quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

Lourdes Bagatim Scheffer (O Encanto e o Desencanto das Fadas)

Pintura de Salvador Dali
Esta estória aconteceu lá pelos anos de 1890, num lugarejo próximo a Castelfranco di Veneto, no norte da Itália. Tempos muito difíceis, as famílias eram numerosas, não possuíam grandes recursos e tinham o mínimo de conforto em suas casas. O inverno, rigorosíssimo, arrastava-se por boa parte do ano. Durante os poucos meses quentes, as pessoas trabalhavam arduamente para acumular e estocar comida para os meses frios. Essa era a prática mais comum.

Ali, nesse lugar, vivia uma família muito numerosa. Os filhos casaram-se e trouxeram suas esposas para ali viverem em companhia de seus pais. O tempo passou e vieram seus filhos, que muito cedo aprendiam o quão difícil era ganhar o próprio sustento e também como era divertida aquela convivência com os irmãos, primos, tios, tias e avós. Todos trabalhavam, os adultos faziam os trabalhos mais pesados e às crianças eram oferecidas tarefas mais leves e que não exigiam grande esforço, fosse ele físico ou mental. Dessa maneira, elas as executavam rapidamente, para sobrar mais tempo para suas brincadeiras. Devido as dificuldades para enfrentar os dias difíceis de inverno, e como não contavam com uma boa lareira para se aquecer, tinham por hábito reunir-se em estábulos, onde os animais iam à procura de abrigo, escondendo-se das tempestades de neve. Procuravam estar muito próximos dos animais, pois isto os mantinha aquecidos. Nessa época, as mulheres eram também responsáveis pelo bem estar da família e juntamente com suas crianças, passavam o dia todo fazendo trabalhos manuais e conversando, porém tinham grande dificuldade para confeccionar suas roupas. Por essa razão, tinham que recorrer a outras pessoas para fazê-las. Tinham, por hábito, encomendar suas roupas para algumas criaturas que viviam próximo dali, embora ninguém soubesse onde, nem como. Outra característica interessante é que não havia uma comunicação pessoal entre eles, porém o que se acreditava é que essas bondosas criaturas tinham poderes especiais, muito diferentes das pessoas comuns. Eram chamadas de fadas.

Para que as roupas fossem confeccionadas, era necessário que se colocasse todo o material a ser usado para a confecção embaixo de uma ponte. Num dia, colocava-se tudo que era necessário para a confecção de uma peça e, no dia seguinte, podia-se procurar no mesmo lugar e lá estava a peça de roupa, pronta para uso. Diziam até que a presença dessas criaturas era identificada por um perfume forte e muito agradável.

As pessoas ficavam perplexas com a rapidez com que elas teciam tais peças de roupa. Por mais que se tentasse, não foi possível saber como eram costuradas aquelas roupas. O que se sabia é que tudo era feito de maneira rápida e perfeita, não ficando qualquer fio solto para que se pudesse desfazer a peça já confeccionada.

Esse mistério em tomo dessas criaturas, chamadas popularmente de fadas, foi crescendo e passou a ser objeto de grandes discussões durante os momentos em que as famílias se reuniam. O tempo passava e no dia a dia, ninguém estava interessado em saber o que acontecia lá fora. A única preocupação era manter-se aquecido, para não morrer de frio. Mas, entre as mulheres que ali compareciam diariamente, havia uma que todos os dias, à mesma hora, ausentava-se, sem dar qualquer explicação aos demais. Aquilo, que no início parecia ser uma coisa sem importância, passou a chamar a atenção de outras mulheres, que intrigadas, começaram a questionar tal ausência.

Foi então que uma delas falou para as demais:

- Não entendo o que ela possa estar fazendo ao sair sempre no mesmo horário e retomando muito tarde da noite. Vou tentar segui-la e descobrir aonde vai e com quem.

No início, algumas não concordavam, pois achavam que não seria correto invadir a privacidade da companheira. Aos poucos, a curiosidade tomou conta de todas e passaram a encorajá-la a tomar tal decisão. E assim aconteceu.

