domingo, 5 de abril de 2020

Argentina de Mello e Silva (Jardim de Trovas) 3




A criança é sempre bela
seja de que raça for.
Branca, preta ou amarela
— a inocência não tem cor!
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À injustiça não me inclino.
Ante o mal não me atormento.
Podem mudar meu destino
— não mudam meu pensamento.
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A morte às vezes bendigo
em singular euforia.
Se sonho à noite contigo
— bendigo a morte do dia!
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A rosa da castidade
brota na infância em meiguice.
Fenece na mocidade,
torna a florir na velhice.
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A saudade é como o açoite
do vento que a rosa espalma.
É o chamamento da noite
batendo à porta da alma.
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Deus nos deu tudo o que emana
das riquezas que criou.
Foi pela ambição humana
que a miséria começou.
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Diz um sábio singular
este aforismo, a valer;
Deus criou o Bem e o mal
compete à gente escolher.
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Dormir sem sonhar, é sorte!
Ter a alma adormecida.
Se é esta a imagem da morte
por que tanto amor à vida?
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É triste quando a saudade
imolada em duro arcano,
enfrenta a realidade
no encontro com o desengano.
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Eu vivo sonhando à toa...
a minha vida é sonhar.
Quem sonha tudo perdoa!
O mal do sonho é acordar!
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Há muito homem perfeito
que usa justiça a meio.
Reconhece seu direito
e esquece o direito alheio.
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Igualdade! Inutilmente
vive o mundo a procurá-la.
A vida separa a gente,
a morte é que nos iguala!
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Já sofri revés profundo,
no mundo muito chorei;
mas nunca maldisse o mundo
porque nele te encontrei!
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Meu coração magoado
perdoa a seus devedores.
A terra que sofre o arado
é aquela que dá mais flores.
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Na infância eu sonhava tanto.
meus sonhos eram reais.
Hoje ainda sonho, e quanto!
Mas são sonhos — nada mais.
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Na infância o tempo floresce
em folguedos e esperança.
Passa o tempo. A gente cresce,
mas continua criança!
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Na massa da realidade
do teu pão de cada dia,
mistura com suavidade
um pouco de fantasia...
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Não há fim ou abandono.
A vida a tudo supera.
A flor que morre no outono
renasce na primavera!
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No orgulho de cada olhar
que de Deus não sente a Graça,
eu vejo gente passar,
sem pensar que a gente... passa!
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O amor leal ninguém dobra,
nenhuma força o invalida.
É nau que jamais soçobra
no mar revolto da vida.
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Os anjos cantam e rezam,
teu céu em flores desata...
quando todos te desprezam,
quando a vida te maltrata.
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Perdeu a lua o mistério
do seu giro encantador.
Ela é hoje um cemitério
sem a esmola de uma flor.
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Que importa do vento a voz,
a neve, o sol, as sazões,
se tudo reside em nós
na cor de nossas paixões?
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Quis descrever a Saudade,
palavras não encontrei.
Tracei letras à vontade,
formei teu nome; chorei!
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Se o amor traz alegria
mesmo quando faz sofrer,
o de Mãe já principia
antes de nos conhecer.
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Seriam vãos os temores
de nossas almas inquietas,
se em versos, cantando as flores
todos fôssemos poetas!
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Fonte:
Argentina de Mello e Silva. Trovas dispersas. Curitiba/PR: Centro Paranaense Feminino de Cultura, 1984.

Monteiro Lobato (Os Faroleiros)



— Navio?

Dava azo à dúvida uma luz vermelha a piscar na escuridão da noite. Escuridão, não direi de breu, que não é o breu de sobejo escuro para referir um negror daqueles. De cego de nascença, vá. Céu e mar fundia-os um só carvão, sem fresta nem pique além da pinta vermelha que, súbito, se fez amarela.

— Lá mudou de cor. É farol.

E, como era farol, a conversa recaiu sobre faróis. Eduardo interpelou-me de chofre sobre a ideia que eu deles fazia.

— A ideia de toda gente, ora essa!

— Quer dizer, uma ideia falsa. “Toda gente” é um monstro com orelhas de asno e miolos de macaco, incapaz duma ideia sensata sobre o que quer que seja. Tens na cabeça, respeito a farol, uma ideia de rua, recebida do vulgo e nunca recunhada na matriz das impressões pessoais. Erro?

— Confesso-me capaz de abrir a boca a um auditório de casaca, se me desse na telha discursar sobre o tema; mas não afianço que o farol descrito venha a parecer-se com algum...

— Pois eu te asseguro, sem fazer pouco no teu engenho, que tal conferência, ouvida por um faroleiro, poria o homem de olho parvo, a dizer como o outro: “Se percebo, sebo!”.

— Acredito. Mas perceberia melhor uma tua? — retorqui abespinhado.

— É de crer. Já vivi uma inesquecível temporada no farol dos Albatrozes e falaria de cadeira.

— Viveste em farol?!... — exclamei com espanto.
  
— E lá fui comparsa numa tragédia noturna de arrepiar os cabelos. O escuro desta noite evoca-me o tremendo drama…
— 
Estávamos ambos de bruços na amurada do Orion, em hora propícia ao esbagoar dum dramalhão inédito. Esporeado na curiosidade, provoquei-o.

