sábado, 28 de dezembro de 2019

Alcântara Machado (A Sociedade)


- Filha minha não casa com filho de carcamano!

A esposa do Conselheiro José Bonifácio de Matos e Arruda disse isso e foi brigar com o italiano das batatas. Teresa Rita misturou lágrimas com gemidos e entrou no seu quarto batendo a porta. O Conselheiro José Bonifácio limpou as unhas com o palito, suspirou e saiu de casa abotoando o fraque.

O esperado grito do cláxon fechou o livro de Henri Ardel e trouxe Teresa Rita do escritório para o terraço.

O Lancia passou como quem não quer. Quase parando. A mão enluvada cumprimentou com o chapéu Borsalino. Uiiiiia - uiiiia! Adriano MeIli calcou o acelerador. Na primeira esquina fez a curva. Veio voltando. Passou de novo. Continuou. Mais duzentos metros. Outra curva. Sempre na mesma rua. Gostava dela. Era a Rua da Liberdade. Pouco antes do número 259-C já sabe: uiiiiia-uiiiiia!

- O que você está fazendo aí no terraço, menina.

- Então nem tomar um pouco de ar eu posso mais?

Lancia Lambda, vermelhinho, resplendente, pompeando na rua. Vestido do Camilo, verde, grudado à pele, serpejando no terraço.

- Entre já para dentro ou eu falo com seu pai quando ele chegar!

- Ah meu Deus, meu Deus, que vida, meu Deus!

Adriano Melli passou outras vezes ainda. Estranhou. Desapontou. Tocou para a Avenida Paulista.

Na orquestra o negro de casaco vermelho afastava o saxofone da beiçorra para gritar:

Dizem que Cristo nasceu em Belém...

Porque os pais não a haviam acompanhado (abençoado furúnculo inflamou o pescoço do Conselheiro José Bonifácio) ela estava achando um suco aquela vesperal do Paulistano. O namorado ainda mais.

Os pares dançarmos maxixavam colados. No meio do salão eram um bolo tremelicante. Dentro do círculo palerma de mamãs, moças feias e moços enjoados. A orquestra preta tonitroava. Alegria de vozes e sons. Palmas contentes prolongaram o maxixe. O banjo é que ritmava os passos.

- Sua mãe me fez ontem uma desfeita na cidade.

- Não!

- Como não? Sim senhora. Virou a cara quando me viu.

... mas a história se enganou!

As meninas de ancas salientes riam porque os rapazes contavam episódios de farra muito engraçados. O professor da Faculdade de Direito citava Rui Barbosa para um sujeitinho de óculos. Sob a vaia do saxofone: turururu-turururum!

- Meu pai quer fazer um negocio com o seu.

- Ah sim?

Cristo nasceu na Bahia, meu bem...

O sujeitinho de óculos começou a recitar Gustave Le Bon mas a destra espalmada do catedrático o engasgou. Alegria de vozes e sons.

... e o baiano criou!

- Olhe aqui, Bonifácio: se esse carcamano vem pedir a mão de Teresa para o filho, você aponte o olho da rua para ele, compreendeu?

- Já sei, mulher, já sei.

Mas era coisa muito diversa.

O Cav. Uff. Salvatore Melli alinhou algarismos torcendo a bigodeira. Falou como homem de negócios que enxerga longe. Demonstrou cabalmcnte as vantagens econômicas de sua proposta.

- O doutor...

- Eu não sou doutor, Senhor Melli.

- Parlo assim para facilitar. Non é para ofender. Primo o doutor pense bem. E poi me dê a sua resposta. Domani, dopo domani, na outra semana, quando quiser. lo resto à sua disposição. Ma pense bem!

Renovou a proposta e repetiu os argumentos pró. O conselheiro possuía uns terrenos em São Caetano. Coisas de herança. Não lhe davam renda alguma. O Cav. Uff. tinha a sua fábrica ao lado. 1.200 teares. 36.000 fusos. Constituíam uma sociedade. O conselheiro entrava com os terrenos. O Cav. Uff. com o capital. Armavam os trinta alqueires e vendiam logo grande parte para os operários da fábrica. Lucro certo, mais que certo, garantidíssimo.

- É. Eu já pensei nisso. Mas sem capital e senhor compreende é impossível...

- Per Bacco, doutor! Mas io tenho o capital. O capital sono io. O doutor entra com o terreno, mais nada. E o lucro se divide no meio.

O capital acendeu um charuto. O conselheiro coçou os joelhos disfarçando a emoção. A negra de broche serviu o café.

- Dopo o doutor me dá a resposta. lo só digo isto: pense bem.

O capital levantou-se. Deu dois passos. Parou. Meio embaraçado. Apontou para um quadro.

- Bonita pintura.

Pensou que fosse obra de italiano. Mas era de francês.

- Francese? Não é feio non. Serve.

Embatucou. Tinha qualquer cousa. Tirou o charuto da boca, ficou olhando para a ponta acesa. Deu um balanço no corpo. Decidiu-se.

- Ia dimenticando de dizer. O meu filho fará o gerente da sociedade... Sob a minha direção, si capisce.

- Sei, sei... O seu filho?

- Si. O Adriano. O doutor... mi pare... mi pare que conhece ele?

O silêncio do Conselheiro desviou os olhos do Cav. Uff. na direção da porta.

- Repito un'altra vez: O doutor pense bem.

O Isotta Fraschini esperava-o todo iluminado.

- E então? O que devo responder ao homem?

- Faça como entender, Bonifácio...

- Eu acho que devo aceitar.

- Pois aceite.

E puxou o lençol.

A outra proposta foi feita de fraque e veio seis meses depois.

O Conselheiro José Bonifácio
de Matos e Arruda
e senhora
têm a honra de participar
a V. Ex.a e Ex.ma família o
contrato de casamento de sua
filha Teresa Rita com o Sr.
Adriano Melli.
Rua da Liberdade, no. 259-C.

_________________________________________
O Cav. Uff. Salvatore Melli
e senhora
têm a honra de participar       
a V. Ex.a e Ex.ma família o
contrato de casamento de seu
filho Adriano com a Senhorinha
Teresa Rita de Matos Arruda.
Rua da Barra Funda, no. 427.


                       S. Paulo 19 de fevereiro de 1927.

No chá do noivado o Cav. Uff. Adriano Melli na frente de toda a gente recordou à mãe de sua futura nora os bons tempinhos em que lhe vendia cebolas e batatas, Olio di Lucca e bacalhau português, quase sempre fiado e até sem caderneta.

Fonte:
Alcântara Machado. Brás, Bexiga e Barra Funda.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Varal de Trovas n. 146


Monteiro Lobato (A Gralha Enfeitada com Penas de Pavão)


Como os pavões andassem em época de muda, uma gralha teve a ideia de aproveitar as penas caídas.

– Enfeito-me com estas penas e viro pavão!

Disse e fez. Ornamentou-se com as lindas penas de olhos azuis e saiu pavoneando por ali afora, rumo ao terreiro das gralhas, na certeza de produzir um maravilhoso efeito.

Mas o trunfo lhe saiu às avessas. As gralhas perceberam o embuste, riram-se dela e enxotaram-na à força de bicadas.

Corrida assim dali, dirigiu-se ao terreiro dos pavões pensando lá consigo:

– Fui tola. Desde que tenho penas de pavão, pavão sou, e só entre pavões poderei viver.

Mau cálculo. No terreiro dos pavões coisa igual lhe aconteceu. Os pavões de verdade reconheceram o pavão de mentira e também a correram de lá sem dó.

E a pobre tola, bicada e esfolada, ficou sozinha no mundo. Deixou de ser gralha e não chegou a ser pavão, conseguindo apenas o ódio de umas e o desprezo de outros.

Amigos: lé com lé, cré com cré.
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– Esta fábula é bem boazinha – disse Dona Benta. – Quem pretende ser o que não é acaba mal. O Coronel Teodorico vendeu a fazenda, ficou milionário e pensou que era um homem da alta sociedade, dos finos, dos bem-educados. E agora? Anda de novo por aqui, sem vintém, mais depenado que a tal gralha. Por quê? Porque quis ser o que não era.

– Isso não, vovó! – objetou Pedrinho. – Ele ficou rico e quis levar a vida de rico. Só
que não teve sorte.

– Não, meu filho. O meu compadre apenas se encheu de dinheiro – não ficou rico. Só enriquece quem adquire conhecimentos. A verdadeira riqueza não está no acúmulo de moedas – está no aperfeiçoamento do espírito e da alma. Qual o mais rico – aquele Sócrates que encontramos na casa de Péricles ou um milionário comum?

– Ah, Sócrates, vovó! Perto dele o milionário comum não passa de um mendigo.

– Isso mesmo. A verdadeira riqueza não é a do bolso, é a da cabeça. E só quem é rico de cabeça (ou de coração) sabe usar a riqueza material formada por bens ou dinheiro. O compadre pretendeu ser rico. Enfeitou-se com as penas de pavão do dinheiro e acabou mais depenado que a gralha. Aprenda isso...

– E que quer dizer esse “lé com lé, cré com cré”? – perguntou Narizinho.

