sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

Monteiro Lobato (Fatia de Vida)


Não era homem querido, o doutor Bonifácio Torres. Não era querido pela ponderosa razão de pensar com sua própria cabeça. Para ser querido é força pensar como toda gente.

“Toda gente!”

Moloch social cujos mandamentos havemos de seguir de cabecinha baixa, sob pena dos mais engenhosos castigos. Um deles: incidir na pecha de esquisitice.

“É um esquisitão.”

Inútil dizer mais. O homem marcado vê-se logo posto de través e à margem, como o leproso. Torna-se um indesejável. É um suspeito. Haja meio e eliminam-no do grêmio como a um corpo estranho, de malsão convívio. Assombramo-nos ao recordar os crimes de grupo que enchem a história — Santo Ofício, guerras, matanças religiosas. Transportados à época vemos que o progredir humano não passa da consolidação das vitórias do “esquisitão” sobre “Toda gente”.

“Toda gente” não tolerava dúvidas sobre a fixidez da Terra. Vem um esquisitão e diz: A Terra move-se em redor do Sol. “Toda gente”, por intermédio de seus representantes legais, agarra o velho pelo gasnete (garganta) e força-o a retratar-se.

— Renega a heresia, infame, ou asso-te já na fogueira!

Galileu baixou a cabeça encanecida e abjurou. E a Terra, que começara a girar em torno ao Sol, teve que mudar de política e imobilizar-se por muito tempo ainda. Hoje roda livremente. O monstro deu-lhe essa liberdade...

Como se vê, apesar da guerra que “Toda gente” move aos esquisitões as ideias destes influenciam e aos poucos transformam a mentalidade do Moloch. No começo o monstro encarcera, esquarteja, empala, sufoca. Depois volta atrás, medita e murmura: “Ele tinha razão!”, e adere com a maior inocência.

“Toda gente” tem hoje a caridade como dogma infalível, e por esse motivo encarou com assombro o doutor Bonifácio quando o esquisitão sorriu a uma frase nédia (brilhante) e lisa do cônego Eusébio. O cônego Eusébio, conspícuo representante legal do Moloch, dissera no tom solene dos que monopolizam a verdade sobre o orbe:

— Não há virtude mais sublime. Só ela tem forças para resolver a questão social. Aquele movimento belíssimo durante a epidemia da gripe em São Paulo — que réplica de escachar o espírito que nega! Todos à urna, governos, matronas, meninas, associações, todos empenhados em lenir o sofrimento dos pobres, como que a derramar Deus nos corações!...

O doutor Bonifácio sorrira e o padre olhara-o de revés, com saudades, quem sabe, do bem-aventurado tempo em que sorrisos assim recebiam a réplica do fogo pio.

— Sorri-se o herege? — interpelou o padre. — Nega até a caridade?

— Não nego — respondeu mansamente o filósofo —, porque não nego nem afirmo coisa nenhuma. Negam e afirmam os atores, os que se agitam no palco da vida. Eu tenho meu lugar na plateia e, como não represento, observo. E como observo, sorrio — sorrio para não chorar...

— Seja mais claro.

— Serei. Quando o reverendo se abriu em louvores à caridade, não desfiz nessa cristianíssima virtude. Apenas me lembrei de certo drama a que assisti — e, repito, sorri para não chorar...

Depois de breve pausa de interrogativa expectação o doutor Bonifácio principiou.

— Isaura, a minha lavadeira...

As anedotas têm força de ímã. Vários curiosos aproximaram-se e ficaram a ouvir.

— Minha lavadeira, como todas as lavadeiras, era uma pobre mulher de incomparável heroísmo, desse que os épicos não cantam, o Estado não recompensa e ninguém sequer observa. Para mim, entretanto, é a forma nobre por excelência do heroísmo — a luta silenciosa contra a miséria.

— Que esquisitice!

— Porque é heroísmo ininterrupto, sem tréguas — continuou o doutor Bonifácio —, sem momento de repouso e, além disso, sem nenhuma esperança de qualquer espécie de paga.

— Vamos ao caso...

— Viúva com quatro filhos, a heroica Isaura matava-se no trabalho incessante. Aquelas mãos vermelhas e curtidas... Aqueles braços requeimados... Que máquinas! Era do movimento deles que vinha o sustento da casa. Parassem, repousassem — e a Fome, esquálida megera que ronda os bairros pobres, meter-se-ia portas adentro...

— Romantismo... “Esquálida megera”...

— No primeiro sábado da Grande Gripe, Isaura, minha pontualíssima lavadeira, não me apareceu como de costume com a sua bandeja de roupa lavada. Em lugar dela veio uma vizinha.

“— A Isaura? — perguntei-lhe.

“— Anda às voltas com os filhos. Deu lá a ‘espanhola’ e a pobre está que está numa roda-viva.

“— Hei de ir vê-la, coitada...

“— É caridade, senhor. A pobre é bem capaz de endoidecer...

“Não fui. Impediu-me a própria gripe, cujos primeiros sintomas nesse mesmo dia comecei a sentir. Passei de molho três semanas e quando me levantei, e me preparava para ir ver Isaura, eis que ela me reaparece em pessoa.

“Em que estado, porém! Envelhecera vinte anos, tinha os cabelos brancos, os olhos no fundo, o ar de uma coisa vencida pelo destino. E tossia.

“— Sente-se e conte-me tudo.

“Sentou-se e, sem derramar uma só lágrima, pois já as chorara todas, narrou-me a sua tragédia.

“Tinha em casa uma filha de dezoito anos, que trabalhava na costura; outra de dezesseis, que a ajudava na lavagem; um filho de quinze, entregador de roupa, e mais uma netinha de seis anos, órfã.

“A gripe apanhou-os a todos e a ela também. Mas a pobre criatura não soube disso, não o notou. Como perceber que estava doente se suas faculdades eram poucas para atentar nos filhos? E lá sarou de pé, sem um remédio. E como ela também sarariam os filhos todos se...”

O doutor Bonifácio voltou-se para o cônego.

— ... se a caridade não interviesse...

— Já sei onde quer bater — exclamou o cônego. — Mas cumpre notar que quando falo de caridade não me refiro à assistência pública, nem sequer à filantropia. Falo da caridade sentimento, da caridade virtude cristã — concluiu baforando o cigarro, alegre, com ar de quem cortou vazas.

O doutor Bonifácio prosseguiu:

— ... se a caridade sentimento não sobreviesse por intermédio do coração bondoso de uma vizinha. Esta vizinha, compadecida daquele angustioso transe, telefonou a um posto médico narrando o caso e pedindo assistência. A ambulância veio justamente durante a ausência da Isaura, que saíra a compras, e levou-lhe todos os filhos para o Hospital da Imigração.

“Corriam boatos apavorantes a respeito deste hospital improvisado, onde — murmuravam — só se recebiam os pobres bem pobres e o tratamento era o que devia ser, porque pobre bem pobre não é bem gente. De modo que nada apavorava tanto o povinho miúdo como ir para a Imigração.

“Assim, ao voltar da rua e saber do acontecido Isaura estarreceu. Foi como se o próprio inferno houvesse aberto as goelas e engolido os adorados doentes. Quem zelaria por eles? Sozinhas no meio de desconhecidos, de enfermeiros mercenários, que seria das pobres crianças?

“Correu para aqueles lados, inquirindo às tontas: ‘A Imigração? Onde fica a Imigração?’. ‘É por aqui.’ ‘Dobre à direita.’ ‘É lá naquela casa grande’, informavam-na pelo caminho.

“Chegou. Bateu. Esperou à porta um tempo enorme. Entravam e saíam pessoas apressadas, médicos, ajudantes, homens de avental. ‘Não é comigo’, diziam. ‘Espere. ’‘Bata outra vez.’

“Afinal, uma alma caridosa...”

— Ca-ri-do-sa — repetiu o cônego, sorrindo.

— ... uma alma caridosa apareceu e deu-lhe a informação pedida. Os filhos estavam lá, mais a netinha. A de dezesseis anos, porém, atacada de tifo.

“— Tifo?! — exclamou, alanceada (amargurada), a pobre mãe.

“A alma caridosa enterrou mais fundo o punhal:

“— Sim, tifo, e do bravo.

“A mulher já não ouvia. De olhos esbugalhados, como fora de si, repetia a esmo a palavra tremenda — ‘Tifo!’ Conhecia-o muito bem. Fora a doença malvada que lhe arrebatara o marido.

“— Quero vê-la, quero ver minha filha!...

“— Impossível!

“Isaura lutou, insistiu.

“Inútil.

“A porta fechou-se com chave e a pobre mulher se viu despejada na rua.

“Andou muito tempo à toa, como ébria, sem destino. ‘Olha a louca!’, gritavam os moleques. E parecia mesmo, se não louca, pelo menos aluada.

“Súbito Isaura resolveu-se. Havia de ver os filhos. Era mãe. ‘São meus, o mundo nada tem com eles. Eu os tive, eu os criei, só eu os quero no mundo. São tudo para mim. Como gentes estranhas me roubam assim os filhos, me impedem que eu, mãe, os veja? Nem ver, apenas ver? Oh, isso é demais.’

“Havia de vê-los.

“Galvanizada pela resolução, Isaura correu a implorar socorro de um homem influente cuja roupa lavava.

“O influente deu-lhe uma carta. ‘Vá com isto que as portas se abrem.’

“Nova corrida ao hospital. Nova espera angustiosa. Por fim a mesma alma caridosa...”

O doutor Bonifácio entreparou, olhando para o sacerdote. E, como desta vez ele silenciasse, prosseguiu:

— Por fim a alma caridosa reapareceu e disse à desolada mãe:

“— Posso ir lá dentro saber de seus filhos, mas deixá-la entrar, não!

“— E a carta?

“— Inútil. É expressamente proibido.

“— Pois dê-me notícias de meus filhos, então.

“A alma caridosa foi saber dos doentinhos e a triste mãe, embrulhada em seu xale humilde, ficou a um canto, esperando. Minutos depois reaparecia a alma caridosa.

“— Olhe, sua filha morreu.

“— Morr...

“E os olhos da miseranda mãe exorbitaram, seus dedos se crisparam...

“— Morreu!... Mas qual delas?

“— Uma delas.

“— Mas qual? Qual?...

“Já eram gritos lancinantes que lhe saíam da boca. A alma caridosa fechou a porta e sumiu-se...

“O infinito desespero de Isaura nessa noite em casa, a revolver-se na cama, a remorder o travesseiro... ‘Qual? Qual das minhas filhas morreu?...’ A dor requintava-se ante a incerteza. ‘Seria a Inesinha? Seria a Marietinha?’ E o cérebro lhe estalava na ânsia de adivinhar. ‘Qual delas, meu Deus?’

“São dores que a palavra não diz. Imagina-as a imaginação de cada um. Adiante.

“No outro dia a mulher correu de novo ao hospital. Repete-se a mesma cena — a ansiosa espera de sempre, os pedidos com lágrimas a saltarem dos olhos. O ambiente é o mesmo — de indiferença geral. Só não há indiferença na alma caridosa, que reaparece e pergunta:

“— Que quer de novo, santinha?

“— Meus filhos... saber...

“— Seus filhos? Não estão mais aqui. Foram removidos para o hospital do Isolamento, os dois.

“— Os dois?!...

