transportes de paixão, com punhal, cabelos soltos e dentes cerrados, mal sabes o que vai! A italiana em geral é boa para ser vista de longe. Só tem efeitos cenográficos. Não te aproximes muito dela, se queres conservar a bela impressão artística que recebeste!

- E da francesa? que me dizes tu da encantadora francesa?...

- Digo-te que é a mais vulgar de todas as mulheres... a que menos tem a linha original...

- Socorro! Socorro! Este homem acaba de enlouquecer!

- Não! Não enlouqueci! Não confundas a francesa com a parisiense. Fala-me desta, e eu te direi que a parisiense é a mulher mais feia e mais sedutora entre todas as filhas de Eva; eu te direi que só ela tem o segredo do amor que ri, e canta, e brinca; o segredo da amabilidade que satiriza e confunde como um piparote na ponta do nariz. Não é uma mulher, é uma bonita fantasia feita de cançonetas, aljôfares de champagne e rendas valencianas!

- Seduzem-no mais o espírito do que os sentidos. E' a primeira mulher do mundo.

- Não! A primeira mulher do mundo, meu querido Ernesto, é a brasileira.

- E por que não a portuguesa?

- Porque a portuguesa aos trinta anos, idade da grande afeição da beleza feminil, em geral começa a barbear e a criar umas singulares bochechinhas ao lado do queixo, que lhe tiram todo o encanto e lhe dão ares de abadessa.

- E a brasileira então? A brasileira aos trinta anos está coberta de sardas; já se não aperta; já se não penteia; anda em casa com o roupão desabotoado sobre o ventre; arrasta os chinelos, e, às vezes, fuma até cachimbo!

- Não é verdade! Ou tens consciência de que estás mentindo ou não sei que diabo de brasileiras conheces tu! Repito: a brasileira é a primeira mulher do mundo. Sela se reúne tudo o que as outras possuem de melhor; ela tem a graça e o donaire da espanhola; tem o calor e o arrebatamento da italiana; tem o coquetismo da francesa, tem o asseio e a virtude das inglesas e o talento doméstico da alemã.

- Só lhe faltam, para ser completa, as barbas à portuguesa!

- Mas tem uma coisa ideal, que nenhuma outra possui como ela, e é a meiguice, o carinho profundamente sincero, a dedicação sem limites pela pessoa amada. Só a brasileira, só ela no mundo, tem o segredo de dar cafunés e de fazer certos quitutes e certos doces que nos arrebatam! Só ela...

Mas Ernesto não me deixou prosseguir, ergueu-se indignado e exclamou, enterrando o chapéu na cabeça:

- Ora, vai-te para o diabo! Estás apaixonado por alguma pasteleira! E eu a dar ouvidos a este comilão!

E foi-se.

domingo, 1 de dezembro de 2019

Varal de Trovas n. 130


Arthur de Azevedo (Por não se Entenderem)


    O Zeca Borges, pequeno lavrador do Bananal, tinha um irmão cônsul na Alemanha, e, quando soube que esse irmão chegara ao Rio de Janeiro, com licença, ficou satisfeitíssimo, e ansioso por abraçá-lo, tanto mais tendo recebido imediata comunicação de sua residência, na Rua do Catete.

    O Zeca meteu-se no trem, e na manhã seguinte estava no Hotel dos Estados, onde se demorou apenas o tempo necessário para tomar banho, mudar de roupa, fazer a barba e almoçar.

    Depois do almoço, lá se foi ele a pé, Rua da Lapa acima, em busca do irmão saudoso.

    Na casa indicada estava à janela uma senhora loura e bonita.

    - Querem ver, pensou ele, que o Chico se casou na Alemanha com a filha do tal arquiteto, de quem tanto me falava nas suas cartas? Não foi outra coisa! o patife não me mandou dizer nada!...

    O Zeca Borges tirou o chapéu à senhora, que lhe correspondeu com um sorriso amabilíssimo.

    - Naturalmente conhece-me de retrato, pensou ele - e entrou.

    Ela esperava-o de braços abertos no tope da escada, e deu-lhe muitos abraços e muitos beijos.

    O paulista não estranhou a natureza de tão excessivas manifestações, que aliás nada tinham de fraternais; apenas achou, de si para si, que na Alemanha o sentimento da família estava mais desenvolvido que no Brasil.

