quarta-feira, 4 de março de 2020

Juana de Ibarbourou (Poemas Recolhidos)


A PROMESSA

... E todo o ouro do mundo parecia
diluído na tarde luminosa.
Apenas um crepúsculo de rosa
a alta copa das árvores tingia.

Súbito amor, a minha mão unia
à tua mão morena, carinhosa...
Éramos Booz e Ruth ante a formosa
terra que aos nossos olhos se estendia.

- Me amarás? perguntaste. Lenta e grave
veio-me aos lábios a promessa suave
da amante moabita, tão querida;

e foi como um “Amém!”  que neste instante
se ouviu, num toque de oração, vibrante
bater o sino da pequena ermida!

(Tradução de J. G. de Araujo Jorge)
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AMEMO-NOS

Sob o róseo dossel deste loureiro em flor,
amemo-nos. O velho e eterno lampadário
da luz reacendeu seu clarão milenário
e este recanto de erva é um ninho, em seu calor.

Amemo-nos. Talvez haja um fauno escondido
junto do tronco do loureiro, solitário,
a chorar, sem amor, o seu triste fadário,
olhando nosso amor no prado adormecido.

Amemo-nos. A noite, encantada, harmoniosa,
tem não sei que de uma doçura misteriosa...
Somos deuses e estamos sós na paz dos campos.

E, brilhando, por entre os meus e os teus cabelos,
em trêmulos clarões, fugazes, a acendê-los,
joias verdeluzindo, amam-se os pirilampos.

(Tradução de  Mello Nóbrega)
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MONJA NOITE

Monja Noite é gentil, misteriosa, calada,
e traz, no hábito negro, um fulgente rosário.
Monja Noite padece uma pena ignorada
sem saber a razão de seu próprio calvário

Faz o milagre bom de suavizar as dores
com o gesto divinal de pôr as mãos em cruz.
Monja Noite compreende os mórbidos amores,
as misérias da vida e o sofrer de Jesus.

Sempre a espero a sorrir, pois acalma esta pena
de um amor infernal com a piedade serena
que a minha alma compreende, alma enferma e infeliz.

Monja Noite suaviza a aflição do calvário,
com seu hábito negro e o seu lindo rosário,
Monja Noite é uma irmã de Francisco de Assis.

(Tradução de Othon Costa)
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REBELDE

Caronte, quando eu for em teu barco sombrio,
que escândalo eu farei nessa triste romagem!
Temerosas, talvez, do teu olhar tão frio,
outras sombras irão a rezar, como a aragem.

Mas eu irei cantando, alegre pelo rio
e em teu barco porei meu perfume selvagem.
A brilhar me verás nesse arroio sombrio,
como lanterna azul que ilumina a viagem.

Por mais que faças tu, por mais gestos de horror
desses dois olhos teus tão destros no terror,
Caronte, em tua barca, eu serei um escândalo.

E, já farta de sombra e cansada de frio,
quando fores deixar-me à outra margem do rio,
tu me farás descer, qual conquista de vândalo.

(Tradução de Rosália Sandoval)
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VIDA SIMPLES

Iremos pelos campos, mão na mão,
por entre os bosques e os pradais de trigos,
junto aos rebanhos de candura antigos
por sobre a verde maciez do chão.

Comeremos o doce fruto são
das rústicas videiras, os bons figos
que coroam as moitas. Como amigos
partiremos a ceia, o leite, o pão.

E nas mágicas noites estreladas
sob a calma do azul, entrelaçadas
as mãos, lábios em frêmito, ardorosos,

renovaremos nosso morto idílio
que será como um verso de Virgílio,
vivido em frente aos astros luminosos.

(Tradução de Murilo Araújo)
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Juana de Ibarborou
De solteira seu nome era Juana Fernández Morales, porém é mais conhecida como Juana de Ibarbourou, sobrenome de seu marido, o capitão Lucas Ibarbourou,com quem se casou quando tinha vinte anos. Nasceu em Melo, Cerro Largo, Uruguai, a 8 de março de 1895 e faleceu em Montevidéu, em 14 de julho de 1979.

Poesia de notável expressão lírica, muitas vezes mística, luminosa e emotiva Sua poesia enriqueceu a literatura de América marcando-a com sua forte e delicada personalidade plena de amor. Talvez por esta razão o público de língua espanhola tenha lido sua poesia desde sempre com tanto entusiasmo.

Poetisa de grande expressão lírica, seus primeiros livros são de versos exaltados, sensoriais, apaixonados, e em linguagem clássica e pura. Nos últimos anos sua poesia ganhou certa expressão mística e até religiosa. Sua poesia conquistou tão rapidamente a atenção do público em geral e dos entendidos, que em 10 de agosto de 1929, no “Salón de los Pasos Perdidos” do Palácio Legislativo, um grupo de artistas e diplomáticos de diversos países encabeçados pelo célebre escritor Alfonso Reyes, lhe outorgou o título de “Juana de América”.

Outras condecorações:
– Orden Universal del Mérito Humano (em Genebra, 1931),
– Medalla de Oro de Francisco Pizarro (Perú 1935),
– Orden del Cóndor de los Andes (Bolivia, 1937)
– Orden del Sol (Perú, 1938),
– Ordem do Cruzeiro do Sul (Brasil, 1945)
– Primeiro prêmio del Ministerio de Instrucción Pública del Uruguay (medalha de ouro em 1945),
– Cruz de Comendador do Grande Prêmio Humanitário (Bélgica, 1946) etc.

Obras:
“Las lenguas de diamante”, “El cantaro fresco”, “Raiz salveja”, “La rosa de los ventos”, “Estampas de la Bíblia”, e “Su Mejores Poemas”, (coletânea).

Fonte:
J G de Araujo Jorge, Os Mais Belos Sonetos Que O Amor Inspirou. Poesia Universal - Européia e Americana  – vol. III. 1a ed, Rio de Janeiro, 1966.

Raul Pompéia (A Cruz da Matriz)


A igreja Matriz de *** está distante uns cinquenta passos do povoado...

É um edifício pobre de arquitetura, mas rico dessas arborizações cor de limo, que a humanidade pinta pelas paredes velhas, como que para suavizar o colorido deslumbrante de uma caiação primitiva. Tem por campanário uma espécie de sótão. Este sótão sobressai no vértice do ângulo de duas cornijas oblíquas, que sobem a unir-se aos pés de uma cruz de ferro escalavrado por uma oxidação antiga. À janela anterior dessa torre está suspensa uma sineta, que atira badaladas alegres aos ecos do sertão quando soa a hora da missa.

Galga três pedras amontoadas, como degraus, quem pretende ter ingresso no santuário. Vê-se então, em uma nave modestíssima, que os esforços dos fiéis conseguiram assoalhar sofrivelmente.

O altar-mor levanta-se fronteiro à entrada. Em nada destoa do aspecto geral da matriz. A cada lado desse altar existe uma portinha. A da direita dá para. um terreiro; a do lado oposto comunica com a sacristia. Triste sacristia que é! Calçada de ladrilhos desnivelados, tem por mobília dois bancos, a que o tempo tirou quase todo o verniz, e um armário, sobre o qual se vê uma imagem poeirenta da Virgem e dois castiçais azinhavrados, de cujas bordas pendem longas estalactites de cera amarela.

A sacristia tem uma janela e uma porta, que se abrem para um terreno plantado de girassóis.

Entre a janela e a porta está um dos bancos de que falei. É aqui que o velho vigário C... passava as suas manhãs e tardes. Manhãs e tardes de tranquila meditação, inspirada menos pelos segredos da ciência, que pelos mistérios da fé. Nesse lugar era visto, os olhos no chão e o pensamento no céu, deixando cair dos joelhos as mãos abandonadas, ou mergulhando os dedos por meio das franjas argentinas, que alguns dissabores e alguma idade lhe haviam feito brotar da fronte.

Ao lado do pároco aparecia às vezes o sacristão. Brício chamava-se ele. Era um rapazola travesso. Os seus treze anos nutriam nele pronunciada disposição para a brejeirada, que, conquanto inofensiva, desgostava bastante o bom do vigário. Diziam uns que o sacristão era afilhado do respeitável sacerdote; outros, porém, os maldizentes, em maior número certamente e, porventura, menos longe do verdadeiro, afirmavam que os afixos do qualificativo eram mero disfarce de um velho pecadinho do vigário.

Milhado, ou não, o certo é que Brício era paternalmente amado pelo padre. Este, não obstante o seu amor, via-se frequentemente forçado a apertar-lhe a orelha, quando o pequeno por qualquer forma fazia conhecer a decidida preferência que dava a um alçapão sobre a campainha. De fato, o menino gostava mais de espreitar, no mato, qualquer volátil do que responder ao Dominus vobiscum, no altar. Era mais passarinheiro do que sacristão. Isto causava certo desgosto ao pároco e o fazia murmurar:

- O brejeiro é levado.

Estes termos traduziam a irritação do sacerdote, pequena trovoada que, descarregando-se às vezes pelas orelhas do brejeiro, se desfazia logo no mais bonançoso esquecimento.

As vezes que as travessuras de Brício ficavam impunes, devia-as ele a um refúgio que possuía, inacessível às punições, pelo menos às do vigário. O refúgio era a torre, ou antes, o sótão da Matriz. Com efeito, o padre C... não era muito idoso, mas... sofria de um reumatismo, que não consentia que ele, na torre, ouvisse de mais perto o repicar do bronze. Uma vez, pois, no campanário, tinha Brício as orelhas livres dos dedos do vigário.

Pela manhã, quando aparecia o padre na sacristia, se o sacristão era detido, passava este os mais desagradáveis instantes da sua existência. Além da missa, que ele ajudava com alguma paciência, outros tormentos lhe eram marcados. Ora, eram dois pombinhos que chegavam a ligar-se perante Deus, ora, um pequeno candidato a um lugar na arca da salvação... E Brício era forçado a postar-se estupidamente ao lado dos pombinhos e ao lado do candidato.

O sacristão vingava-se. Resmungava contra matrimônios e batismos, que tanto tempo lhe roubavam à caça de passarinhos. Se lhe metiam nas mãos alguma vela, partia-a em pedaços, que só o pavio não deixava cair. Estas vinganças eram as brejeiradas com que o vigário menos simpatizava. Eis porque, depois de qualquer ato religioso, uma cabecinha esperta mostrava-se nas janelas do campanário... Lá estava o sacristão esperando que o padre C... esquecesse o seu delito. E pouco esperava.

À tarde, já feitas as pazes com o vigário, Brício o deixava no banco da sacristia. Trocava então o ambiente de flores em decomposição, que tresandavam as melancolias da Matriz, pelo ar puro dos descampados, tão cheio desse perfume indefinível das últimas como das primeiras horas do dia. Ia para o campo armar esparrelas aos pássaros ou rachar taquaras e fazer gaiolas para os íncolas miúdos das selvas.