Certo dia, quando a tal senhora deixou o local, sua amiga a seguiu de longe e viu quando ela se aproximou da chaminé do fogão. Rapidamente foi ao mesmo lugar, a tempo de ouvir quando ela proferiu algumas palavras até então desconhecidas. Imediatamente após, desapareceu pela chaminé do fogão. Esta então, ao chegar muito próximo do fogão, pronunciou as mesmas palavras que ouviu de sua amiga e foi sugada pela chaminé. Alguns segundos se passaram. De repente, ela se deu conta de estar numa festa, com muitas pessoas, algumas até conhecidas suas. Avistou sua amiga e foi ter com ela. Qual não foi a surpresa quando sua amiga a viu.

- Você, por aqui? - disse a primeira.

- Como foi que você entrou neste lugar ?

Esta imediatamente respondeu:

- Segui você e pude ouvir as palavras que pronunciou antes de entrar pela chaminé. Fiz exatamente o mesmo e aqui estou - respondeu esta última.

Falando assim, começou a prestar atenção a tudo que a cercava, maravilhada com a beleza do salão e as mesas repletas de comida. Não se conteve e pegou uma guloseima, levando à boca com muita ansiedade,

- Meu Deus! Não tem sal?

Ao proferir essas palavras, todo o encanto se desfez e ambas se viram na sala de suas casas.
_________________________________________________

Lourdes Bagatim Scheffer, é natural de Joaquim Távora/PR, em 1953. Formada em Letras Português/Inglês e especialização na área de Metodologia da Língua Inglesa e tradução na PUCPR. Estudou e trabalhou em Londres. Lecionou Inglês. Trabalha com traduções em literatura.

Fonte:
Isabel Florinda Furini (org.). 50 Contos por 14 Autores. Curitiba: JM, 2008.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

Varal de Trovas n. 180


Altino Afonso Costa (Fazenda Santa Rosa)


Terra dos meus sonhos que me viu nascer, com minha própria mãe fazendo o parto; sentiste meus pés descalços nas incansáveis caminhadas de moleque, caçador de passarinhos, com estilingue no pescoço e bornal repleto de bolas de argila secadas ao sol.

As andanças à toa, cavalgando a mula Roseira, sem arreios, com o espírito  povoado de temores de almas de outro mundo, quando eu atravessava na frente do cemitério...

Como era o meu mundo de fantasia, quando à noite ia dormir na casa grande de madeira, coberta de folhas de zinco, cheias de buracos e que nos dias de chuva enchia as salas e os quartos de goteiras compassadas.

E o barulho monótono da chuva no telhado e o terror de ouvir os trovões que sacudiam o chão e os raios que riscavam o céu, em tons ameaçadores.

O colchão de palha de milho, desfiada, que fazia um barulho inesquecível quando movia o nosso corpo para acomodá-lo no sono que custava a chegar.

E o cheiro de urina de moleque mijão...

E as pulgas que incomodavam à noite, mesmo com os galhos de erva Santa Maria, que minha mãe jogava sob a cama rústica.

A lamparina a querosene, o fogão caipira de lenha; a linguiça portuguesa defumada e exalando um cheiro de carne de porco, temperada com vinho tinto. E a carne de porco cozida, mergulhada em lata de gordura.

E a broa sobre a mesa, e o aroma de vinho tinto que vinha da adega... e o caldo verde transbordando da tigela...

Minha velha Fazenda Santa Rosa, quanta saudade da minha mãe, do meu pai e dos meus irmãos.

E os assados na noite de Natal e as fogueiras de S. João, S. Pedro e Santo Antônio, com o estouro dos rojões, busca-pés, e o amendoim, batata doce e mandioca assados na brasa tardia da fogueira,,,

Quanta lembrança e saudades me trazes, terra da minha infância feliz...

Fonte:
Altino Afonso Costa. Buquê de estrelas. Paranavaí/PR, 2001.
 Livro enviado por Dinair Leite.

Lúcia Constantino (Poemas Avulsos) 3




DECISÃO

Estranhos encontros,
estranhas partidas.
Hoje vendo meus móveis
na casa da vida,
Ainda vou chorar um pouco.
Mas não deixarei
que sujem mais o meu rosto
porque já não há
mais tanto sal a gastar
de dentro do meu corpo.
**********************************

DECLARAÇÃO

Amo-te, ó viandante,
que parte numa caminhada
sem sentido neste deserto
em busca de um deus descolorido.

Amo-te, ó tarde dominadora,
que implora meus passos,
porém sou teu grande fiasco:
covarde demolidora.

