terça-feira, 21 de janeiro de 2020

Varal de Trovas n. 169


A. A. de Assis (O Avião, o Jipe e a Mulher)


Eram meados dos anos 1960. Numa conversa com o agrônomo Aníbal Bianchini da Rocha, ele me disse algo de que nunca mais me esqueci: que três contribuições foram fundamentais na colonização do norte e noroeste do Paraná – a do avião, a do jipe e a da mulher.

No começo, aqui não havia estradas. O avião, cavalo voante do desbravador moderno, pousava em qualquer clareira da mata, despejando gente arrojada em cima da terra que ansiava por parir fartura. Contavam-se proezas incríveis daqueles ginetes do ar, que perturbavam o sono das onças com o ronco festeiro dos seus teco-tecos.

Abertos os primeiros caminhos, o jipe acompanhou o avião no mergulho do homem floresta a dentro. Trotando nos picadões, rosnava qual fera de aço, pulando buracos, amassando espinhos, esmagando cobras, empurrando tocos, desafiando o que surgisse à frente.

Os caminhos viraram arremedos de estradas. E o jipe ainda nelas seguia atravessando túneis de poeira vermelha em épocas de sol, engatando reduzida e calçando correntes em dias de chuva, subindo e descendo aqueles morros escorreguentos que nem quiabo. O avião no céu, o jipe no chão, transportando o agito para o sertão selvagem. O homem invadindo a mata, guloso de plantar para enricar ligeiro.

Mas o homem não teria vencido como venceu, mesmo com os seus aviões malucos e os seus jipes desassombrados, se a seu lado não estivesse a mulher. Só Deus sabe o que enfrentaram aqui aquelas heroicas senhoras, naqueles tempos de total desassistência e desconforto.

Sair de sei lá onde, com as crianças e as panelas nas costas, para viver num lugar sem nenhum recurso, convenhamos que foi coragem das grandes. Os maridos plantando roças e elas em casa criando filhos, cozinhando inhame, lavando roupas que o pó e o barro transformavam numa espécie de encerado. E mais: rezando pra Deus ajudar, que só Deus podia ajudar na completa desproteção daquele fim de mundo.

Olhem que se eu fosse prefeito mandaria erguer um monumento para elas. Outro para o teco-teco. Outro para o jipe. Mandaria mesmo.

Fonte:
A. A. de Assis. Vida, Verso e Prosa.
Livro entregue pelo autor.

Horácio Portella (Versos Diversos)


A CIGARRA E O POETA

(Homenagem ao saudoso mestre e padrinho Olegário Mariano)

Quando a cigarra canta o espírito delira;
e desse canto alegre as notas musicais
criam na mente a forma excelsa de uma lira
em que o poeta canta os sonhos eternais.

O Vate empunha a lira e canta os ideais
que vêm do coração e os leva à etérea pira
eternizando ali, em versos magistrais,
o sonho bom pra ver se a mágoa se retira.

O singular refúgio, onde o poeta canta,
é o paço sideral, perene, é o universo..,
E o canto, mansamente, explode na garganta,

Seu canto é oração - simbólico rosário...
E cada conta dele é delicado verso,
onde reza a cigarra amiga de Olegário.
* * * * * * * * * * * * * *

 A MARCHA DO TEMPO

Sem pressa as horas passam uma a uma,
escorrem para o túnel do passado,
- não se consegue segurar nenhuma -
pois cada qual já deu o seu recado.

Para a memória humana resta a bruma
que pode dar prazer ou desagrado.
Querendo nós ou não assim se esfuma
a vibração do tempo - este é seu fado.

Essa rotina segue sem descanso,
no transcorrer sutil da eternidade,
num caminhar tranquilamente manso.

Assim também os versos do soneto
vão no papel deixando a novidade
envelhecer no último terceto.
* * * * * * * * * * * * * *

A MORTE DO SOL

Rondando o velho Sol pela amplidão do céu,
já moribundo cai, cansado, no horizonte,
enquanto a Noite vem trazendo o negro véu
que à Terra toda envolve, à espera que desponte

a Lua a comandar o imenso povaréu
de Estrelas, para o adeus ao Astro-Rei, insonte,
em silente cortejo até seu mausoléu,
localizado além dos píncaros do monte.