— Vamos ao caso, que estes negrumes clamam por espectros que o povoem. É calamidade à Shakespeare ou à Ibsen?

— Assina o meu drama um nome maior que o de Shakespeare...

— ???

— ... a Vida, meu caro, a grande mestra dos Shakespeares maiores e menores.

Eduardo começou do princípio.

— O farol é um romance. Um romance iniciado na Antiguidade com as fogueiras armadas nos promontórios para norteio das embarcações de remo e continuado séculos afora até nossos possantes holofotes elétricos. Enquanto subsistir no mundo o homem, o romance “Farol” não conhecerá epílogo.

Monótono como as calmarias, embrecham-se nele, a espaços, capítulos de tragédia e loucura — pungentes gravuras de Doré quebrando a monotonia de um diário de bordo. O caso dos Albatrozes foi um deles. Gerebita meteu-se no farol aos vinte e três anos. É raro isso.

— Quem é Gerebita?

— Sabe-lo-ás em tempo. É raro isso porque no geral só se metem nas torres homens maduros, quarentões batidos pela vida e descrentes das suas ilusões. Deixar a terra na quadra verdolenga dos vinte e seis anos é apavorante. A terra!... Nós mal damos tento da nossa profunda adaptação ao meio terreno. A sua fixidez, o variegado de aspectos, o bulício humano, a caridade, os campos, a mulher, as árvores... Conhecem os faroleiros melhor do que ninguém o valor dessas teias. Enluarados num bloco de pedra, tudo quanto para nós é sensação de todos os instantes neles é saudade ou desejo. Cessam os ouvidos de ouvir a música da terra, rumorejo de arvoredo, vozes amigas, barulho de rua, as mil e uma notas duma polifonia que nós sabemos que o é, e encantadora, unicamente quando a segregação prolongada nos ensina a lhe conhecer o valor. Cessam os olhos de rever as imagens que desde a meninice lhes são habituais. Para os ouvidos só há ali, dia e noite, ano e ano, o marulho das ondas às chicotadas no enrocamento da torre; e para a vista, a eterna massa que ondula, ora torva, ora azul. Variantes únicas, as velas que passam de largo, donairosas como garças, ou os transatlânticos penachados de fumo. Figura a vida de um homem arrancado à querência e assim posto, qual triste galé, dentro duma torre de pedra, grudada como craca a um ilhéu. Terá poesia de longe; de perto é alucinante.

— Mas Gerebita...

— Uma leitura de Kipling despertara-me a curiosidade de conhecer um farol por dentro.

— O Perturbador do tráfego...

— Parabéns pela argúcia. Foi justamente a história do Dowse o ponto inicial do meu drama. Esse desejo incubou-se-me cá dentro à espera da ocasião para brotar.

Certo dia fui espairecer ao cais — e lá estava, de mãos às costas, a seguir o voo dos joão-grandes e a notar a gama dos verdes luzentes que a sombra dos barcos ondeia na água represada dos portos, quando uma lancha abicou, e vi descer um homem de feições duras e pele encorreada. Ao passar por um magote de catraeiros um deles chasqueou em tom insinuativo:

— Gerebita, como vai Maria Rita?

O desembarcadiço rosnou um palavrão calibre, e seguiu caminho, de sobrecenho carregado. Interessou-me aquele tipo.

— Quem é? — indaguei.

— Pois quem há de ser senão o faroleiro dos Albatrozes? Não vê a lancha?

De fato, a lancha era do farol. A velha ideia deu-me cotoveladas: é hora! Fui-lhe no encalço.

— Senhor Gerebita!...

O homem entreparou, como admirado de ouvir-se nomear por boca desconhecida. Emparelhei-me com ele e, enquanto andávamos, fui-lhe expondo os meus projetos.

— Não pode ser — respondeu — o regulamento proíbe sapos na torre. Só com ordem superior.

Ora, eu tenho corrido mundo, sei que marosca é essa de ordens superiores. Meti a mão no bolso e cochichei-lhe o argumento decisivo. O faroleiro relutou uns instantes, mas corrompeu-se mais depressa do que esperei. Guardou o dinheiro e disse:

— Procure Dunga, patrão da Gaivota Branca, terceiro armazém. Diga-lhe que já falou comigo. De quinta-feira em diante. E bico, veja lá!

Prometi-lhe caladíssimo, e tornei ao cais à cata de Dunga. Que sim — foi a resposta do catraeiro, ilhéu palavroso, logo que expus o negócio —, já fizera isso certa vez a “outro maluco” e sabia prender a língua para não atazanar a vida aos amigos. E como me informasse do faroleiro:

— É Gerebita, de apelido ganho no Purus, onde serviu como grumete. Ao depois se meteu na lanterna, por amor de amores, o alarve, como se faltassem elas por aí, e bem catitas. Mulheres! A mim é que não me empecem, não, as songuinhas. O demo que as tolha que eu...

E foi pelas mulheres além, a dar de rijo, com razões nem melhores nem piores que as de Schopenhauer.

