quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

Francesco Petrarca (Poesia Sem Fronteiras)




“DOCE IRA, DOCE MAL, DOCE BRANDURA”

(Espera que a fama há de compensar
                      o seu atual tormento)

Doce ira, doce mal, doce brandura,
doce afã, doce peso que hei sentido,
doce falar tão docemente ouvido
e que é doce de luz ou de aura pura.

Alma, sofre calada o que tortura,
mitiga o doce afã que te há ofendido
com o doce louvor que hás recebido
por esta que é minha única ventura.

Dia virá que suspirando diga
alguém cheio de inveja: assas sofrera
este por belo amor e seu enredo.

Outros: Ó sorte dura e tão inimiga!
Por que esta doce Dama não nascera
pouco mais tarde, ou eu, pouco mais cedo?

(Tradução de Jamil Almansur Haddad)
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1 "EM VIDA DE LAURA"

(Narra a sua miséria que atribui à Laura )

Paz não tenho, sem ter motivo à guerra:
temo, espero, ardo em fogo, e sou de gelo,
quero subir ao céu e caio em terra,
nada abraço, e o universo ando a conte-lo.

Preso, a prisão não se abre, e não se cerra:
prendem-me o coração, mas sem prendê-lo,
não me dá vida ou morte, Amor, e erra
minha alma sob o enorme pesadelo.

Odeio-me a mim mesmo, alguém amando,
grito, sem boca ter, sem olhos, vejo,
quero morrer, e a morte me apavora.

A dor me apraz, e rio-me, chorando:
não quero a morte, a vida não desejo...
Eis o estado em que estou por vós, Senhora.

(Tradução de Luiz Delfino)
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4 "EM VIDA DE LAURA "

(Longe de Laura, teme nunca mais a ver, duvidando
 de sua morte e da esperança de ainda a ver).

Neste meu dúbio estado, ou choro, ou canto,
temo, espero, suspiro e em branda rima
afogo a minha dor: amor esgrima
contra mim, todo o mal que pode entanto.

Hei de ver outra vez seu rosto santo?
Que deus levou-a a regiões de cima?
Ou ele só à minha vida anima
para que a chore em meu eterno pranto?

Queria o céu estrela radiante;
e Laura, o sol do meu viver, já erra
no céu: que lhe importou seu pobre amante?

E assim vivo em terror, infinda guerra:
não sou quem fui, e vago delirante
sem saber do caminho e estanho à terra.

(Tradução de Luiz Delfino)
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1 "NA MORTE DE LAURA"

(Sofre por ter a morte extinto o sol da beleza
 humana, e por não ter outro consolo senão
 vê-la em sonho ou na imaginação).

Aquele belo rosto esvaecido
e os olhos seus, ó morte, hás empanado:
espírito mais belo, separado
de um corpo mais gentil jamais há sido.

Em que instante este bem foi-me extorquido!
Fui dos acentos de sua voz roubado,
e a grande dor em que caí prostrado
tirou-me a cor à vista, o som ao ouvido.

Mas em sonho ela volta e me consola;
tenho em sua piedade o meu recurso,
dê-me a sua vista, como a um pobre a esmola.

Se eu recontar pudera o meu discurso
que riso então a fronte lhe aureóla
fizera amá-la até de um tigre ou urso.

(Tradução de Luiz Delfino)
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3 "NA MORTE DE LAURA"

(Privado de Laura não mais fará cantos de amor)

Seus olhos que eu cantei ardentemente,
rosto, pés, braços, mãos, já não diviso:
de mim mesmo arrancaram-me, e o juízo,
para os ter, eu fugia à toda gente.

A crespa coma de ouro reluzente,
o lampejar do angélico sorriso
que fazia da terra um paraíso
não tem mais vida agora, é pó somente.

E vivo? E calmo, tudo em torno eu olho?
Não tenho mais a luz que amava tanto
sou como nau lançada em rude escolho.

Morra também meu amoroso canto;
de lágrimas a lira em luto eu molho:
para chorá-la fique só meu pranto.

(Tradução de Luiz Delfino)
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“VÓS QUE OUVISTES AS MINHAS POESIAS”

Vós que ouvistes as minhas poesias,
com que eu nutria outrora o coração
nos juvenis e suspirosos dias,
quando aquele que eu fui tinha ilusão;

se conheceis do amor a reflexão
e o pranto, entre esperanças fugidias,
piedade espero achar, mais que perdão,
para as dores das minhas fantasias.

Agora vejo bem que longamente
em mim falou-se, e ria muita gente,
e de mim mesmo, às vezes, me envergonho.

Amargo fruto que colhi sonhando,
já sei, - me arrependendo e envergonhando –
que a sedução da vida é breve sonho.

(Tradução de Waldemar De Vasconcelos)

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Sonetos Que O Amor Inspirou. vol. 3. 1966.

André Kondo (A Ikebana*)




Na sincera rudeza do belo Shintaro, perpetuava-se a virilidade de homem conquistador, não apenas de batalhas, mas, principalmente, de mulheres. Nunca havia sido rejeitado por moça alguma, por mais bela que fosse. Para Shintaro, o mundo era um vasto campo de flores a serem colhidas com apenas um gesto de sua vontade.

O que seria do mundo sem as flores? Em um dia de primavera, quando a brisa beija as pétalas, não estariam o vento e a flor conversando sobre o amor? Se conversavam, Shintaro não escutava. Usava as flores apenas como arma de conquista. Apanhava-as com a mesma destreza que manejava a espada. E foram muitas as flores sacrificadas por amores vãos.

Mesmo nos extensos campos de flores silvestres, sempre há uma que se destaca dentre todas as outras... Shintaro foi arrebatado, ao se deparar com a mais bela flor, superior a todas as outras: Hana.