Uma vez, era ao decair de um belo dia. As cambiantes roxo-negras do crepúsculo vinham ganhando o anilado celeste. As tintas de ouro do Ocaso expiravam afogadas em róseos vapores...

Nessa hora alguns campônios contentes seguiam pela estrada de.... Iam da povoação para a matriz. Havia entre eles duas mulheres, uma das quais carregava risonha uma criança nos braços. A criança ia batizar-se.

O préstito caminhava... De repente parou... Uma exclamação de raiva partira do meio dos silvados, que margeavam o caminho.

Os campônios olharam em redor, talvez assustados. Um menino lhes apareceu então, mergulhado até a cintura em montes de mato rasteiro.

- Ora! dizia ele irado. Espantaram o meu passarinho!

Os rústicos que, sem o saber, haviam afugentado uma avezinha, no momento em que se ia deixar prender pela armadilha do pequeno caçador, riram-se da exclamação e seguiram para a igreja.

Entretanto, o menino aproximou-se da sua armadilha. Estava intacta; porém o passarinho, prestes a cair, voara embora.

Franziu o cenho e pôs-se a olhar alternadamente para o seu alçapão vazio e para o grupo de camponeses, que seguia para a matriz.

Ah! uma boa pedrada!... murmurou ele, com os dentes cerrados.

- Mas não! disse, depois de refletir. Vão batizar o filhote. Não é assim?... Muito bem... Ficarão sem sacristão.

Brício, pois o caçador não era outro, tinha formado o seu plano. Na ocasião em que o batizado chegava à igreja, o sacristão entrava no povoado.

Encaminhou-se este para a casa onde moravam ele e o vigário. Não quis entrar. Assentou-se na soleira da porta e aí ficara alguns minutos, quando um seu amiguinho chegou correndo e gritou-lhe.

- Brício, fuja! O Sr. vigário está lá em casa a perguntar por você e provavelmente virá aqui, vá esconder-se... Ele está furioso... Diz que você o deixou sem sacristão...

Brício soltou uma gargalhada franca e ruidosa:

- Ah! disse ele. Não tiveram sacristão. Nada mais justo...

O amiguinho do sacristão arregalou os supercílios com um ar pasmado.

- Não me entende. Não é?... Eu te explico... Um passarinho, antes de recolher-se ao ninho, pousou no meu alçapão... lá no caminho. Estava a cair, quando uns tratantes apareceram, levando um pequeno para batizar-se. Espantaram-me o passarinho e riram-se de mim... Agora eu rio-me deles... Espantando o passarinho, espantaram o sacristão... Bem feito! Não acha?

- Bem feito! Bem feito... Mas o mau é que os tais do batizado brigaram com o Sr. vigário, por faltar o sacristão, e juraram que se haviam de mudar da freguesia para não voltar a uma igreja tão...

- Oh! oh! Que logro!

- Sim! mas o Sr. vigário está seriamente zangado por isso... com você... E fuja, Brício! Aí vem gente!

Brício sumia-se por um lado, quando por outro mostrou-se o padre C... voltando uma esquina.

Ao ver o amigo do sacristão, o sacerdote dirigiu-se a ele:

- Você viu o Brício?

- Não, senhor, respondeu o menino.

E se afastou do padre, que ficou mordendo o beiço, ante a mentira do pequeno.

- Este é outro, disse ele, a meia-voz. Pensa que eu não ouvi-lhes a conversa...

Tinha já Brício chegado à igreja e se acomodara na torre.

Dentro em pouco avistou, caminho da matriz, o vigário

Vinha devagar, por causa da sua moléstia. Brício teve então umas das suas lembranças... E com elas havia várias vezes apaziguado o sacerdote.

- Bom, disse consigo, ele me há de avistar... Se me mandar descer, eu direi que apanhei um reumatismo que não me deixa andar quase... Ótima razão!

É a mesma que ele tem para não subir. O reumatismo que não o deixa subir, porque não me impedirá de descer?... Mais tarde descerei sem receio...

No princípio de uma cólera, qualquer coisa que devera fazer rir, irrita mais ainda. No fim sucede o contrário: extingue-a de todo.

Parece que o sacristão sabia disto, que cuidou em preparar-se no campanário. Saltou pela janela da frente curvando-se para não esbarrar na sineta, e passava para cavalgar no ângulo das cornijas do frontispício da Matriz, onde seria facilmente visto, apesar da noite que entrava...

Então, debaixo da estrada, se fez ouvir um grito de terror.

Era o vigário C...

Sucedera uma coisa horrível.

O pobre sacristão escorregara para fora e, fiando-se demasiado na segurança da cruz de ferro, agarrara-se a ela. O ferro oxidado vergou, inclinando-se para a frente, e depois abaixando-se.

Brício, com as mãos pregadas na cruz com uma energia desesperada, pedia socorro... suspenso no ar.

A cruz se ia entortando lentamente. Se Brício fosse pesado, o seu suplício não duraria tanto.

O ferro começou a rachar-se.

O menino, aterrado, via como avançava a morte, e ouvia os gritos do pároco abaixo dele...

O mísero vigário estava fora de si. Tinha querido subir ao campanário. Não pudera. Colocara-se então por baixo de Brício e, com os braços abertos, esperava neles recebê-lo.

- Brício! Brício! gritava.

E o ferro da cruz, primeiro devagar... depois, rápido... partiu-se.

Daí a pouco estava no adro da Matriz de*** um pequeno cadáver... A cabecinha, descansada nas lajes da escada, pendia um pouco para trás, com os cabelos a nadar em sangue... O corpo estendia-se inerte sobre a terra, uma das mãos encostada aos olhos, a outra segurando-se a uma cruz de ferro... Era o sacristão Brício.

A porta da igreja estava aberta. A noite enchera de trevas o santuário... Apenas no fundo luzia o clarão baço da lâmpada, com essa expressão sepulcral e triste que se descobre no olhar do moribundo... E este clarão, flutuando naqueles negrumes, deixava ver no meio da nave uma sombra negra.

Dir-se-ia um espectro...

Mas o espectro falou:

- Malfadada criança!

E depois com entonação soturna.

- Eu pecara, meu Deus... E tu me puniste!

Estas vozes perderam-se pelos recantos do templo, e a luz da lâmpada tremulou como em soluços.

Fonte:
Biblioteca Virtual

terça-feira, 3 de março de 2020

Varal de Trovas n. 197


Luiz Otávio (Um Coração em Ternura…) 1


UM CORAÇÃO EM TERNURA

Eu trago dentro do peito,
na Ventura ou Desventura,
sem nunca mudar de jeito:
— Um coração em ternura...

Um coração emotivo,
pueril, para muita gente;
mesmo assim, com ele vivo,
feliz, tranquilo e contente.

É um jardim com muitas flores,
de tanta ternura cheio,
que além de ter suas dores,
também sofre o mal alheio…

Vai assim, meu coração,
sentindo dores e provas,
que por um milagre então,
vão se transformando em trovas.

Bendigo pois, satisfeito,
este dom, esta ventura,
de trazer sempre no peito:
— Um coração em ternura…
* * *
 
CANTIGAS COM PROVÉRBIOS

"Recua quem não avança…"
Eu fui avançar, recuei...
Tu me tiraste a esperança
quando um beijo te roubei...

"O cardo que há de picar,
logo nasce com espinhos..."
— Teu amor me fez penar,
e nasceu com mil carinhos...

"Pode se atrever a tudo,
quem tudo sabe sofrer…"
— Não sei sofrer e contudo
me atrevi a te querer…

"Não dá erva o chão pisado..."
Mas no amor não é assim...
Quanto mais sou desprezado,
tu mais versos tens de mim...

"Quem espera sempre alcança.
O que se alcança não sei...
Pois eu de tanto esperar,
só desespero alcancei...

Teu amor é leve, leve...
Longe estás!... — Vais me olvidar
"Barco pequeno não deve
navegar em alto mar..."
* * *

A UM POVO

(Povos felizes e cheios de paz, são arrastados no turbilhão da Guerra. O poeta, neste
verso, tenta traduzir, o que vai n'alma de um homem livre e poeta, ao ver a Guerra se aproximar de suas fronteiras.)


Também terás a tua fase incalma,
cheia de dor e de melancolia…
Para ganhares da vitória a palma,
terás que te bater com energia!

E perderás, esta invejada calma,
que sempre tu tiveste noite e dia...
Por isso deves preparar tu'alma
pois grande Temporal já se anuncia...

E sofrerás por veres tua terra,
cheia de Paz e tão feliz outrora,
lançada assim no turbilhão da Guerra!

Verás Escravidão em cada canto!
— E é por ser livre que já sofro agora…
E é por ser poeta que prevejo tanto!…
* * *

SUPONHAMOS

Suponhamos...
(Vamos apenas supor…)
— que sós assim como nós dois estamos,
estivesse também com meu amor…

Vamos imaginar ainda,
que ela fosse assim como você:
encantadora e linda… muito linda…

Com muito receio...
Trêmulo de emoção...   
Havia de encontrar um meio
para fazer a "minha declaração”…

Suponhamos que estivesse também
a noite fria… muito fria…
Eu pediria a ela então,
para aquecer na sua mão esguia,
a emotiva algidez de minha mão…

E assim tão perto dela eu ficaria,
que oscilar do meu coração,
ela na certa notaria
quando eu pedisse a "sua mão".
…………………………………………

Suponhamos agora
que eu deixasse de supor...
……………………………………….

Mas como você está tão nervosa e corada!
Olhe bem para mim
e não se zangue, por favor!…
…………………………………

— O que?! Não ficou mesmo zangada!?
Você é sublime, meu amor...    '
* * *

ROSAS...

Tão encantadoras rosas,
nunca mais observei,
como aquelas tão mimosas,
que nasceram no teu rosto
quando um beijo te roubei.
* * *

SANTA

Pálida e triste, suavemente bela,
de uma beleza fria, espiritual,
tal como num Crepúsculo, aquela
imagem de Maria num vitral...

… Pálida e triste, o seu olhar revela
candidez e pureza sem igual!
E um olhar ao fitar o rosto dela,
parece ver as santas de um Missal…

Por que trazes assim tristeza tanta,
num fundo misticismo que é de santa,
sem pressentir meu grande amor sequer?!

Tu não vês que a mính'alma te deseja?
— Se és santa, pois que fiques numa igreja.
Se não fores, que sejas mais mulher!...

Fonte:
Luiz Otávio. Um coração em ternura. 1a. ed. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti, 1947.