Amo-te, ó bocejo dos oprimidos:
carvão senhorial
nutrindo as labaredas do mal.
**********************************

METAMORFOSE

A noite de outrora silencia.
Pelas mãos do destino se cala
até que surja um novo dia
no seu coração, para um regresso à fala.

Podem ocorrer seres desnudos,
vagos e tristes seres de segredos,
carregando o peso do mundo
em seus fardos de medo.

A noite não importará esta brusca espera
até que passem as trevas sobre a matéria
quando a Divindade retém o julgamento.

A metamorfose da própria vida
transforma a dor de uma fenda
no mais sincero dos depoimentos.
**********************************

MURMÚRIO

Antes que eu volte um dia
para o lar de mim mesma
onde uma réstia de luz
não esmaece
a verdade primeira de todas as coisas
por serem laços da alma,
antes que te vás
ou somente te desprendas,
ouve.
Que estranhamente te percebo
pelos caminhos. Como se fossem planos.
Mas não são.
Como se anjos andassem curvos.
Mas não andam.
Como se a terra fosse ausente.
Mas não é.
Uma gota no oceano
em selvagem dose cósmica.
Alquimia de pássaros
despojados de si mesmos.
Em ventos transmudando, exiláveis.
**********************************

ORAÇÃO

Antes que eu envelheça
tire da minha boca
este sabor de sono.
Semelhante a um oráculo mudo
tenho deuses dormindo
em nichos vivos.
Ainda não é tempo
do linho branco.
Para que eu desperte novamente
necessito água corrente
sobre meus pântanos.
**********************************

RENOVAÇÃO

Eu quero a vida
não consumida
pelos ratos do amor
que levam medalhas polidas
e a si mesmos num andor.

Eu quero uma bela chama
que eu mesma possa acender
embaixo da minha cama
para um claro anoitecer.

Eu quero tudo
e principalmente
experimentar uma vida nova
sem ter que no espelho
me pôr à prova.

Fonte:
Maria Lúcia Siqueira (Lúcia Constantino). Asas ao anoitecer. Curitiba/PR: M.L. Siqueira, 2004.

Arthur de Azevedo (O Cuco)




Não havia meio de conseguir que o Roberto ficasse uma noite em casa, fazendo companhia à senhora: havia de sair por força depois de jantar, sozinho, e só voltava às dez, às onze horas, e mesmo algumas vezes depois da meia-noite.

A senhora, que era uma santa, como todas as mulheres de maridos notívagos, não se lastimava, não pedia ao Roberto que a levasse consigo, não lhe perguntava, sequer, por onde tinha andado, quando o via chegar um pouco mais tarde, o que raras vezes acontecia, porque em regra, quando o cuco da sala de jantar dava dez horas, já ela, coitadinha!, estava ferrada no sono.
* * *

O cuco da sala de jantar era um dos mais curiosos que ficaram no Rio de Janeiro, do tempo em que foram moda: pertencera à avó de Roberto, e este por dinheiro nenhum se desfaria de tão preciosa relíquia de família, que era ao mesmo tempo saudosa recordação da infância.

As horas eram dadas por um pássaro mecânico. Saía este da sua gaiola, abria o bico e punha-se a cantar lentamente: - "Cuco, cuco, cuco..." O Roberto, em criança, imitava-o a ponto de enganar as pessoas de casa.
* * *

Uma noite foi o nosso herói ao Cassino Nacional, e deixou-se tentar por um amigo, que o convidou para cear com ele e duas chanteuses (cantoras), uma gommeuse (janota) e outra excentrique.

Depois da ceia, o amigo partiu com uma delas para Citera, vulgo Copacabana, e o Roberto foi obrigado a acompanhar a outra a uma pensão da Praia do Russel.

Quando ele deu por si, eram quase quatro horas da madrugada! Oh, diabo!, a essa hora nunca entrara no lar doméstico!

Meteu-se num tílburi, que lhe apareceu providencialmente, e voou para casa. Abriu a porta com toda a cautela e antes de subir a escada, tirou as botinas, para não fazer bulha.

O seu quarto - seu e de sua esposa - era contíguo à sala de jantar tornava-se preciso atravessar esta para lá entrar.

Ele atravessou, mas, como estivesse no escuro, esbarrou numa cadeira, que caiu com estrondo.

Logo ouviu o Roberto a senhora remexer-se na cama e disse consigo:

- Sebo! lá acordei minha mulher!

Ela perguntou:

- És tu, Roberto?

- Sim, sou eu, sinhazinha.