No dia aprazado, antemanhã, a Gaivota largou de rumo ao farol. Saltei num rude atracadouro de difícil abordagem e encontrei o faroleiro ocupado em polir os metais da lanterna. Recebeu-me de boa sombra, largando o esfregão para fazer as honras da casa. Examinei tudo, dos alicerces ao lanternim, e à hora do almoço já entendia de farol mais que uma enciclopédia. Gerebita deu trela à língua e falou do ofício com melancólica psicologia. Também contou sua vida desde menino, a grumetagem no Purus, sua paixão pelo mar e por fim a entrada para o farol aos vinte e três anos de idade.

— Por que assim tão moço?

— Caprichos do coração, má sorte, coisas... — respondeu com ar triste; e acrescentou após uma pausa, mudando de tom: — Pois a vida é cá isto que vê. Boazinha, hein? Entretanto, boa ou má, temos, os faroleiros, um orgulho: sem nós, essa bicharada de ferro que passeia nas águas fumando seus dois, seus três charutos...

— Lá vem um! — interrompeu-se, fisgando com a luneta uma fumaça remota. — Bandeira alemã... duas chaminés... rumo sul... Há de ser um “Cap” — o Trafalgar, talvez. Seja lá que diabo for, vá com Deus. Mas, como ia dizendo, sem os faroleiros a manobrarem a “óptica”, esses comedores de carvão haviam de rachar a toinha aí pelos bancos de areia. Basta cair a cerração e já se põem tontos, a urrar de medo pela boca das sereias, que é mesmo um cortar a alma à gente. Porque então nem farol nem caracol. É a cegueira. Navegam com a Morte no leme. Fora disso, salva-os o foguinho lá de cima. Pouco antes de minha entrada para aqui houve desgraça. Um cargueiro da Bremen rachou o bico ali no Capelão... Quem é o Capelão? Ah! ah! ah! O Capelão... Pois o Capelão é o raio da terceira pedra a boreste. São três deste lado, a Menina, que é a primeira, a Curutuba, que é a do meio. A criminosa é o Capelão, que reponta mais ao largo e só mostra a coroa nas grandes vazantes. Cá a bombordo ainda há duas, a Virgem e a Maldita, onde bateu o cargueiro Rotterdam.

— E aquela lisinha, acolá?

— Uma coitada que nem nome tem. É mansa, está muito perto da terra, não faz mal a navio. Ali mora um anequim, bichanca de tamanho do diabo, que gosta de virar canoas. Mas, aqui para nós, moço, isso é embromação. Peixe mora em todo o mar, não tem toca como bicho de terra. É abusão de pescador. Quando há mar, não se enxerga nada por ali; mas se a água é serena e vem vindo a vazante, vai aparecendo um lombo de pedra lisa com jeito de peixe.

Passa um pescador atolambado, vê aquilo de longe. “É anequim! É anequim!” e toca a safar, com o medão na alma. Se acontece embravecer a água, e dá temporal, e a canoa vira: “Que é de Fulano?”. Tá, tá, tá, foi o anequim! Toda gente pega, feito mulher velha. “Foi o anequim do farol!” Ora aí está como são as coisas. Há muito anequim e tintureira por aqui. Onde é mar sem cação? Mas dizer que um tal mora aqui ou ali, isso é embroma.

E na sua pinturesca linguagem de marítimo, que às vezes se tornava prodigiosamente técnica, narrou-me toda a história daquelas paragens malditas. Falou de como, segundo a tradição, se foram batizando os arrecifes; falou dos crimes de cada um; das hecatombes periódicas de aves noturnas que, cegadas pela luz, batem de peito contra os vidros da lanterna, juncando o chão de corpinhos latejantes; das medonhas tormentas nas quais o farol estremece como a tiritar de pavor. De que não falou Gerebita naquele inesquecível dia?

— E o ajudante? Tem-no cá? — perguntei.

O rosto do meu faroleiro mudou de expressão. Vi de relance que eram inimigos.

— É aquele estupor que lá pesca — disse apontando da janela ao vulto imóvel, acocorado num penedo. — Está a apanhar garoupinhas. É Cabrea. Mau companheiro, mau homem...

Entreparou. Percebi que mascava uma confidência difícil. Mas a confidência denunciou-se apenas. Gerebita sacudiu a cabeça e murmurou como de si para si:

— Está cá de pouco, e é o único homem no mundo que não podia cá estar. Já reclamei do capitão do porto, já mostrei o perigo. Mas, qual!...

Estranha criatura, o homem! Insulados do mundo naquela frágua, ambos náufragos da vida, o ódio os separava... Não faltavam no farol, entretanto, acomodações para as famílias dos seus guardiães. Por que não as tinham ali? Seria um bocado de mundo a lenir as agruras do emparedamento. Interpelei-o; Gerebita retrucou-me de modo enviesado.

— Família não tenho, isto é, tenho e não tenho. Tenho, porque sou casado, e não tenho porque... Histórias! Estas coisas de famílias é bom que fiquem com a gente.