São lágrimas da Noite o orvalho, o desencanto,
enquanto a Lua espelha a sideral tristeza
na intensa palidez de seu argênteo manto.

Mas Deus, que é Luz e Amor e tudo fez do nada,
com Sua Mão gentil tocando a Natureza,
o Sol ressuscitou nos braços da Alvorada.
* * * * * * * * * * * * * *

LUZ DO ALÉM

Inspiração nascida à luz de vela,
que mansamente jorra no papel,
é delicada, meiga, assaz singela,
porém precisa praticar rapel.

Quando a energia foge da procela
galopa o Vate em seu sutil corcel
buscando a gema preciosa e bela,
a gema rara do divino anel.

Cada mensagem que de Deus provém
virá trazer aos corações humanos
a luz que brilha muito além do Além.

Assim, portanto, nasce cada verso,
sagrado, santo, aos olhos dos profanos
provindo do Arquiteto do Universo.
* * * * * * * * * * * * * *

TROVAS

Em métrica setimal
e quatro versos somente
a trova é gentil fanal
que ilumina nossa mente,

Eu creio que não mereço
o valor pago na cruz.
Caro demais foi o preço:
Vida, Sangue, Amor e Luz.

O Saci perdeu a graça
e agora só faz careta
quando diante de nós passa
mas não quer usar muleta.

Quem mantém um passarinho
na gaiola em cativeiro
diz por ele ter carinho
mas é cruel carcereiro.

Trovando com luz de vela,
com certeza, o que acontece:
a trova fica mais bela
pois ganha uns ares de prece.

Fonte:
Lilia Souza (org.). Coletânea: Academia Paranaense de Poesia. Curitiba: APP, 2012.

Contos e Lendas do Mundo (Finlândia: Lippo e Tapio)

Lippo, caçador exímio, foi um dia, com dois amigos, à caça à rena. Percorreram o bosque de manhã à noite e, quando escureceu, procuraram abrigo contra as trevas e o frio numa cabana de troncos. Pernoitaram aí e, ao amanhecer, os três homens voltaram a pôr os esquis. Antes de abandonarem a cabana, Lippo tocou um esqui com o outro e disse:

— Que o dia de hoje me proporcione uma boa presa: uma parte para um esqui, outra para o outro e uma terceira para o meu bastão.

Mal tinham começado a andar, quando se lhes depararam as pegadas de três renas. Seguiram-nas e não tardaram a avistá-las: duas juntas e a terceira um pouco afastada. Lippo disse então aos amigos:

— Podem perseguir as duas. Serão as vossas presas. Eu fico com a que está só.

Proferidas estas palavras, deslizou na neve durante todo o dia, até que a noite o surpreendeu, mas não pôde alcançar a rena, apesar de ser um esquiador muito rápido.

Chegou então a uma fazenda e a rena refugiou-se no estábulo, sempre com Lippo no seu encalço. No pátio, encontrava-se o proprietário, um venerável ancião de cabelo e barba brancos.

— Que é lá isso! — exclamou. — Quem é o filho de um sapo que persegue a minha reprodutora fazendo-a suar?

Lippo aproximou-se, saudou-o respeitosamente e replicou:

— Sou eu, mas como não a consegui capturar, vim parar a esta fazenda.

O ancião, que era o próprio Tapio, dono do bosque em volta, declarou:

— Bem, se perseguiste a minha reprodutora até ao por-do-sol, podes passar a noite nos meus aposentos.

Lippo entrou na casa e ficou maravilhado quando olhou em redor: havia renas, veados, ursos, raposas, lobos e todos os animais selvagens possíveis de imaginar. A seguir, Tapio convidou-o para jantar e serviu-o excelentemente.