E o marido acrescentou para si:

- Felizmente não sabe que horas são.

Mas, nisto, o cuco saiu da gaiola, e começou a cantar lentamente: "Cuco... cuco... cuco... cuco..."

- Estou perdido! - pensou o Roberto, mas uma ideia luminosa lhe atravessou de repente o cérebro, e quando o pássaro cantou pela quarta vez e voltou para a gaiola, ele continuou: "Cuco... cuco... cuco..." até completar onze cucos.

O próprio Roberto não sabia que ainda imitasse o pássaro com tanta perfeição.

- Onze horas - disse ele depois do décimo primeiro cuco -. Julguei que fosse mais cedo!

E começou a despir-se.

A santa senhora voltou-se para o outro lado e adormeceu de novo. Não deu pela coisa.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos Vários.

Contos e Lendas do Mundo (Finlândia: Uma Cabeça)

Era uma vez um homem e uma mulher, que teve um filho depois de sete anos de casada; porém o filho era apenas uma cabeça. Passaram mais sete anos, e a cabeça completou catorze. Quis então ter por esposa a princesa, pelo que solicitou ao pai que lhe pedisse a mão em seu nome.

— Diz a verdade — recomendou-lhe. — Explica como sou, não mintas.

O pai procurou o rei e disse-lhe:

— Majestade, o meu filho deseja a princesa para esposa.

— Que espécie de pessoa é? — quis saber o monarca.

— Não passa de uma cabeça.

— Se, até amanhã, ele me trouxer cinco raposas vivas, talvez lhe conceda a mão de minha filha.

O pai chegou a casa e anunciou:

— Não há nada a fazer, rapaz.

— Não? Porquê?

— Porque o rei quer que, até amanhã, lhe leves cinco raposas vivas. Então, talvez te conceda a mão da filha.

— Estou cheio de calor! Leva-me à porta! — rogou o filho, que ficou fora de casa até à manhã seguinte.

Nessa altura, quando os outros se levantaram, havia cinco raposas vivas diante da entrada, e o jovem indicou ao pai:

— Agora, leva-as ao rei e pede a mão da princesa em troca.

O pai assim fez e disse ao monarca:

— Agora, suponho que concederá a mão de sua filha?

— Só se, até amanhã, o teu filho me enviar cinco ursos vivos.

O pai chegou a casa e anunciou:

— Não há nada a fazer.

— Não? Porquê?

— Porque o rei quer que, até amanhã, lhe leves cinco ursos vivos.

E o jovem voltou a dizer:

— Estou cheio de calor! Leva-me à porta!

O pai apressou-se a comprazê-lo.

Na manhã seguinte, quando os outros se levantaram, havia cinco ursos vivos diante da entrada, e o jovem indicou ao pai:

— Agora, leva-os ao rei e pede a mão da princesa em troca. O pai assim fez e reiterou o pedido da mão da princesa, ao que monarca respondeu:

— Bem, já que ele é um homem capaz de conseguir o que se propõe, diz-lhe que construa um palácio como o meu, e poderá então vir buscar a moça.

O velho regressou de novo a casa e anunciou:

— Não há nada a fazer.

— Não? Porquê?

— Tens de construir, ate amanhã, um palácio como o dele, que contenha tudo o que é próprio de um imperador.

— Leva-me lá fora, querido pai — pediu o jovem.

Enquanto o velho obedecia, o filho acrescentou:

— Se ouvirem muito barulho durante a noite, não se levantem ver de que se trata. Continuem deitados.

Os operários não tardaram a iniciar os trabalhos, e o pai queixou-se:

— Que barulho tão esquisito está a fazer o rapaz, lá fora! Vou ver o que se passa.

Mas a mãe advertiu-o:

— Não ouviste o que ele nos recomendou, esta tarde? Disse que não fôssemos ver.

No entanto, passados alguns momentos, admitiu:

— De fato convinha ver de que se trata.

Agora, todavia, foi o pai que lhe lembrou:

— E o que o rapaz nos recomendou?

Foram, assim, dissuadindo-se mutuamente de ir espreitar. Quando, de manhã, se levantaram, o velho desceu a escada e, ao assomar à porta, ia desmaiando de pasmo. Viu que se encontrava num palácio que resplandecia de ouro e prata. Então, o filho disse-lhe:

— Prepara um tiro de três cavalos, pai.