Era como se todas as flores do mundo tivessem perdido suas fragrâncias, restando apenas o perfume de Hana, Em apaixonado ímpeto, arrancou várias flores, amealhando-as em um grande buquê. Entregou-as à moça, sem dizer palavra, contando apenas com a beleza das pétalas e a sua eloquente presença.

— Seu tolo! O que pensa que está fazendo? — Hana esbravejou.

— Eu... estou...

Shintaro não pôde se explicar. Hana continuou:

— Não se deve colher flores assim! Que egoísmo! Não! Não! Não!

Passada a surpresa inicial, Shintaro tratou de reagrupar sua presença de espírito, para retrucar duramente:

— Você também está colhendo flores, como eu! Por que me recrimina?

— Não! Nunca como você! Veja, tenho em mãos apenas uma única flor, escolhida cuidadosamente em meio a tantas outras.

— Mas você deve ter escolhido a mais bela dentre todas. Não seria isso egoísmo de sua parte também? Privar este campo da mais bela das flores?

— Não apanhei a mais bela das flores. Isso não existe! O que existe é a flor ideal para a ikebana que se pretende realizar. Apenas isso.

— Do que está falando?

— Você nunca compreenderia — disse Hana, com um gesto nunca antes feito por uma mulher a Shintaro, dando-lhe as costas,

Shintaro sentiu-se abandonado no campo, como uma flor colhida e rejeitada logo após ter perdido o perfume. Pela primeira vez, sentiu o que cada uma das mulheres que haviam se apaixonado por ele sentiram. Porém, não se deu por vencido. Como guerreiro que era, tratou de elaborar um plano de batalha. Sabia que o primeiro passo para vencer o oponente era conhecê-lo. Hana era uma mestra de arranjos florais, mestra da arte da ikebana. Por isso, havia se ofendido tanto ao ser apresentada a um punhado de flores mortas entregues brutalmente, sem o mínimo cuidado estético. Persistente, Shintaro decidiu trilhar o kado, o caminho das flores, apenas para conquistar o coração de Hana. Aprendeu que as lendas apontavam os primeiros arranjos florais como obras de santos budistas que, apiedando-se das flores arrancadas pelas tempestades, as resgatavam em vasilhas de água. Procurou um templo budista, onde um mestre o ensinou a sutileza do amor contido em uma única flor. A flor que se dá à pessoa amada, mãe de nossos futuros filhos. A flor que enfeita os altares. A flor que conforta os enfermos no leito. As flores nos funerais... Flores que nos acompanham durante o nascimento, a vida e a morte. No templo, Shintaro aprendeu a respeitar as flores.

Todavia, ainda não estava pronto para conquistar Hana. Aprendeu sobre flores, mas faltava aprender como arranjá-las em arte. Procurou a Casa Ikenobo, em busca de instrução da escola formalista de idealismo clássico. Ali, as pétalas das flores tornavam- se pinturas magistrais, verdadeiras obras de arte paradoxalmente efêmeras em natureza e eternas em essência.

Com o tempo, Shintaro flertou também com a escola naturalista. A natureza por modelo. A cada nova lição, descobria a sutil relação entre as flores e a vida. Apaixonou-se pela matéria. Poderia percorrer os caminhos das centenas de escolas de ikebana, mergulhando em infindáveis estilos da arte das flores, que nunca se cansaria. Aprendeu sobre o principio dominante (o céu), o princípio subordinado (a terra) e o princípio conciliador (o homem). E o principal, aprendeu a ter a sensibilidade para harmonizar tudo isso.

Após algumas primaveras de estudo, estava pronto para colher sua flor. Com esmero, percorreu vastos campos em busca dos elementos perfeitos para o arranjo de ikebana que tinha em mente e coração. Um arranjo que deveria se verter ao amor, com a intensidade e, ao mesmo tempo, a suavidade que este sentimento provoca ao desabrochar no peito.

Deveria haver um perfume de paixão, mas não tão intenso que sufocasse o suave odor do carinho. Das mãos de Shintaro nascia a mais perfeita obra da arte da ikebana. Restava entregá-la. Entregar-se.

Não poderia haver outra reação. Shintaro conquistara a mestra das artes florais! Não havia como refutar o poder daquela peça de ikebana. Perfeita!

No instante em que Shintaro acreditava que finalmente colheria a sua desejada flor, um jovem camponês bateu à porta da escola de ikebana de Hana.

— Eis a mais verdadeira flor que nasceu em minhas terras...

O camponês estendeu uma diminuta flor, desbotada e sem graça, porém, algo havia nela que a tornava a mais verdadeira flor que nascera nas terras daquele homem.

Hana sentiu, imediatamente, a força que emanava daquela minúscula planta. O camponês prosseguiu em sua apaixonada declaração:

— Sempre a acompanhei de longe, quando você visitava o campo em busca de flores. A cada primavera, esperava revê-la. Por isso, para ter a certeza de que você voltaria, passei a semear flores no campo. Por todas as partes. Talvez eu seja um tolo, mas, por passar a semear flores, senti como se fosse pai delas. Assim, não tive coragem de arrancar esta que está em minhas mãos, por isso, cavei à sua volta e a trouxe junto com a terra em suas raízes. Eu a trouxe porque... queria oferecer este presente, símbolo do que eu... sinto por você...

Dizendo isso, talvez por vergonha, talvez por pena da flor, talvez temendo rejeição, talvez, e há tantos "talvez" quando se declara um amor sincero, uma lágrima caiu sobre as pétalas da diminuta flor.

— Que belo arranjo floral! — admirou-se Hana, emocionada ao ver as mãos do camponês como um vaso rosado, abraçando a flor que ostentava, em uma de suas pétalas, uma lágrima que brilhava como o orvalho de um amanhecer.