Na manhã seguinte, Lippo quis prosseguir viagem, mas não conseguiu encontrar os esquis. Quando perguntou por eles ao dono da casa, este redarguiu:

— Não queres ficar em minha casa e ser meu genro? Tenho uma filha única.

Mas Lippo respondeu:

— Ficaria com o maior prazer, mas sou um homem pobre.

— Isso é comigo! A pobreza não é nenhum defeito. Na nossa casa, terás tudo o que desejares.

E assim, o ancião entregou a filha ao visitante, e o ágil esquiador e caçador ficou como genro na cabana do bosque de Tapio.

Quando haviam passado três anos desde a sua chegada, a filha de Tapio deu-lhe um filho. Lippo quis então visitar a pátria, pelo que pediu ao sogro que o conduzisse lá. No entanto, este último disse:

— Se fizeres uns esquis do meu agrado, autorizar-te-ei a partir.

Lippo dirigiu-se prontamente ao bosque e começou a trabalhar nos esquis. Um pássaro que estava empoleirado no ramo de uma árvore cantarolou:

Ti, ti, apesar de ser uma ave pequena,
dir-te-ei qual é a forma corrente:
afia um ramo apontado ao chão
e cola-lhe a extremidade da frente.


Lippo atirou-lhe uma lasca de madeira, ao mesmo tempo que observava:

— Que estás aí a cantar, animalzinho pateta?

Terminados os esquis, adornou-os o melhor que sabia e foi mostrá-los a Tapio. Este experimentou-os e apressou-se a afirmar:

— Estes esquis não são para mim.

No dia seguinte, Lippo teve de se dirigir de novo ao bosque para recomeçar a trabalhar. O pássaro, que se achava igualmente presente, cantou:

Ti, ti, apesar de ser uma ave pequena,
dir-te-ei qual é a forma corrente:
afia um ramo apontado ao chão
e cola-lhe a extremidade da frente.


— Estás outra vez com as tuas fantasias? — exclamou ele, furioso, atirando-lhe um pedaço de madeira.

Não fazia a menor intenção de seguir o conselho do pássaro, pelo que cortou os esquis segundo o método usual e foi mostrá-los a Tapio.

— Estes esquis não são para mim — voltou o sogro a dizer.

Quando Lippo, no terceiro dia, chegou mais uma vez ao bosque, deparou-se novamente o pássaro, com a sua cantilena:

Ti, ti, apesar de ser uma ave pequena,
dir-te-ei qual é a forma corrente:
afia um ramo apontado ao chão
e cola-lhe a extremidade da frente.


Ele refletiu então: "Está bem, procederei como dizes. Não terás cantado em vão." Pegou num ramo bem nodoso, fixou-o à ranhura estreita da parte inferior do esqui e atou a correia à extremidade da frente, após o que foi mostrar o resultado a Lippo.

— Estes, sim, são meus! — exclamou o sogro, quando os experimentou. — Agora, podes ir à tua pátria.

E acompanhou-o, dizendo:

— Irei à frente e vocês seguirão as minhas pegadas. Onde encontrarem a marca da ponta do meu bastão, deverão pernoitar. Mas constrói a tua cabana com ramos de abeto e paredes espessas, para que não entre a luz das estrelas.

Com estas palavras, Tapio empreendeu o caminho. As ramagens que tinha na parte inferior dos esquis iam produzindo marcas bem nítidas, pelo que Lippo o podia seguir, com a mulher e o filho. Quando começava a anoitecer, viram o sinal do bastão e, junto dele, um veado assado para o jantar. Construíram uma cabana de paredes espessas com folhagem de abeto, cobriram-na com um teto muito firme e colocaram dentro o pequeno trenó com a criança, após o que se deitaram para descansar.

Na manhã seguinte, prosseguiram viagem, levando um pedaço do veado assado para o caminho.

Ao anoitecer, voltaram a encontrar a marca do bastão e uma rena assada ao lado. Tornaram a construir uma cabana de paredes muito espessas com folhagem de abeto e colocaram dentro o trenó com a criança. Depois de repousarem toda a noite, reataram a marcha, até que, ao anoitecer, encontraram a terceira marca do bastão. Desta vez, havia um galo-selvagem assado para o jantar.