Aparelharam três cavalos, montaram o jovem na respectiva carruagem e dirigiram-se ao palácio real, a fim de recolher a noiva. O rei manteve a palavra dada e concedeu a mão da filha ao jovem.

Os esponsais realizaram-se pouco depois e comeu-se e bebeu-se com abundância. No entanto, a noiva tinha uma madrasta. Organizou-se a seguir um suntuoso baile a que a princesa compareceu. E a cabeça do noivo também. O jovem disse então à noiva:

— Ficaste a saber como sou, mas não o divulgues. Não entrarei no salão, pois ficarei no outro, contíguo, à janela. Não penses sequer em revelar a minha natureza, repito. Se o fizeres, partirei a janela e voarei como um pombo, rumo ao Sul.

A princesa compareceu ao baile e, ao vê-la só, a madrasta perguntou-lhe:

— Então, que espécie de homem é o teu esposo?

— Não passa de uma cabeça.

Levou-a consigo para um canto do salão, embriagou-a e continuou a fazer-lhe perguntas. E, já totalmente alheia ao que dizia, a infortunada jovem referiu:

As pernas são de prata até aos joelhos
e os braços de ouro até aos cotovelos.
Na risca do cabelo, há uma estrela, um sol na fronte
e uma lua na nuca.
Quando fala, brotam-lhe flores douradas da boca e do nariz.

No momento em que o jovem ouviu estas palavras, quebrou a janela e partiu a voar em direção ao Sul. Quando a embriaguez se dissipou, a princesa começou a procurá-lo, mas ele tinha desaparecido. Resolveu então tentar localizá-lo e viajou sete anos num único.

Chegou finalmente a uma pequena casa, entrou e deu os bons-dias.

Os que se encontravam dentro retribuíram a saudação, e ela perguntou:

— Não passou por aqui um viajante?

— Sim, mas já há sete anos. Descansou no sótão e confiou-nos uma encomenda, para que a entregássemos a uma mulher.

Foram buscá-la e, em seguida, ela continuou a sua viagem durante catorze anos, no final dos quais chegou de novo a uma pequena casa, entrou, apresentou saudações, que lhe foram retribuídas, e tomou a perguntar:

— Não passou por aqui um viajante?

— Sim, mas já há catorze anos. Descansou no sótão e confiou-nos uma encomenda, para que a entregássemos a uma mulher.

Na primeira, havia grande variedade de comida e bebida e, na segunda, todo o vestuário de mulher que se pudesse desejar.

Antes que ela se retirasse, as pessoas da casa aconselharam-na.

— Dirige-te à cidade e aguarda no primeiro cruzamento de ruas, onde o verás. É um excelente caçador.

A jovem procedeu como lhe indicaram e postou-se no cruzamento referido. Quando o avistou ao partir para a caça, dirigiu-se-lhe e perguntou:

— E agora, que será de nós, querido amigo? Que faremos, depois de eu vir de tão longe à tua procura?

Ao vê-la, ele abraçou-a e respondeu:

— Querida jovem, não te posso responder até enviar cartas a todos os reinos do mundo a perguntar que matrimônio devo conservar: o atual ou o antigo.

Escreveu a todas as partes do mundo e obteve respostas similares: "Deves conservar o primeiro matrimônio."

Em face disto, ele informou a nova noiva:

— Podes voltar para de onde vieste, pois fico com a minha antiga noiva.

A seguir, empreenderam a viagem — primeiro durante catorze anos e depois sete — até regressarem à pátria. Uma vez aí, voltaram a celebrar os esponsais e encarregaram-me de divulgar todas estas mentiras.

Fonte:

terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Varal de Trovas n. 179


Antonio Roberto de Paula (O Sábado e suas Casualidades)


Vem sempre aqui?
Não. É a primeira vez. E você?
Segunda. Não gosto. Muito apertado.

– Achei legal. Muita gente bonita.

– E mal educada. Ninguém respeita fila. Olha aí, ó, o cara entra pega a cerveja e sai na boa.
Não adianta esquentar. É coisa de Brasil.
Mas é um saco você ser obrigado a entrar numa fila para comprar ficha e em outra para a cerveja. Quebra o embalo, entende?
Não. 
Você tá com o seu pessoal bebendo. Aí seca o copo e você tem que buscar.
Sabe que eu não tô ligando muito hoje. Vim com uma turma que é um pé no saco.
Vim com duas irmãs e um amigo. Você não quer ir à nossa mesa?