Naquele instante, apaixonou-se...

— Belo arranjo? — ofendeu-se Shintaro.

— Sim, mais belo do que o seu, pois é sincero. Assim como toda a arte deve ser...

— Mas...

— Shintaro, sua ikebana é bela, por isso conquistou o meu senso estético. Assim como eu, por ser julgada bela por você, conquistou o seu senso de beleza. Porém, sinto que não me ama, não como este homem que me ofereceu muito mais do que flores... Um homem que me entregou a primavera…

Shintaro sorriu. Era verdade. Nunca havia amado Hana. Não a ponto de arrancar suas raízes para se entregar totalmente a ela. Poderia dizer que havia desperdiçado suas primaveras tentando conquistar a formosa perfeição. Mas ele sabia que havia alcançado algo que estava muito além da beleza; a sinceridade das flores.
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Nota:
Ikebana é a arte de montar arranjos de flores, com base em regras e simbolismo preestabelecidos. Ikebana é um termo em japonês que significa flores vivas.

Ikebana, ou kado, geralmente são arranjos florais para serem utilizados como oferta religiosa, para decorar altares, e são montados com flores, folhas, galhos, frutos e plantas secas.

O ikebana teve origem na Índia, onde os religiosos faziam grandes decorações para o altar de Buda, porém foram os japoneses que tornaram a prática conhecida, e estenderam-na até o Ocidente. O ikebana é sempre composto por todos os tipos de plantas, como caules, folhas, flores, ramos, e segundo os japoneses simbolizam o céu, a terra e a humanidade.

O significado principal é de ser uma oferenda, um ato para agradar religiões, mas também é praticado por pessoas de origem nobre. Existem diversos estilos de ikebana, o Brasil possui até uma Associação, onde os praticantes possuem toda uma tradição espiritual, uma concentração para aproveitar e apreciar a natureza.

Os estilos de ikebana são: Ikenobo, que é o mais antigo, e são arranjos com devoção aos deuses, e são decorados com galhos; Sogetsu, que é um dos estilos mais novos, sendo que até mesmo a Rainha Elizabeth II e a Princesa Diana frequentaram escolas para aprender essa técnica; o estilo Ohara, que é uma montagem de galhos e flores quase que empilhados; e o estilo Sanguetsu, que é um estilo de ikebana criado por Mokiti Okada, que tem como noção básica o respeito pela natureza. Este estilo de ikebana se distingue dos outros porque tem como princípio a não modificação dos materiais usados (folhas, flores, galhos), tentando criar um arranjo mais natural e equilibrado possível. Existem cursos e uma academia de ikebana Sanguetsu, que tem como objetivo incutir o respeito pela natureza, o que torna a vida do aprendiz mais alegre e harmoniosa.

Fontes:
– André Kondo. Contos do Sol Renascente. Jundiaí/SP: Telucazu Ed., 2015.
– O que é Ikebana, disponível em Significados

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

Varal de Trovas n. 174


Isabel Furini (A Fofoqueira)


Durante três dias, Raquel, a fofoqueira do bairro, observou a vizinha Valéria que morava na casa antiga, na frente da sua. Rua sem saída. Os vizinhos comentavam que Valéria havia enlouquecido. Fazia três anos que perdera o marido e um ano da morte da mãe.  Valéria passou muito tempo de luto e tristeza. Dois meses atrás, havia se aventurado numa viagem turística ao Nordeste, junto com uma prima. Voltou de bom humor, mas nos últimos dias falava sozinha, gesticulava, ria... Teria alguma visita?

Nesta tarde de sábado, Valéria ria muito.

-  Ela enlouqueceu!.. - gritou  Raquel.  - Venha, querido, venha e olhe... O marido relutou um pouco, mas como a esposa continuava: Venha... venha... ele deixou o jornal e levantou-se, com dificuldade, da poltrona onde estava esparramado. Aproximou-se da janela. Olhe lá, olhe, João, parece que está falando com alguém.. mas Valéria está sozinha desde que a mãe morreu. Falarei com ela. Talvez precise de um médico... de um psiquiatra... de terapia...

 Raquel pegou o telefone:  - Olá, Valéria? Você está bem? 

- Feliz com meu noivo nordestino – respondeu rindo Valéria.

Raquel, curiosa, continuou a espiar pela janela. Querido, venha, venha ver... venha, por favor... O marido novamente deixa o jornal de lado e se aproxima a passos vagarosos até a janela.

- Olhe, disse a mulher... Valéria fala e ri... sozinha....

- Sozinha, não! Com seu noivo imaginário, ironiza o marido. Volta a sentar-se na poltrona e pega o jornal.

- Eu vou falar com ela – enfatiza Raquel.

Minutos depois, Raquel aperta com força a campainha.  A porta se abre.

– Este é Armando, meu noivo... - grita Valéria da cozinha.  Só nesse momento Raquel repara no anão de pijama azul, na ponta dos pés, segurando-se na maçaneta da porta. Sorridente, o anão a convida a entrar. Raquel fica paralisada ao lado da porta.

Armando insiste. - Sente-se, vizinha, pode pegar um pedaço de bolo. Eu mesmo fiz...

- Aqui está o chá mate!... – disse contente Valéria. Coloca a chaleira na mesa, agacha-se e abraça o anão. Ele, sempre sorridente, dá um beijão na boca da namorada. Depois sobe na escadinha que está ao lado da mesa e serve um pedaço de bolo para dona Raquel.

Raquel, sem palavras, senta-se na cadeira e pega o pratinho com o bolo, acanhada, não sabe o que dizer. Os três ficam em silêncio.

Raquel, tentando ser agradável pergunta: - É bolo de laranja?