— A pátria não pode estar muito longe, se só nos oferecem um galo-selvagem — exclamou Lippo.

Construíram uma cabana assaz diáfana, colocaram dentro o trenó com a criança e depois deitaram-se. Durante a noite, as nuvens dissiparam-se e a luz das estrelas incidiu neles através do teto pouco espesso.

Quando acordou de manhã, Lippo não conseguiu encontrar a esposa em parte alguma. Saiu da cabana e esquadrinhou as cercanias, mas não havia o menor vestígio dos esquis de Tapio, e ficou sem saber que rumo deveria tomar, dada a ausência de qualquer rasto. Sentou-se à porta da cabana com o filho, imerso em cogitações. De súbito, passou perto um veado aos berros. À parte isto, não viu nada ao longo de todo o dia e, quando anoiteceu, reconheceu que não lhe restava qualquer alternativa senão pernoitar ali. No dia seguinte, tornou a haver um galo-selvagem diante da porta e o veado voltou a passar aos berros.

Lippo permaneceu muitos anos com o filho na cabana de ramagens de abeto. Todas as manhãs havia um galo-selvagem assado diante da entrada, e o veado aos berros também nunca faltava. A criança cresceu e converteu-se num mancebo inteligente e sensato. Pediu ao pai que confeccionasse um tubo longo para poderem ver se a pátria estava longe. Nos momentos de ócio, Lippo assim fez e, quando terminou, ofereceu-o ao filho. Este utilizou-o imediatamente e exclamou:

— A pátria não é nada longe! Estamos muito perto da nossa terra!

E, com efeito, quando empreenderam viagem, não tardaram a chegar. O jovem veio a tornar-se o patriarca dos lapões. E, com isto, o conto chegou ao fim.

Fonte:
Contos Tradicionais da Finlândia

segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

Varal de Trovas n. 168


Vinicius de Moraes (A letra A: Palavra por Palavra) Abajur


Abajur: Foi, talvez a primeira palavra francesa de que tive conhecimento, e ela me traz recordações tão lindas da Ilha do Governador que, ainda agora, a escrever estas memórias, tenho os olhos rasos d'água.

Nossa casa, com duas janelas de frente, ficava à beira-mar, em Cocotá, a meio quilômetro da grande amendoeira onde o bondinho da ilha rangia na curva, em demanda de Freguesia. Eu tinha por aí uns nove anos, e era a coisa mais pulante, grimpante e nadante que já existiu. Nunca menino algum aceitou menos as vias normais de acesso. Sempre em carreira, desviava compulsivamente minha velocidade para as sebes, que varava, os muros, que escalava, e os fossos, que transpunha. Vivia aos saltos, de baixo para cima, de cima para baixo. Bastava ver um acidente qualquer de terreno, uma cerca, uma catraia a seco, um valado, e eu, dando tudo, precipitava-me a mil e - zumpt! - saltava-os feito um doido dançarino. Era como um Nijinski infante a dar entrechats cada vez mais altos e elásticos, numa ânsia de alcançar não sei o quê, quem sabe o infinito, quem sabe Deus...

E caía exato

Como cai um gato.

…para recomeçar uma correria nova, fosse para a casa de Mário e Quincas, meus amiguinhos pobres, fosse para o pontão das barcas da Cantareira, de onde Augusto mergulhava.