    - O Chico? - perguntou ele - não está?

    Ela teve um olhar estúpido.

    - A Senhora não é a mulher do Chico, meu mano?

    Ela respondeu, com muita dificuldade, que não falava português.

    - É justo, cunhada, é muito justo, mas como também eu não falo alemão, não haverá meio de nos entendermos! Que pena o Chico não estar em casa! Olhe, o melhor é voltar logo!

    E deu um passo para a porta; mas a mulher passou-lhe um braço em volta ao pescoço, e levou-o até à porta da alcova, que abriu com um gracioso pontapé, mostrando-lhe a cama.

    Tudo isso pareceu muito esquisito ao Zeca Borges, mas como este era um rapaz inteligente, o que o leitor sem dúvida já percebeu, disse consigo que ela supunha, e com razão, que ele precisasse descansar porque vinha de viagem e passara, talvez, a noite em claro.

    E mais se convenceu de que tal era a intenção da cunhada, quando esta lhe desatou o laço da gravata e desabotoou-lhe o paletó e o colete.

    - Não! Isto agora é demais! Eu mesmo dispo-me! Pode ir! Pode ir!...

    Ela saiu muito risonha, sempre depois de lhe dar mais um beijo e de lhe recomendar, por gestos, que a esperasse (o irmão, ao que ele supunha) e o nosso Zeca, mal se apanhou sozinho, entendeu que o melhor que tinha a fazer era despir-se, deitar-se e dormir.

    Mas não havia três minutos que estava deitado, refletindo sobre o extraordinário desenvolvimento do sentimento da família na sociedade alemã, quando a mulher voltou e se dirigiu saltitante para ele, tendo vestida apenas uma camisola de seda escandalosamente diáfana.

    Calcule-se o espanto do paulista, que deu um pulo como se visse o demônio e foi agachar-se a um canto da sala, gritando:

    - Não se aproxime, cunhada, não se aproxime!...

    Ela convenceu-se então de que tinha em casa um doido e começou a gritar.

    Acudiram outras mulheres, que felizmente falavam português, e tudo se esclareceu. O Zeca Borges tomara um algarismo por outro, entrara numa casa de mulheres julgando entrar em casa do irmão.

    Houve grande risota entre o mulherio, e o próprio Zeca foi obrigado a rir da sua ingenuidade, oferecendo uma nota de cinquenta mil-réis à húngara, que não era alemã, e ainda menos sua cunhada.

    Meia hora depois abraçavam-se os dois irmãos. O cônsul estava ainda solteiro.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos vários.

Olivaldo Júnior (Sonetilhos e Versos Afins)


SOLITÁRIA FLOR
(Ceciliana)


No jardim sem fim,
entre sonho e dor,
vive a flor em mim:
solitária flor.

No jardim - sem mar -,
entre pesca e amor,
vive alguém sem par:
solitária flor.

Pois, por ser assim,
tão sozinha e triste,
lembra até Cecília,

a Meireles, sim:
flor que só existe
para seu jardim.

SONETILHO DE NATAL Nº 01

Olho as ruas de noitinha,
penso em tudo que passou,
tanta luta que era minha
e, num vento, ao céu voou...

Olho as ruas em dezembro,
penso em todos que não têm
o Natal do qual me lembro,
com os presentes, paz e bem...

Olho as praças, minha mãe,
e me deixo ao meu destino,
panetone com champanhe!...

Sonho, enxergo enfim meu pai,
todo aflito, um pai menino,
que, em seu rosto, a chuva cai...

SONETILHO DE NATAL Nº 02
(O Natal daquela avó)


Na cadeira já vazia,
paira um novo conhecido,
cuja vã fisionomia
lembra bem a do marido...

Na poltrona sem ninguém,
sobem netos e bisnetos,
quando o sino, o de Belém,
reverbera sobre os tetos...

O Natal daquela avó
sai da "toca" com setembro,
dia a dia, mesmo só...

Logo vem - cocoricó! -
num trenó, já em dezembro,
o Natal daquela avó!...

SONETILHO PARA OS MÚSICOS
(22 de novembro: Dia do Músico)

Porque a música tem cheiro,
tem sabor e tem textura,
vejo e escuto o povo inteiro
dar-se à música: ternura.