No dia seguinte, Raquel falava com Adelaide, a velhinha do sobradinho amarelo, quando vê passar, Valéria, de mãos dadas com Armando. Os dois, sorridentes, cumprimentam e continuam seu passeio.

Sem poder conter-se, Raquel murmura para Adelaide: - Como ela pode sair com um homem tão pequeno?

A velhinha, muito jocosa, emenda: - Segundo ouvi dizer, Armando é pequeno só de estatura, dona Raquel, só de estatura...

Fonte:

Sylvio Magellano (Poemas Diversos)


CASA DA BOCAINA

Serração desce ao pé da montanha,
cobrindo toda a campina.

Pássaros cantam um trinado fino,
na copa das árvores do pomar,
anunciando a alvorada.

Fogão à lenha acorda a casa da Bocaina.

Pela janela vejo cavalos
andando pelo pasto
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COM A BRISA DA MANHÃ

Tiras de luz penetram pelas frestas da neblina,
Como um devaneio a alma se liberta no ar
E passeia com a brisa da manhã.

Um doce aroma de frutos
Vem dos pessegueiros do pomar.
Contemplo o silêncio, a sinfonia,
Do nascer de um novo dia.

Ao lado, hortênsias florescem,
Margaridas amarelas,
Ainda com gotas de orvalho,
Sorriem para mim.

Caminho pelos campos, durante todo o meu dia,
Procurando a analogia entre todas as verdades.
O espaço e o tempo
Aprisionaram minha vontade.

Nada ao redor nota a minha presença.
Nuvens brancas
Dançam um fascinante balé,
No palco infinitamente azul.

coberto de geada.
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O SILÊNCIO QUE VEM DE VOCÊ

Você passou por minha vida
E nada mudou.
No azul do mar espumas brancas batem à praia,
Numa incessante procura.
Na verde relva da mais alta montanha,
Num caminhar sem rumo,
Minha vista se perde na imensidão do nada.
Eu que sonhei tanto
Com aquela obstinada felicidade...
Em meu rosto o toque suave do vento,
Querendo conversar.
O sol brilha na manhã de sua ausência,
Sinto o silêncio que vem de você.
Preciso aprender a viver
Com o que tenho.
Por favor...
Deixe-me esquecê-la.
******************************* 

PARA ALGUÉM QUE NÃO QUIS ME SALVAR

O paredão de pedras eu não consigo escalar,
Minhas mãos feridas não conseguem mais lutar.
Logo outra onda, para águas profundas,
Vai me arremessar.

Em meu desespero suplico tua ajuda.
Segura minha mão com teu braço forte,
Me deixa enlaçar tua cintura,
Leva-me a uma praia segura.
Quero ver o sol brilhar novamente.
Deixa teus cabelos negros
Pousarem na minha fronte,
Aperta-me contra teu seio,
Beija-me profundamente.

Devolve outra vez minha vida,
Por favor, me salva, querida.
******************************* 

PRELÚDIO PARA UM ADEUS

Pela cortina de seda
Da janela do meu quarto,
Uma réstia de sol insuspeito
Invade nosso leito.

Com os cabelos em desalinho,
Toda tua beleza envolta em lençóis de linho.
Quantas madrugadas, nós dois,
E depois...
Correndo junto às ondas da praia.

Existia tanta vida em teu sorriso,
Até o mar indeciso
Não acreditava
Que a "doce ventura" acabava.
Os amantes não mais sorriam,
Não mais voltariam.

O "adeus" diante do mar
E, hesitante, a prece silenciosa:
"Não deixes o tempo apagar,
Pois um dia...
A vida foi tão maravilhosa".
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Sylvio Álvares de Magalhães, Paulista de São José do Barreiro, no Vale do Paraíba, radicou-se em Curitiba. Casado com Ombretta Magalhães, teve dois filhos que nasceram em Londrina, onde residiu por dez anos. Participante da Oficina Permanente de Poesia, em que proferiu várias palestras sobre a poesia romântica brasileira. Suas crônicas literárias foram editadas pela revista do Centro de Letras do Paraná, ao qual pertence. Foi homenageado pela Câmara Municipal de Curitiba, com os diplomas "Dia da Comunidade Luso Brasileira" (em agosto de 2006) e também "Contribuição à Literatura Paranaense", ambos por indicação do vereador Ângelo Batista. Da mesma CMC, recebeu, em 2011, a Medalha de Mérito Fernando Amaro. Ocupa a cadeira n. 6 da Academia Paranaense de Poesia, tendo por patrono Leôncio Correia.

Fonte:
Lilia Souza (org.). Coletânea: Academia Paranaense de Poesia. Curitiba/PR: APP, 2012.

Monteiro Lobato (Era no Paraíso...)


Era no paraíso e Deus estava contente. Tinha criado a luz, as estrelas, o ar, a água e por fim criou a Vida, semeando-a sob milhares de formas por cima da terra fresquinha e nua. E esfervilhou de viventes o orbe, aqui bactéria e mastodonte, ali musgo e baobá, além craca e baleia — a suma variedade de aspectos dentro da perfeita unidade de plano. E Deus, que achara aquilo bom, deliberou consolidar sua obra de vida per secula seculorum com o invento da Fome e do Amor, dois apetites tremendos engastados no âmago das criaturas à guisa de moto-contínuo da Perpetuação. E cofiando a imensa barba branca, velha como o Tempo, lançou a palavra mágica que tudo move e tudo explica:

— Comei-vos uns aos outros e nos intervalos amai!

Em seguida elaborou para regência da animalidade o Código da Sabedoria Ingênita. Não deu esse nome ao Código, visto como, no começo, não existindo homem, não existiam nomes.

— Não existindo homens?...

Sim, o homem não estava nos planos do Criador. Esta revelação mirífica, que ainda há de roer pelos alicerces as caducas verdades oficiais (e talvez me conquiste o prêmio Nobel), está ansiosinha por me fugir da pena. Que fuja, que se espoje no espírito do leitor. Adeus, filha! ...