Aparecido Raimundo de Souza (Como Penso, não Sou)


Você me pergunta, minha amiga, como eu sou:

- Como quer realmente que eu seja? Ou melhor; como gostaria que eu fosse? Para que me não tome como um aventureiro, ou descortês, tentarei, em poucas linhas, responder traçando um tiquinho do meu perfil. Para início de conversa, devo dizer que sou viciado em computador. Embora não disponha de uma máquina em casa, para uso pessoal, quando vejo uma dando sopa em lojinhas especializadas, logo me vem a vontade incontida de sentar numa cadeira e colar os olhos de frente pra telinha. Nem que seja para digitar no braço da pessoa que estiver ao lado, o meu nome, endereço de e-mail e telefone para futuros contatos. Sou emotivo, pertinaz, obsessivo, teimoso, não como uma mula sem cabeça, mas como um garanhão selvagem e indomado. Costumo enfatizar que possuo um magnetismo animalesco, vez que, dependendo de como acordo, costumo dar coices em mim mesmo, ou relinchar a torto e a direito. Às vezes, no café da manhã, mando pra dentro uma boa quantidade de alfafa, noutras, me contento com um chumaço de capim fresquinho. Chorão? Você quer saber se sou chorão? Olha minha linda, não muito! Se não me falha a memória, chorei uma única vez. Havia batido com os burros n'água por conta de uma empreitada que não resultou no esperado. Em face desse deslize, quase me vi enjaulado numa delegacia de periferia, acusado por algumas senhoras donas de boutiques de roupas femininas, como ladrão de calcinhas. Faltou bem pouco para que eu acabasse no xilindró, e, pior, nos braços de um negrão duas vezes mais alto que o Sérgio Reis.

Amo a vida. De paixão! Adoro viajar para baixo e para cima. Já rodei o mundo todo nas asas dos meus sonhos junto com minha imaginação. Sou um pouco menino, e, como todo garoto sapeca, corro atrás de pipas, jogo dominó, dama, xadrez, paciência, chuto bolas nas vidraças dos vizinhos e mexo com as meninas. Também tenho mania de levantar as saias das moças que encontro pelas ruas só pra ver a cara de zanga que elas costumam fazer a admoestação desse meu gesto. Espio as minhas irmãs no banheiro lá de casa pelo buraco da fechadura, quando vão tomar banho, ou trocar de roupas, e roubo balas dos velhinhos nos pontos de ônibus. Como homem nunca me achei no caminho almejado. Naquele trilhar que verdadeiramente tracei quando ainda fazia planos e acreditava em Papai Noel. Tampouco me flagrei no lugar em que a tal da sorte me disse ter reservado assento numa cadeira cativa. Sou tolo, fugaz despropositado e desagradável. Às vezes, suponho saber tudo, de repente descubro que não enxergo um palmo adiante do nariz. Faço parte de uma família que não criou raízes, nem correu atrás de algo sólido. Daí, ser assim, destrambelhado, adoidado, tantã. Sem base, sem porto seguro, com um parafuso a menos.

No meu mundinho, amiga, meus pares vivem cada um por si, enclausurados dentro de quatro paredes escuras. Cada consanguíneo, isolado na sua redoma intransponível, procurando ser mais introspectivo que o outro. Todos, sem exceção, aparentam ser desprovidos das ideias (pelo fato de estarem presos a pesadelos mórbidos), perdidos como um bando de cegos em meio de um tiroteio, à cata de uma porta aberta que jamais será encontrada. Não sou feliz, também não sou triste. Não carrego mágoas, nem ódios ou rancores. Apenas vegeto num vazio muito grande que me mata, aos poucos e me definha a alma. Se me casei? Sim, amiga. Duas vezes. Tive uma infinidade de mulheres (amantes, nem se fala) que, por sua vez, me valeu uma penca de filhos espalhados pelos quatro cantos. Não fui um bom esposo, tampouco pai exemplar. E quem não é pai exemplar digno de ser copiado, jamais será considerado um modelo a ser seguido como padrão de comportamento ou de perfeição. Talvez seja por Isso que, nas vezes, em que visito mamãe, perceba que ela deixa transparecer certa contrariedade, como se minha presença a incomodasse de alguma forma. Noto claramente que fica distante, amuada, aborrecida, enfastiada e alheia. Se eu saberia o motivo? Sustento a teoria de que ela tem preferência por outro irmão mais novo. Não que ele seja um galã ou mais bem apessoado que eu. Contudo, quero crer, em vista de ter tido mais sorte, e, em razão desses ares benfazejos, logrado posição financeiramente mais afortunada. Dessa forma, nascido com a “bunda pra lua”, esse meu mano conseguiu dar a ela uma vida mais abastada e sem os transtornos e as correrias de um simples assalariado.

Apesar dos pesares, queria encontrar a felicidade que busquei a vida toda. Desfrutar dessa paz que as pessoas falam e que em nenhum momento se dignou sorrir para amenizar a minha angustia. Adoraria ter um porto amigo, um ombro onde pudesse deitar e falar como foi o meu dia. Sonho, ainda agora, com uma casa, mesmo pobre, uma mulher me esperando, uma criança sorrindo, um quadro na parede, um fogão velho na cozinha. Algumas panelas sobre ele, um prato de comida requentado, servido em cima de uma mesa sem toalha. Um bocado de arroz com um ovo frito não faria a menor importância. Queria, ainda, poder sentar num sofá caindo aos pedaços, ver um pouco de televisão em preto e branco e, depois, dessa via crucis, me dar ao luxo de dividir as alegrias e as tristezas com minha cara metade. Almejaria mais, nesta utópica insensatez; deitar a cabeça num travesseiro sem fronha e saber que dia seguinte, depois que ultrapassasse a porta da rua, nenhuma perspectiva de melhora estaria me esperando na esquina ou me sorrindo com ares de boas vindas. Mas assim mesmo, confesso, do fundo da alma, eu sairia feliz. Sairia de cabeça erguida, alegre, saltitante. Realizado e próspero. Seguiria para o batente como um sortudo afortunado e venturoso, que ganhou na loteria, porque atrás de mim... Atrás de mim havia deixado um lar, uma família, um amor de verdade, um sonho que se renovaria a cada volta no começo da noite.

Você me pergunta minha amiga, como sou. Sou isso, um trapo, um Zé Ninguém. Nem pobre, nem rico. Completamente desprovido do necessário para sobreviver condignamente. Vazio, oco, desiludido. Um idiota em busca de mim, um imbecil planejando ver a tal da esperança (mesmo que por alguns poucos minutos) diante de meus olhos. Sou isso tudo que acabei de dizer, talvez um pouco mais. No fundo, minha querida, um monte de lixo.

Resumindo minha triste existência, não sou nada. Nunca fui. Jamais serei. Na verdade, não existi. Não fiz história. Apenas vegetei uma existência medíocre e barata, me consumi em dissabores, em inconsequências, com gente a toda hora me virando o rosto, em carinhos não recebidos, em mãos acenando adeus. Minha aparência? Acho que nesta altura do campeonato, esse particular é o que menos importa. Não sou nenhuma estrela de televisão. Não tenho o corpo sarado, não trago piercing ou tatuagem que se possa dizer "nossa, que massa". De estatura mediana, não sou nem alto, nem baixo, nem magro, nem gordo. A cabeça sempre vazia, o bolso sem um tostão pra fazer um cego cantar... Na carteira um monte de contas vencidas. Não se iluda se lhe falar que me pareço um pouco com o Tom Cruise. Claro que não me refiro ao famoso ator e produtor americano, e sim ao Tom Cruz Credo que você encontra em qualquer sinaleira espalhada aí pelas ruas. Se fosse me comparar com alguém, diria que me sinto como um daqueles personagens que encantavam os reis e os nascidos em berços de ouro dos tempos de outrora. Lembra dessas figuras? Consegue materializá-las na mente? Pois então: uma miscigenação barata, aperfeiçoada, dos bufões de antigamente. Resumindo amiga, devo terminar num arrulho estrepitoso lhe confessando que me considero uma cópia fiel de Daniel melhorado, circulando por aí. e, a cada novo porvir, tentando não ser arremessado, ou jogado, como alimento, na cova dos leões para servir de tira gosto a jantares exóticos. Acredite minha amiga, adoraria esse negócio de ser devorado por inteiro. Dos pés a cabeça. Não pelos felídeos predadores de caudas longas e jubas felpudas, evidentemente... Ao contrário, me sentiria plenamente realizado se me visse acolhido pelos resguardos bem agasalhadores da vida plena.

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. Havia uma ponte lá na fronteira. São Paulo/SP: Sucesso, 2012.

segunda-feira, 2 de março de 2020

Varal de Trovas n. 196


Dorothy Jansson Moretti (Bandeirante Sem Medo em Noite Escura)


Nada como uma fotografia — e posso falar de cátedra — para fazer-nos reviver um momento qualquer de nossa vida, que talvez houvéssemos esquecido completamente, não tivesse ele sido registrado pela objetiva atenta de um fotógrafo providencial.

Nos "arquivos implacáveis" de meu pai, defronto-me continuamente com essas situações. Há dias, revirando velhos álbuns, deparei com uma foto minha aos nove anos de idade, vestida com farda de Bandeirante. Reportei-me imediatamente aos meus tempos de grupo escolar, c mentalmente revivi dois fatos que de há muito estavam adormecidos em minha memória.

Um deles, ligado à história do escotismo em Itararé, foi uma excursão que fizemos à cidade de Itapeva.

Que agitação! Cedinho estávamos todos reunidos cm frente à casa de nosso monitor, o velho e querido Seu Peppo, italiano itarareense que era todo um folclore e que há de ser sempre lembrado como uma lenda, em nossa Itararé.

Dali partimos em forma para a Estação Sorocabana. Era de trem que se faziam quase todas as viagens naquele tempo. Acomodamo-nos nos bancos, alegres e animados. Foram sem incidentes as duas horas que durou o trajeto.

Chegando a Itapeva, fomos recebidos pelos escoteiros locais, com muita festa e demonstrações de amizade. Houve troca de abraços e de saudações gentis entre os monitores de lá e daqui. Um menino da família Lobo fez o discurso de recepção;

"Caríssimos colegas! Ao entrardes em terras faxinenses" (Itapeva naquele tempo era Faxina) …"Assim começava o discurso que foi muito bonito e muito aplaudido.

Logo depois iniciamos as atividades programadas por nossos amáveis hospedeiros para aquela visita, ocupando-nos toda a manhã.

Ao meio-dia o almoço foi num velho hotel e para nós, gente miúda, uma tremenda novidade comermos assim, todos juntos, servidos por garçons! Parecia-me um luxo tudo aquilo.

Na parte da tarde continuamos nossa interessante programação, sempre acompanhados e assistidos por nossos simpáticos anfitriões faxinenses que nos cumularam de atenções e gentilezas, dando-nos a maior demonstração de cortesia, camaradagem e perfeita educação.

Ao fim do dia estávamos de volta, felizes, emocionados, e cheios de histórias para contar.