– Isso é o que resta de uma antiga expressão portuguesa que foi perdendo sílabas como a gralha perdeu penas: “Leigo com leigo, clérigo com clérigo”. Em vez de clérigo, o povo dizia “crérigo”. Ficaram só as primeiras sílabas das duas palavras.

Fonte:
Monteiro Lobato. Fábulas.

Daniel Maurício (Devaneios Poéticos) 1


Ah,
Como fica bom o meu dia
Quando tu abres a cortina da alma num sorriso
Se constituindo na paisagem mais linda do mundo.
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Ah,
Esse mar beijoqueiro!
Faz tanta onda por um beijo
Mas depois de que dá primeiro
Vai e volta querendo mais.
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Ao passar das sete luas
Abri minha janela pra rua,
Não mais sabático,
De alma curada
Voltei a florir.
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As tuas palavras
Me abraçam
Mas os teus beijos,
Ah!
Estes
Lavam a minha alma.
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Depois de tantas desilusões
Em terra desértica ela se fez
Mas pra conquistar seu coração
Em mandacaru me tornei.
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Desfiando nuvens,
Por você,
Casaco de sol eu me fiz.
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Fechei os olhos pra poesia
E ela saiu
Em forma de oração.
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Hoje
A saudade fez um barulhão no meu peito
Queria de todo jeito
Te trazer pra perto de mim.
Abraço o teu perfume
Beijo o teu sorriso
Como se estivesse contigo
Em silêncio
Vendo passar o rio.
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Mesmo com a tua grandeza
O amor em ti transborda
E eu tão pequeno
Vou sorvendo pelas bordas.
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Na despedida
Lágrimas caídas
Estrelas no chão.
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Na flor da idade
Guardei em mim o teu perfume
Com o passar do tempo
Um belo jardim de nós se fez (filhos).
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Na imensidão da noite
Enquanto o vento grita
A lua se faz de pipa
E brinca enroscada na árvore.
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Nas entrelinhas
Os meus versos brincam de esconde-esconde.
Mas quando aparecem
As rimas-meninas
Elas se divertem no carrossel encantado.
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Nos braços da noite
Amparo meus sonhos
Aguardando tranquilo
Pelo amanhecer.
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Olhos azuis
Ou seriam verdes que me confundem!
Ah, menina!
Quando te vejo
As meninas dos meus olhos
Brincam maravilhadas
Com o oceano que há nos teus.
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Ruidoso mar
Com as tuas batidas
Ensurdeces o fado
Que grita no meu peito.
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Você partiu
Fiquei menor
Pois escapou dos meus olhos
Um pedacinho da alma.
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Fonte:
Facebook da AVIPAF

Rachel de Queiroz (O Homem e o Tempo)

    
Quem lê algum livro das eras de dantes, um romance de Jane Austen, por exemplo, escrito há quase duzentos anos atrás, tem a impressão de que o tempo daquela gente rendia muito mais que o nosso, ou que eles tinham tempo para tudo, enquanto nós não temos tempo para nada. Eles realizavam coisas, erguiam grandes casas, criavam grande família, plantavam jardim e pomar e ainda tinham tempo para meditação e debate, para as artes amenas da convivência civilizada — as visitas, as palestras, a correspondência. E só conheciam como meio de tração terrestre o cavalo, navegavam a vela, não sonhavam com telégrafo nem telefone, quanto mais com rádio e TV!

O que aconteceu com o homem atual, vítima da permanente impressão de que o seu tempo encolheu? A gente se agita, quebra a cabeça, vai lá e vem cá, mas não realiza propriamente nada — ou, pelo menos, o que se realiza nem de longe corresponde ao esforço que se faz. Não se tem tempo. Não se escreve um livro com calma, aqueles substanciosos livros meditados, cheios de digressões, alargados em conceitos tranquilos, que representavam o labor de toda uma vida. E se alguém escrevesse tais livros, como alguma alma anacrônica ainda o tenta, não encontraria ninguém para o ler. A gente vive correndo de Herodes para Pilatos, do nascer ao pôr-do-sol, da segunda ao sábado e se esgota toda nessa correria. Eu, por exemplo, que não sou das mais ativas: atualmente o meu trabalho fica a três mil quilômetros, ou seja, a quinhentas léguas do lugar onde moro. Não é coisa de louco? Mas não sou exceção, a exceção são os que moram perto. D. Pedro II reinou no Brasil durante 58 anos e conheceu apenas uma parte do território nacional, o que foi uma omissão. Mas também é exagero o que faz qualquer presidente atual; numa única semana percorre mais território do que o Imperador em mais de meio século; para governar, governa simultaneamente em duas cidades, separadas uma da outra mais de mil e quinhentos quilômetros — Brasília e Rio.
     Tudo seria muito belo, a velocidade e o mais, se a nossa pessoa física estivesse à altura das exigências que nós lhe impomos. Pois o trágico da vida do homem moderno é que ele não é feito para o ritmo que a sua existência atual lhe exige, mas para o tranquilo, sereno ritmo dos tempos de dantes. A carne, os músculos, o sangue, o coração, as vísceras todas do homem foram criadas para as pequenas distâncias, para o andar a pé. O cavalo já nos exigiu uma adaptação especial — que dirá então do avião, da astronave? Nenhum homem das civilizações antigas poderia conhecer o desgaste prematuro e terrível representado por essa moléstia hoje vulgar em aviadores, rapazes de menos de trinta anos: a fadiga do voo. Para as conquistas deste século deveria haver outro homem, não aquele que nós somos, filhos de Adão feito de barro.

A gente se obriga, mas a carne reclama. Desde o enjoo do mar ao enjoo do ar, ah, o horrendo enjoo do ar que me martirizou por mais de vinte anos de viagens aéreas, até que se usasse a pressurização nos aviões comerciais! Nós vivemos dentro das nossas cidades no seio do progresso que nós inventamos e fabricamos, como hóspedes do interior vivem na casa de primos ricos — onde tudo é uma admiração e um constrangimento. Basta encarar o problema da escala. Pois tudo que a civilização fabrica, ultrapassa a nossa escala, como se fosse destinado ao uso de gigantes. Para termos uma visão do mundo que nos cerca, temos que o reduzir a miniaturas, fotos, mapas, maquetes. Experimente olhar da calçada a torre de um grande edifício — dá vertigens e o nosso olhar não apanha nada do conjunto.

Eu tenho a impressão de que um progresso realmente assimilável pelo homem seria um progresso que funcionasse de dentro para fora quer dizer, se o homem mesmo, o seu corpo, a sua carne participassem do progresso. Mas nós sabemos inventar elementos exteriores que nos transportam, nos elevam no ar, nos afundam, nos cegam, nos deslumbram, sem nada penetrar a nossa essência física, sem sequer melhorar a nossa constituição corporal. Somos pacientes, não agentes. A ave que voa, voa por si, voa mesmo. Nós “somos voados”. Alguma coisa voa nos levando dentro. Nadar e mergulhar com o nosso corpo é uma atividade maravilhosa, que nos dá a sensação de dominar um elemento novo e adverso: mas navegar dá náuseas e mergulhar num submarino a mim, pelo menos, dá horror.

Não sei se me faço entender, mas considero essa questão a própria chave da incompatibilidade do homem com sua obra: nenhum progresso alcança a nossa estrutura,
fica tudo na superestrutura, no exterior.

Tudo é feito de matéria inerte, nada é vivo, nada é de carne, nada cresce, nada dói. Sim, aí é que bate o ponto: nada do que nós fazemos é capaz de sentir nada, mormente sentir dor.

Progresso seria se a gente conseguisse tornar o nosso coração de músculo num coração de duralumínio. Um pulmão de espuma de aço, um sangue incorruptível como petróleo, um cérebro que não tonteie nem esqueça, meu Deus, um cérebro eletrônico. E, dizendo isso, verifico que o homem capaz de fruir com plenitude a civilização de engenhos mecânicos por ele criada tinha que ser também um homem mecânico — tinha que ser um robô.

[17 jun. 1967]

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

Varal de Trovas n. 145


Contos e Lendas do Mundo (Irlanda: Gobán, o Carpinteiro)

Vivia na Irlanda, há muito tempo, um homem a quem chamavam Gobán Saoir, que era um exímio carpinteiro. Naqueles tempos, era costume construir as casas de madeira, e ninguém o fazia melhor que ele. O seu nome tornara-se famoso em todo o país, pelo que todas as pessoas de certa classe e renome lhe pediam que construísse as suas habitações.

Tinha apenas um filho, que trabalhava com ele, e muita gente recorria a eles, quando precisava de bons profissionais. Um dia, Gobán Saoir decidiu procurar uma mulher para o filho. Como a sua própria esposa estava a envelhecer, concebeu um plano para o ajudar a conseguir uma companheira satisfatória.

Ordenou ao rapaz que fosse buscar uma ovelha e sacrificou-a. Em seguida, retirou-lhe a pele meticulosamente, enrolou-a e guardou-a até ao dia de mercado seguinte.