Não era escrito esse Código. Lei escrita vale por pura invenção humana — donde a rapidez com que envelhecem os códigos humanos e as humanas leis. Escrever é fixar e fixar é matar. Perpétuo movimento, a vida é infixa. Entretanto, se o não escreveu, foi além Jeová: impregnou com ele cada uma das criaturas recém-formadas, de modo que ao nascer já viessem ricas da sabedoria infusa e agissem automaticamente de acordo com os imutáveis preceitos da lei natural.

Este saber sem aprender receberia do homem o nome de Intuição, assim como o Código Ingênito receberia o nome de Instinto. Os futuros homens se caracterizariam pelo vezo de dar nome às coisas, gozando-se da fama de sábios os que com maior entono e mais pomposamente as nomeassem. Grande doutor, o que tomasse o pulso a um doente, lhe espiasse a língua e gravibundo dissesse, tirando do nariz os óculos de ouro: polinevrite metabólica; e, grande mestre, o que apontasse o dedo para um grupo de estrelas e declarasse com voz firme: constelação do Centauro. Doença e estrelas, com ou sem nome, seguiriam o seu curso prefixo — mas nada de louvores ao médico que apenas dissesse: doença, ou ao mestre que humilde murmurasse: astros. Paga ou louvor não os teria o ignorante, isto é, o homem que não sabe nomes. Viva o nome!

Assim, inoculou Deus em todos os seres a sabedoria da vida e pô-los no orbe como notas cromáticas do pot-pourri sinfônico de cuja audição integral somente os seus ouvidos gozariam o privilégio.

E Deus achou que estava ótimo.

Grandes coisas tinha feito. A gravitação dos mundos era jogo de movimentos que mais tarde derrubaria o queixo a Newton — mas não passava de mecânica pura. A concepção do éter, da luz, do calor, assombrosas invenções eram — mas mecânica fria.

O bonito fora a criação da Vida, porque, obra de arte das mais autênticas, só ela dava medida completa dos imensos recursos do alto engenho de Deus. Quanta afinação no tumulto aparente! A bactéria às voltas com o mastodonte, o musgo em simbiose com o baobá, a craca aparasitada à baleia... Vida em vida, vida devorando vida, vida sobrepondo-se à vida, vida criando vida... O perpétuo ressoar dos uivos de cólera, berros de dor, guinchos de alegria, gemidos de gozo sonorizando o perpétuo agitar-se das formas — voo de ave, arranque de tigre, coleio de serpe, rabanar de peixe, tocaiar de sáurio... Tão pitoresca saiu a ópera VIDA que o Sumo Esteta a elegeu para recreio de sua Eterna Displicência. E, debruçado na amplidão, as longas barbas dispersas ao vento, o contemplativo Jeová antecipou a figura do sábio que no fundo dos laboratórios cisma sobre o microscópio.

Ora, pois, certo dia de estuporante mormaço, um casal de chimpanzés dormitava beatificamente no esgalho de enorme embaúba. Digeriam as bananas comidas e prelibavam, risonhos, as bananas da manhã seguinte. Eram chimpanzés como os demais, sábios de sabedoria inculcada pelo Eterno, e bem-comportadinhas notas da ópera paradisíaca. Mas Éolo suspirou no seu antro e um forte pé de vento deu, que vascolejou com frenesi a árvore e fez o chimpanzé macho, perdido o equilíbrio, precipitar se de ponta-cabeça ao chão.

Seria aquilo um tombo como qualquer outro, sem consequências funestas, se a malícia da serpente não houvesse colocado ao pé da embaúba uma grande laje, na qual se chocou o crânio do infeliz desarvorado. Perdeu os sentidos o macaco; e a macaca, presa de grande aflição, pulou incontinenti a socorrê-lo. Rondou-lhe em torno aos guinchos, soprou-lhe nos olhos, amimou-o, beliscou-lhe as carnes insensíveis e, por fim, convencida de que estava bem morto, deu de ombros, já com a ideia na escolha de quem lhe consolasse a viuvez.

Mas não morrera o raio do chimpanzé. Minutos depois entreabria os olhos, piscava sete vezes e levava as mãos à fronte, significando que lhe doía. Neste comenos funga no juncal próximo um tigre. Desde o Paraíso que os tigres “adoram” os macacos, como desde o  Paraíso que os macacos arrenegam dos tigres. Em virtude de tal divergência, a fungadela felina valeu por frasco de amoníaco nas ventas do contuso. Pôs-se de pé, inda tonto e, ajudado da companheira, marinhou embaúba acima, rumo ao galho de pouso, onde, a bom recato, pudesse distrair a dor de cabeça com a linda cena que é um tigre faminto à caça de bicho que não seja chimpanzé.

Desde essa desastrada queda nunca mais funcionou normalmente o cérebro do pobre macaco. Doíam-lhe os miolos, e ele queixava-se de vágados e de estranho mal-estar.

É que sofrera seríssima lesão. Digo isto porque sou homem e sei dar nomes aos bois; homem ignorante, porém, não vou mais longe, nem ponho nome grego à lesão. Afirmo apenas que era lesão, certo de que me entendem os meus incontáveis colegas em ignorância nomenclativa lesão grave, gravíssima, e de resultados imprevisíveis à própria presciência de Jeová.