O outro fato de que me lembrei, de menor importância mas não menos pitoresco, foi uma embananada em que me meti, por não ter prestado muita atenção a um aviso de Seu Peppo. Ele nos havia dito que no dia seguinte, às quatro horas, iríamos fazer uma de nossas movimentações habituais, que consistiam em longas caminhadas a pé, exercícios ao ar livre, corridas em bicicletas... coisas no gênero, que geralmente praticávamos de manhã. Às vezes, devido à distância que iríamos percorrer, levávamos um pequeno lanche para comermos na estrada ou no campo.

Não sei por onde andava o meu pensamento (sempre fui meio desligada), na hora em que Seu Peppo deu o aviso; mas chegando cm casa, participei à minha mãe a ordem recebida. Se ela estranhou, não me lembro. De madrugada chamou-me. Já estava com o café na mesa e a sacolinha de lanche pronta para eu levar.

Quatro horas da manhã seria escuridão total se as fracas lâmpadas dos postes não estivessem todas acesas. Incríveis tempos aqueles, em que uma garotinha saía só e tranquilamente de casa àquela hora, sem que nada ou ninguém a molestasse! A não ser um cãozinho que latiu para mim na beirada da esquina, ninguém mais tomou conhecimento dessa minha insólita aventura madrugona.

A casa de Seu Peppo ficava ali mesmo na outra quadra da Rua Quinze. Quando fui me aproximando, comecei a estranhar não haver luzes lá dentro, nem viva alma pelas imediações. Parei em frente ao portão, hesitante... "Bato ou não bato?"

Achei melhor esperar; talvez o relógio lá de casa estivesse muito adiantado.

Passaram-se alguns minutos. E então, repentina como um relâmpago, acendeu-se uma luzinha, não na casa de Seu Peppo, mas bem lá no fundo de minha cabecinha avoada...

"Será que ouvi direito? Vai ver que é às quatro da tarde... Claro, sua idiota! É isso mesmo!…"

Era, Voltei para casa sem graça, murchinha e chateada, mas sem outro prejuízo que não fosse a perda daquelas horas gostosas do sono da madrugada... logo eu que nunca fora muito amiga de levantar com as galinhas...

Fonte:
Dorothy Jansson Moretti. Instantâneos. São Paulo: Dialeto, 2012.

Doce Aconchego das Trovas n. 8


Quando adormeço, tristonho,
vejo-te em sonhos, querida!
— E a vida fica mais sonho!
— o sonho fica mais vida!
APARÍCIO FERNANDES
*
Teus olhos negros, na face
de jaspe, causam delírio:
é como se a gente olhasse
dois melros dentro de um lírio!
COSTA GOMES
*
Servo de um rosto moreno,
a quem sirvo com prazer,
basta-me um simples aceno
para alegrar-me o viver!
CRISÓSTOMO DE SOUZA
*
A noite do esquecimento
não se fez para quem ama:
vives no meu pensamento
como no sol vive a chama!
CUNHA MENDES
*
Saudade vai, por favor,
por este mundo sem fim:
segreda ao meu doce amor
que não se esqueça de mim.
DALILA MAIA DE CARVALHO
*
Eu que tenho a alma perdida,
no lirismo das esquinas,
vivo sempre uma outra vida,
nos olhos dessas meninas. . .
DILCEU DO AMARAL
*
Se ao partir tu me deixaste
tamanha recordação,
pede a Deus Nosso Senhor
que me mande uma ilusão!
DIRCE DE OLIVEIRA
*
Se você chegasse agora,
ó meu Deus, que bom seria!
Mandava a tristeza embora
e a saudade mataria!,,,
E. WERNECK
*
Tu não sabes que te adoro
cada dia sempre mais.
Se soubesses, eu seria
o mais feliz dos mortais!
EDMO FROSSARD PAIXÃO
*
Multipliquei os teus beijos,
guardei-os no coração.
Mas nem sempre meus desejos
querem só recordação...
ELZA CAPANEMA LEITÃO
*
Como se já não bastasse
a saudade que eu sentia,
veio a dor do desencanto
— eu chorava e você ria..,
ELZA TABORDA GALLIAC DA SILVA 

*
A vida? Que importa a vida,
se nela eu vivo a cantar
uma canção refletida
pela luz do teu olhar!
EVARISTO DE SOUZA
*
És jovem, frágil, medrosa,
e o mundo é rude e violento:
sempre sofro ao ver a rosa
sacudida pelo vento...
GABRIEL VANDÔNI DE BARROS
*
Eu sempre te procurei,
bem de longe eu te segui.
Agora, que te encontrei,
nos teus braços me perdi...
GERALDO DE MORAIS BARBOSA
*
O maior bem desta vida
em teus olhos me sorri:
— Como é bom gostar, querida,
como é bom gostar de ti!
GERSON DOS REIS
*
Quando tu passas por mim,
assim sorrindo, Maria,
minha tristeza tem fim:
vai-se a noite... vem o dia…
JOSÉ IGNÁCIO PEREIRA
*
Se quiseres meu amor,
terás também meu carinho:
tem a doçura do mel
e a embriaguez do bom vinho!
HELENARA
*
Se todo o bem que me queres
é tão grande quanto dizes,
sou, das mulheres felizes,
a mais feliz das mulheres!
HERMÍNIA BASILE NOGUEIRA DA SILVA

 *
Chuva que turva as estrelas,
não caia com força, não.
Há largas brechas nas telhas
do meu frágil coração.
HILDA ARAÚJO
*
Destino findo e bizarro
o do ninho no barreiro:
em duas peças do barro,
cabe o paraíso inteiro!
HUGO RAMIREZ
*
Lembram, num trejeito findo,
esses teus lábios. Maria,
duas pétalas abrindo
numa silente harmonia!
HUMBERTO FELICIANO DE CARVALHO
*
Se você na mocidade
muitos beijos recebeu,
pode morrer de saudade,
mas de amor você viveu.
ILDEBRANDO SISNANDO
*
Na tua boca vermelha,
na tua boca mimosa,
já vi pousar uma abelha,
pensando que era uma rosa.
ISIMBARDO PEIXOTO
*
Para esquecer minhas mágoas,
procuro em ti não pensar.
Mas... qual o rio que as águas
consegue à foz recusar?
ISNARD GIORELLI
*
No teu seio é que a doçura
sempre incita os meus sonhares,
meu pensamento se aninha
como a andorinha nos ares.
J. H. DE SÁ LEITÃO
*
Fonte:
Aparício Fernandes. A Trova no Brasil: história e antologia. São Cristovão/RJ: Artenova, 1972.

Monteiro Lobato (Noite de São João)


— A fogueira!

Confluem todos para ela. A palhaça de milho soto-posta à lenha miúda que lhe serve de intestinos vê-se ateada em fogo pelos quatro lados. O fogo pega e é a princípio indecisa crepitação acompanhada de leve e discreto fumegar. Depois, estrepitante, estala e de dentro da prisão de toros, que quatro espeques de jiçara mantêm em forma, escorados nos encruzes, rola em bojos um fumo espesso. Panos de labareda esgarçam-se, tentando seguir a fumaça faulhenta em seu vertiginoso arranco para o alto. Vermelho clarão ilumina o terreiro e chapeia os vultos de debruns de cobre polido. Barulham gritos, palmear de crianças, apupos e vivas, aos quais os bambus do recheio casam os seus estouros de bomba. A faiscalha ascendente galga o céu recamado de estrelas, qual invertido chuveiro.

O frio fino da noite atrai para a fogueira os fandanguistas, de mãos espichadas para o calor irradiante. Mãos e pés. Um dilúvio de pés entanguidos — pés de marmanjões, pés calçados e pés no chão, pezinhos de crianças, pés brancos, pés pretos e pés mulatos — das criadinhas e molecotes crias da casa — em alegre confraternizar apinham-se junto a ela nas mil atitudes do “aquentar fogo”.

As crianças furtam-lhe os tições a jeito, e guiadas pelas mais peraltas dividem-se em grupos para queimar traques da China ou bichas de rabear. O ar estreleja ao estalo daqueles, enquanto estas ziguezagueiam pelo chão, chiando faíscas, como buscapezinhos de Liliput. À porta da casa escorva-se o primeiro pistolão de cor.

— Caminho, gente! “Evai” fogo!

Abre-se uma ala por onde, num repuxo de faíscas, jorra a primeira bomba dum verde de doer nos olhos. O esverdeamento da cena atrai todos os olhares, seguido de espontâneo e sincero “Bonito!”. Vem outra mais forte, vermelha, e outra azul, e outra branca... A cada blaf há um volver geral de caras, e ao último um “Que pena! Outro! Outro!”. E os pistolões se sucedem, com rebuliços na molecada ao fim de cada um para a disputa do canudo.

Aqui o quadro perde a unidade. De cada lado cenazinhas pitorescas dividem a atenção.

— Mamãe, Zequinha queimou eu!

Um menino aparece berrando, a sacudir um dedo enegrecido pelo chamusco da bicha que o irmão, “de propósito”, lhe atacara em cima. Acodem mulheres, que rodeiam a criança com exclamações de piedade. Uma velhota lembra o querosene como o melhor porrete para queimadura. Surge a lamparina de petróleo às mãos duma criadinha, e conserta-se o dedo ao Jojoca, que, mal sarado, ainda fungando e soluçando, lá se volta às bichas, seguido de longe pelos olhares ressabiados do Zequinha, ao qual a mãe, estalando os dedos, ameaçou com um “amanhã você me paga!”.

Num grupo de taludotes conspira-se visivelmente. Tudo ali são meias palavras e cochichos: buscapés... no meio do povo... vai ser uma pândega!…

Noutro, de fedelhinhos, o Zequinha se faz centro de minuciosa atenção, e no silêncio só quebrado por um ou outro soluço do Jojoca, desmancha pistolões à cata das bombas, distribuindo a pólvora pelos amigos.

Nisto, rebentam palmas no grupo dos moços.

— Bravo! Viva a sanfona!

Era o Quim da Venda que chegava, a espremer um velho dobrado na sanfona fanhosa. Rodeiam-no; “inspiram-no” com uma vez de caninha, e cada qual vai pedindo a música da sua predileção. Quim sorri perguntando: “Mas afinal que é que meceis querem?”.

Teve maioria uma Não te esqueças de mim — “muito dançante”, na opinião de Sinhazinha Lopes —, a cujos primeiros acordes os pares se uniram de peito e iniciaram o giro valsado em torno à fogueira. Aos ouvidos das moças ressoam as eternas amabilidades do galanteio.

Em certo magote comenta-se:

— Parzinho jeitoso, a Miloca e o Lulu, não?

— E gostam-se desde meninos; ouvi dizer que ele já a pediu.

— Histórias. Quem foi pedida, um dia destes, foi a Nenê. Mas parece que o sujeitinho levou tábua.