- Porque a música tem jeito
de contar o que é que eu sinto,
sinto a música em meu peito
ser verdade enquanto eu minto...

Porque a música tem lábios
que não beijam já faz tempo,
beijo a boca de "mil" sábios...

Porque é mero passatempo,
já não vivo mais sem rádio,
pois sou músico: contemplo.

AS MIL FLORES DOS TEUS OLHOS

Vou fingir que não te amo até você acreditar no meu amor
(Eu mesmo)


Manhã cedo, colho as flores,
as mil flores dos teus olhos,
e as desmancho pela estrada
dos que, cegos, são o amor.

Manhã cedo, colho as flores,
as mil flores dos teus olhos,
e as disponho frente à casa
dos que, nômades, são sós.

Manhã cedo, colho as flores
para o enterro desse amor,
que agoniza seus rancores...

Manhã cedo, colho as flores
para um dia em novos nós,
os mil nós, amor, teus olhos.

A FLOR QUE APANHAS
(19 de novembro: Dia Internacional do Homem)

Sem que existam mais pedradas,
nem piadas, nem maldade
contra um parça de mãos dadas
com outro cara, na Cidade...

Sem que existam mais muralhas
entre os homens e as mulheres,
nem "machões" e nem canalhas,
que mastigam bem-me-queres...

Sem que existam tantos "ismos"
para os homens que são deuses,
mas se encontram nos abismos...

Sem que existam mais campanhas
pra que os homens sejam "deuses",
honre, amigo, a flor que apanhas.

SER GENTIL É SER PRESENTE
(13 de novembro: Dia Mundial da Gentileza)

Ante um homem do futuro,
com seu ar de indiferente,
que declaro ao pé do muro:
- Ser gentil é ser presente.

Ser gentil é não ser duro
quando o próximo, silente,
se fechar, for tão escuro
quanto o caos adolescente.

- Ser gentil é ser humano,
ser Carlitos com o garoto,
que resiste ao desengano!...

- Ser gentil é ser o "hermano"
de quem traz o olhar tão roto,
mas, presente, tem um plano.

MINHA LÍNGUA EM SUA VIDA
05 de novembro: Dia Nacional da Língua Portuguesa
 
Para o "Anjo de Lisboa"

Minha língua em sua vida
não importa nem um pouco,
mas eu driblo a despedida,
marco um gol e acabo rouco...

Uno as línguas que há no mundo
numa língua condoreira,
que, ao morrer no mar profundo,
funda a língua brasileira...

Feito um santo do pau oco,
canto versos para um "anjo"
que me deixa quase louco...

Anjo luso, de asas rubras,
traga paz a este marmanjo
e esta língua redescubras!

NOSSA LÍNGUA PORTUGUESA
05 de novembro: Dia Nacional da Língua Portuguesa

Deixe que lhe beije os lábios,
que não apenas os sábios
devem render-se à grandeza
de uma língua portuguesa...

Que essa língua portuguesa
faz minguar toda a tristeza
na crescente de um abraço,
maré cheia ante o cansaço...

Pois, nos braços dessa língua,
deixo as línguas do Brasil
e de toda e qualquer terra

que se rendam a essa língua,
lusa, louca, em pleno ardil,
que Camões, eterno, encerra.

À ESPERA DO CUPIDO
(Para o Dia dos Namorados)

Meu Cupido bonachão,
na "Quadrilha" de Drummond,
faz partir meu coração,
para eu ver o que é que é bom.

Na quadrilha da paixão,
perco o passo, baixo o tom,
sem saber que a solidão
não tem gosto de bombom...

Junho a junho, à luz da lua,
namorados sabem bem
o que é ter alguém "na sua"...

Namorado de ninguém,
inda espero, ao frio, na rua,
do Cupido, meu alguém...

Fonte:
Versos enviados pelo poeta.

sábado, 30 de novembro de 2019

Varal de Trovas n. 129


Carolina Ramos (Ronoel)


(Conto inspirado na frase de uma garotinha: "Tenho três pais!")

Roberto olhou-se no espelho, sorriu satisfeito. O travesseiro enrolado na cintura, as barbas brancas e o trajo vermelho, faziam-no a imagem perfeita do Papai Noel que todos os anos enfeita o Natal de crianças de qualquer idade.