Augusto era o meu deus. Irmão mais velho de Mário, Quincas e Marina, minha namoradinha secreta, Augusto representava para mim o herói total configurado no mergulhador. Eu admirava, da ponte de Cocotá, a agilidade com que ele, numa escalada de macaco, subia as estacas mais altas, de onde dava os saltos de anjo mais lindos, penetrando o mar como uma faca em ponta, sem qualquer espadana, e com um marulho apenas perceptível. E eu ficava sempre numa aflição, de não vê-lo nunca mais voltar à tona. Augusto demorava dois minutos folgados a vasculhar o fundo, do qual trazia sempre qualquer coisa de belo ou de útil: caranguejo, ferro-velho, estrela-do-mar, ou o que fosse, que me atirava de baixo, em saltos que lhe faziam soerguer meio corpo da superfície, como um golfinho brincalhão. Nós andávamos os quatro sempre de súcia, e a mim me espantava a naturalidade em que seus irmãos o tinham, sem nenhuma mostra de admiração. Foi ele que me ensinou a mergulhar e mover-me no fundo do mar, rente ao lodo; e mais tarde a pescar a dinamite: uma barbaridade que, na época, eu achava o máximo. Augusto colocava-se à proa do barco, nós nos agachávamos na popa como podíamos, ele acendia o pavio, esperava um momento, soprando-o forte, e, de repente, no segundo antes, lançava a banana de dinamite ao mar. A explosão, gorda e cava, levantava, ato contínuo, um cogumelo espumarento, e logo os peixes mortos começavam a subir. Mas os que nos interessavam eram os que ficavam atordoados, atrás dos quais mergulhávamos rápido. Levávamos, para essas ocasiões, pequenos sacos, e, uma vez cheios, metíamos o peixe dentro da camisa da roupa de banho - como se usava na época - e voltávamos semi-asfixiados à tona. Nunca mais pude esquecer o contato frio e viscoso dos peixes contra a minha pele.
                                                *

À tarde, na sala de visitas, como então se dizia, onde tudo o que havia de luxo era o belo jarrão chinês, trazido por meu bisavô de uma de suas andanças, minha mãe sentava-se ao piano e ficava tocando horas perdidas.

Nós ficávamos, minha irmã mais velha e eu, sentados no chão, geralmente a armar colagens ou a folhear o Tico-Tico, o Eu sei tudo e o Tesouro da juventude, nossa primeira leitura infantil. Os sons vinham, encantatórios, mergulhar ainda mais nossas vidas naquele clima doméstico, como se nós fôssemos a única família do mundo. E a verdade é que éramos a única família do mundo, unidos pelos mesmos horários e pelos mesmos desígnios de poupança, pois meu pai, por uns maus negócios que fizera, andava mal de vida.

Minha mãe, ainda tão moça, aflorava as teclas, o olhar perdido longe. Ela tinha sido aluna de francês de meu pai, na velha chácara da Gávea, e se casara aos 15 anos com esse homem bem mais velho, que se apaixonara perdidamente por ela, e que, bom poeta, vivia a lhe fazer sonetos, odes, rimancetes, baladas, elegias - tudo enfim que constitui e consolida a arte de fazer versos.

Eu a achava linda, toda rechonchuda, os longos cabelos soltos e os olhos de um azul tão vivo que, às vezes, parecia perturbar-lhe a visão, como se ela estivesse enxergando mais do que devia. Posso ouvir ainda os primeiros tangos que ela tocava, dos quais "La cumparsita" era o mais vibrante e "Caminito" o mais terno...

E de repente foi o fox-trot. Que alucinação! Meu pai chegava com novas partituras, que minha mãe tirava laboriosamente ao piano:

Hindustão
Paraíso das mulheres divinais
Ó Hindustão
Quem te ama não te esquece nunca mais...

Eram os primeiros doces tentáculos do polvo tateando à toa num mundo despreocupado e sem malícia. Nós não sabíamos de nada ainda. Sabíamos que éramos uma família que morava numa ilha pertencente à capital de um país que não sabíamos tampouco subdesenvolvido. Sabíamos vagamente que houvera uma guerra mundial e um terremoto no Japão. E súbito, aquele ritmo diferente e cheio de langor, a insinuar conivências pecaminosas na penumbra...

Abajur
Com tua branda luz de cor bleu
Tu, só tu
Tu me inspiras não sei por quê...