“— Os dois, sim, porque a mais pequena também morreu.

“— A minha netinha morreu?!...

“— Coragem, minha velha, a vida é isto mesmo.

“E a porta fechou-se pela última vez.”

As três ou quatro pessoas reunidas em torno do doutor Bonifácio ansiavam pelo final da história. “E depois?”, era a sugestão de todos os olhos. O doutor Bonifácio prosseguiu:

— Depois? Depois a gripe declinou, a normalidade foi se restabelecendo e os dois filhos restantes voltaram à casa materna. Em que estado! O menino, semimorto, cadavérico, e a Inês (só ao vê-la chegar soube Isaura qual das duas morrera) e a Inês com uma tosse de tuberculosa. E ali ficaram, destroços de horrível naufrágio, aqueles três miseráveis molambos de vida, sob a assistência da negra enfermeira — a Fome. Continuaram a viver, sem saber como, por instinto — num desvario, numa alucinação...

“Da última vez que vi a pobre Isaura, disse-me ela, entre dois acessos de tosse:

“— Tudo porque me levaram de casa os filhos. Se ficassem nada lhes teria acontecido. A nossa vizinha, tão boa, coitada, quis fazer o bem e fez a nossa desgraça. É um perigo ser muito bom...”

O doutor Bonifácio calou-se. O cônego não achou que fosse caso de comentar. A roda dissolveu-se em silêncio.

Fonte:
Monteiro Lobato. O Macaco que se fez Homem.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

Varal de Trovas n. 151


A. A. de Assis (O Avô Desforrado)


Pitotiko afinal cresceu, como havia prometido. “Vou crescer, te juro, e quando for grande te acerto, te mando pros confins”. A promessa se deu quando ele viu o avô surrado de chicote por Zé Baitão, doze anos antes, o avô miúdo, curvo ao peso de mais de oitenta verões. Baitão cercou eles no caminho, no alto da serra, lhes roubou a égua e a carga, e sádico bateu no velho. O menino jurou crescer. Agora voltou parrudo.

A perguntar cadê Baitão correu os sítios das redondezas. O valente andava por lá, todos sabiam e tremiam, ninguém queria dizer onde, medo de que no confronto Pitotiko levasse a pior. Melhor jamais se encontrarem.

O menino outrora franzino estava homem feito, peito desenvolvido, olhos firmes, panca de bom brigador. Mas a fama de Zé Baitão assustava, o desalmado era infalível na mira, ligeiro na faca, aqueles braços enormes, pernas rápidas. Pegando Pitotiko, acabava com ele no primeiro golpe. Cabrito enfrentando touro brabo.

Se espalhou a notícia, Baitão ficou sabendo e se riu. Queria brincar com o garoto, dar-lhe uma lição. Não tinha batido nele quando bateu no velho porque o pequeno deu no pé. Era tempo agora de completar o serviço. “Vou tirar a roupa desse fedelho e pendurar ele num pé de pau pra todo mundo ver”. Falou isso em cada venda, zombeteiro.

A gente de juízo tentou tirar da cabeça do moço aquela ideia maluca de vingança. Melhor que voltasse pra cidade, esquecesse as juras, vivesse tranquilo, um jovem de tanto futuro. Conselhos todavia em vão. Era limpar a honra ou morrer, que sem isso não valeria viver.

Vieram correndo avisar que Zé Baitão vinha vindo, ia entrar logo no povoado, armado até os dentes. “Deixa vir, que eu quero ele em campo aberto”. E Pitotiko se pôs ao largo, nem um canivete na mão. “Está doido”, o povo dizia. “Isso é suicídio”, choravam as senhoras do lugar.

Zé Baitão chegou num cavalo baio, o chicote fazendo círculos no ar, o cigarro de palha pendurado nos beiços, a barba grisalha, suja. Se foi direto no rumo do adversário. Pitotiko parado, mudo, os olhos acesos, de longe o povo espiando. Baitão saltou do cavalo, foi logo largando a primeira chicotada. Pitotiko pulou veloz, livrou-se do golpe, contragolpeou num zás, ninguém viu como tomou a chibata das mãos do gigante. Pinchou fora o couro, se lançou na direção da fera. Baitão tirou a faca, o moço fez uma cambalhota, rodopiou as pernas, a faca foi parar numa moita de mato. Revólver em punho, a boca espumando, o ensandecido Zé disparou tiro daqui, tiro dali, o rapaz saltitando que nem pipoca. Acabadas as balas, Pitotiko ali ainda inteiro, gente e mais gente olhando sem crer no que via. “Ele tem o corpo fechado, só pode ser”, diziam.

Um segundo revólver foi lançado à poeira com certeiro pontapé, antes mesmo de Baitão sacar. Era agora corpo a corpo, o gigante totalmente desarmado, acerto limpo, na raça, no muque, hora de conferir quem era ali o valente. Baitão com a barba babada, o orgulho ofendido, fera desmoralizada pela destreza do domador.

Pitotiko finalmente falou: “Lhe disse que voltava crescido pra lhe mandar pros confins. Se encomenda pra quem puder, porco covarde, que os seus minutos tão contados. Bater em velho ocê sabe... Vem agora, machão de bosta, vem bater num homem, vem se brio tiver...

Pernada pra cá, braçada pra lá, Pitotiko deixou o desaforado cansar, bufar, grunhir, até cair. Esfregou o focinho dele na poeira, fez ele pedir misericórdia, chamou o povo pra de perto ver a humilhação, mandou afastarem as mulheres e as crianças, tirou a roupa do imundo. “Queria isso, não era? Vai ter o que queria. Vai ficar nu num pé de pau. Eu ia acabar com a vida dele, porém vou não, que nem vale a pena, tá bom assim. Ocês depois amarrem o porquera no rabo de um burro e levem ele pro delegado. Meu avô, que os anjos o tenham, desforrado está, e pode enfim repousar em paz, Jurei, cumpri”.

Fonte:
A. A. de Assis. Vida, Verso e Prosa. 
Livro entregue pelo autor.

Cecim Calixto (Cajado de Sonetos) III


A ALTRUÍSTA

Tanto conheço minha esposa ativa
Que em ser cristã à devoção apela.
O sentimento meu também deriva
Aos horizontes da informal favela.

Esta paixão que tanto nos cativa
E apaixonado sigo o senso dela,
Que me conduz à conclusão mais viva
Sobre o guardião da singular capela.

Vejo-a de joelhos, na oração clemente,
Pedindo a alguém, que nunca esteve ausente,
Todo agasalho e o desejado pão.

Por isto a fé, que em nosso lar existe,
Encheu a casa do esquecido e triste
Que não mais dorme no batido chão.
* * * * * * * * * * * * * *

A MORTE

Desejo nunca essa megera intrusa
Que desnorteia o sentimento humano,
Traz a tristeza na inversão confusa,
Lesando a paz com seu injusto dano.

Fere a harmonia sem pedir escusa,
Leva a família ao desespero insano.
Abre lacuna que o viver recusa
Na concepção de um funeral tirano.

É dor da ausência que jamais se cala...
E a taciturna solidão propala
Numa saudade que jamais se esvai.

Esmaga a fé e não aceita prece;
E mal profundo que jamais fenece
No condoído coração de pai.
* * * * * * * * * * * * * *

A SIBIPIRUNA E O VENTO

Sibipiruna se dispõe ao vento
Que afoito abraça sua copa inteira.
E nem repara o meu olhar atento
Sobre a calçada - amarelada esteira.

Ela se entrega sem nenhum lamento
Ao vil pintor que não tirou carteira.
Hoje percebo que o maldoso intento:
Foi dar às pedras incomum floreira,

Ele se esvai, mas o amarelo fica
Para escutar da natureza rica
A aprovação que justifica o pranto.

E quando verde acolhe com carinho
No seio ameno, agasalhando ninho,
Que reproduz da natureza o canto.
* * * * * * * * * * * * * *

IMORTALIDADE

Nada mais quer... nada o vetusto anima,
Senão lembranças da vivência antiga.
Sempre debruço sobre a obra prima
Das rotas letras que a memória abriga.

Desconsolado, a solidão lastima
E o coração já não lhe diz: Prossiga!
Ninfa nenhuma lhe estimula à rima
Nem ouve os versos da feliz cantiga.

Triste soneto que à lembrança vem,
Verso de amor que o faz lembrar alguém
Que hoje ao seu lado já não mais declama.

Se entrega à morte renegando a vida...
No leito bruto do batel de ida
Ruma ao jazigo dos anais da fama.
* * * * * * * * * * * * * *

MÃE TICO-TICO

Ave garrida, benfeitora augusta,
Extinta quase... mas tomou à vida.
Servindo a alheia e se alegando justa,
Criando filha, de outra mãe, parida,

Mas eu bem sei o quanto a faina custa:
Ter os filhotes e buscar comida.
A esse mister a própria mãe se frustra
E a ti compete essa gloriosa lida.

E vence o ciclo.., e o sol a negra brilha
E nada falta para a estranha filha
Que ela protege como fosse sua.

Louvado seja quem adota e cria,
Pois, certamente, há de ganhar um dia
Um ninho santo onde o Senhor atua.
* * * * * * * * * * * * * *

PERENE ESPAÇO

O espaço é meu, porém em vão procuro
Ser inquilino de endereço certo,
Mas algo estranho se me põe no escuro
Quando antevia meu caminho aberto.

Sem luz alguma, a solidão conjuro
E com tristeza o coração aperto.
Aço da algema fere o meu futuro
E o meu destino cai no hostil deserto.

A salvadora que jamais esqueço
Se me aparece, sem nenhum tropeço,
Desata a amarra ao despertar ileso.

Livre! O compasso invade a minha tenda
E o som do acorde, da maior legenda,
Liberta o verso que jamais foi preso.

Fonte:
Cecim Calixto. Flores do meu cajado: sonetos. Curitiba: Juruá, 2015.
Livro enviado por Vânia Ennes.

José de Alencar (As Minas de Prata)


artigo “As Minas de Prata: O Rosto Brasileiro”, por Valeria De Marco, para Revista Língua e Literatura n.14, São Paulo: USP, 1985. p.125-142.

“Fala-me dificultosamente
de um país não documental
onde apenas acontece
o que em verbo não se conta
e só em sonho, em sonho e sombra, se adivinha.”
Carlos Drummond de Andrade


AS MINAS DE PRATA NO PROJETO DE ALENCAR

“O segundo período é histórico: representa o consórcio do povo invasor com a terra americana, que dele recebia a cultura, e lhe retribuía nos eflúvios de sua natureza virgem e nas rever­berações de um solo esplêndido. ”

“É a gestação lenta do povo americano, que devia sair da estirpe lusa, para continuar no novo mundo as gloriosas tradições de seu progenitor. Esse período colonial terminou com a independência. ”

“A ele pertencem O Guarani e As Minas de Prata. Há aí muita e boa messe a colher para o nosso romance histórico; mas não exótico e raquítico como se propôs a ensiná-lo, a nós beócios, um escritor português.”

“Benção Paterna”
José de Alencar.


Ao traçar o plano de sua obra neste prefácio de 1872, Alencar demarca o terreno de As Minas de Prata. Escrevera-o entre 63 e 64; publicara o primeiro volume na Biblioteca Brasileira de Quintino Bocaiuva em 63. O romance completo sairia somente em 65 e 66, em seis volumes, pela editora Garnier que lançaria a 2a edição em 1877 Chamo atenção para essas datas porque elas podem revelar algumas pistas para a interpretação do texto. Até então, Alencar já havia escrito praticamente toda sua obra teatral (só não encenara.