Notei de novo que a pique duma revelação mascava o segredo por desconfiança ou pudor. Suas feições endureceram. Sombras más anuviaram-lhe a fisionomia. E mais torvo ainda me pareceu quando Cabrea entrou sobraçando um balaio de pescado. Tipo de má cara, passou em direitura à cozinha sem nos volver um olhar. Mal se sumiu, Gerebita exclamou: “Raio do diabo!”, assentando num caixote expiatório um murro de fender pinho. Depois:

— O mundo é tão grande, há tanta gente no mundo, e cai-me aqui justamente o único ajudante que eu não podia ter...

— Por quê?

— Por quê?... Porque... é um louco.

Entre o primeiro e o segundo “porque” notei transição radical. Dúbio o primeiro, o segundo afigurou-se-me resoluto, como iluminado pelo clarão duma ideia brotada no momento.

Desde esse dia nunca mais o faroleiro abandonou o tema da loucura do outro. Demonstrava-me de mil maneiras.

— E aqui onde até os sãos perdem a tramontana — argumentava ele — um já assim rachado de telha aos três por dois rebenta como bomba no fogo. Eu jogo que ele não vara o mês. Não vê seus modos?

Metade por sugestão, metade por observação leviana, razoável me pareceu a profecia; e como sem cessar Gerebita malhasse na mesma tecla, acabei por convencer-me de que o casmurro ajudante era um fadado ao hospício, com pouco tempo de equilíbrio nos miolos.

Um dia Gerebita abordou a questão nestes termos:

— Quero que o senhor me resolva um caso. Estão dois homens numa casa; de repente um enlouquece e rompe, como cação esfomeado, para cima do outro. Deve o outro deixar-se matar como carneiro ou tem o direito de atolar a faca na garganta do bicho?

Era por demais clara a consulta. Respondi como um rábula positivo:

— Se Cabrea enlouquecesse e o agredisse, matá-lo seria um direito natural de defesa — não havendo socorro à mão. Matar para não morrer não é crime — mas isto só em último caso, você compreende.

— Compreendo, compreendo — respondeu-me distraidamente, como quem lá segue os volteios duma ideia secreta; e depois de longa pausa: — Seja o que Deus quiser — murmurou entre si, suspirando e recaindo em cismas.

Deixei-me ficar à janela a ver cair a noite. Nada mais triste do que as avemarias no ermo. A treva espessava as águas e absorvia no céu os derradeiros palores da luz. No poente, um leque aluarado enrubescia nas varetas, com dedadas sangrentas de nuvens a barrá-lo de listrões horizontais.

Triste...

A ardósia do mar; as primeiras estrelinhas entreluzindo a medo; o marulho na pedra, tchá, tchá, compassado, eterno... A alma confrangeu-se-me de angústia. Vi-me náufrago, retido para sempre num navio de pedra, grudado como desconforme craca na pedranceira da ilhota. E pela primeira vez na vida senti profundas saudades dessa coisa sórdida, a mais reles de quantas inventou a civilização — o “café”, com o seu tumulto, a sua poeira, o seu bafio a tabaco e a sua freguesia habitual de vagabundíssimos “agentes de negócios”...

Correram dias. Minto. No vazio daquele dessaborido viver no ermo o tempo não corria — arrastava-se com a lentidão da lesma por sobre chão liso e sem fim. Gerebita tornara-se enfadonho. Não mais narrava pinturescos incidentes da sua vida de marujo. Aferrado à ideia fixa da loucura de Cabrea, só cuidava de demonstrar-me os seus progressos. Fora desse tema sinistro, sua ocupação era seguir de olhos os navios que repontavam ao largo, até vê-los sumirem-se na curva do horizonte.

Velas, poucas alvejavam, tirante barquinhas de pescadores. Mas uma que surgisse lá nos levava os olhos e a imaginação. Como se casa bem com o mar o barco de vela! E que sórdido baratão craquento é ao pé dele o navio a vapor!

Escumas, corvetas, pequeninos cutters, fragatas, lugres, brigues, iates... O que lá vai passado de leveza e graça!... Substituem-nas, às garças leves, os feios escaravelhos de ferro e piche; a elas, que viviam de brisas, os negros comedores de carvão, bicharocos que mugem roncos de touro enrouquecido.

Progresso amigo, tu és cômodo, és delicioso, mas feio... Que fizeste da coisa linda que é a vela enfurnada? Do barco à antiga, onde ressoavam canções de maruja, e todo se enleava de cordame, e trazia gajeiro na gávea, e lendas de serpentes marinhas na boca dos marinheiros, e a Nossa Senhora dos Navegantes em todas as almas, e o medo das sereias em todas as imaginações?

Desfez-se a poesia do reino encantado de Anfitrite ao ronco dos Lusitanias, hotéis flutuantes com garçons em vez de “lobos do mar”, não característicos, cosmopolitas, sem donaire, sem capitães de suíças pitorescos no falar como seiscentos milhões de caravelas. O fumo da hulha sujou a aquarela maravilhosa que desde Hanon e Ulisses vinha o veleiro pintando sobre a tela oceânica...

— Se paras o caso dos loucos e te metes por intermezzos líricos para uso de meninas olheirudas, vou dormir. Volta ao farol, romanticão de má morte.