A Bíblia já tratou do assunto; de modo simbólico, entretanto, fugindo de tomar a Queda ao pé da letra. Moisés, redator do Gênesis, tinha veleidades poéticas — mas não previra Darwin, nem a força do prêmio Nobel como áureo pai de grandes descobertas. Moisés poetizou... Fez um Adão, uma Eva, uma serpente e um pomo, que certos exegetas declaram ser a maçã, e outros, a banana. Compôs assim uma peça com a mestria consciente de Edgar Poe ao carpinteirar O corvo, mas sem deixar, como Poe, um estudo da psicologia da composição, onde demonstrasse que fez aquilo por a + b e com bem estudada pontaria. E foi pena! Quanto papel, tinta e sangue tal esclarecimento não pouparia à humanidade, sempre rixenta na interpretação dos textos bíblicos!

Vem daí que é o Gênesis uma peça de fina psicologia, e por igual penetrante nas cabeças duras e nas dos Pascais, permeabilíssimas; o que escasseia ao Gênesis é acordo com a verdade dos fatos. Essa verdade, mais preciosa que o diamante Cullinan, eu a achei sob o montão de cascalho das hipóteses e sem nenhum alarde aqui a estampo de graça. Já é ser generoso! Tenho nas unhas a verdade das verdades e não requeiro do Congresso um prêmio de cinquenta contos! Contento-me com um apenas...

A partir da Queda, o nosso macaco entrou a mudar de gênio. Sua cabeça perdeu o frescor da antiga despreocupação e deu de elaborar uns mostrengozinhos, informes, aos quais, com alguma licença, caberia o nome de ideias. Vacilava, ele que nunca vacilara e sempre agira com os soberbos impulsos do automatismo. Entre duas bananas pateteava na escolha tomado de incompreensíveis indecisões — e por vezes perdeu ambas, iludido por monos de bote pronto que não vacilavam nem escolhiam.

Para galgar de um ramo a outro calculava agora não só a distância como a força do salto — e errava, ele que antes da lesão nunca errara pulo. Até em suas relações sentimentais com a velha companheira o chimpanzé variou. Ganho de malsãs curiosidades, examinava as outras macacas do bando, comparava-as à sua e cometia o pecado de desejar a macaca do próximo. Como também claudicasse na escolha das frutas, comeu diversas impróprias à alimentação símia, daí provindo as primeiras perturbações gastrointestinais observadas na higidez do Paraíso — enterites, colites, disenteria ou o que seja.

Quando iam águias pelo céu, punha-se a contemplar os seus harmoniosos voos, com vagos anseios nas tripas e muito desejo na alma de ser águia. Era a inveja a nascer, má cuscuta que vicejaria luxuriantemente na execrável descendência desse mono. Invejou as aves que dormiam em ninho fofo e os animais que moravam em boas tocas de pedra. Abandonou o viver em árvore, prescrito para os da sua laia pelo Código Ingênito, e deu de andar sobre a terra de pé sobre as patas traseiras, com as dianteiras — futuras mãos — ocupadas em construir ninho, como os via fazer às perdizes, ou toca, como as tem o tatu. E sempre nervoso e inquieto, e descontente com a ordem das coisas estabelecida no Éden, imaginava mudanças e “melhoramentos”. E variava e tresvariava, e malucava, arrastando consigo a pobre companheira que, sem nada compreender de tudo aquilo, em tudo o imitava passivamente, dócil e meiga.

Aconteceu o que tinha de acontecer. A admirável disciplina reinante no Éden viu-se logo perturbada pelo estranho proceder do macaco, advindo daí murmurações e por fim queixas a Jeová. E tais e tantas foram as queixas, que o Sumo, zangado com a nota desafinadora da sua música divina, ordenou ao anjo Gabriel que pusesse no olho da rua o sustenido anárquico.

Até esse ponto vai certo Moisés. Onde começa a fazer poesia é daí por diante. De fato, Jeová ordenou a expulsão do rebelde e Gabriel deu para executá-la os primeiros passos. A curiosidade, porém, que dizem feminina mas aqui se vê que é divina, fez o Criador reconsiderar.

— Suspende, Gabriel! Estou curioso de ver até que extremos irá o desarranjo mental do meu macaco.

Era Gabriel o Sarrazani daquele jardim zoológico e, graças ao convívio com o Eterno, adquirira alguma coisa da divina presciência. Assim foi que objetou:

— Vossa Eternidade me perdoe, mas se lá deixamos o trapalhão aquilo vira em “humanidade”...

— Sei disso — retorquiu o Soberano Senhor de todas as coisas. — A lesão do cérebro do meu macaco põe-no à margem da minha Lei Natural e fá-lo-á discrepar da harmonia estabelecida. Nascerá nele uma doença, que seus descendentes, cheios de orgulho, chamarão inteligência — e que, ai deles! , lhes será funestíssima. Esse mal, oriundo da Queda, transmitir-se-á de pais a filhos — e crescerá sempre, e terrivelmente influirá sobre a terra, modificando-lhe a superfície de maneira muito curiosa. E, deslumbrados por ela, os homens ter-se-ão na conta de criaturas privilegiadas, entes à parte no universo, e olharão com desprezo para o restante da animalidade. E será assim até que um senhor Darwin surja e prove a verdadeira origem do Homo sapiens...

— ?!

— Sim. Eles nomear-se-ão Homo sapiens apesar do teu sorriso, Gabriel, e ter-se-ão como feitos por mim de um barro especial e à minha imagem e semelhança.

— ?! !

— Os demais chimpanzés permanecerão como eu os criei; só o ramo agora a iniciar-se com a prole do lesado é que se destina a sofrer a diferenciação mórbida, cuja resultante será cair o governo da terra nas unhas de um bicho que não previ.

— ?! ! !

— Essa inteligência se caracterizará pela ânsia de ver-me através das coisas, e para que bem a compreendas, Gabriel, te direi que será como asas sem ave, luz sem sol, dedos sem pés...