O Jesuíta, escrito em 60 mas recusado por João Caetano, e escreveria em 67 Expiação)• Desde 61 estava na política, pois elegera-se deputado pelo Ceará. Já demonstrara sua agudez crítica no barulho de 56 com as “Cartas sobre A Confederação dos Tamoios” De romance, além dos pequenos esboços — A Viuvinha e Cinco Minutos, já editara O Guarani, Lucíola e estava escrevendo e lançando Iracema.

Já se consolidara como o folhetinista de respeito no Correio Mercantil desde 51, com sua coluna “Ao correr da pena”, tão vinculada ao autor que ele a carregara para o Diário do Rio de Janeiro em 55. No ano de 1865, Alencar veria publicadas Iracema, a segunda edição de Lucíola e As Minas de Prata. Essa contemporaneidade dos três romances é eloquente expressão da diversidade da obra de Alencar. É um alerta para o leitor de hoje que poderia ver As Minas de Prata como um romance confuso, apaixonado pela trama de extensa e intensa ramificação, nascido da pena de um escritor que perdera o controle sobre o texto, que não saberia mesmo estruturar um eixo narrativo. Na verdade, a coincidência de datas é mais um indicador de que Alencar tinha um plano para sua obra.

Quase que ao mesmo tempo, o escritor compunha o texto lírico e enxuto de Iracema, as dramáticas cartas de Paulo para desnudar o cotidiano mercantilizado da corte e o abismo narrativo de As Minas de Prata para entrar na Bahia do século XVII. Conscientemente, dera a Iracema o título de lenda para recriar em um gênero mestiço, entre romance e poema, a mestiçagem das raças fundadoras do país, mesclando suas línguas no lirismo do mito. Conscientemente, desmontara o romance A Dama das Camélias, compondo Lucíola através de um espelhamento estrutural para revelar a feição brasileira da cortesã e demarcar seu lugar na sociedade. Portanto, não se pode falar de imperícia do escritor ao abordar seu extenso romance, pois ele também tem um alvo em mira.

O objetivo de Alencar era o romance histórico. Era povoar a imaginação dos seus leitores com o cotidiano dos tempos passados, da gestação do país que agora conquistava sua independência. O Brasil precisava encontrar os traços de sua face, esboçar sua figura no concerto das nações. Para isso era preciso não só retratar seu presente, mas também sua lenta formação, sua história vista e escrita por alguém de cá e não mais por missionários e viajantes de lá. Era preciso construir estórias que se espalhassem na boca do povo, para constituir a memória da nação que nascia. Era preciso forjar os traços diferenciadores, particulares do Brasil, transladá-los ao espaço lúdico dos contos para disseminá-los pelo nosso território. Era preciso, enfim, forjar o imaginário nacional que nos explicasse e nos diferenciasse. Os heróis e seus feitos. Como tinham feito as nações do Ocidente hegemônico: Carlos Magno, na França; El Cid, na Espanha, Ivanhoé e Ricardo Coração de Leão, na Inglaterra. Grandes narrativas épicas, heróis civilizadores.

Aí estava a primeira dificuldade para Alencar colocada por nossa peculiaridade histórica — a mestiçagem racial. O índio que dominava o território e os conquistadores portugueses. Como construir um universo épico com a luta entre as duas raças pela posse da terra? Se Alencar optasse por um herói português, criaria um devastador e, de qualquer forma, um português. Se escolhesse um índio, seria erigir um herói de uma civilização atrasada que não conhecia a escrita, que não tinha história, que era pagã e de um primitivismo demoniacamente exposto na nudez e nos hábitos canibais. Era também deixar na sombra os encontros amorosos ou violentos entre o corpo amarelo e o branco. Construir uma versão heroica da realidade histórica foi, para Alencar, uma tarefa, um desafio e motivo de muita pesquisa: escrevera a biografia de Filipe Camarão, os versos de A Filha de Tupã; discutira a pretensiosa epopeia de Magalhães e optara por retratar a mestiçagem concentrando-se no convívio entre as raças, extraindo o lirismo da vida primitiva do índio e a valentia desbravadora do português. O Guarani traz o retrato do índio altivo, mas fiel e dócil, que se submete ao batismo cristão e salva a indefesa Ceei. O produto mestiço que não aparece nesse romance, Alencar ousaria deixar nascer em Iracema. Criava-se a figura feminina e a masculina a partir de uma relação humanizadora entre as duas raças. Fundava-se o homem brasileiro e forjavam-se os mitos do imaginário nacional.

Construído o mito de origem, tratava-se de contar os três séculos de vida da colônia. E Alencar escolhe ainda a vereda do mito: as minas de prata. É a isca para seduzir o leitor — o nosso Eldorado ou o nosso Potosi — que se mantinha ainda no século XIX na especulação dos cronistas (Revista do Instituto Histórico/3° vol./3° trimestre/ 1839) e que ainda ecoava nas estórias da vovó, recontando o cotidiano aurífero das Minas Gerais. O mito das riquezas americanas constituía-se em pródigo mote para contar os tempos da colônia, pois ele tinha uma face dada pela nossa especificidade e outra adequada à modernidade romântica: o interesse pela História. Isto revela o quanto Alencar está mergulhado na sua época, no espírito contemporâneo, pois este é um traço fundamental dos tempos: descobrir a história, o pensar a história e fazer a história. Uma nova história, como nos lembra J Guinsburg:

Mas o Romantismo pôs de lado não só o enfoque teológico judio-cristão, como também a concepção clássica da História, porque no século XVIII, embora já se fale numa História natural das instituições, o pensamento dominante é aquele que considera a História como produto das “vidas ilustres”, do sábio, filósofo, herói, rei, gênio, cuja razão e ação (rei-filósofo, déspota esclarecido), ainda que às vezes toldadas pelas paixões e pagando por estas falhas trágicas o preço heroico, iluminam e melhoram o homem, produzindo o aperfeiçoamento ou progresso nas suas instituições. Com efeito, a noção de progresso começa a instalar-se agora na arena historiosófica, como um dos principais sucedâneos do arbítrio divino, e, mesmo, deste como ato pessoal de Deus, da finalidade providencial, tanto mais quanto encerra, senão um paraíso como termo, pelo menos um “mundo sempre melhor” como uma proximidade terrena, dentro do tempo histórico, dependente apenas da atuação do homem.” (p. 14 e 15)

“Transparece, portanto, quão longe, mesmo quando bastante perto, se encontram ainda as Luzes, pelo menos em formulações mais específicas ou positivas na ordem das atribuições causais sobre as origens e motores históricos, de concepções ou ideias-força como nação, povo, massa, opinião pública, classe, e outros agentes históricos, políticos, sociológicos, econômicos, culturais e ideológicos que são tidos como fonte dos processos, dos dinamismos, dos movimentos, das consciências, dos espíritos e das vontades coletivas que surgiram em praça pública com a Revolução Francesa e mais especialmente, com o Romantismo.” (P. 15)

“Assim, porque tudo se faz “história” no Romantismo, a História se faz então “realidade”, integrando historiograficamente o estudo do desenvolvimento dos povos, de sua cultura erudita e de seu saber popular (folclore), de sua personalidade coletiva ou espírito nacional, de suas instituições jurídicas e políticas, de seus mores e práticas típicas, de seus modos de produção e existência material e espiritual, cada vez mais nas linhas de um tempo cada vez menor mítico ou idealizado.” (p. 18)


É essa toada que Alencar tenta acompanhar, sempre preocupado em sintonizar o Brasil no concerto das nações. Assim, nas minas de prata ele encontrara um mote para desenvolver aspectos das particularidades brasileiras na ordem das ideias internacionais. Uma vez encontrado o atalho para chegar à colônia, faltava determinar o ritmo da marcha para transportar o leitor aos tempos longínquos.

O ritmo estava dado também pela modernidade romântica — o romance histórico — que se desloca da referencialidade do realismo, do cotidiano do indivíduo e volta-se para a estória romanesca. Ivanhoé e Saint-Clair das Ilhas. Heróis que nutriram a imaginação de Alencar e que certamente mereceram sua reflexão. Por isso, tanto do ponto de vista temático — o mito das minas, do metal das entranhas americanas — como do ponto de vista estrutural — o romance histórico, a estória romanesca — este romance de Alencar é uma obra que cumpre uma função determinada no projeto do escritor: criar um enredo específico da nossa história colonial, à luz das lentes românticas; traçar as figuras da História brasileira. Alencar solta a imaginação e entre no mundo do ritual, do coletivo e do tempo contínuo.

O ROMANCE HISTÓRICO.

Antes de entrar em As Minas de Prata, cabe buscar a caracterização do romance histórico. Lukács dedicou-se à reflexão e produziu um livro clássico. Para ele o romance histórico nasceu no começo do século XIX e sua gestação fora preparada pela historiografia da Ilustração, que se encarregara do arcabouço ideológico, e pelo romance social inglês, que começara a desenvolver os meios literários de expressão, colocando em letra de forma as peculiaridades espaciais e temporais dos homens e dos acontecimentos. Dentro deste universo, dá-se a vivência da revolução francesa, a luta revolucionária e a queda de Napoleão, fatos que converteram a história em concreta “experiência de massas” Esta interpretação do período histórico conduz todas as considerações do autor sobre a questão. O romance histórico caracterizar-se-ia pela “revificação do passado convertendo-o em pré-história do presente, na revificação poética das forças históricas sociais e humanas que em um período longo de desenvolvimento deram forma à nossa vida” (p. 58). Dentro dessa concepção do romance histórico como aquele que conseguiria recriar a dinâmica do processo histórico, Lukács toma elementos de composição dos textos de Scott para elaborar a caracterização da estrutura desse tipo de romance. O elemento fundamental constitui a composição de um outro tipo de herói. O característico da obra de Scott seria o “herói medíocre e prosaico” que, por seu aspecto mediano representaria amplas camadas da população. Claro que a insistência de Lukács nesse aspecto de composição se dá pelo objetivo de diferenciar, através da construção do herói, duas formas do épico — o romance e a epopeia — bem como a concepção de história que elas carregam. Na epopeia o herói expressa a comunidade por sua superioridade em relação aos demais homens; ele é porta-voz. Nessa forma épica, a história se faz e é conduzida pelos líderes mais capazes. No romance histórico, o herói representa também uma grande comunidade, não por seu caráter excepcional, mas exatamente por seu feitio comum, igual aos demais. Não é porta-voz. Por isso ele viabiliza a percepção das forças que o movem, tanto como e da mesma forma que os demais homens de determinados grupos sociais.

Lukács levanta outros elementos para caracterizar o romance histórico, como, por exemplo, a dramaticidade, o uso do diálogo, mas o ponto central de sua análise refere-se ao herói. Esse enfoque se deve ao fato de que, com esses traços de composição, o romance ganharia voo para representar a luta entre as classes. Como essa concepção de Lukács estava comprometida com uma interpretação da história e, sobretudo, com a esperança de que a literatura poderia transformar-se em arma de conscientização, o teórico deixa de lado outros elementos da obra de Scott que a vinculariam com a grande tradição dos romances do século XVIII — a estória romanesca.