— Eu devia castigar o teu prosaísmo sonegando-te o epílogo do meu drama, ó filho do “café” e do carvão!

— Conta, conta...

Certa tarde Gerebita chamou minha atenção para o agravamento da loucura de Cabrea, e aduziu várias provas concludentes.

— Queira Deus não seja hoje!...

— Tens medo?

— Medo? Eu? De Cabrea?

Queria que visses a estranha expressão de ferocidade que lhe endureceu o rosto!... A conversa parou aí. Gerebita chupava cachimbadas nervosas, fechado de sobrecenho como quem rumina uma ideia fixa. Deixou-me, e logo em seguida subiu. Como anoitecesse, recolhi-me pouco depois e deitei-me. Dormi e sonhei. Sonhei um sonho guinhotesco, agitadíssimo, com lutas, facadas, o diabo. Lembro-me de que, agredido por um facínora, desfechei contra ele cinco tiros de revólver; as balas, porém, grudaram-se à parede e deram de ressoar dum modo que me despertou. Mas acordado continuei a ouvir o mesmo barulho, vindo de cima, da lanterna.

Pressinto a catástrofe esperada. Salto da cama e aguço o ouvido: barulho de luta. Corro à escada, galgo-a aos três degraus e no topo esbarro com a porta fechada. Tento abri-la: não cede. Escuto: era de fato luta. Rolavam corpos pelo chão, fazendo retinir os vidros da lanterna, e ouvia-se um resfolego surdo, entremeado de embates contra os móveis. Trevas absolutas. Nenhuma réstia de luz coava para a escada.

Minha situação era esquerda. Ficar ali, inútil, quando portas adentro dois homens se entrematavam? Permanecia eu nessa dubiedade, quando choque violento escancarou-me a porta. Um clarão de sol chofrou-me os olhos. Senti nas pernas um tranco — e rodei escada abaixo de cambulha com dois corpos engalfinhados. Ergui-me, tonto, e vi em rebolo no chão os dois faroleiros.

Atirei-me à luta em auxílio de Gerebita.

— Dois contra um! — gemeu Cabrea, sufocado. — É covardia!

Pela primeira vez lhe ouvi a voz — e hoje noto que nada nela denunciava loucura. No momento pensei diversamente, se é que pensei alguma coisa. Gerebita, com grande assombro meu, também me repeliu.

— Não! Não! Eu só!

Nisto, um pegão de nortada, varrendo a torre, trancou a porta do lanternim com estrondo. Envolveu-nos de novo a escuridão.

E começa aqui o horror... Os rugidos que ouvi, os arrancos e sacões formidáveis da luta nas trevas, a minha ansiedade... Pavorosos minutos de vida que não desejo renovados.

Perdi a noção do tempo. Durou muito aquilo? Não sei dizer. Só sei que a tantas ouvi escapar-se ao peito de Gerebita um urro de dor, e logo em seguida uma imprecação — “Desgraçado!” — cujas derradeiras sílabas morreram num trincar de dentes atassalhando carnes. Cabrea grugulejou uns roncos que se casaram com o arquejar do peito de Gerebita, e a luta esmoreceu.

Sem palavras na boca, cegado pela escuridão, eu só ouvia, fora, os uivos da nortada, e ali, aquele arquejo do vencedor exausto caído à beira do vencido. Com os olhos da imaginação eu via esse quadro, que com os da cara enxergava tanto como se os tivera envoltos em veludo negro.

Não te conto os pormenores do epílogo. Obtive luz e o que vi não te conto. Impossível pintar o hediondo aspecto de Cabrea com a carótida estraçalhada a dente, caído num lago de sangue. Ao seu lado Gerebita, com a cara e o peito vermelhos, a mão sangrenta, estatelava-se no chão, sem sentidos. Os meus transes diante daqueles corpos martirizados, àquela hora da noite — daquela terrível noite negra como esta e sacudida por um vento do inferno!...

Na manhã seguinte Gerebita pousou-me a mão sobre o ombro e disse:

— O mar não leva daqui os corpos à praia e o mundo não precisa saber de que morreu Cabrea. Caiu n’água — morte de marinheiro, e o moço é testemunha de que matei para não morrer. Foi defesa. Agora vai jurar-me que isto ficará para sempre entre nós.

Jurei-o lealmente, tocando de leve a mão mutilada. E ele, num acesso de infinito desalento, quedou-se imóvel, a olhar para o chão, murmurando insistentemente:

— Eu bem avisei. Não me acreditaram. Agora está aí, está aí, está aí...

Nesse mesmo dia veio buscar-me Dunga. Mal a Gaivota largou, narrei-lhe a morte do faroleiro, romanceando-a: Cabrea, louco, a despenhar-se torre abaixo e a sumir-se para sempre no seio das ondas.

Dunga, assombrado, susteve no ar os remos.

— Pois morreu? E louco?

— Está claro!

— Claro que lhe parece, que a mim...

— Conhecia-o?

— Não conhecia outra coisa. Desde que furtou Maria Rita...

— Que Maria Rita?

— Pois Maria Rita, mulher do Gerebita, então não sabe? Que ele seduziu, homessa.