— Bem feito! Tenho birra àquele coisinha. Pensa que é gente... Não viu o que andou dizendo de mim? Como coisa que eu era capaz de dar confiança a um moleque daquela marca...

A sanfona gemia cadenciada, com o Quim deitado sobre ela, alheio ao mundo. Tocava bem, o ladrão, sobretudo quando lhe graduavam o estro com sábias doses de pinga. Aqueles sons ritmavam o movimento dos pares, enlanguecidos num misto de amor e bem-estar físico. Perto deles inutilmente espocavam as bichas e chiavam fogos; nem sequer lhes atraía os olhos o puf! balofo dos derradeiros pistolões.

Súbito, chiou ao longe um buscapé de limalha que, qual raio epiléptico, enveredou pelo meio do povo aos corcovos, criando o pânico e a debandada. Os dançarinos fugiram espavoridos, com as damas penduradas ao peito, e a meninada prorrompeu em atroadora grita — meio medo, meio contentamento. Os velhos protestaram igualmente, que era uma patifaria, que aquilo não se fazia.

No meio da desorganização geral só não largou o posto o Quim, sempre deitado na sanfona, alheio ao mundo, absorto nas sonoridades fanhosas que sua alma de artista bárbaro ia arrancando ao instrumento querido.

Cessado o pânico com o estouro final do buscapé, surgiu um tio Pedro, de porretinho em punho, para “ensinar” o malvado.

Quem foi? Quem não foi?

Não fora ninguém; ninguém vira.

Ferviam ainda o comentário e a indignação, quando apareceram duas criadas carregando bandejas com xícaras e bules.

— A gengibrada! “Evem” a gengibrada!

Foi água na fervura. Todos se esqueceram do buscapé para só se lembrarem da garganta. Era a vez de consertar os gorgomilos e matar no ovo a possível constipação. Por minutos um soprar de xícaras e um chuchurrear com estalos de língua dominaram todos os barulhos.

— Está supimpa!

— Isto regenera o fígado.

— Corrobora, pois não.

— Mais uma xícara, dona Lulu?

— Ardidinha, mas boa que dói!

— Está d’apetite, como diz o Eça.

Este comentário saiu do literatelho da roda, Júlio da Silva de nome, Julius d’Altamira no pseudônimo com que desovava sonetos semanais nas folhas da terra. A Candoquinha, de há muito pelo beiço, encantou-se com a frase.

— É da pele, este seu Júlio!

Bem gengibrados, dispersaram-se de novo.

O Quim anunciou quadrilha, que foi organizada num ápice. Quem a marcava era o Júlio. Ah, o Júlio tinha tanta graça para marcar…

— “En avant turco I” — “Grande chaine!” — “Tour, à pas de ‘porca’!”

Gargalhadas, quiás, quiás, quiás. A Candoca fundia-se de gosto.

— Este seu Júlio tem cada uma!...

Certa ex-musa do poeta não se conteve:

— Credo, Candoca! Você está escandalosa.

— Deixe. Isto é pra quem pode... — “Joujou d’enfant!” — “Grande confusion!” — “Tour!”

— Seu Júlio, outra vez “Joujou d’enfant”!

— Arre, Candoca!

Para lá da fogueira enchia-se um grande balão. A criançada rodeava-o, acotovelando-se, na ânsia de ver melhor. O Zequinha era quem punha a mecha e distribuía tabefes aos atrapalhadores.

O bojo multicor encheu-se dum fumo sujo.

— Está pronto, pode largar!

— Ainda não, bobo! Falta gás…

— Agora!

Sentindo-o com força, o “segurador” largou-o, e o balão hesitante subiu a prumo. Rompeu o berreiro.

— Viva o balão! Viva Santos Dumont!

O Júlio, que nesse momento estilizava o décimo “tour” com sua “vis-à-vis” a Candoca, aproveitou a ensancha para poetar.

— O amor, dona Candoca, é como o balão: quanto mais rápido sobe, mais rápido desaparece.

— Adorável pensamento para um cartão-postal! — suspirou ingenuamente a menina, envolvendo-o num olhar de mel.

Nisto a fogueira desmoronou, golfando para o céu escuro bulcões de fagulhas vivíssimas.

— Bonito! Parece o Vesúvio!

O Júlio incontinênti “cascou” para a Candoca.

— Sabe como Deus criou as estrelas? Mandou que os anjos cortassem grandes florestas e armassem enorme fogueira da altura do Himalaia. Acendeua e, quando tudo estava em brasa, despegou um pedaço do céu e arremessou-o contra ela. Ergueu-se então um repuxo imenso de faíscas, que foram subindo, foram subindo, até se grudarem na abóbada negra do firmamento…

— Lindo! Há de escrever isso no meu álbum, esse lindíssimo pensamento, sim? O que é ter alma de poeta…

E Candoca lambuzou-o de um novo olhar de mel, onde não se sabia o que mais babava, se o amor, se a admiração pelo esteta…

Fonte:
Monteiro Lobato. Cidades Mortas.

Contos e Lendas do Mundo (Nação Taulipang: Konewó e a Onça)


Konewó é um índio que parecia ter nascido para disputar com as onças. Certo dia, ele estava sentado, encostado a uma árvore, quando uma onça chegou e perguntou:

– Por que está aí sentado, a escorar esta árvore?

– Para que ela não caia – respondeu Konewó, secamente. – Todas as árvores estão por cair. Por que não faz o mesmo que eu com aquela outra árvore ali?

A onça viu uma árvore que parecia prestes a ruir e achou que seria uma boa distração ficar escorando-a, pois não tinha nada melhor para fazer. Depois de encostar-se ao tronco, a onça fechou os olhos, sentindo-se vagamente virtuosa.

“De vez em quando é bom ser útil”, pensou, vaidosa da sua virtude. Mas a virtude logo transformou-se em sono, e, quando a onça começou a roncar, Konewó ergueu-se e, ligeirinho, amarrou-a ao tronco com cordas trançadas de cipó.

Konewó desapareceu, a reprimir o riso, e a onça só acordou algumas horas depois, completamente imobilizada.

Os dias se passaram e ela já estava quase morta de fome quando um macaco surgiu.

– O que faz aí, toda amarrada à árvore?

– Fui amarrada, não está vendo? – rugiu a fera. – Vamos, solte-me já!

– Ah, isso eu não faço, não! Se soltá-la, você me come!

– Não comerei, dou-lhe minha palavra!

O macaco não foi muito atrás da onça, e ela precisou insistir várias vezes para que ele finalmente se decidisse a arriscar o pelo. Com toda a cautela, ele desamarrou a onça, e só por isso escapou vivo. Atento, assim que viu a pata peluda eriçar as unhas na sua direção, deu um pulo para longe. O macaco desapareceu dentro da mata, enquanto a onça ficou maquinando a sua vingança contra o índio que a aprisionara.

Depois de andar muito, farejando o rastro de Konewó, ela finalmente encontrou o seu desafeto, desta vez escorado numa rocha.

– Ah! Aí está você! – disse ela, pulando à frente do índio. – Desta vez você me paga!

Konewó olhou serenamente para a onça.

– O que quer? – disse ele, friamente.

– Vingança!

Ao observar, porém, a calma do índio, a onça não pôde deixar de perguntar-lhe:

– Ei! O que faz escorado aí nesse pedregulho?

– Estou impedindo que ele caia. Todos os rochedos estão por cair.

Konewó, então, olhou para o lado e apontou outro rochedo dez vezes maior.

– Se você fosse uma onça realmente útil, faria como eu, impedindo que aquele rochedo caia.

Uma espécie de nuvem estúpida desceu sobre a mente da onça, obrigando-a ir tomar o seu lugar, mas assim que ela o fez, o índio ergueu-se.

– Espere aí, sabichão, onde pensa que vai? – gritou ela.

– Tive uma excelente ideia para poupar-me trabalho. Vou procurar um tronco para fazer uma escora e assim livrar-me de ficar o resto da vida escorando a minha pedra.

A onça sentiu o pedregulho chacoalhar às suas costas e deu um grito:

–Traga uma escora para mim também!

Konewó sumiu e nunca mais apareceu com escora alguma. Quanto à onça, das duas uma: ou está lá até hoje, escorando o pedregulho, ou terminou sepultada viva pelo desabamento.

Fonte:
A. S. Franchini. As 100 melhores lendas do folclore brasileiro.

domingo, 1 de março de 2020

Varal de Trovas n. 195


Rachel de Queiroz (Caramuru)

    

É um homem que gosta de conversar, aquele. Sempre que tem oportunidade defende a teoria de que existem homens em quase todos os planetas e seus satélites, homens assim como nós, diferentes talvez na estatura e na cor da pele, mas essencialmente homens — nem humanóides ele concede.

Na Lua vivem — ou pelo menos andam — homens; em Vênus vivem homens, de evolução moral superior à nossa; em Marte vivem homens — brutos, cruéis, porque Marte é um mundo de provação. Em Júpiter os homens são de essência tão alta que a existência deles suscitou em nós da Terra a crença nos anjos e nos deuses antropomórficos. E em Saturno nascem os altíssimos espíritos; tanto que os anéis de Saturno não são absolutamente o que pretendem os físicos — são na verdade a auréola coletiva daqueles seres que já alcançaram a perfeição ...

A gente tenta objetar:

“— Mas meu amigo, e as sondas russas que registraram temperaturas de 400 graus em Vênus que vida seria possível lá?” (o homem abana a cabeça com um sorriso superior) ... “e as sondas americanas que alcançaram Marte ... (ele mantém o seu sorriso de esfinge sabedora) ... e afinal — explodi —, os quatro americanos que pisaram no solo da Lua e só descobriram lá desolação total?

Ele, com a mão erguida, pacientemente deixou que eu me acalmasse:

— Aí é que está. Tudo faz parte de uma conspiração internacional. Farsa posta em cena pelas duas superpotências que fingem desacordo para fins de domínio. No caso se entendem muito bem e combinaram essa comédia monstruosa …

— Mas com que fim? Com que fim?

— Com o fim de manter aterrorizados os povos satélites de ambos os lados. Deslumbrar pelo avanço técnico os povos inferiores, que tremem ante o poderio dos superdesenvolvidos, capazes de mandar cérebros eletrônicos a Vênus e homens de carne e osso à Lua ...

Não se lembra de Caramuru? Eles são Caramuru com o bacamarte fumegante, nós somos os índios ajoelhados, gritando pelo Filho do Trovão ...