Northrop Frye considera que o romance histórico é estruturalmente uma estória romanesca. Retomando a antiga distinção entre “romance” e “novel” o crítico dá especial atenção ao romanesco que consistiria uma expressão literária precisa, que se teria iniciado na época clássica tardia, desenvolvera-se paralelamente ao romance e teria hoje, como grande flanco, as estórias policiais e as de “science-fiction” (La escritura profana, cap. I). Ela apresenta um mundo idealizado, heróis bravos e belos que enfrentam vilões covardes e feios, em que a vitória sempre caberá ao mais virtuoso, estará ao lado da verdade. Ela consiste no estágio mais próximo do sonho e do desejo e tem como trama fundamental a sucessão de aventuras que se estruturam em função de uma procura, de uma busca. (Anatomia da Crítica).

Considerando As Minas de Prata a partir destes parâmetros, parece ficar mais nítida a vinculação de Alencar com a expressão cultural de seu tempo. Para ele, a forma literária da estória romanesca não é simplesmente um caminho encontrado ao acaso ou produto de imperícia literária. É a linguagem do Romantismo para contar o passado de cada nação, de cada comunidade, do mundo idílico anterior à Revolução Industrial, na Europa, e ao paraíso do capital comercial dos tempos do Império, que Alencar registrou em Lucíola, Rio de Janeiro (Verso e Reverso) e outros textos mais.

O ENREDO: CADA CLASSE E CADA RAÇA TEM O TESOURO QUE MERECE.
O romance tem como fio de ação fundamental a procura do roteiro das minas de prata descobertas por Robério Dias. O pergaminho dá origem a especulações e pesquisas que se encaminham para uma disputa de lances dramáticos entre Estácio Correa (filho do descobridor) e o Pe. Molina, um jesuíta que, aparentemente, poria a riqueza nas mãos da Igreja. Ambos lutam pelas minas para conquistar objetivos diferentes. Estácio quer resgatar a memória do pai e casar-se com Inesita, jovem virtuosa de família abastada. Pe. Molina quer conquistar mais poder. Some-se à caracterização de cada um dos postulantes: Estácio é produto da terra, filho de índio e português; Molina é um padre, proveniente da Espanha que, na época, subjugava Portugal e queria interferir na administração das colônias.

Assim, do lado de Estácio está a virtude, a pátria, a justiça e o amor; do lado de Molina, o vício, a invasão estrangeira, o embuste e a ambição. Uma luta entre a verdade e a mentira. Esta é a busca fundamental do romance, mas a ela se misturam outras. Há mais duas procuras também responsáveis pela composição das estórias secundárias que contribuem para configurar As Minas de Prata como desvario imaginativo, a narração em abismo.

A segunda busca espaçosa no romance é a empreendida por Lucas, um escravo inculto, o taverneiro Brás, um contrabandista que se aventura por terra e por mar, e Anselmo e seu bando, pobres bandoleiros. Eles estão cavando a terra para roubar o tesouro enterrado na casa de Dona Dulce. Esse fio de enredo mobiliza objetos degradados e personagens desumanizados, movidos pela cobiça ou pela obsessão.

A terceira busca é a que envolve os personagens judeus: alguns anônimos, Samuel e Raquel. Eles procuram um roteiro do que lhes aparece como um grande tesouro: o mapa do sistema de fortificações da cidade de Salvador. Isto permitiria que a Holanda conquistasse o território, garantindo-lhes a tranquilidade para viverem no Brasil. É uma ação em que os personagens não se envolvem fisicamente; apenas a financiam. Portanto a procura é movida a dinheiro e é uma conspiração contra a pátria.

Assim, é em torno da articulação de três itinerário de busca que a obra se constrói. Cada uma delas mobiliza um grupo de personagens e a junção das diferentes procuras no romance se faz pela disposição hierárquica entre elas, estabelecida em função de critérios de raça e de classe. A aventura nobre está reservada para Estácio, filho de índio e português; a correria indigna fica para os estrangeiros e negros. Estes fios narrativos tão claramente romanescos, caminhos conturbados para a realizaram de múltiplos desejos, desenvolvem-se em cenas também descaradamente romanescas: jovens órfãos, rituais de luta, disfarces, falsas mortes, revelações, emboscadas por terra e por mar, prisões abruptas, fugas impossíveis.

O NARRADOR: O GRANDE HERÓI DAS MINAS DE PRATA.

Para enlaçar tantos desejos e tantos personagens, Alencar lança mão da terceira pessoa e forja um narrador onisciente e onipresente que vai explorar os elementos mais diversos da estante literária do séc. XVIII e princípios do XIX. O tom dominante é o do romance de aventuras, mas há ingredientes de todo tipo para criar e manter suspenses, resultando em cenas que frequentemente levam o leitor a evocar passagens de outras obras.

O narrador trabalha com alguns procedimentos narrativos fundamentais: exploração exaustiva de rituais; súbitas revelações, profusão de coincidências, uso e abuso dos disfarces e enxertos de verdadeiros contos para construir os personagens, seja para contar a vida de cada um ou para delinear-lhes o caráter. Estes são os recursos principais utilizados para estabelecer a vinculação entre os múltiplos fios narrativos. Alencar precisa contar muitas estórias para escrever a nossa história.

Para observar mais de perto a construção do abismo narrativo, vale examinar alguns momentos em que o narrador emprega os recursos estruturadores destacados. Comecemos pela exploração dos rituais. Alencar abre o romance com a luz do primeiro sol de 1609, caindo sobre a antiga capital — Bahia do Salvador. Detém-se na descrição geográfica para compor o retrato da cidade, aliando a grandeza de sua natureza à sua magnitude política.

“A cidade nascente apenas, mas louçã e gentil, elevando aos ares as grimpas de suas torres, olhando o mar que se alizava a seus pés como uma alcatifa de veludo, era então, pelo direito da beleza e pela razão da projenitura, a rainha do império selvajem que dormia ainda no seio das virjens florestas.” (p. 1, vol. I)

E a cidade está em festa, domingueiramente ruidosa, não apenas pelas esperanças de ano novo, mas sobretudo pelas expectativas em relação à chegada do novo Governador Geral do Estado do Brasil

— D. Diogo de Menezes. O narrador intromete-se na casa para fornecer algumas diretrizes da política colonial que estavam em jogo:

“Durante o tempo que se demorára em Pernambuco, D. Diogo de Menezes tinha revelado sua força de vontade; e mostrara o firme propozito de repelir a intervenção que o bispo D. Constantino Barradas e a companhia de Jesus exerciam anteriormente sobre o governo temporal. A luta se travára com uma questã de etiqueta e precedência, a que dera logar a procissão do Corpo de Deus celebrada em Olinda. Justamente n’essa época os senhores de enjenho, que formavam a classe nobre e rica da Bahia, sustentavam contra os jesuítas a grande questão da servidão dos índios; e compreendiam a vantajem de ter de seu lado um homem como D. Diogo de Menezes, cujo voto autorizado devia pezar nas decizões do Conselho da índia, e no animo de El-rei, D. Filippe III.” (p. 3 e 4, vol. I)


Desta maneira, Alencar transporta-nos para o cenário e o drama do mundo colonial, guiando-nos com a observação dos viajantes, com o testemunho e, sobretudo, com o estilo dos cronistas da época, recriando no ritmo distendido da frase e no vocabulário preciso e raro o clima de princípios do século XVII. Jaezes de cavalo, mimosos palanquins e alvas alféloas provocam o estranhamento no leitor e, entre desconfiado, intrigado e fascinado, ele se deixa levar pela magia dessas palavras para o passado, para o saboroso tempo do era uma vez.

Entregamos-nos à fantasia e acompanhamos a programação inteira das festas que se configuram como rituais. Eles ocupam os principais espaços urbanos — a igreja, a praça e o palácio — e mobilizam todos os grupos sociais. Participando dos rituais, cada personagem insinua traços de seus conflitos e desejos.

O primeiro ritual é sagrado. Para a igreja convergem a cidade e o narrador. Este, com aparente descompromisso, centra sua atenção nos jovens que se constituirão em personagens principais, esboçando-lhes o caráter através das roupas e do diálogo. O cetim negro, a frase grave e melancólica de Estácio anunciam o herói injustiçado e pobre, mas nobre nas atitudes e consciente dos obstáculos que se interpõem entre o desejo e sua realização. Cor de pérola e fio de ouro são para o aristocrático Cristóvão, jovem de grande renda e membro de uma família nobre que chegara com Tomé de Souza.

O puro sangue português e os muitos cruzados associam-se a outras graças: fisionomia franca e aberta, as cores frescas e rosadas, o porte firme e direito” (cap. 1). É o jovem fiel e faceiro que já se apresenta como forte aliado do herói. Com o diminutivo (“cadeirinha”, cap. 1) e “seda azul” (cap. 2) o narrador introduz a heroína — Inês — o grande amor de Estácio. Agora, é conhecer os opositores.

Com “seda carmesim”, “garbo vaidoso” (cap. 2) e frase agressiva aproxima-se Fernando de Ataíde, o rival nos amores. Imediatamente, entra em cena grande aliado, D. José, de “porte arrogante”, trajando amarelo e negro. Com a chegada de Elvira de Paiva, o amor de Cristóvão, formam-se os pares e o narrador carrega seus personagens para dentro da igreja. Com os olhos pregados em Estácio e Cristóvão, Inês e Elvira confessam seus sentimentos para o leitor, explicitando os fios da trama amorosa que o narrador já insinuara. Mas nem só de amores vive o Brasil. O final da missa é acelerado por uma inquietação que toma conta dos fiéis. Para explicar a perturbação que invade a igreja, Alencar introduz na narrativa um novo ritual; agora um ritual próprio e exclusivo da condição colonial: a chegada do navio proveniente da metrópole.

“—É uma fragata hespanhola, ao que parece procedente do reino, que entra a barra; informou ao governador o capitão da guarda. Este fato que hoje não tem muita importância pela sua frequência, naquelle tempo de raras e difíceis comunicações entre o Brasil e a metrópole, era um acontecimento do maior interesse. Para os governadores e empregados no serviço real queria dizer a solução de altas questões da administração do novo estado; para o povo exprimia talvez o deferimento aos pedidos das câmaras sobre a redução de impostos, extinção dos estancos e servidão dos índios; para os mercadores de grosso trato significa o recebimento de cabedaes ou de generos de trafego; para os particulares era o provimento da mercê que havia requerido, ou a reforma da sentença de que tinham agravado; para as mulheres, além da parte que tomavam no que dizia respeito a seus pais, irmãos e maridos, havia a curiozidade, sentimento poderozo em todas as filhas de Eva.” (p. 34; vol. I)

Na fragata espanhola estão outros elementos decisivos para a construção da estória. Mas, enquanto o povo do séc. XVII e o leitor esperam o navio atracar no porto, o narrador acompanha os personagens da terra e nos conduz aos rituais profanos.