Abri a minha maior boca e arregalei o que pude os olhos.

— Como sabe disso?

— É boa! Sei porque sei, como sei que aquela gaivota que ali vai é uma e que este mar é mar. Maria Rita era uma morena de truz, perigosa como o demo. O tolo do Gerebita derreou-se de amores pela bisca e lá casou. E vai ela, a songuinha, mal o homem saía no Purus, metia em casa Cabrea. E nesse jogo viveram até que um dia fugiram juntos para outras terras. O pobre Gerebita se não acabou de paixão é que era teso. Mas entrou para o farol, o que é também um modo de morrer pro mundo. Pois bem. A bola vira, o tempo corre, e vai, senão quando, quem mete o Governo no farol em lugar do defunto Gavriel?

Cabrea! Cabrea que também andava descrente da vida porque Rita lhe fugira com terceiro. Coisas do mundo. Diz-me agora vossoria que o homem enlouqueceu, e rolou do penedo, e lá o rói o peixe. Está bem. Antes assim, que do contrário era em ponta de faca que aquilo acabaria...

Calei-me. Há situações na vida que as ideias embaralham de tal forma que é de bom conselho deixarmo-las se assentarem por si. Eis como...

— ... o meu grande amigo Eduardo foi empulhado por um assassino vulgar!

— Perdão. O fato de se não manejarem floretes não tira àquele pugilato o caráter de duelo.

— “Cavaleria rusticana”, então?

— E por que não?

Fonte:
Monteiro Lobato. Urupês.

sábado, 4 de abril de 2020

Varal de Trovas n. 229


Carlos Drummond de Andrade (Anúncio de João Alves)


Figura o anúncio em um jornal que o amigo me mandou, e está assim redigido:

À procura de uma besta.

- A partir de 6 de outubro do ano cadente, sumiu-me uma besta vermelho-escura com  os seguintes característicos: calçada e ferrada de todos os membros locomotores, um pequeno quisto na base da orelha direita e crina dividida em duas seções em consequência de um golpe, cuja extensão pode alcançar de 4 a 6 centímetros, produzido por jumento.

Essa besta, muito domiciliada nas cercanias deste comércio, é muito mansa e boa de sela, e tudo me induz ao cálculo de que foi roubada, assim que hão sido falhas todas as indagações.

Quem, pois, apreendê-la em qualquer parte e a fizer entregue aqui ou pelo menos  notícia exata ministrar, será razoavelmente remunerado.
Itambé do Mato Dentro, 19 de novembro de 1899.
 (a) João Alves Júnior.


55 anos depois, prezado João Alves Júnior, tua besta vermelho-escura mesmo que tenha aparecido, já é pó no pó. E tu mesmo, se não estou enganado, repousas suavemente no pequeno cemitério de  Itambé. Mas teu anúncio continua um modelo no gênero, se não para ser imitado, ao menos como objeto de admiração literária.

Reparo antes de tudo na limpeza de tua linguagem. Não escreveste apressada e toscamente, como seria de esperar de tua condição rural. Pressa, não a tiveste, pois o animal desapareceu a 6 de outubro, e só a 19 de novembro recorreste à Cidade de  Itabira. Antes, procedeste a indagações.

Falharam. Formulaste depois um raciocínio: houve roubo. Só então pegaste da pena, e traçaste um belo e nítido retrato da besta.

Não  disseste  que todos os seus cascos estavam  ferrados; preferiste dizê-lo "de  todos  os  seus membros locomotores". Nem esqueceste esse pequeno quisto na orelha e essa divisão da crina em duas seções, que teu zelo naturalista e histórico atribuiu com segurança a um
jumento.

Por ser muito domiciliada nas cercanias deste comércio, isto é, do povoado e sua feirinha semanal, inferiste que não teria fugido, mas antes foi roubada. Contudo, não o afirmas em tom peremptório: "tudo me induz a esse cálculo". Revelas aí a prudência mineira, que  não avança (ou não avançava) aquilo que não seja a evidência mesma. E cálculo, raciocínio, operação mental e desapaixonada como qualquer outra, e não denúncia formal.

Finalmente- deixando de lado outras excelências de tua prosa útil - a declaração final: quem a apreender ou pelo menos "notícia exata ministrar", será "razoavelmente  remunerado". Não prometes recompensa tentadora; não fazes praças de generosidade ou largueza; acenas com o razoável, com a justa medida das coisas, que deve prevalecer  mesmo no caso de bestas perdidas e entregues.

Já é muito tarde para sairmos à procura de tua besta, meu caro João Alves do Itambé; entretanto essa criação volta a existir, porque soubeste descrevê-la com decoro e   propriedade, num dia remoto, e o jornal a guardou e alguém hoje a descobre, e muitos  outros são informados da ocorrência. Se lesses os anúncios de objetos e animais perdidos, na imprensa de hoje, ficarias triste. Já não há essa  precisão de termos e essa graça no dizer, nem essa moderação nem essa atitude crítica. Não há, sobretudo, esse amor à tarefa bem feita, que se pode manifestar até mesmo num anúncio de besta sumida.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Fala, Amendoeira. RJ: José Olympio, 1976.