— Leva a pele da ovelha à cidade, hoje — indicou ao filho. -Depois, volta a trazê-la e o dinheiro que te derem por ela.

O jovem pôs-se a caminho e, ao chegar ao mercado, estendeu a pele no chão. As pessoas que passavam perguntavam-lhe quanto pedia por ela e ele respondia que queria conservá-la em seu poder, juntamente com o preço que tinham de lhe pagar. Todos reconheciam que não devia regular bem da cabeça e, ao anoitecer, regressaram a casa e ele à sua com a pele.

— Vendeste-a? — perguntou o pai.

— Não consegui. Julgavam-me louco.

— Bem, tentarás outro dia.

— Para quê? — replicou o filho. — Com essa condição, ninguém ma comprará!

— Garanto-te que a hás de vender, ainda que demores um ano.

No dia de mercado seguinte, o pai mandou o jovem novamente ao local, assegurando-lhe que venderia a pele. O filho colocou-se no mesmo lugar, e a história repetiu-se. Quando aparecia um interessado e ele o advertia de que teria de manter a pele em seu poder, juntamente com o dinheiro do preço pedido, desinteressava-se. No fim do dia, o mercado encerrou as portas e ele enrolou a pele e regressou a casa.

— Então, vendeste-a? — perguntou o pai.

— Não — respondeu o rapaz. — Fartaram-se de rir de mim.

— Tens de voltar a tentar.

— Aposto o que quiseres que farei essa viagem em vão.

— De qualquer modo, tens de efetuar mais uma tentativa.

Quando se dirigia mais uma vez para o mercado, cruzou-se com uma jovem das imediações, que vinha da fonte com um cântaro de água e lhe perguntou:

— Vais ao mercado?

— Vou, mas acredita que não me apetece nada.

— Que te leva lá?

— Tenho de vender esta pele de ovelha e hoje é a terceira tentativa, mas duvido que o consiga.

— Nesse caso, porque vais lá?

— Estou numa situação muito difícil. Tenho de a entregar ao meu pai, juntamente com o dinheiro que custa.

— E ninguém a quer comprar?

— Ninguém. No mercado, todos se riem de mim.

— Acompanha-me a casa — propôs ela. — Talvez eu te a compre.

O jovem assentiu, sabendo que se tratava da serviçal de um agricultor que vivia perto dali. Uma vez chegados, ela pousou o cântaro e pediu:

— Tira a pele do saco, para que a veja.

Ele obedeceu e desenrolou-a diante da lareira. Em seguida, ela pegou numa tesoura, cortou a lã e pesou-a.

— Pronto — anunciou. — A pele tinha dois quilos de lã e cada quilo custa oito pence*. Aqui tens o dinheiro da lã. Podes ficar com o couro e levá-lo ao teu pai, exatamente como ele te recomendou.

E o jovem regressou a casa satisfeito. Quando Gobán Saoir lhe perguntou se vendera a pele, respondeu:

— Vendi, e não tive de ir muito longe. Comprou-a uma jovem. Deu-me o dinheiro da lã, que ela própria cortou da pele com uma tesoura, e deixou-me ficar com o couro, mas não sei se isso é do teu agrado.

— E, sem dúvida, porque tudo resultou como eu desejava. Agora, procura essa moça e pede-lhe que venha esta noite. Mas atenta no seguinte: não deve vir nem por estrada, nem por caminho, nem através do campo. Além disso, não pode trazer companhia, mas não deve vir só. E não entrará, nem ficará lá fora.

— Com a breca! — exclamou o jovem. — Que exigências tão estranhas!

— Vai e faz o que te mando.

O filho de Gobán Saoir dirigiu-se à fazenda e, quando chegou, perguntou pela jovem à dona da casa.

— Foi buscar batatas ao campo — informou ela. — Podes ir lá procurá-la.

Quando o viu, a jovem mostrou-se surpreendida.

— Não me digas que o teu pai não ficou satisfeito com a venda da pele!

— Não venho por causa disso. Ele quer que o visites esta noite, mas não deves ir nem por estrada, nem por caminho, nem através do campo. Além disso, tens de ir só, mas acompanhada. Como se isso não bastasse, não podes entrar em casa, nem ficar fora.

— Muito bem — concordou. — Comunica-lhe que não faltarei.

Depois de colher as batatas e terminar as outras tarefas que lhe competiam, ela pôs-se a caminho, mas antes chamou o cão. Depois, subiu ao alto vale que se estendia da fazenda até à porta da casa de Gobán Saoir e só desceu de lá quando se encontrou no final. Por fim, colocou um pé dentro da porta e o outro fora.

— Que Deus e a Virgem Maria estejam contigo — proferiu.

— Não queres entrar? — convidou Gobán.

— Segundo a tua ordem, não devo entrar nem ficar fora. Como vês, encontro-me entre os dois pilares da porta.

— Tens toda a razão. Que caminho utilizaste?

— Vim pelo alto vale, do qual só desci aqui, no umbral da porta.

— E a tua companhia? — insistiu ele. — Quem está contigo?

— Este — disse ela, chamando o cão, cujo nome era Sólan.

— Tens razão, mais uma vez. Não estarás só, enquanto se conservar a teu lado. Muito bem. Podes entrar.

Assim fez e sentaram-se à mesa, para saborear um jantar excelente.

— O que eu pretendia, minha querida jovem, era o seguinte - explicou Gobán. — Uma boa dona de casa para o meu filho, e ficaria muito satisfeito se fosses tu. Resta-me fazer a pergunta sacramental. Queres casar com ele?

— Fá-lo-ei de bom grado, desde que queira casar comigo.

O filho do carpinteiro declarou-se encantado com a ideia, pelo que assinaram o contrato matrimonial.
_________________________
Glossário:
Pence – A libra esterlina ou simplesmente libra (em inglês, pound, plural pounds, informal. Pound Sterling, ou pounds sterling, formal) é a moeda oficial do Reino Unido. Desde 15 de Fevereiro de 1971 e da adoção do sistema decimal, ela é dividida em 100 pence (singular: penny). Antes dessa data, uma libra esterlina valia 20 shillings (que valiam por sua vez 12 pence cada um), ou 240 pence. Atualmente (dezembro de 2019), 1 Real é equivalente a 18.90 pence esterlino.

Fonte:
Contos Tradicionais da Irlanda

Silmar Böhrer (Divagações Poéticas) 3


1
A vida é feita de indagações
e elas realmente existem,
por que será que tantas opiniões
nunca jamais mudam, persistem?
2
Vou devagar divagando
para não me assustar,
na vida bem a divagar
vou divagando devagar.
3
Devemos ser espertos
em tudo na vida.
Talvez um dia
cheguemos a expertos.
4
Não é situada a cita
nesta rua transversal,
a citada sempre foi sita
na avenida principal.
5
O esquilador desfia
as ovelhinhas mais leves,
o esquiador desafia
aquelas branquinhas neves.
6
Muitas vezes não sei
se estou certo,
mas certamente
certo estou
em querer saber
se mesmo estou.
7
São múltiplas parcerias
nas nossas miles de faces,
ou acaso pensarias
que és uno quando nasces?
8
Serão nuvens nas alturas
ou são avezinhas do céu,
aquelas imagens-esculturas
sem mácula ou labéu?
9
Na floresta, meu ir e vir
ouvindo o som da cascata.
Mais ver ou mais ouvir?
Gosto de sentir sua cantata.
10
Não tenho visto as ilhas
nestas névoas hibernais,
ainda existem os tais
abrigos de velhas quilhas?
11
O solilóquio das águas
é algo demais aprazível,
será que falam de mágoas
deste mundo tão terrível?
12
Despojados, sim, sejamos,
sejamos mui despojados,
se algum dia nos vamos,
por que viver tão anojados?
13
Daquelas noites sombrias
com friozinho a espantar,
voltaram, será, as invernias
nas vacarias do mar?
14
Será, onde estão indo
estas nuvens passageiras,
buscam o futuro, insistindo
como os humanos toupeiras?
15
Uma indagação do esteta:
Espelho, espelho meu,
tens visto outro mau poeta,
tão mau assim quanto eu?

Fonte:
Versos enviados pelo poeta.

Vinicius de Moraes (Arte e síntese)


Arte não é só "fazer": é também esperar. Quando o veio seca, nada melhor para o artista que oferecer a face aos ventos, e viver, pois só da vida lhe poderão advir novos motivos para criar. Nada pode resultar mais esterilizante que o encontro de uma síntese, se ela não for, como na vida, a consequência de uma análise que se retoma a partir dela. Encontrar uma fórmula é, sem dúvida, uma forma de realização; mas comprazer-se nela e ficar a aplicá-la indefinidamente, porque agradou, ou compensou, constitui a meu ver uma falta de caráter artístico. Como nas ciências positivas, o encontro de uma síntese deve ser o ponto de partida para a busca de outra, e assim por diante, até o encontro dessa grande e única verdadeira síntese que é a morte. E nesse particular eu considero Picasso o maior artista dos nossos tempos.