O primeiro é um ritual de luta: o torneio. A cena remonta às novelas de cavalaria, mas ela desperta na memória do leitor as lides de Ivanhoé e de Saint-clair das Ilhas. E isto não se dá por mero acaso, pois existe um dado estrutural no torneio dos três romances que estabelece um eco de semelhança: a posição do herói. Saint-Clair, Ivanhoé e Estácio comparecem ao evento, vencem as disputas, são aclamados pelo povo, mas não podem usufruir de todas as glórias reservadas aos vencedores porque estão em posição desvantajosa na ordem social. Ivanhoé não pode descobrir-se porque arruinaria os planos de Ricardo Coração de Leão e o futuro da Inglaterra; Saint-Clair tampouco identifica-se porque era um desterrado e Estácio, se pode mostrar seu rosto, está em posição de inferioridade porque pesa sobre ele a mácula do nome do pai e o ato do monarca espanhol que lhe confisca os bens. Estácio é também um injustiçado que está procurando restabelecer a plenitude de seus direitos e de sua identidade.

O narrador constrói esse ritual com uma câmera, ora deixando-a girar para captar objetivamente a totalidade da cena, ora instalando-a nos olhos de Inês, para revelar ao leitor a percepção parcial, subjetiva e emocional das liças uma vez que, por amor, ela acompanha todos os movimentos do herói Estácio. Explorando o ângulo do plano geral, Alencar aproveita sua experiência de dramaturgo e expõe aos olhos do leitor novos elementos para dar maior nitidez aos contornos dos personagens. Retoma as cores das roupas, dando os tons escuros — preto e escarlate — aos opositores do herói, para insistir no caráter turbulento, perturbador e demoníaco de D. Fernando e D. José; reserva os tons claros — azul e branco — para Cristóvão e Estácio, ratificando a bondade e a honestidade dos moços através das cores angelicais. Com a mesma função reveladora, o narrador incorpora as divisas escritas em latim no escudo de cada cavaleiro. Para os bons, o emblema amoroso, seja na singeleza da frase de Cristóvão

— “Ela me vê e me guia” — seja na sentença premonitória do destino do herói — “O amor tudo vence” — . A maldade aparece no emblema dos opositores. A frase de Fernando — “Desgraçados dos que baterem no escudo” — constrói-se através da estrutura da maledicência e, não só aponta para os valores baixos de destruição e vingança, como também é o primeiro indício da maldição que pesa sobre ele, da qual o leitor só será informado no final da narrativa.

A divisa de D. José é o clímax do mal, pois na sua ambiguidade revela os dois aspectos do vilão. Se tomada no significado de “fortaleza de bronze” indica sua vulnerabilidade, pelo próprio caráter degradado do metal; se entendida como “cupidez de moeda” já anuncia para o leitor o meio de corromper esse cavaleiro, que se realizará com o desenvolvimento do romance.

O narrador lança mão ainda de mais um ritual profano para arrematar os fios da intriga amorosa. É no sarau que Estácio ouve sua sentença de morte, ao ver Inês dançando com D Fernando e ao ouvir que os dois vão se casar Os dados estão lançados. Paralelamente a esses rituais que, fundamentalmente, catalisam as relações amorosas dos personagens, o narrador vai desenvolvendo os rumos do enredo da busca do tesouro. É importante observar que para isso ele usa os intervalos entre os rituais e explora as coincidências. Através desses procedimentos narrativos, a existência do roteiro das minas de prata e da disputa entre o herói, a igreja e a metrópole pelo pergaminho revelam-se para o leitor na alta temperatura emocional provocadas pelas paixões dos personagens. Coincidentemente, no exato dia em que Estácio prova sua força e vence o torneio, desembarca da metrópole um forte opositor para desafiá-lo e chega a notícia de que o governo espanhol enviará para o Rio novo governador que era um homem envolvido na história das minas.

No mesmo dia em que Vaz Caminha defronta-se com Pe. Molina conhece também D. Dulce ou Marina de Pena que o levará a desvendar todo o passado do astuto padre. No mesmo dia em que Estácio abre a carta que lhe revela a existência do roteiro das minas, Vaz Caminha o põe a par da real história de Robério Dias e descobre que a Igreja e o Estado disputarão o roteiro com seu querido discípulo. Enfim, enumerar todas as coincidências seria quase recontar o romance. O importante é ressaltar que elas recobrem todo o texto e que é através delas que o narrador começa a desenvolver o tema propriamente histórico do livro. Assim, o primeiro plano, os espaços públicos e o tempo contínuo constroem o veio sentimental da obra; no segundo plano, nos espaços fechados e privados e nos intervalos e rupturas temporais emerge a história das riquezas americanas e das lutas pelo poder por elas despertadas.

Além dos rituais e das coincidências, deve-se ressaltar outro procedimento narrativo fundamental no romance: o enxerto de grandes contos. Eles são decisivos na produção do labirinto narrativo que o leitor percorre, eles interrompem o desenvolvimento da ação principal para introduzir o passado de cada personagem. Por isso, retardam a narração e frequentemente ao invés de aguçar o suspense, levam-nos
a mergulhar em outro mundo, fazendo-nos esquecer da estória principal, uma vez que chegam a constituir grandes episódios. Como exemplos, observem-se os momentos em que o narrador conta a vida pregressa de Vaz Caminha, João Fogaça, Pe. Molina, Dona Dulce, D. Lopo, D. Fernando e até mesmo de Diogo de Mariz, gancho aproveitado por Alencar para contar pormenores do final de O Guarani que Ceei e Peri não haviam presenciado. Mas, se por um lado esses contos retardam a narrativa e frequentemente diluem o suspense, por outro lado, ao enxertá-los o narrador pretende explorar-lhes o poder de revelação. Por isso, esse recurso convence o leitor da retidão de Vaz Caminha, da fidelidade de João Fogaça, do caráter perverso do Pe. Molina, do amor alucinado de Dona Dulce, da nobreza altiva de D. Lopo, da maldição que pesa sobre D. Fernando, da honestidade da família de D. Antônio de Mariz. Como contrapartida dessa embriagues ficcional cada conto recria elementos fundamentais do universo social e cultural de cada personagem, compondo um panorama da diversidade de costumes da Bahia do séc. XVII e, por essa razão, alguns contos acentuam as particularidades da terra, dando pinceladas de cores locais tão caras ao romantismo.

Vale observar a perícia do narrador na construção de alguns desses contos. Tomemos a história do grande vilão do romance. Alencar começa a contar a vida do Pe. Molina aproveitando o clima do exótico para os leitores brasileiros. Atravessa o Atlântico, entra em Andaluzia, refere-se a personalidade da época, como Cervantes, criando a ilusão da exatidão histórica. E, para caracterizar a baixeza e a ambição do padre, lança mão da tradição da novela picaresca e retrata o grande percurso de Vilar como um arrematado pícaro. Dessa forma, dá mais um lastro histórico ao personagem; recorrendo a um modelo da história literária inventado e consagrado na Espanha como uma expressão particular para tratar da realidade dos marginais da época. Nascido e formado como pícaro, Vilar só poderia resultar, de maneira verossímil e histórica, no astuto, ambicioso e perverso Pe. Molina. Certamente, a mesma preocupação com a adequação histórica que levara Alencar a resgatar a picaresca para construir o jesuíta, motivava-o a reaproveitar a novela de cavalaria para descrever a nobreza de Lopo Vellasco.

As particularidades da História brasileira entram, por exemplo, no conto dedicado a João Fogaça: Naquela época em que a floresta confrontava com a cidade e quasi lhe invadia os quintaes, oferecendo ao crime, como ao vicio, couto seguro e azilo contra a vindita da lei, o capitão do mato foi oficio de importância. Era quem melhor policiava o estado, e ia aos dezertos sertões trazer o reo à justiça, o escravo ao senhor, e perseguir as hordas selvajens quando infestavam a vizinhança dos povoados.” (Vol. I, p. 296)

Não só aparece aí a realidade da administração da colônia, mas também Alencar empenha-se em recompor traços da mestiçagem entre o branco e o índio:

“A gente do lugar chamava-o caiporinha, de uma palavra tupy que significa -habitante da floresta-; e com efeito o apelido quadrava perfeitamente, porque vindo a falecer-lhe o pai, elle abandonara a caza paterna, que ahí não poz mais os pés, desde o dia em que saiu orpham. Arranjou então uma mizeravel palhoça a beira da mata; e ainda essa parecia luxo; sua verdadeira moradia continuou a ser a floresta, onde cada arvore lhe dava abrigo durante a noite.” (VOL. I, p. 295)
Assim, Alencar extrai da floresta americana Fogaça: — personagem exemplar na fidelidade amigos e na capacidade de conhecer e dominar o mundo da natureza brasileira, composto pela mata e seus habitantes — os índios Ouvido, Olho e Faro.

O outro traço distintivo da colônia — a mestiçagem entre brancos e negros — entre no romance com a expressividade de Joaninha. O lado trágico está no seu nascimento, na vida de trabalho difícil de mulata livre e na sua reclusão ao convento, no final do romance. E, como se fosse pouco, as circunstâncias da concepção de Joaninha — forma diabólica para punir o adultério feminino — demonstram como os brancos estabeleciam total identidade entre negros e animais . Mas não é só o mundo animal da senzala que aparece no texto.

Como Joaninha é mulata livre que vive de seu trabalho, ela desenvolve não só habilidades manuais, mas também soltura e traquejo verbal. Aprende a dissimulação e a arte de falar e contar. Toda esperteza de Joaninha é exibida na sala de D. Inês, quando aquela, entre confeitos, quer dar a esta um recado de Estácio. Não só toda a habilidade do Alencar dramaturgo entre em cena para descrever a situação, como também, deixando falar a mulata, o narrador reproduz a magia da narrativa oral, revivendo “os tempos de oitiva”.

 A tantos recursos narrativos, devem ser somados os disfarces, os vaticínios de personagens encobertos que atravessam a cena, as cartas, os testemunhos. Juntar tudo isso é uma tarefa heroica que Alencar cumpre com alguns momentos de requinte e dramaticidade.

Destaco apenas duas cenas do começo do livro. Uma é a descrição do Pe. Molina, na sala do convento, frente ao retrato de Ignácio de Loyola. O narrador explora o espelhamento entre o personagem e o quadro para, de maneira figural, separa a face da máscara, apresentando para o leitor o mecanismo de que se valia o impostor. Outro momento de grande habilidade na narração encontra-se no jogo de xadrez. Vaz Caminha finge concentrar-se no tabuleiro para observar Molina. Este, comentando uma jogada, revela seus planos para cercar o governador da Bahia e Estácio. Mas, no tabuleiro, mestre é mesmo Alencar que não nos deixa roteiro seguro nem das minas, nem do romance.

CONCLUSÃO: PERSONAGENS DA HISTÓRIA COLONIAL

Entregando-se ao desvario romanesco, ao prazer lúdico de contar e engatar múltiplas estórias, o narrador de As Minas de Prata põe em cena um grande número de personagens. São eles eficientes executores ou condutores da ação e não chegam a conquistar densidade psicológica ou a problematizar o mundo que os cerca. Dividem-se em heróis e vilões, em homens virtuosos que conformam um universo íntegro e em homens degradados pelo vício e pela ambição que habitam um mundo demoníaco.