Aí ele explica: a suspeita da impostura lhe foi sugerida logo ao lançamento do primeiro Sputnik: um jornalista declarou não acreditar na existência real do satélite soviético, explicando que o blip-blip identificador do novo corpo celeste poderia ser emitido fraudulentamente pelos russos. Aquilo a princípio o abatera; convencido que era da habitabilidade dos outros mundos, recebera alvoroçado aquele primeiro passo na direção dos nossos irmãos exteriores. Mas era plausível a teoria da mistificação: o clima natural dos soviéticos é a mentira. Então os satélites começaram a se reproduzir como coelhos — e ele concede que alguns — não todos foram talvez postos em órbita e giraram um pouco ao redor da Terra, mas em altura muitíssimo mais baixa do que eles pretendiam, e a velocidade muitíssimo menos espetacular — senão o atrito os derreteria imediatamente.

— Mas e a cadelinha Laika? E Gagarin?

— Bem, a Laika pode ter sido jogada para cima e jamais recuperada, por cair no mar ou na estepe. Ou foi recuperada e escondida.

Quanto ao Gagarin — olhe, com o Gagarin a princípio até voltei a sentir algumas esperanças. Mas havia sempre uma nota falsa: no caso, foi aquela estúpida mancada de dizer que Deus não existia, “já que não abalroara com Ele, lá em cima”. Um herói, um enviado da ciência, jamais soltaria uma piada tão grosseira. Estou certo de que se tratou de uma farsa completa: mandaram para o ar um foguete vazio, esperaram uns dias, depois apresentaram Gagarin “de volta”. Não viu como tudo foi feito em mistério?

— Mas e o Sheppard? No vôo dele não houve mistérios.

— Bem, depois do “triunfo” dos russos, chegava a vez dos americanos. E como do lado “democrático” as coisas têm que ser mais abertas, armaram a farsa com mais cuidados. Sheppard subiu no foguete, voltou de paraquedas, foi escondido e, na data marcada, jogaram-no dentro da cápsula de bordo de um avião supersônico, que voa a mais de 30 mil metros de altura, E desde então é assim que são feitas as ‘‘viagens espaciais”, Os “astronautas” sobem no foguete, descem ocultamente em paraquedas e, ao cabo, são “recuperados” espetacularmente no meio do oceano ou tundra russa.

— Mas e a Lua, meu senhor, todos testemunhamos, acompanhamos pela TV, vimos com os nossos próprios olhos o homem botar o pé no chão da Lua!

— Perdão, o que todos vimos foi uma imagem na televisão. Ver, atualmente, ninguém viu. E já pensou como é fácil de trucar imagem e som na TV? Fazer um filme num deserto qualquer, no Gobi ou lá mesmo na América, e depois “retransmitir” a imagem como tendo vindo da Lua?

— Mas se teria descoberto, detectado ...

— Quem? Se são eles mesmos — americanos e soviéticos — que controlam as transmissões por satélite — americanos para a banda ocidental, russos para a banda oriental? Eles ficando de combinação, quem pode desmentir a farsa? Aliás, tenho uma prova concreta de que pelo menos a última viagem à Lua foi filmada em terra americana. Numa das fotos ampliadas que eles distribuíram, descobri ao lado direito, sobre o que deveria ser o solo lunar, uma pequena e estranha forma oblonga: parecia um efeito de luz e sombra, mas me intrigou, insisti no exame, usando uma lente fortíssima — e imagine só! a tal forma oblonga era uma garrafa de coca-cola! Ora, não consta que os visitantes da Lua tenham levado consigo garrafas de coca-cola ...

E nesse gosto o homem ainda falou por horas. Mas o essencial do que disse está aí, Que é que vocês acham?

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

Silmar Böhrer (Gamela de Versos n. 5)


Carlos Drummond de Andrade (Noiva de Pojuca)


Quando Caubi veio de Pojuca, trazia na cabeça a decisão de casar com Lucineia. Só não trouxe Lucineia consigo porque ele não é de avançar sinal. Primeiro, vencer no Rio de Janeiro. Depois, chamar a noiva e, unidos sacramentalmente, serem felizes para sempre.

Vencer no Rio, para quem sai do Recôncavo Baiano, onde o petróleo distribui riqueza global, mas que não chega para os pobres, até que é simples. Emprego de porteiro em edifício da Zona Norte constitui vitória digna de ser contada em carta aos que ficaram e não ousam. A fraternidade dos porteiros baianos, igual à dos cearenses ou paraibanos, não precisa de estatuto para funcionar: logo lhe arranjou o cargo que dá direito a uniforme, cadeira à porta, leitura descansada de jornal à tarde, além do mais gratificante de todos os direitos: o de “assistir”, radinho de pilha ao ouvido, aos gols do Flamengo no Maraca. Mas há vitória e vitória. Caubi verificou que o ordenado não dava para chamar Lucineia e casar. Ou antes, daria, a longo prazo. A solução era economizar cigarro, cafezinho, batida, jornal, até pilha de radinho. E dar duro na lavagem de carros, pela madrugada.

Enquanto isso, mulheres passavam diante dele, acenando-lhe com casamentos à mão. Rapaz empregado, boa-pinta, que morena o recusaria? Mesmo sem ser de papel passado. Ele, entretanto, resistia. Mulher carioca exige coisas demais, desde geladeira a TV em cores, é um tal de cabeleireiro, de festas, de não sei o quê, de dia e de noite, que pega mal, e acaba, Deus sabe lá como acaba. Caubi passava a mão na testa, alisava-a, determinado: “Comigo não, Serapião”.

Com setecentos cruzeiros na Caixa Econômica, achou que era hora de agir. Alugou um quarto em Queimados, por quarenta mensais, para o lar, e mandou à noiva o dinheiro da passagem de ônibus. Viesse em companhia de seu Severino, amigo da família e homem de respeito, que mora na Ilha do Governador e estava de passeio em Pojuca: seria padrinho do casório.

Lucineia chegou com todos os pertences de uma noiva que se preza. Para conhecer o Rio, antes de se instalar em casa de Padim Severino, passou três dias de favor no apartamento de um casal amigo de Caubi, no edifício em que este trabalha. Foram três dias de esplendor, de ver vitrina e letreiro luminoso, de andar a pé e conhecer todas as praças da Tijuca. O noivo arranjou folgas esparsas, para mostrar-lhe o que é a cidade grande, nos limites do bairro.

Na hora de ir para Governador, os táxis cobravam tanto que Caubi apelou para o motorista do dr. Norberto, baiano também e boa-praça. O rapaz topou levar a moça e seus badulaques no carro do patrão, que que tem? à base de camaradagem. Levou. Mas não entregou. A meio caminho, a caminhonete que vinha na contramão forçou-o a atirar contra o barranco o fusca do doutor. O estrago não foi grande, mas o conserto da lataria ficava exatamente em setecentos e cinquenta cruzeiros, e como o Caubi ia deixar o amigo pagar a despesa, além do vexame de ter de explicar ao dr. Norberto?

— Eu pago o prejuízo, taqui setecentas pratas, o resto dou no mês que vem, amigo velho.

Lucineia, que voltou de ônibus e machucada para o edifício, deixando no asfalto metade de seus trecos, empregou-se de copeira em casa do dr. Norberto.

O quarto em Queimados foi desalugado, e o casamento adiado para quando Caubi juntar, não setecentos, mas mil e quatrocentos cruzeiros, a julgar pela taxa de inflação. Desistir de casar com moça de Pojuca ele não desiste, nem que seja preciso, para tão longo amor, passar mais longa vida lavando carros de madrugada. Mas um temor começa a roê-lo, qual bicho em goiaba: se Lucineia, com o tempo, virar moça carioca, que exige tudo, e o casamento acabar, Deus sabe lá, daquele jeito?

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Histoirnhas.

Laurindo Rabelo (Estragos de Amor)


I
Miseráveis insensatos,
Escravos da formosura,
Curvados a seu aceno,
Buscais vida no veneno
Que vos leva à sepultura!

II
Nos seus braços reclinados,
Beijando em ternos carinhos
Divinas faces mimosas,
Libais o néctar das rosas
Sem reparar nos espinhos!

III
“Oh! loucos, vede a verdade,
“Conhecei essa ilusão,
“Por que viveis seduzidos?”
Embalde contra os sentidos
Aflita brada a razão!...

IV
Nada alcança: tudo cede
Ao amoroso desmaio: —
Lumiando o par gentil,
Brilha amor como um fuzil,
Mas ao fuzil segue o raio.

V
Lá do monte da esperança
Cresta o fogo as verdes fraldas;
E de quanto possuía
Só conserva a fantasia
Secas, dispersas grinaldas.

VI
Suspeitas, tiranias serpes,
Nos peitos cravando os dentes,
Com seu sangue se alimentam;
Das chagas chamas rebentam,
Das chamas novas serpentes.

VII
Em furor e desespero
Começa o triste a chorar,
Vendo a estrada que seguiu;
Morde o laço em que caiu,
Mas não pode-o desatar!...

VIII
A razão, para vingar-se,
Mais aumenta o seu flagício,
Com semblante inexorável,
Muda, surda, imperturbável,
Assistindo ao sacrifício.

IX
Tudo é dor, tudo agonia,
E queixumes contra o fado;
Suspiros e pranto ardente,
Desespero no presente,
Saudades pelo passado!...

X
'Té que vai desabrochando,
Pelo pranto d’aflição
Regada continuamente,
Do desengano a semente
Nas cinzas do coração.

XI
Ergue a planta a fronte altiva,
Mas de tristonha aparência;
Folhas, tronco, é toda luto;
Tem mirrado raro fruto;
Esse fruto — é a experiência. —

XII
Das ruínas levantado,
Vê-se o espírito surgir;
Vem com passo fatigado,
Como guerreiro cansado,
À sua sombra dormir.

XIII
Presto acorda, e então, cedendo
Da fome aos cruéis assomos,
Alguns ramos segurando,
Vai colhendo, e vai tragando
Os amargos negros pomos.

XIV
Comeu, ergueu-se, é já outro!
Foi-se do rosto a meiguice!
Do tronco um ramo quebrado
Serve ao triste de cajado —
Eis a imagem da velhice.

XV
Está tudo terminado!
Está completa a sentença!
Aos fogos sucedem gelos,
Que anunciam nos cabelos
A idade da indiferença!

XVI
Lá vai o velho mesquinho,
Lá vai desacompanhado,
O caminho da existência,
Nutrido pela exp’riência,
Ao desengano arrimado.

XVII
Só seus pés tocam a terra,
Os olhos do céu na luz,
Entregue a culto profundo,
Lá vai, fugindo do mundo,
Cair nos braços da Cruz.

XVIII
Lá expira... mas dizei-lhe —
Amor! Vereis num transporte
Como seus olhos cintilam,
Como a um tempo se aniquilam
Todas as forças da morte!!...

XIX
É que amor inexorável
Nos seus planos iracundos,
Se os mortais torna cativos,
Nem minora o mal dos vivos,
Nem respeita os moribundos.

XX
Restaura as forças da vida,
Não nos consente morrer;
Porque lá nas sepulturas
Seus tormentos e torturas
Não se pode padecer.