Picasso é como o câncer às avessas. Sua arte múltipla e prolífica representa uma tremenda afirmação de vida, pois o grande andaluz reformula-se constantemente, até quando varia sobre o mesmo tema. O quadro é para ele como um abismo onde se lança de cabeça, e que uma vez possuído, repele-o fora, como uma mulher violentada. Porque Picasso é dos poucos artistas de qualquer época a quem o abismo teme. O abismo teme esse louco saltimbanco que se atira no vácuo da tela sem saber se vai voltar - e volta sempre. De quantos mais, no nosso século, se pode dizer o mesmo?

Arte é afirmação de vida, em que pese isto aos mórbidos. Afirmação de vida nesse sentido que a vida é a soma de todas as suas grandezas e podridões: um profundo silo onde se misturam alimentos e excrementos, e do qual o artista extrai a sua ração diária de energias, sonhos e perplexidades: a sua vitalidade inconsciente. Tome-se Villa-Lobos, por exemplo. Villa-Lobos é um caudal que se precipita arrastando tudo o que encontra em seu caminho, troncos floridos e paus pobres, ninfeias e cadáveres; e, uma vez represado, harmoniza os elementos antagônicos dessa rica contextura em música, seja da maior tranquilidade, seja do maior tormento - pois tudo faz parte da vida. Como admirar, assim, o artista que se recusa a comer dessa mistura, que desinfeta as mãos para tocá-la, que vive a tomar leite para não se envenenar com suas tintas?

A arte não ama os covardes: e essa afirmação não pode ser mais antifascista. A arte, há que domá-la como a um miúra: e para tanto é preciso viver sem medo. Não a coragem idiota dos que se arriscam desnecessariamente, em franco desrespeito a esse terrível postulado da vida, que ordena uma preservação constante, de maneira a se estar sempre apto para os seus grandes momentos. Esse foi, a meu ver, o pecado maior de Hemingway, e a loucura maior de Rimbaud, que resultou, num, numa morte simulada, temporã, que se antecipou à grande síntese; no outro, numa evasão total, numa recusa pânica a ver o fundo do abismo. Isto sem prejuízo da arte, que ambos exerceram, cada um a seu modo, com gênio e responsabilidade; mas não o gênio e a responsabilidade de um Tolstoi ou de um Picasso. E aí é que está a questão.

É evidente que nenhum prazer poderá jamais substituir uma relação sexual de amor. E é isso o que irrita em certos artistas: eles acabam por se satisfazer solitariamente. Não são capazes, depois de encontrar a síntese, de jogá-la aos peixes, como faz Picasso diariamente, e sair para outra - e não por insatisfação pura e simples: porque sabe intuitivamente que quem acha vive se perdendo, como filosofou Noel Rosa. O negócio é a busca. Aí que a vida incute.

Eu conheço artistas que não se dão mais sequer o trabalho de mergulhar no que fazem, no ato de criar. Trabalham mecanicamente, a partir de um metier adquirido, e elaboram sua obra dentro de esquemas predeterminados por uma síntese atingida. E ficam jogando boxe com a sombra, justificando-se de sua impotência criadora com a auto-satisfação do próprio virtuosismo; aparentemente vaidoso de sua rigidez temática, mas no fundo sabendo que se encontram diante desse fatal impasse em que esbarram sempre os que se recusam às fontes mais generosas da vida e da criação.

Há amigos de Picasso, e a um eu conheci, que o acusam de avarento. Mas certamente não com sua vida e sua arte. Já ouvi toda sorte de histórias a seu respeito: de que guarda a fortuna em casa, dentro de uma arca, e fica a contar e recontar moedas como um usurário de teatro. Histórias absurdas, evidentemente, para quem não deve ter a menor noção do valor do dinheiro; cujos guardanapos e toalhas, que ficava riscando à toa, eram disputados a tapa pelos garçons dos restaurantes onde comia em Cannes. Mas fosse isso verdade - esse horrível pecado que é a avareza - e não seria uma ínfima anomalia neurótica, desculpável, portanto, num homem que criou a maior obra de arte do seu século? Quem fez mais que ele, que revolucionou toda a estética da arte contemporânea e se colocou, chegando o momento, do único lado certo - aquele contra os inimigos do homem e da cultura? Hoje, beirando os noventa, o velho minotauro, ainda sadio, ainda pintando, pode dizer: "Criei um mundo!" E não, bem certo, porque tivesse sido avaro com sua vida. Fecundou mulheres, teve filhos, fez amigos e discípulos por toda parte. Prodigalizou seu sêmen. Foi um homem.

Fonte:
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 31/12/1969

Nilto Maciel (A Tragestória de Getúlio)


O bigodão do gordo se mexeu, quando pedi a primeira dose. Ao beber, percebi que ele desconfiava de mim. Seus olhos pareciam lâminas a cortar meus lábios. No entanto, eu precisava beber. Engolir o veneno, o fel. Minhas vísceras, frágeis vertentes por onde desaguavam metais derretidos. Não quis cuspir ao pé do balcão e corri para a porta. Cuspi sobre o lombo do cachorro que lambia o traseiro de outro. Tentei acender, apressado, um cigarro. Uma baforada de ar frio entrou pelas narinas, pela garganta, pelos olhos. Voltei e pedi mais bebida. E mais, mais, mais.

– Acertei.

Ai! Estou caindo. Ai ai ai. Preciso me agarrar a esta parede lisa azul. O chão me arrasta, como correnteza. Tudo está caindo. Esta luz amarela parece o sol do meio-dia. Dói, feito areia nos olhos.

– Matei o safado.

Uma mesa? Um baú? Que cauda é esta crescendo e brilhando? Um animal estranho? Os livros estão dançando. Tela sem imagem. E aquela criança de orelhas enormes? Sofás de tantas cores! Devem ser macios demais para o sono de quem chega muito cansado.

– Meu Deus! Que fizeste, Rodolfo?!

A mulher grita, como se visse o diabo. Treme, chora. Agarra-se às costas do gordo corado alto que fala, gesticula e aponta o cano para a minha boca.

– Deve ter morrido.

Eles me pegaram, me bateram por muito tempo e me quebraram os dentes. Nunca fui a dentista. Os dentes apodreceram cedo e foram caindo, aos poucos. Como o avião que afundou na lagoa. Morreram todos e o povo fez festa. Eu não votei porque não pude. Não tinha documentos. Tirei a carteira de trabalho e saí à procura de emprego. Arranjei, mas nem precisava de carteira.

– Está vivo ainda.

Eles pensavam que eu já tivesse morrido. Bebi muito e dormi à porta do bar. Acordei só de cuecas. Rapazes dançavam, abraçados e sem camisa. Entrei na folia. Viva o Flamengo! Roubei uma camisa de listras pretas e vermelhas e fui embora.

– Estou querendo acabar de matar esse bicho.

O galo sangrava e não percebia as penas ensopadas do próprio sangue. Tive pena, mas sentia muita fome. Então decepei o pescoço ensanguentado com uma faca cega. Arranjei farinha com Seu João e assei o bicho.

– Chame a polícia, enquanto eu vigio.

Quando chegou, já era tarde. O criminoso já havia fugido e o pobre do Bira estava mortinho da silva. E bebemos mais ainda. Até a hora do enterro.

– Chame logo.

Não chamei. Ela não era minha mãe. Levei outra surra e fiquei todo ferido. O corpo doído, como se tivesse sido pisado por um elefante. Ah se eu fosse Tarzan! Saía pulando de galho em galho. Como a Chita. Tão inteligente! Já terá morrido?

– Ele já morreu?

Não sei. Fugi de casa no outro dia. Nunca mais ouvi falar dele. Deve ter morrido bêbado. Ou ainda deve estar no barraco com aquela égua e os meninos. Coitada de Lucinha! Naquele cabaré, bebendo, apanhando, passando fome. Dá até vontade de chorar ou morrer.

– Ouviu a sirene?

Madalena, se fosse mulher. Mas como é homem, será Getúlio. Que nome mais feio! Ora, o nome de um homem como esse não pode nunca ser feio. Estou prestando uma homenagem.

– Abra a porta.

O sol entra em meus olhos. Fechem a porta, não deixem essa bola de fogo invadir a casa.

– Ainda bem.

O mundo é quente e ruim. Como seria bom estar guardado em mamãe.

– Onde está o ladrão?

É um menino. Deus te dê muita saúde e felicidade.

A mãe está morrendo, doutor. Depressa, depressa!

– Parece que já morreu, Seu Delegado.

Fonte:
Nilto Maciel. Tempos de Mula Preta, contos. Secretaria da Cultura do Ceará: 1981.

terça-feira, 24 de dezembro de 2019

Varal de Trovas n. 144


Carolina Ramos (Não Acredito!...)


Germano não perdia a pose, nem quando as circunstâncias tudo faziam para baixar-lhe a crista! Numa dessas, invadiu a casa do amigo, tarde de sábado, sem avisar e sem pedir licença.

— Oi, Rui, preciso, com urgência de uns ''cobres" e sei que posso contar com tua a amizade de sempre.

Constrangido, o dono da casa invadida, esboçou uma tentativa de defesa — Olha, cara, as coisas, também, não andam nada bem para o meu lado, mas...