A integridade está com Estácio e seus ajudantes: Cristóvão,João Fogaça, Vaz Caminha, mestre Bartolomeu, D. Lopo e D. Diogo de Mariz. O que os une e os distingue não é apenas a ação em busca da justiça, mas é também um laço de sangue e de raça. Eles recriam no texto os diferentes graus de gestação do homem brasileiro civilizado, na medida em que em suas veias circula o puro sangue português ou este mesclado com o indígena. Estácio, o grande herói do romance, é um mestiço das duas raças fundadoras. Ele e, de maneira mais acabada, João Fogaça trazem da carne nativa o conhecimento e o domínio da natureza americana, o que lhes permite vencer
batalhas

A maldade assume a face da ambição — Pe. Molina, Brás e seus auxiliares — da irreverência — D . Fernando de Ataíde — e da venalidade — D. José de Aguilar e a comunidade judaica, com exceção de Raquel. Esse mundo de vilania tem também seus matizes para construir a desejada sociedade brasileira. O único descendente de português degradado — D. Fernando — tem a debilidade de seu caráter explicada, no romance, como produto do adultério. O pecado de sua mãe determina-lhe a trajetória de expiação e ele encontra, junto com sua irmã Joaninha, o caminho da recuperação no retiro religioso e na caridade. Os demais excluídos são estrangeiros de outras plagas: espanhóis e judeus movidos pela ambição. Caracterizados como aventureiros e traidores da pátria e da igreja, têm sua periculosidade aumentada porque, na ação, demonstram poder de corromper contingentes da classes subalternas, como Anselmo e seu bando, por exemplo. São personagens que se ocultam na noite, nos porões dos navios, nas tavernas, nos nomes falsos, nos disfarces. Para eles, a narrativa reserva o castigo que consiste na exclusão da sociedade: o bando de Anselmo é enterrado sob o tesouro de D. Dulce; no porão da mesma casa, Pe. Molina abandona o hábito e a identidade; D. José de Aguilar e os judeus saem da terra brasileira em um navio; D. Fernando e Molina vão expiar seus pecados na solidão — este, no deserto —, e aquele, no claustro.

Essas estórias de exclusão se contrapõem ao prodigioso epílogo feliz para os homens bons. Estácio, Cristóvão e João Fogaça casam-se, constituem família e fixam-se na terra. Eles escrevem o processo de integração social.

Interessante é assinalar que as mulheres são íntegras e que duas dentre elas acabam se fixando de maneira bastante nítida na memória do leitor, talvez até mais nitidamente do que pretendia Alencar. São elas Joaninha e Raquel. Duas marginalizadas sociais, não por suas ações, mas por condições de origem. Ao analisarmos os procedimentos do narrador, observamos a construção de Joaninha. Não é o caso retomá-la agora, mas vale contrapô-la a Raquel. Se a alfeloeira entre no texto pelo veio do que é particular e cor local, pela criação de uma nova imagem que não tem ascendente literário, que recupera no texto a tradição da narrativa popular oral, Raquel' é claramente um personagem proveniente das estantes europeias. Sua integridade moral, sua modéstia, sua beleza e até seus conhecimentos de alquimia estão na bela Rebeca de Ivanhoé.

Mas, nem só de Walter Scott o narrador alimenta seu romance. Estácio carrega sangue de índio que pulsa em compasso de líder escocês. Ele tem muito do caro Saint-Clair da Ilhas, uma ilustríssima novela da “pequena biblioteca romântica” lida e relida por Alencar Como Saint-Clair, Estácio é injustiçado e desonrado por conspiração de personagens ambiciosos; é valente e perito nas armas; é merecedor da devoção de seus auxiliares e sua trajetória na obra orienta-se para reparar esses danos. À diferença de Ivanhoé que desenvolve suas lides em função de uma luta política pelo poder na Inglaterra, Estácio, como Saint-Clair, acabam por conquistar um espaço pessoal e por realizar um projeto de aburguesamento, recuperando o nome, conseguindo riqueza e constituindo uma família.

Com o destino desses personagens, Alencar esboça alguns traços da História do Brasil colonial. No labirinto romanesco é possível entrever o poder de intervenção da Igreja nos negócios do Estado e nos assuntos domésticos, a repulsa ao domínio espanhol sobre Portugal, a prática da mestiçagem entre brancos, negros e índios e, sobretudo, visualizar o país como um território crivado de aventureiros em busca de tesouros. Partindo desses elementos constitutivo da vida colonial, o romancista trabalha, solta a imaginação e prende o leitor para inverter a ação, destruir a ilusão e talhar uma imagem mais limpa e mais nobre do passado da nação. Por isso, As Minas de Prata é uma obra que se constrói com a estrutura do romance de aventuras, não para exaltá-la como um valor ou como gostosa fantasia romanesca, mas sim para denunciar a ambição e demarcar o processo de integração ou exclusão social em terras brasileiras. Por isso, o texto esvazia o conteúdo simbólico de felicidade de todos os tesouros disputados: conquistando o mapa do sistema de defesa, os judeus são expulsos, ao invés de obterem a tranquilidade; cavando a terra, Anselmo e seus capangas constroem o próprio túmulo, ao invés de encontrarem o baú de diamantes; penetrando no sertão, Estácio resgata a memória de Robério Dias, não por encontrar as minas, mas sim porque compreende o equívoco de que o pai fora vítima.

Ao sepultar ou dissolver os tesouros, Alencar, por um lado, denuncia as vis paixões — a cobiça pela riqueza e a ânsia de poder — e, por outro lado, exalta, como nobres e únicas virtudes, a fidelidade, a honra e o amor casto. Nessa trajetória, os aventureiros» e os invasores estrangeiros são punidos e excluídos da sociedade colonial, enquanto a estirpe portuguesa e o sangue indígena garantem a sabedoria e a realização dos desejos. Estácio conquista a honra do nome do pai, casa-se com Inês e recebe os diamantes encontrados por Robério Dias, não pela forma bárbara de cavar a terra, mas sim por um nobre mecanismo de enriquecimento, herdando o cofre de D. Dulce como recompensa por seus dotes guerreiros e seu caráter justiceiro. A felicidade plena só a ele cabe, pois soube respeitar todos os altos valores, mesmo nos momentos de maior desespero. Cristóvão, por exemplo, por ultrapassar o limite da janela de Elvira, está condenado a viver um amor pálido e morno.

Esse quadro contribui para caracterizar Estácio como o herói da estória romanesca. A ele está reservada a plena realização de seus sonhos, ele sai de cada provação mais fortalecido em suas virtudes; ele é um herói exemplar por qualidades excepcionais que o distinguem em relação aos outros personagens. É nessa medida que a obra se afasta do romance histórico realizado por Scott e analisado por Lukács. Esse texto de Alencar constrói um painel das cenas coloniais, mas não recria o movimento da História, composto pela ação de diferentes grupos de interesses. As múltiplas estórias delineiam o caminho de indivíduos debatendo-se com seus conflitos e projetos pessoais.

Mas se o romance não dá conta do processo histórico, ele revela a imagem da história do Brasil que Alencar quer fixar e espalhar No território nacional, não há lugar para os invasores estrangeiros, para os aventureiros e para os negros. Da fragata espanhola, dos barcos holandeses e da senzala saem o pecado, a cobiça e a perversão. A nação deveria ser construída com o sangue do índio e do português ligado à terra. Seria a harmônica união entre o conhecimento que o selvagem tinha da natureza americana e a integridade das letras e das armas que a civilização portuguesa podia transportar para o mundo tropical. Estácio nasce à sombra de Ceei, Peri, Iracema e Martim; alimenta-se de Vaz Caminha, mestre Bartolomeu e João Fogaça e transforma-se em porta-voz dos desejos de Alencar.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALENCAR, José de “Benção paterna”, in Obra Completa. Rio de Janeiro, Aguilar, 1960, Vol. I.
ALENCAR José de — As Minas de Prata. Rio de Janeiro, Garnier, 3 vols.
FRYE, Northrop — Anatomia da Crítica. Trad, de Péricles Eugênio da Silva Ramos. São Paulo, Cultrix, 1973.
FRYE, Northrop — La escritura profana. Trad. Edison Simons. Caracas, Mon­te Avila Editores, 1980.
GUINSBURG, J. — O Romantismo. São Paulo, Perspectiva, 1978.
LUKÁCS, Georg — La novela histórica. Trad. Jasmin Reuter. México, Ediciones Era, 1971.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

Varal de Trovas n. 150


Humberto de Campos (O Sonâmbulo)


A noite estava escura, fria, gelada, com a chuva a despencar, lá fora, os cafezais amadurecidos, quando o caboclo bateu, com a mão tiritante, à porta do casebre.

- Quem é? - indagou, de dentro, uma. voz masculina, demonstrando na tonalidade o aborrecimento por aquele incomodo fora de horas.

- Sou eu! - respondeu, de fora, o viandante, o Praxedes Ferreira, antigo tocador de gado em S. José do Paraíso.

Aberto um palmo da porta, o recém-chegado explicou-se. Ia de caminho para o Poço Fundo, e, surpreendido pelo chuveirão daquela tarde, pedia permissão para pernoitar no rancho, uma vez que não havia por ali, naquelas quatro léguas mais próximas, um lugar em que se acoitasse.

- Só se for no telheiro da cozinha; mas esse chove, como no meio do tempo. Serve? - observou, de má vontade, o colono Eleutério, dono do lugar e da casa.

- Serve! - concordou o Praxedes.

O colono fechou de novo a portinhola da frente, e ia atirar-se na esteira espichada no único compartimento do casebre, quando a mulher, que já ali estava encolhida, indagou, curiosa:

- Quem é, Lotério?

- Sei lá! É um camarada que vai de viaje. Mandei ele pro telheiro. Tá lá.

- Coitadinho! - gemeu a rapariga. - Com essa chuva!...

E após um momento:

- Por que você não manda o "coitado" aqui pra dentro? A esteira é grande, cabe os três. Você fica no meio.

O Eleutério imaginou o que estaria sofrendo, lá fora, o desgraçado, levantou-se, abriu a porta que dava para o velho telheiro alfinetado de chuva, e chamou:

- Ó amigo?

- Ôi? - acudiu o outro.

- Entre pra cá. Se deite aqui na esteira, com a gente.

O caboclo entrou, embrulhado num velho capote que tirara do saco, e atirou-se no lugar que lhe foi indicado, separado da rapariga pelo corpo forte, atlético, vigoroso, do dono da casa. Estirou-se, embrulhou-se, e estava para dormir, quando, de repente, como quem se esqueceu de alguma coisa, bate no braço do Eleutério, avisando:

- É verdade, eu me esqueci de lhe dizer; eu tenho um sono muito doído, com uns sonho de home doente; dou pulo, salto, rolo no chão, faço o diabo. Por isso, não se incomode não, se eu, sonhando, passá por cima do sinhô.

- Você é assim? - indagou o colono, descobrindo o rosto.

- É verdade! - confirmou o outro.

- Então, é tal qual como eu. Tem vez que eu sonho que estou agarrado com um cabra doido, da minha qualidade, e quando acordo, tou no meio da casa, em pé, de faca na mão. É um perigo!

O caboclo ouviu a ameaça, pensou, meditou, ruminou, e, após um instante, propôs:

- Vamo, então, fazê uma coisa?

- Que é?

- Vamo drumi sem sonhá?

E embrulhando-se no capote, rolou, macio, para a extremidade da esteira.