Gabriel não compreendeu coisa nenhuma da longa definição de Jeová — e como sucederia o mesmo com os meus leitores, interrompo-a nos dedos sem pés. Até aí ainda a percepção é possível; mas no ponto em que Jeová lhe assinalou a essência última, nem Einstein pescaria um x...

Vendo o ar aparvalhado de Gabriel, o Criador pulou da metagênese abaixo e falou fisicamente.

— Essa inteligência apurará aos extremos a crueldade, a astúcia e a estupidez. Por meio da astúcia se farão eles engenhosos, porque o engenho não passa da astúcia aplicada à mecânica. E à força de engenho submeterão todos os outros animais, e edificarão cidades, e esburacarão montanhas, e rasgarão istmos, destruirão florestas, captarão fluidos ambientes, domesticarão as ondas hertzianas, descobrirão os raios cósmicos, devassarão o fundo dos mares, roerão as entranhas da terra...

Gabriel estremeceu. Apavorou-o a força futura da inteligência nascente; mas Jeová sorriu, e quando Jeová sorria Gabriel serenava.

— Nada receies. Essa inteligência terá alguns atributos da minha, como o carvão os tem do diamante, mas estará para a minha como o carvão está para o diamante. A fraqueza dela provirá da sua jaça de origem. Inteligência sem memória, inteligência de chimpanzé, o homem esquecerá sempre. Esquecerá o que ensinei aos seus precursores peludos e esquecerá de colher a boa lição da experiência nova.

“Seu engenho criará engenhosíssimas armas de alto poder destrutivo — e empolgados pelo ódio se estraçalharão uns aos outros em nome de pátrias, por meio de lutas tremendas a que chamarão guerras, vestidos macacalmente, ao som de músicas, tambores e cornetas — esquecidos de que não criei nem ódio, nem corneta, nem pátria.

“E transporão mares, e perfurarão montes, e voarão pelo espaço, e rodarão sobre trilhos na vertigem louca de vencer as distâncias e chegar depressa — esquecidos de que eu não criei a pressa nem o trilho.

“E viverão em guerra aberta com os animais, escravizando-os e matando-os pelo puro prazer de matar — esquecidos de que eu não criei o prazer de matar por matar.

“E inventarão alfabetos e línguas numerosas, e disputarão sem tréguas sobre gramática, e quanto mais gramáticas possuírem menos se entenderão. E se entenderão de tal modo imperfeito que aclamarão o messias do entendimento geral um doutor Zamenhoff...”

— Já sei! Um que proporá a supressão das línguas.

Jeová sorriu.

— Não! Apenas o criador de mais uma. E eles elaborarão ciências e excogitarão toda a mecânica das coisas, adivinhando o átomo e o planeta invisível, e saberão tudo — menos o segredo da vida.

“E um Pascal, muito cotado entre eles, dará murros na cabeça, na tortura de compreender os xx supremos — e os homens admirarão grandemente esses murros.

“E criarão artes numerosas, e terão sumos artistas e jamais alcançarão a única arte que implantei no Éden — a arte de ser biologicamente feliz.

“E organizarão o parasitismo na própria espécie, e enfeitar-se-ão de vícios e virtudes igualmente antinaturais. E inventarão o Orgulho, a Avareza, a Má-Fé, a Hipocrisia, a Gula, a Luxúria, o Patriotismo, o Sentimentalismo, o Filantropismo, Colocação dos Pronomes — esquecidos de que eu não criei nada disso e só o que eu criei é.

“E em virtude de tais e tais macacalidades, a inteligência do homem não conseguirá nunca resolver nenhum dos problemas elementares da vida, em contraste com os outros seres, que os terão a todos solvidos de maneira felicíssima.

“Não saberá comer; e ao lado das minhas abelhas, de tão sábio regime alimentar — sábio porque por mim prescrito —, o homem morrerá de fome ou indigestão, ou definhará achacoso em consequência de erros ou vícios dietéticos.

“Não saberá morar — e ao lado das minhas aranhas, tão felizes na casa que lhes ensinei, habitarão ascorosas espeluncas sem luz, ou palácios.

“Não resolverá o problema da vida em sociedade, e experimentará mil soluções, errando em todas. E revoluções tremendas agitarão de espaço em espaço os homens no desespero de destruir o parasitismo criado pela inteligência — e as novas formas de equilíbrio surgidas afirmar-se-ão com os mesmos vícios das velhas formas destruídas. E o homem olhará com inveja para os meus animaizinhos gregários, que são felizes porque seguem a minha lei sapientíssima.

“E não solverá o problema do governo; e mais formas de governo invente, mais sofrerá sob elas — esquecido de que não criei governo. E criará o Estado, monstro de maxilas leoninas, por meio do qual a minoria astuta parasitará cruelmente a maioria estúpida. E a fim de manter nédio e forte esse monstro, os sábios escreverão livros, os matemáticos organizarão estatísticas, os generais armarão exércitos, os juízes erguerão cadafalsos, os estadistas estabelecerão fronteiras, os pedagogos atiçarão patriotismos, os reis deflagrarão guerras tremendas e os poetas cantarão os heróis da chacina — para que jamais a guerra cesse de ser uma permanente.

“Queres ver ao vivo, Gabriel, o que vai ser a chimpanzeização do mundo? Corre essa cortina do futuro e espia por um momento a humanidade.”

Gabriel correu a cortina do futuro e espiou. E viu sobre a crosta da terra uma certa poeira movediça. Mas, ansioso de detalhes, Gabriel microscopou e distinguiu uma dolorosa caravana de chimpanzés pelados, em atropelada marcha para o desconhecido. Miserável rebanho! Uns grandes, outros pequenos; estes louros, aqueles negríssimos — nada que recordasse a perfeição somática dos outros viventes, tão iguaizinhos dentro do tipo de cada espécie. Que feia variedade! Ao lado do Apolo, o torto, o capenga, o cambaio, o corcovado, o corcunda, o raquítico, o trôpego, o careteante, o zanaga, o zarolho, o careca, o manco, o cego, o tonto, o surdo, o espingolado, o nanico... Caricaturas móveis, com os mais grotescos disparates nas feições, era impossível apanhar-lhes de pronto o tipo-padrão. 