Bastou aquele mas... reticente. Brecha perfeita por onde se infiltrou a nova investida do amigo:     
— Aguenta aí, Rui! Não é nada demais... falta tão pouco... uns quinze mangos devem bastar. Só quinze, cara... Isto não faz falta a ninguém! Tá bom?! — Germano continuou, convincente:

— Sabe como é, Rui, casei, e, não demorou muito, começaram as confusões de sempre... a velha questão nora-e-sogra, sabe como é… E agora, minha mulher decidiu que não quer saber de morar com minha mãe! De jeito nenhum! E a coisa entre as duas tá pegando feio! Não tive outro jeito! Pra não tomar partido, tive de comprar, às pressas, um apê minúsculo, dois quartos, sala e cozinha. Um ninho!… E ainda estou pagando o consórcio do Gol… sabe como é, Rui… e, o pior é que o apê tem que ser mobiliado... e mobília custa um bocado!...

Germano ignorou a perplexidade do amigo e, foi em frente. Esfregando polegar e indicador de modo significativo, levantou as sobrancelhas, no aguardo da definição. Ante o mutismo do amigo voltou a insistir, incisivo: — Então, Rui, posso contar com os quinze "mangos"? Devolvo logo, logo... Logo que puder. Pago até juros... se você quiser!

Rui engoliu em seco. Não lhe passaram em branco as reticências, antecedentes àquele "Logo que puder", vinculadas à promessa de reembolso. Na cabeça preocupada, sucediam-se cálculos apressados. Cortes hipotéticos de despesas menos urgentes, na esperança de não ter de chegar àquelas pequenas aplicações das sobras suadas, pingadas dos apertos de cada dia, o que, de antemão, sabia inevitável. Sangrar as anêmicas economias e, mais uma vez, adiar sonhos, sempre adiados, seria a única solução mais próxima e viável de não falhar com o amigo.

Foi assim, que, a compra do carro, (tão útil!) mais uma vez, foi parar no fim da pauta. A viagem, da segunda lua-de-mel, acalentada com carinho pelo casal, para compensar a primeira, que nunca acontecera, viu-se postergada para quando... só Deus poderia saber!

As férias da filha... Não! As férias da filha, não! Estas eram sagradas! Intocáveis! Prêmio pelas boas notas no colégio! A filha cumprira a sua parte! A dele, seria cumprida também! Dente por dente!

E, aí, lembrou-se do dentista. Bem... o dentista poderia esperar mais um pouco... não tinha dente doendo... e não iniciara ainda o tratamento...

Enfim... sem aqueles chorados quinze mil, nada, poderia ser completado! O próprio orçamento da família, planejado com minúcias, seria insuficiente, mas... não havia escolha. Germano não desistia e, a dívida seria quitada a curto prazo, como ele afirmara.

O sopro ameno da amizade já apagara da memória de Rui as inquietantes reticências da frase do amigo.

– Tá bom, Gê, tá bom. Amanhã cedo, passo pelo banco. Tenho umas economiazinhas e vou tentar uma ajeitada para descolar tua grana. Volta amanhã à noite.

Mãos cerradas, soco afetivo das falanges... e o costumeiro ritual entre amigos selou a despedida, seguida de cordial abraço.

O tempo correu célere, dia após dia... mês após mês. O fim do ano chegou com roupagens natalinas e lista de compras inadiáveis. A promessa de ressarcimento da dívida permanecia esquecida, como bola furada, largada num canto da memória preguiçosa de Germano. Nem mesmo o cartão de Boas Festas, enviado pelo amigo, para fazer-se lembrado, mereceu resposta.

O orçamento familiar, de Rui ressentia-se. E ainda diziam não haver inflação! O amigo, nem aí! Ausente do mapa e das responsabilidades assumidas!

Mas, o pior ainda estava para vir. Chegou, intempestivamente, pela mão de um Oficial de Justiça. Rui revirava, nas mãos indignadas, a Intimação recebida em virtude das promissórias não quitadas pelo "amigo" e por ele, otário, endossadas, em confiança, por ocasião da compra do malfadado apartamento! A ação movida contra o fiador batia-lhe à porta.

Rui desesperou-se! A incômoda situação clamava por um ponto final. Decidido, sem aviso e sem pedir licença, pouco depois, acionava com vigor a campainha do apartamento de Germano, que, sem esconder a irritação, o atendeu pelo interfone, reagindo com veemência à cobrança:

— Ora, meu caro, então é assim?! Eu lhe disse. Rui, que o reembolsaria quando pudesse... e ainda não posso! E logo você, meu padrinho de casamento, vem à minha porta, as vésperas do Natal, bancar o cobrador, de cara fechada, pedindo de volta o dinheiro que me emprestou numa boa?! Ora, vejam só! E ainda tem coragem de me pedir ajuda para safar-se da justiça! Não acredito!! Juro que não acredito!!!

Perplexo, Rui congelou! Nem abriu a boca para responder! E... responder o que?!!

— O final da história fica por conta do leitor! Eu paro por aqui.

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.

Luiz Gonzaga da Silva (Trova e Cidadania) 8 - Guerra e (Paz?)


Na antinomia entre guerra e paz parece que o primeiro termo sobreleva-se extraordinariamente! Infelizmente! O mundo nunca teve um dia de paz, A história da humanidade é a história das guerras. Não conheço nenhum livro dedicado à paz, mas inúmeros dedicados à guerra. Talvez porque a paz seja um estado natural, normal, enquanto a guerra é um fato provocada pela estupidez do homem. Apesar disso, a paz é um ideal a ser buscado, mesmo que ela se nos apresente como uma utopia!

Sem os horrores da guerra,
feliz o mundo seria.
É pena que Paz na Terra
ainda seja utopia.
João Costa - RJ

Trovadores - renitentes -
tenhamos este ideal:
- Fazer das trovas sementes
para a Paz universal!
Alberto Fernando Bastos - RJ

O que eu mais quero na vida
é a paz remando na Terra,
mas não a paz confundida
com mera ausência de guerra...
Newton Vieira - MG

O bom senso é que lhes faz
o apelo nobre e profundo;
- Um beijo branco de paz
na face rubra do mundo!
Batista Soares - CE

A paz que tanto se exorta
há de encontrar o seu clima;
o mundo já não comporta
novas versões de Híroshima!
José Ouverney - SP

Que nenhum povo se agrida,
que a paz não mude de nome,
e o canto de amor à vida
supere as guerras e a fome!
José Ouverney - SP

Num tempo em que tanta guerra
enche o mundo de terror,
benditos os que, na Terra,
semeiam versos de amor!
Antônio Augusto de Assis - PR

No passado e no presente,
pelo mai que sempre fez,
é a guerra - infinitamente -
a suprema insensatez!
Waldir Neves - RJ

Por trás das guerras estão quase sempre os interesses econômicos, principalmente o dos interessados em vender armas. A indústria de armamento é um dos setores mais poderosos e ricos do mundo, graças à miséria das guerras, espontâneas ou incentivadas.

Se os povos querem que a paz
reine sempre em toda a terra,
por que é que cada vez mais
fabricam armas de guerra?
Roosevelt da Silveira - ES

Do púlpito, a paz que pregam
é simplesmente verniz,
pois seus ensinos renegam
abençoando os fuzis.
Pedro Ornelas - SP

Faz vergonha nesta terra
ver gente brigar por óleo
e nações fazerem guerra
por um barril de petróleo.
Rodrigues Neto - RN

O que mais nefasto existe,
em qualquer parte da Terra,
é o quadro horrível e triste
da violência da guerra.
Reinaldo Moreira de Aguiar - RN

Sinto que a vida na terra,
com a guerra se desfaz!
Só se faz arma de guerra,
com a terra pedindo paz!
Prof. Garcia - RN

Por razões, às vezes fúteis,
corre o sangue numa guerra.
Eis as sangrias inúteis
que envergonham nossa terra.
Miguel Russowsky - SC

Algumas vezes tem-se o cinismo de fazer guerra em nome da paz, fato que devemos denunciar com veemência.

Um grito de pacifismo
há de ecoar sobre a terra,
denunciando o cinismo
de quem, pela paz, faz guerra!
Gonzaga da Silva - RN

Esta violência me aterra,
este cinismo é demais:
- Dizer-se que se faz guerra
em benefício da Paz!
Luiz Rabelo - RN

Quem meditar por instantes
certos conceitos refaz:
o mais caro dos brilhantes
não vale o brilho da paz!
Ederson Cardoso de Lima - RJ

Os homens maus desta terra
de forma vil e falaz,
promovem, no mundo, a guerra,
em nome da própria paz!
Ademar Macedo - RN

Irônica hipocrisia
dos poderosos da terra:
com promessas de harmonia
pregam paz e fazem guerra.
Wanda de Paula Mourthé - MG

A triste realidade é que a guerra segue assolando a humanidade. O trovador a denuncia, mas quando será ouvida a sua voz?