Beirava já os cinquenta anos e a cegonha não lhe batia à porta, apesar dos esforços conjugados, dele e da esposa, para atraí-la. Confirmada a desesperança, tomara a decisão de fazer felizes as crianças que não sonhavam mais com a visita do Bom Velhinho, cada vez que os sininhos do Natal tilintavam e a cidade luzia, transformada por completo, adornada de estrelas e brilhos especiais.

E assim acontecia há vários anos. Roberto, mal anunciado o Natal, escolhia uma noite próxima, e, travestido de Papai Noel, saco nas costas, e com os braços cheios de presentes, semeava felicidade em doses diminutas, mas sempre muito bem recebidas. Fazia o que podia! Voltava de braços leves e coração mais leve, ainda!

Foi numa dessas noites, que os dois se encontraram. O destino talvez tenha engendrado a trama, ao desviá-lo do costumeiro caminho. Roberto notou o pequeno vulto encolhido à soleira de uma porta qualquer. Soube-o acordado, pelo brilho dos olhos e pela inquietação do cãozinho de duas cores, sentinela, ao seu lado.

— O que você faz aqui? — indagou surpreso.

— Eu vou dormir... durmo sempre aqui.

— Você não tem casa? Não tem mãe.,. não tem pai?!

— Eu tinha dois pais. O Pai do Céu, que mora muito longe... e o outro pai que sumiu de casa e foi morar no Carandiru. Nunca mais ele me visitou e minha mãe não deixava que eu fosse visitar ele. Depois, ele morreu... e minha mãe logo morreu, também... aí, eu fiquei na rua...

O ''Bom Velhinho" interrompeu o diálogo, sem disfarçar a lágrima que deixou rolar. Após alguns minutos de silêncio, indagou com voz emocionada: — Você quer ir morar comigo, na minha casa?

— O menino indagou com voz sumida: — Quem é você?!

— A resposta não poderia ser outra: — Eu sou Papai Noel! Você não me conhece?!

Os olhos do garoto cresceram: — O meu terceiro pai?!

— Como?!

–  É que minha mãe, quando meu pai morreu, me contou que, além do Pai do Céu e do meu pai que morava no Carandiru, eu tinha um outro pai, que se chamava Noel… mas esse pai nunca apareceu por lá… nunca veio me ver! Então, é você? Você é o meu Papai Noel?!

— Sim, filho… eu sou o seu Papai Noel! E como é que você se chama?

— Eu sou Juninho, filho do Toninho Boa Vida. Eu gosto do nome do meu pai, mas minha mãe não queria que eu usasse esse nome, por isso, só me chamava de Juninho.

Roberto entendeu o drama que envolvia a origem daquele menino. Drama que não seria menor do que aquele que lhe reservaria o futuro, caso não encontrasse alguém que o amparasse. Depois de alguns instantes de silêncio, Roberto, decidido, estendeu a mão ao garoto, que não desgrudava dele, os olhos interessados.

— Muito bem, Juninho. Vamos fazer um acordo. De agora em diante, você vai ter que mudar de nome. Seu nome vai ser Ronoel: — Ro de Roberto e noel de Noel? Está bem?

Um largo sorriso, onde faltavam dois incisivos, sendo que um deles já vinha a caminho, iluminou a face do menino:

— Quer dizer que... agora vou ter quatro pais?!

– Ei! Para com isso, garoto! Eu e Papai Noel somos a mesma pessoa — seu pai... um só pai!

O garoto, ainda intrigado, não insistiu. Era pegar, ou largar!

Agarrou a chance, com unhas e dentes!

Foi assim que Roberto driblou a cegonha, e ganhou, enfim, o filho que tanto esperara!

Juninho Boa Vida, ganhou, de presente, o seu terceiro pai, virando Ronoel J. da Silva. O Jota, não queria dizer nada, mas fora mantido para lembrar o nome Juninho, tão do agrado do menino e seu único
anterior patrimônio.

A felicidade, que espiava de longe, ao ver tanta alegria, arrumou a trouxa e, complementando o ansiado presente de Natal, veio morar, definitivamente sob aquele teto que, finalmente, abrigava uma família completa: — pai, mãe, e filho... e na qual não faltava, sequer, aquele cãozinho de duas cores!

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.
Livro enviado pela autora.