E Gabriel evocou mentalmente a linda coisa que é um desfile de abelhas ou pinguins, no qual não há um só indivíduo que destoe do padrão comum. Da manada humana subia um rumor confuso. Gabriel desencerrou os ouvidos e pôde distinguir sons para ele inéditos: tosse, espirros, escarradelas, fungos, borborigmos, ronqueira asmática, gemidos nevrálgicos, ralhos, palavrões de insulto, blasfêmias, gargalhadas, guinchos de inveja, rilhar de dentes, bufos de cólera, gritos histéricos...

Depois observou que à frente das multidões caminhavam seres de escol, semideuses lantejoulantes, vestidos fantasiosamente, pingentados de cristaizinhos embutidos em engastes metálicos, com penas de aves na cabeça, cordões e fitas, crachás e miçangas...

— Quem são?

— Os chefes, os magnatas, os reis: os condutores de povos. Conduzem-nos... não sabem para onde. E viu, entremeio à multidão, homens armados, tangendo o triste rebanho a golpes de espada ou vergalho. E viu uns homens de toga negra que liam papéis e davam sentenças, fazendo pendurar de forcas miseráveis criaturas, e a outras cortar a cabeça, e a outras lançar em ergástulos para o apodrecimento em vida.E viu homens a cavalo, carnavalescamente vestidos, empenachados de plumas, que arregimentavam as massas, armavam-nas e atiravam-nas umas contra as outras. E viu que depois de tremenda carnificina um grupo abandonava o campo em desordem, e outro, atolado em sangue e em carne gemebunda, cantava o triunfo num delírio orgíaco, ao som de músicas marciais. E viu que os homens de penacho organizadores das chacinas eram tidos em elevadíssima conta. Todos os aplaudiam, delirantes, e os carregavam em charolas de apoteose. E viu que a multidão caminhava sempre inquieta e em guarda, porque o irmão roubava o irmão, e o filho matava o pai, e o amigo enganava o amigo, e todos se maldiziam e se caluniavam, e se detestavam e jamais se compreendiam...

Horrorizado, Gabriel cerrou a cortina do futuro e disse ao Criador:

— Se vai ser assim, cortemos pela raiz tanto mal vindouro. Um chimpanzé a menos no Paraíso e estará evitado o desastre.

— Não! — respondeu o Criador. — Tenho um rival: o Acaso. Ele criou o homem, provocando a lesão desse macaco, e quero agora ver até a que extremos se desenvolverá essa criatura aberrante e alheia aos meus planos.

Gabriel piscou por uns momentos (catorze vezes ao certo), desnorteado pela expressão “quero ver” jamais caída dos lábios do Senhor. Haveria porventura algo fechado, ou obscuro, à presciência divina?

E Gabriel ousou interpelar Jeová.

— Não sois, então, Senhor, a Presciência Absoluta?

Jeová franziu os sobrolhos terríveis e murmurou apenas:

— Eu Sou, e se Sou, Sou também O que se não interpela.

Gabriel encolheu-se como fulminado pelo raio e sumiu-se da presença do Eterno com pretexto de uma vista de olhos pelo Éden.

Linda tarde! O sol moribundo chapeava debruns de cobre nos gigantescos samambaiuçus, a cuja sombra dormitavam megatérios de focinhos metidos entre as patorras. As arqueópterix desajeitadonas chocavam na areia seus grandes ovos. Um urso das cavernas catava as pulgas da companheira com a minuciosa atenção dum entomologista apaixonado, e de longe vinham urros de estegossauros perseguidos por mutucões venenosos. Ao fundo dum vale de avencas viçosas como bambus, dois labirintodontes amavam-se em silencioso e pacato idílio, não longe de um leão fulvo que comia a carne fumegante da gazela caçada.

Aves gorjeavam amores nos ramos; serpes monstruosas magnetizavam monstruosas rãs; flores carnívoras abriam a goela das corolas para a apanha de animaizinhos incautos.

Paz. Paz absoluta. Felicidade absoluta. A Vida comia a Vida e a Vida amava para que não se extinguisse a Vida — tudo rigorosamente de acordo com a senha divina.

Só Adão, o macaco lesado, discrepava, piscando os olhinhos vivos, como a ruminar certa ideia.

Gabriel parou perto dele e deixou-se ficar a observá-lo. Viu que Adão, de olhos ferrados numa toca de onça, raciocinava: “Ela sai e eu entro, e fecho a porta com uma pedra, e a casa fica sendo minha...”.

Eva, a macaca ilesa, permanecia muda ao lado, embevecida no macho pensante. Não o compreendia — não o compreenderia nunca! —, mas admirava-o, imitava-o e obedecia-lhe passivamente.

Nisto, a onça deixou o antro e foi tocaiar uma veadinha.

— Acompanhe-me! — disse Adão à companheira, e ambos precipitaram-se para a toca da onça, cuja entrada fecharam por dentro com uma grande pedra roliça. E ficaram donos.

Gabriel, que acompanhara toda aquela maromba, acendeu um cigarro de papiro, baforou para o céu três fumaças e murmurou:

— Ele já é inteligência. Ela não passa de imitação. É lógico: só ele foi lesado no cérebro; mas vão ver que Eva, a instintiva, ainda acabará fingindo-se lesada...

E o primeiro difamador da mulher foi jogar sua partida de gamão com o Todo-Poderoso.

Fonte:
Monteiro Lobato. O Macaco que se fez homem.