J. G. de Araújo Jorge (O Canto da Terra) 6


FILOSOFIA

O Homem tem que ser contraditório
se o mesmo homem que ri
é o mesmo homem que chora,
se o mesmo homem que odeia
é o mesmo homem que adora...

O Homem tem que ser contraditório
se em seu próprio destino a sua própria vida
se contradiz,
- se o que hoje é tédio, ontem foi prazer, foi gozo,
se isto que agora o faz sentir-se venturoso
é o mesmo que depois vai torná-lo infeliz!

Destino glorioso
ou talvez, destino inglório,
- neste mundo incoerente, absurdo, assombroso,
o homem tem que ser contraditório…
- - - - - –

FILOSOFIA PERFEITA

Primeiro
eu queria dobrar as curvas de todos os caminhos,
e soltar os meus olhos livres
pelo mistério de todas as florestas
pela distância de todos os horizontes
e do cimo de todas as montanhas...

Depois,
abrir serenamente os braços coo aquele louco
lírico e profundo,
o mais louco e o mais lírico do mundo,
- e dizer para os homens que ficaram la embaixo
a amargurar os seus destinos:

- " deixai vir a mim os pequeninos..."

E finalmente, eu queria
como aquele gênio que desceu da montanha,
a montanha mais alta e mais estranha,
- fugir dos homens, da vida,
volver os olhos pra trás,
- e a sombra das ramagens da árvore do silêncio
provar o fruto do sonho, e beber a água pura e bendita,
da paz!
- - - - - –

FUTURO
      (A Pedro do Couto Filho)
  
Era após a última guerra...

O homem vestido de preto da cabeça aos pés
parecia que estava de luto, e falava aos fiéis
como há mil anos faz:

- "que enfim possa a hecatombe ter servido
de experiência aos homens,
e que esta tenha sido a última guerra,
e no futuro os homens vivam em paz!"...
..........................

No dia de Natal, a criança órfã dizia à mãe
ainda desconsolada:

- quero que pai Noel
traga do céu, um tambor... e uma espada!
- - - - - -

HINO 
   (A Renato Homem)
  
Quisera que meus braços fossem extensos e infinitos como os horizontes
para abraçar todas as terras.

Meu coração universal conhece todos os idiomas, e os meus
olhos trouxeram a cor dos mares
que contornam todos os países...

Meus pés não distinguem no atrito das terras as diferenças de raças
e as minhas mãos não distinguem no aperto de outras mãos
as diferenças de cores

Meus pés só distinguem os caminhos ásperos dos caminhos suaves
e as minhas mãos só distinguem as mãos rudes que trabalham
das mãos macias que vegetam...

Quisera abrir os braços e envolver todas as terras e todas as pátrias
e ensinar a todos os homens que a luz vem de um único sol
e que o amor deve unir todas as mãos ásperas
para que todos os caminhos sejam suaves…
- - - - - –

HUMANIDADE
    (A Ema Santandreu Morales)
  
Os homens me ensinaram a matar
foram eles que me deram a arma de dois gumes
do pensamento...

Os homens me tornaram um criminoso
e eu hoje me sinto
como se meu cérebro fosse o esquife do último deus...

Os homens me ensinaram a pensar
e eu assassinei o último deus
com a lâmina aguda do meu pensamento
friamente...

Agora os homens me perseguem
covardemente...
- - - - - –

HUMANISMO
    (A Romain Rolland) 
Fale ele italiano, russo ou japonês,
alemão
ou chinês,
se lhe estenderes franca e livremente a mão:
- será teu irmão!

Fale ele português, inglês ou castelhano,
tenha nascido na Ásia, África, Oceania
ou seja americano,
se ao seu lado estiveres na hora do perigo:
- será teu amigo!

Fale ele italiano, russo ou japonês,
francês
ou o idioma que for,
se a tomares nos braços e beijar-lhe a boca:
- será teu amor!

Mas... pode ele nascer até na tua casa,
ter teu sangue nas veias
morar mesmo contigo
partilhando uma herança ou disputando um bem:
será teu inimigo!
.........................

Volta, pois,, para o teu lar, para o teu campo,
teu escritório ou tua oficina,
e larga essa arma assassina
que te trará remorsos, ou quem sabe? - horror
- e vive em paz com o teu trabalho, com teus amigos,
com o teu amor!

E vê se agora não erras ...
Tens a chave que explica o segredo de todas
as guerras!

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. O Canto da Terra. 1945.

Ruth Guimarães (O Advogado do Sacristão)


Um sacristão estava distribuindo círios para quem quisesse acompanhar a procissão do Senhor Morto, em certa sexta-feira da Paixão, e sobrou um. Procurou com os olhos, estavam todos servidos. Entrou na igreja, colocou o círio atrás da porta e falou:

- Este aqui fica para o diabo.

Passado algum tempo, durante um naufrágio, o sacristão foi aprisionado pelos piratas e levado para a ilha dos Mouros. Andava desesperado, quando uma voz falou perto dele:

- Quando sentir bater no seu rosto uma ramada, agarre-se nela.