XXI
Envenenados farpões
Nos manda em suspiros ternos;
Cinge aos olhos mago véu,
E pelos jardins do céu
Nos encaminha ao inferno.

XXII
Fugi, humanos!... fugi
De seu veneno traidor!
Sem culto, desamparados,
Sumam-se, ao tempo votados,
Altares, templos de Amor…

Fonte:
Laurindo Rabelo. Poesias completas.

Contos e Lendas do Mundo (França: O Pedaço de Galo)


Havia, uma vez, em La Chassoule, duas mulheres que eram irmãs - uma chamada Catherine e a outra, a mais jovem, Marie. O seu único bem consistia num galo que deviam compartilhar. A isso se resumia a herança deixada pelos finados pais, e cada uma ficou com metade.

- Comerei o meu pedaço - disse Catherine. - Servirá para cozinhar um excelente estufado, acompanhado por um copo de leite e, no final, castanhas assadas.

- Eu não - replicou Marie. - Guardarei o meu pedaço; que ele faça o que quiser com a ajuda de Deus e do bondoso São Martinho.

O conto prossegue revelando-nos que essa mulher, possuidora de bom coração, recebeu uma excelente recompensa pela sua louvável ação. Na verdade, o seu pedaço de galo soube mostrar-se grato, como a seguir veremos.

Um dia, quando esgaravatava, no quintal, em busca de uma toupeira, o pedaço de galo encontrou uma bolsa cheia de luíses de ouro, que se apressou a entregar à dona. Pelo caminho, porém, cruzou-se com um malvado, que lha arrancou do bico e guardou na algibeira.

- Devolve-me, ou temos luta - advertiu o pedaço de galo.

- Faz o que quiseres - retorquiu o ladrão. - Mas se pretendes lutar comigo, primeiro terás de me apanhar, pois sigo para casa, em Paris, e levo a bolsa.

- Pois bem, lutaremos em Paris.

O pedaço de galo foi comunicar a sua intenção à dona, que lhe perguntou:

- Para que queres ir, se não conseguirás nada?

- Quero a minha bolsa, e tê-la-ei - foi a resposta firme.

E partiu imediatamente. Pelo caminho, cruzou-se com o lobo, que lhe perguntou:

- Aonde vais, pedaço de galo?

- Aonde vou? Lutar em Paris. Acompanha-me, se queres.

- Que dizes, pobre diabo? Com as minhas quatro patas, chegaria muito antes que ti, pois andas ao pé-coxinho, por assim dizer.

- O primeiro a chegar espera o outro - desafiou o pedaço de galo.

O lobo tomou imediatamente a dianteira.

Um pouco mais tarde, o pedaço de galo cruzou-se com a raposa, a qual lhe fez a mesma pergunta e obteve idêntica resposta e convite.

- Não podes andar tão depressa como eu - lembrou a raposa. - Chegarei primeiro e esperarei por ti.

- Isso! O primeiro a chegar espera o outro.

A curta distância dali, o pedaço de galo encontrou um rio, que lhe perguntou:

- Aonde vais tão depressa, pedaço de galo?

- Lutar em Paris. Se queres vir, segue-me.

- Vou muito mais depressa do que tu.

- Como queiras. O primeiro a chegar espera o outro.

Mas, infelizmente, mais adiante, deparou-se uma montanha ao rio, que não pôde continuar.

- Vem para cima de mim, que eu levo-te - indicou o pedaço de galo.

E o rio assim fez.

Não tinham avançado muito, quando o pedaço de galo se cruzou com um enxame, cujas abelhas lhe perguntaram aonde ia.

- Lutar em Paris. Querem vir?

- Nem pensar! E muito longe. Desfalecíamos de cansaço pelo caminho.

- Então, ponham-se em cima de mim, que eu levo-as.

E as abelhas assim fizeram.

O infortunado pedaço de galo teve de continuar a caminhar durante muito tempo. Faltava pouco para chegarem a Paris, quando, numa sementeira à beira da estrada, avistou a raposa e o lobo deitados e a roncar profundamente.

- Que fazem aqui, se iam chegar muito antes de mim? - perguntou-lhes, depois de os acordar com algumas bicadas.

- Caímos extenuados. Não podemos dar nem mais um passo.

- Então, ponham-se em cima de mim, que eu levo-os.

Por fim, decorrido todo o dia, quando o Sol estava prestes a desaparecer no horizonte, chegaram a Paris. O pedaço de galo estava tão esgotado, que a sua única pata parecia dominada por um formigueiro. Dirigiu-se a casa do seu litigante, que lhe disse:

- Hoje já é tarde para lutarmos. Esperaremos que amanheça. Entretanto, jantarás conosco. Beberemos uma garrafa de vinho e oferecer-te-ei uma cama para passares a noite descansado.

- Muito bem - aprovou o pedaço de galo. - Dois bons litigantes podem brindar juntos.

Quando anoiteceu, o homem e a sua mulher, que queriam libertar-se do infortunado matando-o, mandaram-no dormir para o redil onde se encontravam as ovelhas, para que o esmagassem durante a noite. Com efeito, quando a porta foi fechada atrás dele, os animais começaram a investir.

- Lobo - ordenou o pedaço de galo. - Sai daí e come-as.

O lobo procedeu como lhe era indicado.

De manhã, o dono da casa surpreendeu-se ao descobrir todas as ovelhas mortas e que o único ser vivo que restava no redil era o pedaço de galo. Correu a informar a esposa, que replicou com malvadeza:

- Não te preocupes. Logo à noite, mandamo-lo dormir com as aves. As galinhas, perus e gansos hão de matá-lo a fogo lento, até que fique bem cozido.

Ele tratou de seguir o conselho. Quando o introduziram pelo teto da capoeira, todas as aves se lançaram sobre o pedaço de galo, com bicadas implacáveis.

Irritado com a indesejável recepção, ele indicou à raposa:

- Sai daí e mata todos estes imundos animais.

Foi dito e feito. Na manhã seguinte, quando a mulher se dirigiu ao galinheiro, ainda ficou mais surpreendida do que o marido na véspera. Rubra de cólera, procurou-o e determinou:

- Esta noite, fazemo-lo dormir no forno, que aqueceremos previamente. Garanto-te que amanhã o encontraremos assado.

Durante o jantar, o homem anunciou ao pedaço de galo:

- Também não podemos lutar, hoje. Estou muito triste por ter perdido os meus animais.

- Como queiras. Não tenho pressa. Posso esperar.

A noite, após o jantar, os donos da casa disseram ao hóspede:

- Decerto passaste frio, nas noites anteriores. Hoje, vais dormir no forno, onde estarás mais quente.

- Como queiram - respondeu ele. - Não sou exigente. Sinto-me bem em qualquer parte.

Quando se encontrou no forno e notou que a pata começava a chamuscar-se, ordenou ao rio:

- Sai daí e refresca-me a cama, que está demasiado quente.

O rio encheu o forno de água, que se comunicou igualmente aos fogareiros, tina, barril de lixívia, caldeira e grande parte da casa. Arroios caudalosos precipitaram-se para o exterior, e dir-se-ia que estivera a chover durante uma semana.

- Que vamos fazer com este patife? - perguntou a mulher, que tinha os pés imersos em água até meio das pernas.

- Temos de o pôr a dormir conosco, aos pés da cama - decidiu o marido. - Reduzimo-lo a papas com pontapés.

- Boa ideia. Tens alma de anjo. Assim, não nos poderá escapar.

Quando se encontraram os três na cama, o homem e a mulher começaram a mover os pés e a atingir o infortunado pedaço de galo. A princípio, este pensou que apenas o queriam desfrutar, fazendo-lhe cócegas. Mas quando principiou a sentir-se mal, ordenou às abelhas:

- Saiam daí e piquem-nos.

Só queria que vissem a prontidão com que o casal se levantou e começou a percorrer a casa e depois a rua, em camisa de dormir!

Por fim, as abelhas deixaram marido e mulher em paz. Ela, totalmente sufocada, bradou:

- Aquilo não é um galo, mas um papão! O diabo! O Anticristo! Entrega-lhe a bolsa para que nos deixe em paz. De contrário, ainda acaba por nos matar!

Por conseguinte, o dono da casa apressou-se a seguir o conselho. Restituiu a bolsa ao pedaço de galo, que se pôs de novo a caminho em direção a casa, a fim de entregar o dinheiro à dona. Com ele, compraram uma fazenda excelente e, daí em diante, viveram felizes a trabalhar as terras. O pedaço de galo passou o resto da vida sem problemas nem a ter de se preocupar com o dia de amanhã, pois a dona, agradecida, nunca permitiu que lhe faltasse trigo, milho ou cânhamo.

Fonte:
Ulf Diederichs, Palácio dos Contos. Lisboa/Portugal: Círculo de Leitores, 1999. In Contos Tradicionais da França

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Varal de Trovas n. 194


Lima Barreto (Numa e a Ninfa)


Na rua não havia quem não apontasse a união daquele casal. Ela não era muito alta, mas tinha uma fronte reta e dominadora, uns olhos de visada segura, rasgando a cabeça, o busto erguido, de forma a possuir não sei que ar de força, de domínio, de orgulho; ele era pequenino, sumido, tinha a barba rala, mas todos lhe conheciam o talento e a ilustração. Deputado há bem duas legislaturas, não fizera em começo grande figura; entretanto, surpreendendo todos, um belo dia fez um "brilhareto", um lindo discurso tão bom e sólido que toda a gente ficou admirada de sair de lábios que até então ali estiveram hermeticamente fechados.

Foi por ocasião do grande debate que provocou, na câmara, o projeto de formação de um novo estado, com terras adquiridas por força de cláusulas de um recente tratado diplomático.

Penso que todos os contemporâneos ainda estão perfeitamente lembrados do fervor da questão e da forma por que a oposição e o governo se digladiaram em torno do projeto aparentemente inofensivo. Não convém, para abreviar, relembrar aspectos de uma questão tão dos nossos dias; basta que se recorde o aparecimento de Numa Pompílio de Castro, deputado pelo Estado de Sernambi, na tribuna da câmara, por esse tempo.

Esse Numa, que ficou, daí em diante, considerado parlamentar consumado e ilustrado, fora eleito deputado, graças à influência do seu sogro, o Senador Neves Cogominho, chefe da dinastia dos Cogominhos que, desde a fundação da república, desfrutava empregos, rendas, representações, tudo o que aquela mansa satrápia possuía de governamental e administrativo.