Fonte:
Biblioteca Virtual

Olivaldo Júnior (Trovas sobre o Fazer Poético)


Feito a chuva nos telhados,
cai meu verso em seus ouvidos;
logo escuto, desmanchados,
mais que os seus cinco sentidos...
* * * * * * * * * * * * * *
 
Ao fazer minha poesia,
faço um pouco minha história;
cada verso, a alvenaria
com que eu ergo a vã memória.
* * * * * * * * * * * * * *
 
Cada estrofe que recorto
com a tesoura da paixão
vira o cais no qual aporto
quando a Terra é solidão.
* * * * * * * * * * * * * *
 
Quem me dera ser poeta
para honrar meu grande amor!...
Mas o amor só me deleta
quando o exalto em seu andor...
* * * * * * * * * * * * * *
 
Meu amor nem sabe o quanto
me custou fazer poesia
com os pedaços desse encanto
que ele pôs em agonia!...
* * * * * * * * * * * * * *
 
Nem a métrica, nem nada
que me faça ser exato,
pode ser como a cantada
da pessoa que retrato...
* * * * * * * * * * * * * *
 
Acham feio este poeta
para ter amor também;
para um alvo, sua seta,
só a minha nunca vem...

Fonte:
Trovas enviadas pelo autor.

Arthur de Azevedo (Em Sonhos)


- Ora, sempre há sonhos muito esquisitos! - exclamou o César, logo pela manhã, quando se ergueu da cama.

- Com quem sonhaste? - perguntou D. Margarida, que ainda se achava deitada.

- Sonhei que estávamos num jardim, D. Eponina, a senhora do Sá Coelho, e eu, e que ela se atirou a mim aos beijos apertando-me nos braços dizendo que me adorava!

- E que necessidade tinha eu de saber desse teu sonho? - perguntou D. Margarida um tanto contrariada e, cá entre nós, com toda a razão.

- Oh! meu amor! Pois queres que eu tenha segredos para ti? Eu conto-te a minha vida toda, inclusive os meus sonhos!

- Pois sim, mas uma reserva natural, ou por outra, a delicadeza mais rudimentar deveria fazer com que não me contasses coisas que não me podem ser agradáveis, e cuja revelação nenhum interesse, nenhuma conveniência tem.

- Ora esta! Nunca esperei que te zangasses!.

- Não estou zangada, mas simplesmente ressentida; nenhuma esposa gosta de saber que mesmo em sonhos seu marido andou aos beijos com outra mulher!

- Em primeiro lugar, eu não beijei, fui beijado! Fui violentado!... Eu não queria!... D. Eponina caiu sobre mim com uma fúria!...

- Pois olha! Eu estou mais magoada contigo que com ela. .

- Deixa-te disso, Margarida! Os sonhos não querem dizer nada!...

- Não querem dizer nada, mas são sempre o resultado de uma impressão qualquer, recebida na vida real: se tu não tivesses tido um mau pensamento a respeito de Eponina, jamais sonharias que ela caiu sobre ti aos beijos!

- Por pouco mais, darias razão àquele fazendeiro, que mandou surrar o escravo por ter sonhado que este queria assassiná-lo!...

- Sim, tens razão, César... Sonhos são sonhos... uma tolice minha aborrecer-me por causa de uns beijos quiméricos, de que nenhuma culpa tens.

- Ora, ainda bem que te chegas à razão!.

E não se falou mais nisso: a discussão passou... como um sonho.

Três ou quatro dias depois, Margarida foi a primeira a erguer-se da cama.

- Que é isto? - perguntou César despertando. - Ergueste hoje mais cedo?

- Sim, porque estou aborrecida; tive um sonho terrível!

- Sim?... Com quem sonhaste?.

- Não quero ter segredos para meu marido: sonhei com o Braguinha!

- Com aquele patife, com aquele desavergonhado, que entendeu que podia namorar-te às minhas barbas! Pois tu sonhaste com esse homem?!.

- Sonhei; que tem isso?... Que culpa tenho eu?

- Conta-me o teu sonho.

– Isso não! Tu já ficaste tão zangado sabendo que sonhei com o Braguinha; que não farias se eu te contasse o resto?!

– Margarida! Nunca esperei que tu.

- Deixa-te disso!... Os sonhos não querem dizer nada. Demais, aconteceu-me o mesmo que a ti o outro dia: não beijei - fui beijada!.

O César saltou da cama furioso:

- Não calculas a vontade com que estou de quebrar a cara do Braguinha!

- Ora, aí tens! ~ exatamente o caso do fazendeiro!

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos vários.

terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Roberto Pinheiro Acruche (Poemas Avulsos) 3


AQUELE MOMENTO
Depois de um tempo sem viver
aquele momento tentador,
estonteante, apaixonante,
que mais agita e pulsa o ser humano;
ocasião que o conduz ao planeta
do amor, do sonho, aspiração,
do desejo e do prazer;
que o faz suspirar
estabelecendo fantasias
quando beija, abraça, acaricia
o corpo de quem tanto ama
seduz e encanta!
A tristeza invade o coração
solitário.

Mas, quando acontece viver
aquele momento, o coração
é invadido pela alegria,
contentamento e exuberante
entusiasmo!
O deslumbramento flutua
na imaginação; tudo é doce,
romântico, lindo, belo,
sonhador e apaixonante;
é o momento que a felicidade
no melhor do seu sentido
embala a alma e o corpo,
encantando, enfeitando,
colorindo e florindo a vida!

A NOSSA CASINHA

Diga, por que isso agora?
Se durante tanto tempo
estivemos unidos
nos amamos, fomos amigos
tão queridos;
se trocamos juras, paixão,
ternura, carinho e emoção...
Por que isso agora?...
Se antes fora tão linda a nossa união!
Deixa-me entrar nesta casinha
que é tua, eu sei,
mas que também é minha.
Deixa-me senti-la de novo,
cheirar o teu cheiro,
teu cheiro gostoso.
Deixa-me invadi-la,
penetrá-la, não mais resisto, insisto...
Deixa que eu mexa e remexa como tanto fiz.
Foram tantas as intimidades,
já não resisto à saudade...
Deixa que eu faça e desfaça,
como tanto pedira para que fizesse.
Deixa-me entrar nesta casinha,
formosa, gostosa, mesmo sendo apertadinha,
que é tua eu sei, mas que também é minha.
Deixa-me entrar agora, sem demora,
já fazem horas que eu te peço...
Não me deixe aqui, assim, de fora...
Se ainda não está arrumada,
se está molhada, que importa?
Abra a porta, vai ser bom, me conforta...
Deixa-me entrar nesta casinha, que é tua,
eu sei, mas que também, foi sempre minha!

DESTE MODO

Ela disse assim:
Ame-me como te quero amar,
Se entregue a mim como
Desejo entregar-me a você,
Deixa-me te beijar
Matar essa sede
Que você me acende
E me deixa louca,
Esmaga-me em seus braços
Fortes, tantas vezes,
Até que meus suspiros
Se esgotem.
É assim que eu te quero!

RECORDAÇÕES

Passei hoje alguns momentos
relembrando o meu passado,
tantos acontecimentos...
Que acabei emocionado!
* * * * * * * *
Foram incontáveis lutas,
atravanques enfrentados...
Desejos, sonhos, disputas,
muitos esforços doados!
* * * * * * * *
Uma vida de histórias
e de muitos sofrimentos;
de derrotas e vitórias,
mas, sem arrependimentos!
* * * * * * * *
Lutei em favor do bem,
por grandes realizações
e resolvido fui além...
Mesmo com perseguições!
* * * * * * * *
Nunca fugi da batalha,
trabalho incansavelmente...
Pisei em fio de navalha
para ajudar muita gente!
* * * * * * * *
Com maldade descabida
tentaram me derrotar;
mas, dei uma lição de vida,
da qual posso me orgulhar!
* * * * * * * *
Não guardo ressentimento,
qualquer tipo de rancor...
Quem mal me fez, por momento,
me causando dissabor.
* * * * * * * *
O tempo passa correndo,
a velha idade chegando...
Espero, enquanto vivendo,
poder continuar sonhando!
* * * * * * * *
Sonho ver a minha terra
com todo o povo sorrindo...
Que a luz da vida descerra
dias cada vez mais lindo!
* * * * * * * *
Amigos, muito obrigado,
deixo aqui o meu carinho
por estar emocionado
estou chorando sozinho!

TEMOR OU FÉ

Pela vontade de Deus, estou vivendo
desempenhando essa minha missão;
ora cheio de esperança, querendo
viver mais, ora sem inspiração.

Esses momentos dúbios eu condescendo;
possivelmente não sejam em vão!
Ciência divina, que não compreendo;
provavelmente existe uma razão.

Temor, fé, será o que estou professando?
A vida ensina, sigo suplicando...
Pela paz, alegria e salvação.

Sigo enfrentando as minhas relutâncias!
Absorvendo as minhas inconstâncias...
Pelos pecados pedindo perdão.

Fonte:

Machado de Assis (Um Cão de Lata ao Rabo)


Publicado originalmente em O Cruzeiro, 1878

Era uma vez um mestre-escola, residente em Chapéu d’Uvas, que se lembrou de abrir entre os alunos um torneio de composição e de estilo; ideia útil, que não somente afiou e desafiou as mais diversas ambições literárias, como produziu páginas de verdadeiro e raro merecimento.

— Meus rapazes disse ele. Chegou a ocasião de brilhar e mostrar que podem fazer alguma coisa. Abro o concurso e dou quinze dias aos concorrentes. No fim dos quinze dias, quero ter em minha mão os trabalhos de todos; escolherei um júri para os examinar, comparar e premiar.

— Mas o assunto? perguntaram os rapazes batendo palmas de alegria.

— Podia dar-lhes um assunto histórico; mas seria fácil, e eu quero experimentar a aptidão de cada um. Dou-lhes um assunto simples, aparentemente vulgar, mas profundamente filosófico.

— Diga, diga.

— O assunto é este: — UM CÃO DE LATA AO RABO. Quero vê-los brilhar com opulências de linguagem e atrevimentos de ideia. Rapazes, à obra! Claro é que cada um pode apreciá-lo conforme o entender.

O mestre-escola nomeou um júri, de que eu fiz parte. Sete escritos foram submetidos ao nosso exame. Eram geralmente bons; mas três, sobretudo, mereceram a palma e encheram de pasmo o júri e o mestre, tais eram — neste o arrojo do pensamento e a novidade do estilo — naquele a pureza da linguagem e a solenidade acadêmica — naquele outro a erudição rebuscada e técnica — tudo novidade, ao menos em Chapéu d’Uvas. Nós os classificamos pela ordem do mérito e do estilo. Assim, temos:

    1º Estilo antitético e asmático.
    2º Estilo ab ovo.
    3º Estilo largo e clássico.

Para que o leitor fluminense julgue por si mesmo de tais méritos, vou dar adiante os referidos trabalhos, até agora inéditos, mas já agora sujeitos ao apreço público.
 
I: Estilo Antiético e asmático

O cão atirou-se com ímpeto. Fisicamente, o cão tem pés, quatro; moralmente, tem asas, duas. Pés: ligeireza na linha reta. Asas: ligeireza na linha ascensional. Duas forças, duas funções. Espádua de anjo no dorso de uma locomotiva.

Um menino atara a lata ao rabo do cão. Que é rabo? Um prolongamento e um deslumbramento. Esse apêndice, que é carne, é também um clarão. Diz-o a filosofia? Não; diz-o a etimologia. Rabo, rabino: duas ideias e uma só raiz.