– Não, acho chato deixar o pessoal.
Chato é ficar num lugar que a gente não tá a fim e fica só pra não ser indelicado.
Mais tarde dou uma passada na sua mesa.
Passa sim. Como é o seu nome?

– Nalva.

– Nalva?
 
– O certo é Edinalva, mas gosto que me chamem de Nalva. E o seu?
Manoel Augusto, mas a turma me conhece por Nezão. Apelido de criança.

– Tua cara não é estranha.

– A tua também não é. Faz tempo que você mora aqui?

– Nasci aqui.

– Uns 18 anos atrás?

– Assim você me deixa vermelha. Quem me dera ter 18 anos...

– Mas não tem muito mais do que isto.
Pode crer que tenho.
Se você tiver uns 23 é muito,
Acho que você tá querendo me gozar.

– Palavra que não. Quantos anos você tem?
Faço 28 em setembro.
Não acredito. Não parece.
Tenho três mais que você. Mas não adianta querer ser boazinha comigo. Tenho certeza que você imaginou que eu tinha muito mais.

– Que é isso, Neisão?
Neisão, não. É Nezão.
Desculpe, Nezão. Você tem o jeito de um cara de 30. Nem mais nem menos.
Mas de onde a gente se conhece?
Onde você trabalha?
Sou autônomo!

– Vende o que?
 
– Produtos de limpeza. Nossa firma representa uma multinacional.
Você deve ser bom de conversa!
Sou tímido pra caramba. Acho que só estou conversando com você porque já tomei umas três. E porque hoje é sábado. Reparou que no sábado a gente se solta mais?
É verdade. Parece que todo mundo deixa os problemas de lado no sábado. Tira a preocupação da cara e fica mais sociável. É o dia da liberdade e a felicidade é saber que o dia seguinte é domingo.
Me deixa pegar as cervejas. Dá tuas fichas, eu pego pra você.
Pega dois guaranás.
Ufa, que sufoco. E você faz o que?

– Cabeleireira.

– Onde fica o salão?

– Faço o trabalho em casa.

– Salão unissex?

– Não, só atendo mulheres.
Não dá pra abrir uma exceção?
Engraçadinho. Vou ter que ir pra mesa.
A gente vai se ver de novo?
Claro. Quer meu telefone? Tá aqui no cartão o meu nome, endereço e telefone. Mandei fazer para as clientes.
Posso te ligar amanhã?

– Vou ficar esperando.

– Quer o meu telefone?

– Não, prefiro que você me ligue.

– Gostei de você.

– Eu também. E eu que achava que a noite ia ser um tédio.

– Quer que eu te leve'?

– Não, vou voltar com o pessoal. Me liga?

– Pode esperar por isso, Nalva,

– Foi um prazer, Nezão.
Prazer foi meu. Escuta, você é casada?

– Já fui. E você?

– Mais livre impossível. Posso te dar um beijo no rosto de boa noite?

– Deve. Conhece esta música que está tocando?

– Qual?

– Presta atenção.

– Hum, tema do Ghost, Bonita.

– Adoro ela. É a minha música.

– Agora é minha também.

– Coincidência, não?

– O quê?
Tocar esta música justamente no momento em que estou me despedindo de você, uma pessoa que acabei de conhecer.
Espero que não seja coincidência. O cara morre logo no começo do filme e depois fica pentelhando aquela gostosa da Demi More até o final.

– Insensível...

– Tô brincando. Realmente a música é muito bonita. Toda vez que ouvir vou lembrar de você.

– Sério?

– Pode botar fé.

– Legal te conhecer. Tchau.

– Isto é que eu chamo de "valeu o sábado". Tchau.

Com um guaraná em cada mão, Nalva vai saindo da visão de Nezão. No rosto, instalou um sorriso entre feliz e vitorioso. Ela também considera ganho o sábado. Nezão dá a última golada e encara a fila novamente. Gravou Nalva na mente e já começou a contagem regressiva para telefonar. "É o dia da liberdade e a felicidade é saber que o dia seguinte é domingo". Nezão lembra das palavras de Nalva, ditas tão docemente. Com ela todos os dias devem ser sábado, sonha, enquanto espera mais uma cerveja.

Fonte:
Antonio Roberto de Paula. Da minha janela. Maringá/PR: Gráfica Sthampa, 2003.