Nesta mensagem se encerra
o que o mundo sempre faz:
- acata as ordens da guerra,
nega as mensagens de paz.
Luiz Carlos Abrita - MG

É o desvario do mundo
de alguns Senhores da Terra…
que implanta, de quando em quando,
os desvarios da guerra!
João Freire Filho - RJ

Quando há morte programada
pelos quadrantes da terra,
homens que não valem nada
sentem paz plantando guerra.
Nilton Manoel Teixeira - SP

Com ódio, o homem na Terra,
a tudo faz e desfaz…
Que bom, se ao invés de guerra,
pensasse apenas na Paz!
Nilci da Silva Guimarães - MG

Vive o mundo em que vivemos
gemendo, pedindo paz,
mas a resposta que temos
mais sofrimento nos traz.
Angélica Villela Santos - SP

O mundo está mergulhado
num cauda! de violência,
oprimido, fustigado,
pelo furor das potências.
Aristeu Bulhões - SP

A paz seria o roteiro,
o caminho natural
para unir o mundo inteiro
num abraço universal!
Aristeu Bulhões - SP

Infelizmente, a paz tão desejada ainda permanece uma utopia. Só nos resta continuarmos a lutar por ela, com os recursos de que dispomos, a nossa sensibilidade de poeta. O nosso anseio pela paz é tão intenso e legítimo que muitas vezes ela se transforma em sonho e fantasia.

A Paz - bandeira alvadia
que pelo espaço se embala,
tanta guerra concilia
que a violência se cala.
Sebastião Soares - RN

Vou brincar com pirilampos
e beijar as flores nuas
pra ver se encontro nos campos
a paz que fugiu das ruas!
José Lucas de Barros - RN

Minha luta se agiganta,
pois vivo pregando a paz,
cantando-a por quem não canta,
fazendo-a por quem não faz.
Rodrigues Neto - RN

A paz, virtude fugaz,
que todos querem buscá-la,
só com atitude audaz
poderemos alcançá-la!
Gonzaga da Silva - RN

Mas a guerra, além da devastação e do sofrimento em geral, tem um triste e mais doloroso aspecto, o das famílias que veem seus filhos partirem para a guerra e são mortos nas batalhas.

Beija a mãe, filho querido
convocado para a guerra!
Não há um adeus mais doído
em toda a face da terra!...
Hélio Azevedo de Castro - PR

Morreu na guerra. Que brilho!
Tem mais um herói a história.
E a mãe, chorando o seu filho,
amaldiçoa essa glória.
Lilinha Fernandes - RJ

Da guerra, entre os seus horrores,
não há glória que compense,
para os Pracinhas, as dores
de quem perde ou de quem vence!...
Hermoclydes Siqueira Franco - RJ

E finalmente, nunca é demais enfatizar:

Pela guerra não há glória:
- Perder, vencer, tanto faz!
- A verdadeira vitória,
só se alcança pela paz!
Orlando Woczikosky - PR


Fonte:
Luiz Gonzaga da Silva (org.). Trova e Cidadania. Natal/RN, abril de 2019.

Aluísio de Azevedo (O Impenitente)


Conto-vos o caso como me contaram.

Frei Álvaro era um bom homem e um mau frade. Capaz de todas as virtudes e de todos os atos de devoção, não tinha, todavia, a heroica ciência domar os impulsos de seu voluptuoso temperamento de mestiço e, a despeito dos constantes protestos que fazia para não pecar, pecava sempre. Como extremo recurso, condenara-se, nos últimos tempos, a não arredar pé do convento. À noite fechava-se na cela, procurando penitenciar-se dos passados desvarios; mas, só reprimir o irresistível desejo de recomeçá-los, era já o maior dos sacrifícios que ele podia impor à sua carne rebelde.

Chorava.

Chorava ardendo de remorsos por não poder levar de vencida os inimigos da sua alma envergonhada; chorava por não ter forças para fazer calar os endemoniados hóspedes do seu corpo, que, dia e noite, lhe amotinavam o sangue. Quanto mais violentamente procurava combate-los, tanto mais viva lhe acometia o espírito a incendiária memória dos seus amores pecaminosos.

E no palpitante cordão de mulheres que, em vertigem, lhe perpassavam cantando diante dos desejos torturados, era Leonília, com seus formosos cabelos pretos, a de imagem mais nítida, mais persistente e mais perturbadora.

Em que dia a vira pela primeira vez e como se fizera amar por ela, não o sei, porque esses monásticos amores só chegam a ser percebidos pelos leigos como eu, quando o fogo já minou de todo e abriu em labareda a lançar fumo até cá fora. À primeira faísca e às primeiras brasas, nunca ninguém, que eu saiba, os pressentiu nem deles suspeitou.

Certo é que, durante belos anos, Frei Álvaro, meia-noite dada, fugia aos muros do seu convento, e, escolhendo escuras ruas, cosendo-se à própria sombra, ia pedir à alcova de Leonília o que não lhe podia dar a solidão da cela.

Pertenceria só ao frade a bela moça? Não o creio.

E ele? seria só dela? Também não, pois reza a lenda donde me vem o caso que, em vários outros pontos da cidade Frei Álvaro era igualmente visto fora de horas, embuçado e suspeito, correndo sem dúvida em busca de profanas consolações daquele mesmo gênero.

Mas, no martírio da reclusão a que por último se votara, era seguro a lembrança de Leonília o seu maior tormento. E assim, aconteceu que, certa noite, à força de pensar nela, foi tal o seu desassossego de corpo e alma, que o frade não pôde rezar, nem pôde dormir, nem pôde ler, nem pôde fazer nada. Com os olhos fechados ou abertos, tinha-a defronte deles, linda de amor, a enlouquecê-lo de saudade e de desejo.

Então, desistindo da cama e dos livros, pôs-se à janela, muito triste, e ficou longo tempo a consultar a noite silenciosa. Lá fora a lua, inda mais triste, iluminava a cidade adormecida e no alto as estrelas pareciam que pestanejavam de tédio. Nada lhe mandava um ar de consolação para aquela infindável tortura de desejar o proibido.

De repente, porém, estremeceu, sem poder acreditar no que viam seus olhos.

Seria verdade ou seria ilusão dos seus atormentados desejos?... La embaixo, no pátio, dentro dos muros do convento, um vulto de mulher passeava sobre o lajedo.

Não podia haver dúvida!... Era uma mulher, uma mulher toda de branco, com a cabeça nua e os longos cabelos negros derramados.

Céus ! E era Leonília!... sim, sim, era ela, nem podiam ser de outra mulher aqueles cabelos tão formosos aquele airoso menear de corpo! Sim! era ela... Mas, como entrara ali?... Como se animara a tanto?

E o frade, sem mais ter mão em si, correu a tomar o chapéu e a capa e lançou-se como um doido para fora da cela.

Atravessou fremente os longos corredores, desgalgou escadaria de pedra e ganhou o pátio.

Mas o vulto já lá não estava.

O monge procurou-o, aflito, por todos os cantos. Não o encontrou.

Correu ao parapeito que dava do alto para a rua, sobre o qual se debruçou ansioso e, com assombro, desde novo o misterioso vulto, agora, lá fora, a passear embaixo, à luz do lampião de gás.

Já impressionado de todo, Frei Álvaro desceu de um relance as escadas do átrio, escalou as grades do mosteiro e saltou à rua.

O vulto já não se achava no mesmo ponto; tinha-se afastado para mais longe. Frei Álvaro atirou-se para lá em disparada, mas o vulto deitou a correr, fugindo na frente dele.

- Leonília ! Leonília! Espera! Não me fujas!

O vulto corria sempre, sem responder.

- Olha que sou eu! Atende!

Leonília parou um instante, voltou o rosto para trás, sorriu e fugiu de novo quando o monge se aproximava.

Afinal, já não corria, deslizava, como se fora levada pelas frescas virações da noite velha, que lhe desfraldavam as saias e os cabelos flutuantes.

E o monge a persegui-la, ardendo por alcançá-la.

- Atende! Atende, flor de minha alma! - suplicava já com a voz quebrada pelo cansaço. - Atende, pelo amor de Deus, que deste modo me matas, criminosa!

Ela, ao escutar-lhe as sentidas vozes, parecia atender, suspendendo o voo, não por comovida, mas por feminil negaça, a rir, provocadora, braços no ar e o calcanhar suspenso, pronta, mal o frade se chegasse, a desferir nova carreira.

E assim venceram ambos ruas e becos, quebrando esquinas, cortando largos e praças. O frade já tinha perdido a noção do tempo e do lugar e estava prestes a cair exausto quando, vendo a moça tomar certa ladeira muito conhecida deles dois, criou novo ânimo e prosseguiu na empresa, sem afrouxar o passo.

- Vai recolher-se a casa! - concluiu de si para si. Não me quis falar na rua... Ainda bem!

Leonília, com efeito, ao chegar à porta da casa onde outrora o religioso fruía as consolações que o seu mosteiro lhe negava, enfiou por ela e sumiu-se sem ruído.

O frade acompanhou-a de carreira, mas já não a viu no corredor e foi galgando a escada. Encontrou em cima a porta aberta, mas a sala tenebrosa e solitária. Penetrou nela, tateando, e seguiu adiante, sem topar nenhum móvel pelo caminho.

- Leonília! chamou ele.