A história de Numa era simples. Filho de um pequeno empregado de um hospital militar do Norte, fizera-se, à custa de muito esforço, bacharel em direito. Não que houvesse nele um entranhado amor ao estudo ou às letras jurídicas. Não havia no pobre estudante nada de semelhante a isso. O estudo de tais coisas era-lhe um suplício cruciante; mas Numa queria ser bacharel, para ter cargos e proventos; e arranjou os exames de maneira mais econômica. Não abria livros; penso que nunca viu um que tivesse relação próxima ou remota com as disciplinas dos cinco anos de bacharelado. Decorava apostilas, cadernos; e, com esse saber mastigado, fazia exames e tirava distinções.

Uma vez, porém, saiu-se mal; e foi por isso que não recebeu a medalha e o prêmio de viagem. A questão foi com o arsênico, quando fazia prova oral de medicina legal. Tinha havido sucessivos erros de cópias nas apostilas, de modo que Numa dava como podendo ser encontradas na glândula tireóide dezessete gramas de arsênico, quando se tratam de dezessete centésimos de miligrama.

Não recebeu distinção e o rival passou-lhe a perna. O seu desgosto foi imenso. Ser formado já era alguma coisa, mas sem medalha era incompleto!

Formado em direito, tentou advogar; mas, nada conseguindo, veio ao Rio, agarrou-se à sobrecasaca de um figurão, que o fez promotor de justiça do tal Sernambi, para livrar-se dele.

Aos poucos, com aquele seu faro de adivinhar onde estava o vencedor - qualidade que lhe vinha da ausência total de emoção, de imaginação, de personalidade forte e orgulhosa -, Numa foi subindo.

Nas suas mãos, a justiça estava a serviço do governo; e, como juiz de direito, foi na comarca mais um ditador que um sereno apreciador de litígios.

Era ele juiz de Catimbau, a melhor comarca do Estado, depois da capital, quando Neves Cogominho foi substituir o tio na presidência de Sernambi.

Numa não queria fazer mediocremente uma carreira de justiça de roça. Sonhava a câmara, a Cadeia Velha, a Rua do Ouvidor, com dinheiro nas algibeiras, roupas em alfaiates caros, passeio à Europa; e se lhe antolhou, meio seguro de obter isso, aproximar-se do novo governador, captar-lhe a confiança e fazer-se deputado.

Os candidatos à chefatura de polícia eram muitos, mas ele, de tal modo agiu e ajeitou as coisas, que foi o escolhido.

O primeiro passo estava dado; o resto dependia dele. Veio a posse. Neves Cogominho trouxera a família para o Estado. Era uma satisfação que dava aos seus feudatários, pois havia mais de dez anos que lá não punha os pés.

Entre as pessoas da família, vinha a filha, a Gilberta, moça de pouco mais de vinte anos, cheia de prosápias de nobreza, que as irmãs de caridade de um colégio de Petrópolis lhe tinham metido na cabeça.

Numa viu logo que o caminho mais fácil para chegar a seu fim era casar-se com a filha do dono daquela "comarca" longínqua do desmedido império do Brasil.

Fez a corte, não deixava a moça, trazia-lhe mimos, encheu as tias (Cogominho era viúvo) de presentes; mas a moça parecia não atinar com os desejos daquele bacharelinho baço, pequenino, feio e tão roceiramente vestido. Ele não desanimou; e, por fim, a moça descobriu que aquele homenzinho estava mesmo apaixonado por ela. Em começo, o seu desprezo foi grande; achava até ser injúria que aquele tipo a olhasse; mas, vieram os aborrecimentos da vida da província, a sua falta de festas, o tédio daquela reclusão em palácio, aquela necessidade de namoro que há em toda a moça, e ela deu-lhe mais atenção.

Casaram-se, e Numa Pompílio de Castro foi logo eleito deputado pelo Estado de Sernambi.

Em começo, a vida de ambos não foi das mais perfeitas. Não que houvesse rusgas; mas, o retraimento dela e a gaucherie dele toldavam a vida íntima de ambos.

No casarão de São Clemente, ele vivia só, calado a um canto; e Gilberta, afastada dele, mergulhada na leitura; e, não fosse um acontecimento político de certa importância, talvez a desarmonia viesse a ser completa.

Ela lhe havia descoberto a simulação do talento e o seu desgosto foi imenso porque contava com um verdadeiro sábio, para que o marido lhe desse realce na sociedade e no mundo. Ser mulher de deputado não lhe bastava; queria ser mulher de um deputado notável, que falasse, fizesse lindos discursos, fosse apontado nas ruas.

Já desanimava, quando, uma madrugada, ao chegar da manifestação do Senador Sofonias, naquele tempo o mais poderoso chefe da política nacional, quase chorando, Numa dirigiu-se à mulher:

— Minha filha, estou perdido!...

— Mas que há, Numa?

— Ele... O Sofonias...

— Que tem? que há? por quê?

A mulher sentia bem o desespero do marido e tentava soltar-lhe a língua. Numa, porém, estava alanceado e hesitava, vexado em confessar a verdadeira causa do seu desgosto. Gilberta, porém, era tenaz; e, de uns tempos para cá, dera em tratar com mais carinho o seu pobre marido. Afinal, ele confessou quase em pranto:

— Ele quer que eu fale, Gilberta.

— Mas, você fala...

— E fácil dizer... Você não vê que não posso... Ando esquecido... Há tanto tempo... Na faculdade, ainda fiz um ou outro discurso; mas era lá, e eu decorava, depois pronunciava.

— Faz agora o mesmo...

— E... Sim... Mas, preciso ideias... Um estudo sobre o novo Estado! Qual!

— Estudando a questão, você terá ideias...

Ele parou um pouco, olhou a mulher demoradamente e lhe perguntou de sopetão:

— Você não sabe aí alguma coisa de história e geografia do Brasil?

Ela sorriu indefinidamente com os seus grandes olhos claros, apanhou com uma das mãos os cabelos que lhe caíram sobre a testa; e depois de ter estendido molemente o braço meio nu sobre a cama, onde a fora encontrar o marido, respondeu:

— Pouco... Aquilo que as irmãs ensinam; por exemplo: que o rio São Francisco nasce na serra da Canastra.

Sem olhar a mulher, bocejando, mas já um tanto aliviado, o legislador disse:

— Você deve ver se arranja algumas ideias, e fazemos o discurso.

Gilberta pregou os seus grandes olhos na armação do cortinado, e ficou assim um bom pedaço de tempo, como a recordar-se. Quando o marido ia para o aposento próximo, despir-se, disse com vagar e doçura:

—Talvez.

Numa fez o discurso e foi um triunfo. Os representantes dos jornais, não esperando tão extraordinária revelação, denunciaram o seu entusiasmo, e não lhe pouparam elogios. O José Vieira escreveu uma crônica; e a glória do representante de Sernambi encheu a cidade. Nos bondes, nos trens, nos cafés, era motivo de conversa o sucesso do deputado dos Cogominhos:

— Quem diria, hein? Vá a gente fiar-se em idiotas. Lá vem um dia que eles se saem. Não há homem burro - diziam -, a questão é querer...

E foi daí em diante que a união do casal começou a ser admirada nas ruas. Ao passarem os dois, os homens de altos pensamentos não podiam deixar de olhar agradecidos aquela moça que erguera do nada um talento humilde; e as meninas olhavam com inveja aquele casamento desigual e feliz.

Daí por diante, os sucessos de Numa continuaram. Não havia questão em debate na câmara sobre a qual ele não falasse, não desse o seu parecer, sempre sólido, sempre brilhante, mantendo a coerência do partido, mas aproveitando ideias pessoais e vistas novas. Estava apontado para ministro e todos esperavam vê-lo na secretaria do Largo do Rossio, para que ele pusesse em prática as suas extraordinárias ideias sobre instrução e justiça.

Era tal o conceito de que gozava que a câmara não viu com bons olhos furtar-se, naquele dia, ao debate que ele mesmo provocara, dando um intempestivo aparte ao discurso do Deputado Cardoso Laranja, o formidável orador da oposição.

Os governistas esperavam que tomasse a palavra e logo esmagasse o adversário; mas não fez isso.

Pediu a palavra para o dia seguinte e o seu pretexto de moléstia não foi bem aceito.

Numa não perdeu tempo: tomou um tílburi, correu à mulher e deu-lhe parte da atrapalhação em que estava. Pela primeira vez, a mulher lhe pareceu com pouca disposição de fazer o discurso.

— Mas, Gilberta, se eu não o fizer amanhã, estou perdido!... E o ministério? Vai-se tudo por água abaixo... Um esforço... E pequeno... De manhã, eu decoro... Sim, Gilberta?

A moça pensou e, ao jeito da primeira vez, olhou o teto com os seus grandes olhos cheios de luz, como a lembrar-se, e disse:

— Faço; mas você precisa ir buscar já, já, dois ou três volumes sobre colonização... Trata-se dessa questão, e eu não sou forte. E preciso fingir que se tem leituras disso... Vá!

— E os nomes dos autores?

— Não é preciso... O caixeiro sabe... Vá!

Logo que o marido saiu, Gilberta redigiu um telegrama e mandou a criada transmiti-lo.

Numa voltou com os livros; marido e mulher jantaram em grande intimidade e não sem apreensões. Ao anoitecer, ela recolheu-se à biblioteca e ele ao quarto.

No começo, o parlamentar dormiu bem; mas bem cedo despertou e ficou surpreendido em não encontrar a mulher a seu lado. Teve remorsos. Pobre Gilberta! Trabalhar até àquela hora, para o nome dele, assim obscuramente! Que dedicação! E - coitadinha! - tão moça e ter que empregar o seu tempo em leituras árduas! Que boa mulher ele tinha! Não havia duas... Se não fosse ela... Ah! Onde estaria a sua cadeira? Nunca seria candidato a ministro... Vou fazer-lhe uma mesura, disse ele consigo. Acendeu a vela, calçou as chinelas e foi pé ante pé até ao compartimento que servia de biblioteca.

A porta estava fechada; ele quis bater, mas parou a meio. Vozes abaladas... Que seria? Talvez a Idalina, a criada... Não, não era; era voz de homem. Diabo! Abaixou-se e olhou pelo buraco da fechadura. Quem era? Aquele tipo... Ah! Era o tal primo... Então, era ele, era aquele valdevinos, vagabundo, sem eira nem beira, poeta sem poesias, frequentador de chopes; então, era ele quem lhe fazia os discursos? Por que preço?

Olhou ainda mais um instante e viu que os dois acabavam de beijar-se. A vista se lhe turvou; quis arrombar a porta; mas logo lhe veio a ideia do escândalo e refletiu. Se o fizesse, vinha a coisa a público; todos saberiam do segredo da sua "inteligência" e adeus câmara, ministério e - quem sabe? - a presidência da república. Que é que se jogava ali? A sua honra? Era pouco. O que se jogava ali eram a sua inteligência, a sua carreira; era tudo! Não, pensou ele de si para si, vou deitar-me.

No dia seguinte, teve mais um triunfo.

Fonte:
Biblioteca Virtual de Literatura