A etimologia é a chave do passado, como a filosofia é a chave do futuro.

O cão ia pela rua fora, a dar com a lata nas pedras. A pedra faiscava, a lata retinia, o cão voava. Ia como o raio, como o vento, como a ideia. Era a revolução, que transtorna, o temporal que derruba, o incêndio que devora. O cão devorava. Que devorava o cão? O espaço. O espaço é comida. O céu pôs esse transparente manjar ao alcance dos impetuosos. Quando uns jantam e outros jejuam; quando, em oposição às toalhas da casa nobre, há os andrajos da casa do pobre; quando em cima as garrafas choram lacrima christi, e embaixo os olhos choram lágrimas de sangue, Deus inventou um banquete para a alma. Chamou-lhe espaço. Esse imenso azul, que está entre a criatura e o criador, é o caldeirão dos grandes famintos. Caldeirão azul: antinomia, unidade.

O cão ia. A lata saltava como os guizos do arlequim. De caminho envolveu-se nas pernas de um homem. O homem parou; o cão parou: pararam diante um do outro. Contemplação única! Homo, canis. Um parecia dizer: — Liberta-me! O outro parecia dizer: — Afasta-te! Após alguns instantes, recuaram ambos; o quadrúpede deslaçou-se do bípede. Canis levou a sua lata; homo levou a sua vergonha. Divisão equitativa. A vergonha é a lata ao rabo do caráter.

Então, ao longe, muito longe, troou alguma coisa funesta e misteriosa. Era o vento, era o furacão que sacudia as algemas do infinito e rugia como uma imensa pantera. Após o rugido, o movimento, o ímpeto, a vertigem. O furacão vibrou, uivou, grunhiu. O mar calou o seu tumulto, a terra calou a sua orquestra. O furacão vinha retorcendo as árvores, essas torres da natureza, vinha abatendo as torres, essas árvores da arte; e rolava tudo, e aturdia tudo, e ensurdecia tudo. A natureza parecia atônita de si mesma. O condor, que é o colibri dos Andes, tremia de terror, como o colibri, que é o condor das rosas. O furacão igualava o píncaro e a base. Diante dele o máximo e o mínimo eram uma só coisa: nada. Alçou o dedo e apagou o sol. A poeira cercava-o todo; trazia poeira adiante, atrás, à esquerda, à direita; poeira em cima, poeira embaixo. Era o redemoinho, a convulsão, o arrasamento.

O cão, ao sentir o furacão, estacou. O pequeno parecia desafiar o grande. O finito encarava o infinito, não com pasmo, não com medo; — com desdém. Essa espera do cão tinha alguma coisa de sublime. Há no cão que espera uma expressão semelhante à tranquilidade do leão ou à fixidez do deserto. Parando o cão, parou a lata. O furacão viu de longe esse inimigo quieto; achou-o sublime e desprezível. Quem era ele para o afrontar? A um quilômetro de distância, o cão investiu para o adversário. Um e outro entraram a devorar o espaço, o tempo, a luz. O cão levava a lata, o furacão trazia a poeira. Entre eles, e em redor deles, a natureza ficaria estática, absorta, atônita.

Súbito grudaram-se. A poeira redemoinhou, a lata retiniu com o fragor das armas de Aquiles. Cão e furacão envolveram-se um no outro; era a raiva, a ambição, a loucura, o desvario; eram todas as forças, todas as doenças; era o azul, que dizia ao pó: és baixo; era o pó, que dizia ao azul: és orgulhoso. Ouvia-se o rugir, o latir, o retinir; e por cima de tudo isso, uma testemunha impassível, o Destino; e por baixo de tudo, uma testemunha risível, o Homem.

As horas voavam como folhas num temporal. O duelo prosseguia sem misericórdia nem interrupção. Tinha a continuidade das grandes cóleras. Tinha a persistência das pequenas vaidades. Quando o furacão abria as largas asas, o cão arreganhava os dentes agudos. Arma por arma; afronta por afronta; morte por morte. Um dente vale uma asa. A asa buscava o pulmão para sufocá-lo; o dente buscava a asa para destruí-la. Cada uma dessas duas espadas implacáveis trazia a morte na ponta.

De repente, ouviu-se um estouro, um gemido, um grito de triunfo. A poeira subiu, o ar clareou, e o terreno do duelo apareceu aos olhos do homem estupefato. O cão devorara o furacão. O pó vencera o azul. O mínimo derrubara o máximo. Na fronte do vencedor havia uma aurora; na do vencido negrejava uma sombra. Entre ambas jazia, inútil, uma coisa: a lata.
 
II: Estilo Ab Ovo

Um cão saiu de lata ao rabo. Vejamos primeiramente o que é o cão, o barbante e a lata; e vejamos se é possível saber a origem do uso de pôr uma lata ao rabo do cão.

O cão nasceu no sexto dia. Com efeito, achamos no Gênese, cap. I, v. 24 e 25, que, tendo criado na véspera os peixes e as aves, Deus criou naqueles dias as bestas da terra e os animais domésticos, entre os quais figura o de que ora trato.

Não se pode dizer com acerto a data do barbante e da lata. Sobre o primeiro, encontramos no Êxodo, cap. XXVII, v. 1, estas palavras de Jeová: “Farás dez cortinas de linho retorcido”, de onde se pode inferir que já se torcia o linho, e por conseguinte se usava o cordel. Da lata as induções são mais vagas. No mesmo livro do Êxodo, cap. XXVII, v. 3, fala o profeta em caldeiras; mas logo adiante recomenda que sejam de cobre. O que não é o nosso caso.

Seja como for, temos a existência do cão, provada pelo Gênese, e a do barbante citada com verossimilhança no Êxodo. Não havendo prova cabal da lata, podemos crer, sem absurdo, que existe, visto o uso que dela fazemos.

Agora: — de onde vem o uso de atar uma lata ao rabo do cão? Sobre este ponto a história dos povos semíticos é tão obscura como a dos povos arianos. O que se pode afiançar é que os Hebreus não o tiveram. Quando Davi (Reis, cap. V, v. 16) entrou na cidade a bailar defronte da arca, Micol, a filha de Saul, que o viu, ficou fazendo má ideia dele, por motivo dessa expansão coreográfica. Concluo que era um povo triste. Dos Babilônios suponho a mesma coisa, e a mesma dos Cananeus, dos Jabuseus, dos Amorreus, dos Filisteus, dos Fariseus, dos Heteus e dos Heveus.

Nem admira que esses povos desconhecessem o uso de que se trata. As guerras que traziam não davam lugar à criação o município, que é de data relativamente moderna; e o uso de atar a lata ao cão, há fundamento para crer que é contemporâneo do município, porquanto nada menos é que a primeira das liberdades municipais.

O município é o verdadeiro alicerce da sociedade, do mesmo modo que a família o é do município. Sobre este ponto estão de acordo os mestres da ciência. Daí vem que as sociedades remotíssimas, se bem tivessem o elemento da família e o uso do cão, não tinham nem podiam ter o de atar a lata ao rabo desse digno companheiro do homem, por isso que lhe faltava o município e as liberdades correlatas.

Na Ilíada não há episódio algum que mostre o uso da lata atada ao cão. O mesmo direi dos Vedas, do Popol-Vuh e dos livros de Confúcio. Num hino a Varuna (Rig-Veda, cap. I v. 2), fala-se em um “cordel atado embaixo”. Mas não sendo as palavras postas na boca do cão, e sim na do homem, é absolutamente impossível ligar esse texto ao uso moderno.

Que os meninos antigos brincavam, e de modo vário, é ponto incontroverso, em presença dos autores. Varrão, Cícero, Aquiles, Aulo Gélio, Suetônio, Higino, Propércio, Marcila falam de diferentes objetos com que as crianças se entretinham, ou fossem bonecos, ou espadas de pau, ou bolas, ou análogos artifícios. Nenhum deles, entretanto, diz uma só palavra do cão de lata ao rabo. Será crível que, se tal gênero de divertimento houvera entre romanos e gregos, nenhum autor nos desse dele alguma notícia, quando o fator de haver Alcebíades cortado a cauda de um cão seu é citado solenemente livro de Plutarco?

Assim explorada a origem do uso, entrarei no exame do assunto que... (Não houvera tempo para concluir).

III: Estilo Largo e Clássico

Larga messe de louros se oferece às inteligências altíloquas, que, no prelo agora encetado, têm de terçar armas temperadas e finais, ante o ilustre mestre e guia de nossos trabalhos; e porquanto os apoucamentos do meu espírito me não permitem justar com glória, e quiçá me condenam a pronto desbaratamento, contento-me em seguir de longe a trilha dos vencedores, dando-lhes as palmas da admiração.

Manha foi sempre puerícia atar uma lata ao apêndice posterior do cão: e essa manha, não por certo louvável, é quase certo que a tiveram os párvulos de Atenas, não obstante ser a abelha-mestra da antiguidade, cujo mel ainda hoje gosta o paladar dos sabedores.

Tinham alguns infantes, por brinco e gala, atado uma lata a um cão, dando assim folga a aborrecimentos e enfados de suas tarefas escolares. Sentindo a mortificação do barbante, que lhe prendia a lata, e assustado com o soar da lata nos seixos do caminho, o cão ia tão cego e desvairado, que a nenhuma coisa ou pessoa parecia atender.

Movidos da curiosidade, acudiam os vizinhos às portas de suas vivendas, e, longe de sentirem a compaixão natural do homem quando vê padecer outra criatura, dobravam os agastamentos do cão com surriadas e vaias. O cão perlustrou as ruas, saiu aos campos, aos andurriais, até entestar com uma montanha, em cujos alcantilados píncaros desmaiava o sol, e ao pé de cuja base um mancebo pastava o seu gado.

Quis o Supremo Opífice que este mancebo fosse mais compassivo que os da cidade, e fizesse acabar o suplício do cão. Gentil era ele de olhos brandos e não somenos em graça aos da mais formosa donzela. Com o cajado ao ombro, e sentado num pedaço de rochedo, manuseava um tomo de Virgílio, seguindo com o pensamento a trilha daquele caudal engenho. Apropiando-se o cão do mancebo, este lhe lançou as mãos e o deteve. O mancebo varreu logo da memória o poeta e o gado, tratou de desvincular a lata do cão e o fez em poucos minutos, com mor destreza e paciência.

O cão, aliás vultoso, parecia haver desmedrado fortemente, depois que a malícia dos meninos o pusera em tão apertadas andanças. Livre da lata, lambeu as mãos do mancebo, que o tomou para si, dizendo: — De ora avante, me acompanharás ao pasto.

Folgareis certamente com o caso que deixo narrado, embora não possa o apoucado e rude estilo do vosso condiscípulo dar ao quadro os adequados toques. Feracíssimo é o campo para engenhos de mais alto quilate; e, embora abastado de urzes, e porventura coberto de trevas, a imaginação dará o fio de Ariadne com que sói vencer os mais complicados labirintos.

Entranhado anelo me enche de antecipado gosto, por ler os produtos de vossas inteligências, que serão em tudo dignos do nosso digno mestre, e que desafiarão a foice da morte colhendo vasta seara de louros imarcescíveis com que engrinaldareis as fontes imortais.

Tais são os três escritos; dando-os ao prelo, fico tranquilo com a minha consciência; revelei três escritores.

Fonte:
Wikisource