Ele assim fez. Sentindo o contato dos galhos, agarrou-se aos ramos invisíveis. No mesmo instante deu um vento forte, e quando ele viu estava descendo diante da sua porta.

Porém, não ficou sabendo quem foi o seu benfeitor. Como gostava de viajar, saiu novamente correndo mundo, e, desta vez a pé, por uma região desolada e pobre. Acabou-se o dinheiro, não encontrava trabalho e parou diante de uma granja. Vendo tantas galinhas, pediu que a mulher lhe fritasse meia dúzia de ovos, pelo amor de Deus. Não tinha dinheiro para pagar, mas iria correr mundo e quando voltasse, assim o ajudasse Deus, pagaria a dívida.

- E desta vez acho que ficarei curado da mania de viajar. Vou ficar quieto na sacristia da igreja da minha terra, que é um lugar santo.

A mulher fritou os seis ovos, ele os comeu, deliciadamente, e partiu.

Muitas aventuras o esperavam, andou ainda bastante, porém sorriu-lhe a sorte, progrediu, fez bons negócios, enriqueceu. Quis fazer duas coisas imediatamente: pagar aqueles seis ovos comidos há tanto tempo, dez anos ou mais, e voltar para a quietude da sua igreja.

Uma tarde, estava a granjeira diante da porta, viu apear de um cavalo baio, com arreios de couro macio e prata, um homem bem-vestido. Não o reconheceu senão quando ele contou que era o devedor dos seis ovos.

- Vim pagar-lhe, boa mulher, que me atendeu na hora da fome e da necessidade. Quero pagar tudo e deixar-lhe ainda uma boa quantia de presente.

A ganância mordeu o coração da mulher, vendo-o tão generoso, parecendo endinheirado.

- Vou fazer as contas - respondeu de cara fechada.

- Contas? Que contas? - estranhou o homem. - Pois então lá é preciso estar fazendo contas para saber o preço de seis ovos? Que lhe deu, boa mulher?

E ela lhe apresentou uma conta fantástica, uma lista imensa com o preço de milhares de galinhas.

- Que é isso? - perguntou o homem.

- Se eu tivesse posto aqueles seis ovos para chocar, teriam saído cinco franguinhas e um frango. As frangas botariam e tornariam a chocar. Em dez anos, eu teria tudo isto que está aqui nesta lista.

Como o homem se recusasse a pagar aquele absurdo, foram todos ao juiz mais próximo, e o julgamento do caso ficou marcado para daí a uns dias.

Muito desgostoso, foi o antigo sacristão andar um pouco, para espairecer. Andava e pensava, de cara amarrada, cenho franzido, temendo já tornar a ficar pobre, por causa da ambição da granjeira. Numa de suas voltas, encontrou-se com um homem, todo vestido de preto, de colarinho duro, sapatos de verniz, muito bem penteado.

- Que mal o aflige, amigo, que o vejo tão transtornado?

Contou-lhe tudo o homem, e o outro, sorrindo, falou:

- Ora, não é caso para tristezas. Acontece que sou advogado. O senhor ainda nem pensou em contratar os serviços de um profissional?

- Ainda não.

- Pois então, eu me considero contratado. Vá tranquilo. No dia do julgamento, estarei lá para defendê-lo.

Parecia tão seguro de si que o homem se animou.

Chegou o dia do julgamento. Começou a sessão. Alguns casos foram julgados. E foi a vez do sacristão. E nada de aparecer o advogado. O juiz esperou. Nada. Começou a ficar impaciente, fulminando com o olhar o pobre homem, que ainda estava mais agoniado. E o advogado não aparecia. Ele estava vendo que, por falta de defesa, ia ser obrigado a entregar todo o seu dinheiro, ia ser preso, iam matá-lo. Suava frio e maldizia a hora em que aceitara o serviço de qualquer desconhecido. Nisso, o advogado entrou. O homem se animou, mas olhando para ele, viu-lhe a barbicha em ponta, os pés de pato e tremeu.

"Com quem me meti, neste embaraço! E agora mais esta. Acabo perdendo também a alma"

Porém o temível advogado tranquilizou-o:

- Se lembra do círio que deixou para mim, atrás da porta da igreja? Em agradecimento, já o livrei da prisão na ilha dos Mouros e aqui estou novamente para tornar a salvá-lo. Tranquilize-se que não quero a sua alma.

E dirigindo-se ao juiz, que não sabia da sua condição satânica, falou, cortesmente:

- Queira desculpar o meu atraso, estava cozinhando um pouco de feijão, para plantar.

- Estava fazendo o quê!?

- Estava cozinhando feijão para plantar - repetiu o advogado, insensível às risadas que estalavam de todos os lados, ao ouvir o povo declaração tão esquisita.

O juiz recostou-se na sua alta cadeira e riu também.

- Amigo, - disse ele - trabalho completamente perdido, pois feijão cozido não nasce.

- Então, por que estamos aqui debatendo se de ovos fritos nascem pintos?

E foi assim que o sacristão pôde voltar em paz à sua igreja.

Fonte:
Ruth Guimarães. Lendas e Fábulas do Brasil. 1964.