Ninguém lhe respondeu.

O quarto imediato estava também franqueado, também deserto e vazio, mas não tão escuro, graças à luz que vinha da sala do fundo. O religioso não hesitou em precipitar-se para esta; mas, ao chegar à entrada, estacou, soltando um grito de terror.

Gelara-lhe o sangue o que se lhe ofereceu aos olhos. Eriçaram-se-lhe os cabelos; invencível tremor apoderou-se do seu corpo inteiro.

A sala de jantar onde, tantas vezes feliz, ceara a sós com Leonília, estava transformada em câmara mortuária, toda funebremente paramentada de cortinas de veludo negro, que pendiam do teto, consteladas de lantejoulas e guarnecidas de caveiras de prata. Só faltava o altar. No centro, sobre uma grande mesa, também negra e enfeitada de galões dourados, havia um caixão de defunto. Dentro do caixão um cadáver todo de branco, cabelos soltos. Em volta, círios ardiam, altos, em solenes tocheiros, cuspindo a cera quente e o fumo cor de crepe.

O monge, lívido e trêmulo, aproximara-se do catafalco*. Olhou para dentro do caixão e recuou aterrado.

Reconheceu o cadáver. Era da própria mulher que, pouco antes, o fora buscar ao convento e o viera arrastando até aí pelas ruas da cidade.

Sem ânimo de formular um pensamento, o frade deixou-se cair de joelhos sobre o negro tapete do chão e, arrancando do seio o seu crucifixo, abraçou-se com ele começou a rezar fervorosamente.

Rezou muito, de cabeça baixa, o rosto afogado em rimas. Depois ergueu-se, foi ter à essa, pôs-se nas pontas pés para poder alcançar com os lábios o rosto do cadáver e pousou nas faces enregeladas um extremo beijo amor.

Em seguida, olhou em derredor de si, desconfiado e tímido e, como não houvesse na sala uma só imagem sagrada em companhia da morta, desprendeu do pescoço o crucifixo e foi piedosamente dependurá-lo na parede, à cabeceira dela.

Mas, nesse mesmo instante, as tochas apagaram-se de súbito e fez-se completa escuridão em torno do impenitente. Foi às apalpadelas que ele conseguiu chegar até à porta de saída e ganhar a rua.

Lá fora, a noite se tinha feito também negra e os ventos se tinham desencadeado em fúria, ameaçando tempestade. O monge deitou a fugir para o mosteiro, sem ânimo de voltar o rosto para trás, como temeroso de que Leonília por sua vez o perseguisse agora até ao domicílio.

Quando alcançou a cela, tiritava de febre.

Acharam-no pela manhã, sem sentido, defronte do seu oratório, joelhos em terra, braços pendidos, cabeça de borco sobre um degrau do altar.

Só muitos dias depois, um dia de sol, conseguiu sair à rua, ainda pálido e desfeito. Seu primeiro cuidado foi correr aonde morava Leonília e rondar a casa em que a vira morta.

Encontrou-a fechada e com letreiro anunciando o aluguel.

- Está vazia, depois que nela morreu o último inquilino - explicou um vizinho.

- Há muitos dias? - quis saber o frade, e estremeceu quando ouviu dizer que havia uns oito ou dez.

- E o morador, quem era? - perguntou ainda.

- Era uma mulher. Chamava-se Leonília. Morreu de repente.

- Ah!

- Se quer alugar a casa, encontra a chave ali na esquina...

Frei Álvaro agradeceu, despediu-se do informante, foi buscar a chave, abriu a porta, entrou e percorreu toda a casa.

Só ele, além de Deus, soube a impressão que sentiu ao contemplar aquelas salas e aqueles quartos.

- Estranho caso! - disse consigo, sem ânimo de olhar de rosto para o temeroso abismo da dúvida. - Fui vítima de uma alucinação que coincidiu com a morte desta querida cúmplice dos meus pecados de amor...

E, enxugando os olhos, ia retirar-se, conformado com a dupla dor da saudade e do remorso, quando, ao passar rente de certa parede, estremeceu de novo.

Tinha dado com os olhos no seu crucifixo, do qual já nem se lembrava. Permanecia pendurado no mesmo ponto em que o monge o deixara na terrível noite.
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Glossário:
Catafalco - estrado alto sobre o qual se coloca o ataúde ou a representação de um morto a quem se deseja prestar honras.

Fonte:
Domínio Público

segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Varal de Trovas n. 143


Isabel Furini (Mini-Contos)


ARTE

Enlouqueceu depois de muitas exposições sem êxito. Seu trabalho não repercutia na mídia. Abandonou a casa. Começou a morar na rua. Continuou pintando compulsivamente. Era alto, elegante e belo. Meu irmão e eu o observamos enquanto comia. Não parecia um indigente. Tinha a postura de um príncipe. No Natal pintou barcos carregados de presentes nos muros de uma fábrica. Os adultos nem paravam para olhar, mas meu irmão, eu e outras crianças do bairro de operários, admirados, aplaudíamos o artista louco.
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JUSTIÇA

– Deus abrirá as portas do Céu para eles? – perguntavam-se os Anjos enquanto pesavam os corações de dois homens.

Para o ateu compassivo, de coração bondoso, Deus abriu as portas do Céu. Fechou-a para o fanático religioso, que, cheio de arrogância e sem compaixão,  julgava-se superior ao ateu e o condenava.

“Ele prosseguiu: Atendei ao que ouvis: com a medida com que medirdes, vos medirão a vós, e ainda se vos acrescentará”. Marcos, 4-24.
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O CACHORRO DE MINHA AMIGA

- Os cachorros merecem respeito - falou minha amiga. E  é verdade. Mas, e os humanos?

Há alguns anos Irene me convidou para almoçar. Entrei na casa e o cachorro - enorme -  começou a latir. Minha amiga me aconselhou sentar-me à mesa e não me mexer, porque o cachorro era perigoso. Eu nem consegui comer porque estava com muito medo. Depois soube que não fui a única. Rosa e Betty passaram pela mesma situação. Resultado: Ninguém aceita almoçar na casa da Irene. Se ela gosta de ter o cão solto pela casa enquanto almoça com as amigas,  então que troque esse enorme cachorro por um Chihuahua.
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O CIRCO

Estava na cozinha esquentando o café do dia anterior. Sua esposa o havia deixado. Abandonara-o meses antes, quando um circo passava pela cidade. Ela aprendeu a voar junto com o trapezista. Nada tão belo quanto um salto mortal! – comentou Vera. Ele a viu voar no trapézio junto com o trapezista. Mas quando Vera o abandonou, suspeitou do palhaço.

Martim viu quando o palhaço se aproximou de sua esposa e murmurou algo no seu ouvido. Ela sorriu. Abraçou-o. Uma semana depois, o circo foi embora e sua esposa também. Tudo culpa do palhaço! Esse palhaço de sorriso falso! Era isto: ela havia fugido com um palhaço! E agora os dois iam com o circo de cidade em cidade fazendo palhaçadas.

Um ano depois o circo voltou à cidade, e ele soube o segredo que Vera havia guardado durante muitos anos. Vera engravidara quando era adolescente e havia dado seu filho a um casal de palhaços que trabalhava em um circo.
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O VESTIDO

Rosana abriu a porta do guarda-roupa e observou o vestido azul. Ela o havia usado na festa do Natal da empresa, no final dos anos 70. Foi quando conheceu Daniel, o seu grande amor. Daniel casou com a secretária. Rosana guardou o vestido como testemunha de sua juventude. Nesse momento observando o vestido azul tamanho 40, percebeu que sua roupa nova era 48.

– Não posso usar esse vestido e não posso continuar vivendo no passado – murmurou.

Decidiu doar o vestido para a filha da diarista. E se sentiu livre - como se houvesse doado toda a sua amargura.
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SURPRESA

Viajar pelos Andes sozinha! Natal maravilhoso!
 
Desci do avião em Lima, peguei um táxi até o hotel. Deixei as malas e fui conhecer a cidade. De repente, um homem vestindo um sobretudo preto. Apressei o passo, ele também.  Atravessei a rua, ele também. Nervosa, fingi olhar vitrines. Despistei-o.

Continuei caminhando. Na esquina o vi encostado numa porta. Olhou-me, colocou as mãos nas bordas do sobretudo e o abriu abruptamente. Fechei os olhos. Gritei. Ele disse: – Senhora, vendo canetas, chaveiros, brincos, pulseiras... Abri os olhos, vi objetos pendurados na parte interna do sobretudo. Um vendedor! Respirei aliviada e comprei várias pulseiras.
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VIVER

Doroteia, sempre recatada, começou a mudar. Aos cinquenta e oito anos, idade em que outras mulheres abandonam a vaidade e deixam crescer a barriga, a Doroteia, pelo contrário, começou a comprar roupas mais modernas, coloridas, alguns decotes, bijuteria. Ficou muito vaidosa. Passava horas no shopping. Queria dançar. Decidiu viajar ao Havaí no Natal para dançar hula-hula. Suas amigas acharam sua atitude estranha, criticavam-na. Mas Doroteia não desistiu. Ela fez a sua viagem, voltou com um namorado dez anos mais jovem do que ela, de cabelo grisalho, homem muito charmoso.