Minha irmã e eu dançávamos, dois passos para lá, e dois para cá, como mandava o figurino. E os sons me envolviam dessa tristeza que nunca mais me abandonou, que tem a ver com alguma coisa sempre buscada e nunca totalmente possuída: não sei se o amor, não sei se a vida, não sei se a paz. Saudade, certo, que me fez poeta e compositor, e que, apesar de todas as flores e amores que a vida me deu, só me fez crescer em melancolia e solidão.

Fonte:
Rio de Janeiro, Jornal do Brasil, 31/12/1969

Silmar Böhrer ( Divagações Poéticas) 5


Ninguém duvida,
o livro dá vida
à nossa vida.
* * * * * * * * * * * * * *

a vida é uma comédia
infestada de tragédias
* * * * * * * * * * * * * *

às vezes penso
no que sou
e vejo
que nem isso sou
* * * * * * * * * * * * * *

a felicidade existe
em doses homeopáticas
em gotículas
em borrifos
* * * * * * * * * * * * * *

ideias fechadas não produzem
vegetam
* * * * * * * * * * * * * *

Porque a vida,
tão grande,
é tão pequena
que se vai
num piscar de olhos.
* * * * * * * * * * * * * *

Labirintos da memória,
antigos paióis,
silos
de armazenagem
de conhecimentos.
* * * * * * * * * * * * * *

Entre uma rodada e outra
de redes que vão ao mar,
cá estou eu a divagar,
há vida melhor, mais douta ?
* * * * * * * * * * * * * *

Apregoo,
expertos na vida
sejamos.
Eu, aprendiz,
esperto.
* * * * * * * * * * * * * *

Vivo no tempo
a destempo
sem contratempo
* * * * * * * * * * * * * *

tudo na vida
tem seu preço
tem seu peso

Fonte:
O Autor.

Nilto Maciel (Jornal de Domingo)


Escondido atrás do jornal, o professor Luiz Vaz passava o domingo. E garimpava pedras preciosas, por puro deleite. Ou para exi­bi-las a seus alunos.

Fora-se o tempo de Virgílio, Camões, Bilac. Agora, só queria os novos poetas. Nada de vertitur interea coelum*.

Olhos enfiados no chão da folha, Vaz sonhava. Nunca o chamariam velho. Antes, o eterno jovem. O mestre da língua viva. Polêmico, moderno, brasileiríssimo.

Súbita emoção. Arregalou os olhos. Um poema de Noto de Sissa! Leu o título. Uma beleza! O primeiro verso. Um primor!

Com sofreguidão, percorreu todo o poema. Voltou ao título, ao primeiro verso. Releu tudo, cheio de entusiasmo.

***
Na sala de aula, Luiz Vaz freou sua emoção. E amarrou a rubra língua no céu da boca. Queria um comentário escrito de cada aluno ao poema que copiava no quadro-negro.

***

Riu na cara dos alunos. Não aprendiam nada. Pareciam idiotas. Especialmente a "crítica" feita por Oton.

– Uma barbaridade!

E se pôs a falar os versos de Noto de Sissa. Pequena obra-prima da poesia épica.

A maioria dos jovens abriu a boca e queda ficou. Um, porém, não concordou com a análise do mestre. E defendeu, com língua e dentes, sua opinião.

Irritado com a presunção de Oton, o professor tratou de humilhá-lo. Não passava de um aluno, um fedelho. Longe ainda se achava de atingir os primeiros degraus do saber. Enquanto ele, Luiz Vaz, já alcançara o ápice da cultura literária. Ora, exercia a crítica e a cátedra há trinta anos. Escrevia para revistas estrangeiras. Correspondia-se com pessoas do tamanho de Barthes, Foucault, Jakobson, em francês e russo.

Oton de Assis nada mais falou. Na verdade, não podia se ombrear àquele homem.

E deixou-se anônimo entre os colegas. Seu lirismo, porém, ainda germinaria páginas tão belas como as publicadas no jornal daquele domingo.
___________________
Nota do Autor:
*Entretanto o céu gira. Virgílio, Eneida, Livro II; 250.


Fonte:
Nilto Maciel. Itinerário: contos. Fortaleza, CE: Ed. do Autor, 1974.
Livro enviado pelo autor