As amigas deixaram de criticá-la e começaram a imitar o seu comportamento. Como bem dizem os americanos, nada tem tanto êxito quanto o êxito.

Fonte:
Blog de Isabel Furini

J. G. de Araújo Jorge (Líricas) 3


LÍRICA Nº 31

Depois que te encontrei,
não basta a palavra amor -
para dizer o que sinto.

Só pedindo o silêncio de Deus
para confessar-me.

LÍRICA Nº 32
   
Depois que te foste,
sou como um cais vazio.

Faltam bandeiras, faltam apitos, faltam amarras,
falta o navio.

LÍRICA Nº 33

Livres nos encontramos,
e algo acima de nós
nos fez um do outro
e nos escravizou...

Agora, livres novamente
somos dois pássaros
que já não sabem voar
fora da gaiola...

LÍRICA Nº 34
   
Nas lembranças deste amor,
no pensamento,
surges tantas vezes
como um luar se gastando inutilmente
sobre velhas ruínas...

LÍRICA Nº 35

Nesta dor funda e persistente,
apagada e sombria
como uma brasa,
resta apenas a lembrança
de que um dia nos consumimos
em altas chamas efêmeras...

LÍRICA Nº 37

Tenho a impressão
de que até no teu pensamento
voltas o rosto à minha passagem...

Será o medo de me reconheceres,
ou a desconfiança da tua coragem?

LÍRICA Nº 41
   
Depois que tudo acabou,
penso que foi melhor não ter te conhecido
antes...

Na verdade,
antes
eu tivesse te conhecido depois...

LÍRICA Nº 42
  
Sempre que te encontro, é para sempre.
Sempre que me afasto, é para nunca.

E já que nunca mais te encontro,
é para sempre.

LÍRICA Nº 44
   
Sim, fui poeta muitas vezes...

Me lembro daqueles momentos de silêncio
em que nos encontrávamos
para falar de amor...

LÍRICA Nº 45

Havia em mim uma fonte de ignorada ternura
que ansiosa descobriste...

Estranho que a tenhas abandonado
quando tão sedenta te mostravas...

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 3. SP: Ed. Theor, 1965.

Arthur de Azevedo (Octogenário)


Ainda não houve no Rio de Janeiro "república" de estudantes mais séria que a do Coutinho, na Rua do Resende. Na vizinhança diziam todos que os moradores daquela casa pareciam, não estudantes, mas altos funcionários e chefes de família. Era uma "república" modelo.

Como não devia ser assim, se o Coutinho, filho de um rico fazendeiro de Minas, estudioso, tranquilo e morigerado (regrado), reunira naquele sobrado quatro comprovincianos (que são da mesma província) seus, de um comportamento irrepreensível, e todos filhos de gente abastada, para que nada faltasse em casa, nem houvesse credores à porta?

Um deles particularmente, o Gaspar, era tão grave, que raramente sorria, poucas vezes conversava, e parecia ter o dobro da sua idade; entretanto, era o único dos moradores daquela casa que passava as noites fora...

Nunca ninguém viu entrar ali mulheres, o que não quer dizer que os cinco rapazes fossem santos.

O Coutinho, por exemplo, gostava de uma linda espanhola da Rua do Riachuelo; mas a pequena só admitia que ele a visitasse pela manhã, pois só pela manhã estava livre: do meio-dia em diante pertencia a um velho negociante, octogenário, que lhe tomava toda a tarde e toda a noite sem lhe tomar mais nada, segundo ela dizia e o Coutinho acreditava, porque os rapazes acreditam em tudo quanto as mulheres dizem.

Ora, um dia fez anos o Leandro, o mais alegre e o mais novo dos cinco, e ofereceu aos companheiros um almoço regado por diversas bebidas, que tinham tanto de finas como de capitosas.

Beberam todos, inclusive o austero Gaspar, mas não se excederam, embora ficassem mais expansivos que de costume. Tão expansivos que vieram amores à baila, e o Leandro entrou a contar a sua aventura mais recente.

- Saibam que tenho uma amante! - disse ele.

- Também eu! - acrescentou o Coutinho.

- É espanhola!

- Também a minha.

- Mora na Rua do Riachuelo.

- A minha também! Se disseres que o nome dela é Mercedes, aposto que somos rivais!

- É efetivamente Mercedes, que ela se chama!

- O número da casa?

- Trinta.

- É a mesma! A mesmíssima!

- Que mulher fingida!

- Que desavergonhada! Ela só consente que estejamos juntos antes do meio-dia, porque dessa hora em diante pertence a um octogenário!

- A mim só me recebe à tardinha, porque à noite o octogenário lá está!

- E esse octogenário é um unhas de fome...

- Um vinagre...

- Que não lhe dá tudo quanto ela precisa...

- Pelo que é obrigada a recorrer à minha bolsa...

- E à minha!...

- Que mulher!...

- Que desavergonhada!

No calor da inopinada revelação, cortada pelas gargalhadas sonoras de dois dos companheiros, não repararam os rapazes que o Gaspar chorava convulsivamente, escondendo o rosto entre as mãos.

Os quatro, que atribuíram esse pranto ao vinho (e até certo ponto não se enganavam), correram para ele:

- Então?... Que é isso, Gaspar?... Que é isso?...

O austero estudante ergueu a cabeça e berrou, enquanto as lágrimas lhe deslizavam pelo rosto abaixo:

- O octogenário sou eu!...

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos.

domingo, 22 de dezembro de 2019

Varal de Trovas n. 142


Carlos Drummond de Andrade (O Importuno)


— Que negócio é esse? Ninguém me atende?

A muito custo, atenderam; isto é, confessaram que não podiam atender, por causa do jogo com a Bulgária.

— Mas que é que eu tenho com o jogo com a Bulgária, façam-me o favor? E os senhores por acaso foram escalados para jogar?

O chefe da seção aproximou-se, apaziguador:

— Desculpe, cavalheiro. Queira voltar na quinta-feira, 14. Quinta-feira não haverá jogo, estaremos mais tranquilos.

— Mas prometeram que meu papel ficaria pronto hoje sem falta.

— Foi um lapso do funcionário que lhe prometeu tal coisa. Ele não se lembrou da Bulgária. O Brasil lutando com a Bulgária, o senhor quer que o nosso pessoal tenha cabeça fria para informar papéis?

— Perdão, o jogo vai ser logo mais, às quinze horas. É meio-dia, e já estão torcendo?

— Ah, meu caro senhor, não critique nossos bravos companheiros, que fizeram o sacrifício de vir à repartição trabalhar quando podiam ficar em casa ou na rua, participando da emoção do povo…

— Se vieram trabalhar, por que não trabalham?

— Porque não podem, ouviu? Porque não podem. O senhor está ficando impertinente. Aliás, disse logo de saída que não tinha nada com o jogo com a Bulgária! O Brasil em guerra — porque é uma verdadeira guerra, como acentuam os jornais — nos campos da Europa, e o senhor, indiferente, alienado, perguntando por um vago papel, uma coisinha individual, insignificante, em face dos interesses da pátria!

— Muito bem! Muito bem! — funcionários batiam palmas.

— Mas, perdão, eu… eu…

— Já sei que vai se desculpar. O momento não é para dissensões. O momento é de união nacional, cérebros e corações uníssonos. Vamos, cavalheiro, não perturbe a preparação espiritual dos meus colegas, que estão analisando a Seleção Búlgara e descobrindo meios de frustrar a marcação de Pelé. O senhor acha bem o 4-2-4 ou prefere o 4-3-3?

— Bem, eu… eu…

— Compreendo que não queira opinar. É muita responsabilidade. Eu aliás não forço opinião de ninguém. Esta algazarra que o senhor está vendo resulta da ampla liberdade de opinião com que se discute a formação do selecionado. Todos querem ajudar, por isso cada um tem sua ideia própria, que não se ajusta com a ideia do outro, mas o resultado é admirável. A unidade pela diversidade. Na hora da batalha, formamos a frente única.

— Está certo, mas será que, voltando na quinta-feira, eu encontro o meu papel pronto mesmo?

— Ah, o senhor é terrível, nem numa hora dessas esquece o seu papelzinho! Eu disse quinta-feira? Sim, certamente, pois é dia de folga no campeonato. Mas espere aí, com quatro jogos na quarta-feira, e o gasto de energia que isso determina, como é que eu posso garantir o seu papel para quinta-feira? Quer saber de uma coisa? Seja razoável, meu amigo, procure colaborar, procure ser bom brasileiro, volte em agosto, na segunda quinzena de agosto é melhor, depois de comemorarmos a conquista do Tri.

— E… se não conquistarmos?

— Não diga uma besteira dessas! Sai, azar! Vá-se embora, antes que eu perca a cabeça e…

Vozes indignadas:

— Fora! Fora!

O servente sobe na cadeira e comanda o coro:

— Bra-sil! Bra-sil! Bra-sil!

Está salva a honra da torcida, e o importuno retira-se precipitadamente.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas.