domingo, 5 de abril de 2020

Monteiro Lobato (Os Faroleiros)



— Navio?

Dava azo à dúvida uma luz vermelha a piscar na escuridão da noite. Escuridão, não direi de breu, que não é o breu de sobejo escuro para referir um negror daqueles. De cego de nascença, vá. Céu e mar fundia-os um só carvão, sem fresta nem pique além da pinta vermelha que, súbito, se fez amarela.

— Lá mudou de cor. É farol.

E, como era farol, a conversa recaiu sobre faróis. Eduardo interpelou-me de chofre sobre a ideia que eu deles fazia.

— A ideia de toda gente, ora essa!

— Quer dizer, uma ideia falsa. “Toda gente” é um monstro com orelhas de asno e miolos de macaco, incapaz duma ideia sensata sobre o que quer que seja. Tens na cabeça, respeito a farol, uma ideia de rua, recebida do vulgo e nunca recunhada na matriz das impressões pessoais. Erro?

— Confesso-me capaz de abrir a boca a um auditório de casaca, se me desse na telha discursar sobre o tema; mas não afianço que o farol descrito venha a parecer-se com algum...

— Pois eu te asseguro, sem fazer pouco no teu engenho, que tal conferência, ouvida por um faroleiro, poria o homem de olho parvo, a dizer como o outro: “Se percebo, sebo!”.

— Acredito. Mas perceberia melhor uma tua? — retorqui abespinhado.

— É de crer. Já vivi uma inesquecível temporada no farol dos Albatrozes e falaria de cadeira.

— Viveste em farol?!... — exclamei com espanto.
  
— E lá fui comparsa numa tragédia noturna de arrepiar os cabelos. O escuro desta noite evoca-me o tremendo drama…
— 
Estávamos ambos de bruços na amurada do Orion, em hora propícia ao esbagoar dum dramalhão inédito. Esporeado na curiosidade, provoquei-o.

— Vamos ao caso, que estes negrumes clamam por espectros que o povoem. É calamidade à Shakespeare ou à Ibsen?

— Assina o meu drama um nome maior que o de Shakespeare...

— ???

— ... a Vida, meu caro, a grande mestra dos Shakespeares maiores e menores.

Eduardo começou do princípio.

— O farol é um romance. Um romance iniciado na Antiguidade com as fogueiras armadas nos promontórios para norteio das embarcações de remo e continuado séculos afora até nossos possantes holofotes elétricos. Enquanto subsistir no mundo o homem, o romance “Farol” não conhecerá epílogo.

Monótono como as calmarias, embrecham-se nele, a espaços, capítulos de tragédia e loucura — pungentes gravuras de Doré quebrando a monotonia de um diário de bordo. O caso dos Albatrozes foi um deles. Gerebita meteu-se no farol aos vinte e três anos. É raro isso.

— Quem é Gerebita?

— Sabe-lo-ás em tempo. É raro isso porque no geral só se metem nas torres homens maduros, quarentões batidos pela vida e descrentes das suas ilusões. Deixar a terra na quadra verdolenga dos vinte e seis anos é apavorante. A terra!... Nós mal damos tento da nossa profunda adaptação ao meio terreno. A sua fixidez, o variegado de aspectos, o bulício humano, a caridade, os campos, a mulher, as árvores... Conhecem os faroleiros melhor do que ninguém o valor dessas teias. Enluarados num bloco de pedra, tudo quanto para nós é sensação de todos os instantes neles é saudade ou desejo. Cessam os ouvidos de ouvir a música da terra, rumorejo de arvoredo, vozes amigas, barulho de rua, as mil e uma notas duma polifonia que nós sabemos que o é, e encantadora, unicamente quando a segregação prolongada nos ensina a lhe conhecer o valor. Cessam os olhos de rever as imagens que desde a meninice lhes são habituais. Para os ouvidos só há ali, dia e noite, ano e ano, o marulho das ondas às chicotadas no enrocamento da torre; e para a vista, a eterna massa que ondula, ora torva, ora azul. Variantes únicas, as velas que passam de largo, donairosas como garças, ou os transatlânticos penachados de fumo. Figura a vida de um homem arrancado à querência e assim posto, qual triste galé, dentro duma torre de pedra, grudada como craca a um ilhéu. Terá poesia de longe; de perto é alucinante.

— Mas Gerebita...

— Uma leitura de Kipling despertara-me a curiosidade de conhecer um farol por dentro.

— O Perturbador do tráfego...

— Parabéns pela argúcia. Foi justamente a história do Dowse o ponto inicial do meu drama. Esse desejo incubou-se-me cá dentro à espera da ocasião para brotar.

Certo dia fui espairecer ao cais — e lá estava, de mãos às costas, a seguir o voo dos joão-grandes e a notar a gama dos verdes luzentes que a sombra dos barcos ondeia na água represada dos portos, quando uma lancha abicou, e vi descer um homem de feições duras e pele encorreada. Ao passar por um magote de catraeiros um deles chasqueou em tom insinuativo:

— Gerebita, como vai Maria Rita?

O desembarcadiço rosnou um palavrão calibre, e seguiu caminho, de sobrecenho carregado. Interessou-me aquele tipo.

— Quem é? — indaguei.

— Pois quem há de ser senão o faroleiro dos Albatrozes? Não vê a lancha?

De fato, a lancha era do farol. A velha ideia deu-me cotoveladas: é hora! Fui-lhe no encalço.

— Senhor Gerebita!...

O homem entreparou, como admirado de ouvir-se nomear por boca desconhecida. Emparelhei-me com ele e, enquanto andávamos, fui-lhe expondo os meus projetos.

— Não pode ser — respondeu — o regulamento proíbe sapos na torre. Só com ordem superior.

Ora, eu tenho corrido mundo, sei que marosca é essa de ordens superiores. Meti a mão no bolso e cochichei-lhe o argumento decisivo. O faroleiro relutou uns instantes, mas corrompeu-se mais depressa do que esperei. Guardou o dinheiro e disse:

— Procure Dunga, patrão da Gaivota Branca, terceiro armazém. Diga-lhe que já falou comigo. De quinta-feira em diante. E bico, veja lá!

Prometi-lhe caladíssimo, e tornei ao cais à cata de Dunga. Que sim — foi a resposta do catraeiro, ilhéu palavroso, logo que expus o negócio —, já fizera isso certa vez a “outro maluco” e sabia prender a língua para não atazanar a vida aos amigos. E como me informasse do faroleiro:

— É Gerebita, de apelido ganho no Purus, onde serviu como grumete. Ao depois se meteu na lanterna, por amor de amores, o alarve, como se faltassem elas por aí, e bem catitas. Mulheres! A mim é que não me empecem, não, as songuinhas. O demo que as tolha que eu...

E foi pelas mulheres além, a dar de rijo, com razões nem melhores nem piores que as de Schopenhauer.

No dia aprazado, antemanhã, a Gaivota largou de rumo ao farol. Saltei num rude atracadouro de difícil abordagem e encontrei o faroleiro ocupado em polir os metais da lanterna. Recebeu-me de boa sombra, largando o esfregão para fazer as honras da casa. Examinei tudo, dos alicerces ao lanternim, e à hora do almoço já entendia de farol mais que uma enciclopédia. Gerebita deu trela à língua e falou do ofício com melancólica psicologia. Também contou sua vida desde menino, a grumetagem no Purus, sua paixão pelo mar e por fim a entrada para o farol aos vinte e três anos de idade.

— Por que assim tão moço?

— Caprichos do coração, má sorte, coisas... — respondeu com ar triste; e acrescentou após uma pausa, mudando de tom: — Pois a vida é cá isto que vê. Boazinha, hein? Entretanto, boa ou má, temos, os faroleiros, um orgulho: sem nós, essa bicharada de ferro que passeia nas águas fumando seus dois, seus três charutos...

— Lá vem um! — interrompeu-se, fisgando com a luneta uma fumaça remota. — Bandeira alemã... duas chaminés... rumo sul... Há de ser um “Cap” — o Trafalgar, talvez. Seja lá que diabo for, vá com Deus. Mas, como ia dizendo, sem os faroleiros a manobrarem a “óptica”, esses comedores de carvão haviam de rachar a toinha aí pelos bancos de areia. Basta cair a cerração e já se põem tontos, a urrar de medo pela boca das sereias, que é mesmo um cortar a alma à gente. Porque então nem farol nem caracol. É a cegueira. Navegam com a Morte no leme. Fora disso, salva-os o foguinho lá de cima. Pouco antes de minha entrada para aqui houve desgraça. Um cargueiro da Bremen rachou o bico ali no Capelão... Quem é o Capelão? Ah! ah! ah! O Capelão... Pois o Capelão é o raio da terceira pedra a boreste. São três deste lado, a Menina, que é a primeira, a Curutuba, que é a do meio. A criminosa é o Capelão, que reponta mais ao largo e só mostra a coroa nas grandes vazantes. Cá a bombordo ainda há duas, a Virgem e a Maldita, onde bateu o cargueiro Rotterdam.

— E aquela lisinha, acolá?

— Uma coitada que nem nome tem. É mansa, está muito perto da terra, não faz mal a navio. Ali mora um anequim, bichanca de tamanho do diabo, que gosta de virar canoas. Mas, aqui para nós, moço, isso é embromação. Peixe mora em todo o mar, não tem toca como bicho de terra. É abusão de pescador. Quando há mar, não se enxerga nada por ali; mas se a água é serena e vem vindo a vazante, vai aparecendo um lombo de pedra lisa com jeito de peixe.

Passa um pescador atolambado, vê aquilo de longe. “É anequim! É anequim!” e toca a safar, com o medão na alma. Se acontece embravecer a água, e dá temporal, e a canoa vira: “Que é de Fulano?”. Tá, tá, tá, foi o anequim! Toda gente pega, feito mulher velha. “Foi o anequim do farol!” Ora aí está como são as coisas. Há muito anequim e tintureira por aqui. Onde é mar sem cação? Mas dizer que um tal mora aqui ou ali, isso é embroma.

E na sua pinturesca linguagem de marítimo, que às vezes se tornava prodigiosamente técnica, narrou-me toda a história daquelas paragens malditas. Falou de como, segundo a tradição, se foram batizando os arrecifes; falou dos crimes de cada um; das hecatombes periódicas de aves noturnas que, cegadas pela luz, batem de peito contra os vidros da lanterna, juncando o chão de corpinhos latejantes; das medonhas tormentas nas quais o farol estremece como a tiritar de pavor. De que não falou Gerebita naquele inesquecível dia?

— E o ajudante? Tem-no cá? — perguntei.

O rosto do meu faroleiro mudou de expressão. Vi de relance que eram inimigos.

— É aquele estupor que lá pesca — disse apontando da janela ao vulto imóvel, acocorado num penedo. — Está a apanhar garoupinhas. É Cabrea. Mau companheiro, mau homem...

Entreparou. Percebi que mascava uma confidência difícil. Mas a confidência denunciou-se apenas. Gerebita sacudiu a cabeça e murmurou como de si para si:

— Está cá de pouco, e é o único homem no mundo que não podia cá estar. Já reclamei do capitão do porto, já mostrei o perigo. Mas, qual!...

Estranha criatura, o homem! Insulados do mundo naquela frágua, ambos náufragos da vida, o ódio os separava... Não faltavam no farol, entretanto, acomodações para as famílias dos seus guardiães. Por que não as tinham ali? Seria um bocado de mundo a lenir as agruras do emparedamento. Interpelei-o; Gerebita retrucou-me de modo enviesado.

— Família não tenho, isto é, tenho e não tenho. Tenho, porque sou casado, e não tenho porque... Histórias! Estas coisas de famílias é bom que fiquem com a gente.

Notei de novo que a pique duma revelação mascava o segredo por desconfiança ou pudor. Suas feições endureceram. Sombras más anuviaram-lhe a fisionomia. E mais torvo ainda me pareceu quando Cabrea entrou sobraçando um balaio de pescado. Tipo de má cara, passou em direitura à cozinha sem nos volver um olhar. Mal se sumiu, Gerebita exclamou: “Raio do diabo!”, assentando num caixote expiatório um murro de fender pinho. Depois:

— O mundo é tão grande, há tanta gente no mundo, e cai-me aqui justamente o único ajudante que eu não podia ter...

— Por quê?

— Por quê?... Porque... é um louco.

Entre o primeiro e o segundo “porque” notei transição radical. Dúbio o primeiro, o segundo afigurou-se-me resoluto, como iluminado pelo clarão duma ideia brotada no momento.

Desde esse dia nunca mais o faroleiro abandonou o tema da loucura do outro. Demonstrava-me de mil maneiras.

— E aqui onde até os sãos perdem a tramontana — argumentava ele — um já assim rachado de telha aos três por dois rebenta como bomba no fogo. Eu jogo que ele não vara o mês. Não vê seus modos?

Metade por sugestão, metade por observação leviana, razoável me pareceu a profecia; e como sem cessar Gerebita malhasse na mesma tecla, acabei por convencer-me de que o casmurro ajudante era um fadado ao hospício, com pouco tempo de equilíbrio nos miolos.

Um dia Gerebita abordou a questão nestes termos:

— Quero que o senhor me resolva um caso. Estão dois homens numa casa; de repente um enlouquece e rompe, como cação esfomeado, para cima do outro. Deve o outro deixar-se matar como carneiro ou tem o direito de atolar a faca na garganta do bicho?

Era por demais clara a consulta. Respondi como um rábula positivo:

— Se Cabrea enlouquecesse e o agredisse, matá-lo seria um direito natural de defesa — não havendo socorro à mão. Matar para não morrer não é crime — mas isto só em último caso, você compreende.

— Compreendo, compreendo — respondeu-me distraidamente, como quem lá segue os volteios duma ideia secreta; e depois de longa pausa: — Seja o que Deus quiser — murmurou entre si, suspirando e recaindo em cismas.

Deixei-me ficar à janela a ver cair a noite. Nada mais triste do que as avemarias no ermo. A treva espessava as águas e absorvia no céu os derradeiros palores da luz. No poente, um leque aluarado enrubescia nas varetas, com dedadas sangrentas de nuvens a barrá-lo de listrões horizontais.

Triste...

A ardósia do mar; as primeiras estrelinhas entreluzindo a medo; o marulho na pedra, tchá, tchá, compassado, eterno... A alma confrangeu-se-me de angústia. Vi-me náufrago, retido para sempre num navio de pedra, grudado como desconforme craca na pedranceira da ilhota. E pela primeira vez na vida senti profundas saudades dessa coisa sórdida, a mais reles de quantas inventou a civilização — o “café”, com o seu tumulto, a sua poeira, o seu bafio a tabaco e a sua freguesia habitual de vagabundíssimos “agentes de negócios”...

Correram dias. Minto. No vazio daquele dessaborido viver no ermo o tempo não corria — arrastava-se com a lentidão da lesma por sobre chão liso e sem fim. Gerebita tornara-se enfadonho. Não mais narrava pinturescos incidentes da sua vida de marujo. Aferrado à ideia fixa da loucura de Cabrea, só cuidava de demonstrar-me os seus progressos. Fora desse tema sinistro, sua ocupação era seguir de olhos os navios que repontavam ao largo, até vê-los sumirem-se na curva do horizonte.

Velas, poucas alvejavam, tirante barquinhas de pescadores. Mas uma que surgisse lá nos levava os olhos e a imaginação. Como se casa bem com o mar o barco de vela! E que sórdido baratão craquento é ao pé dele o navio a vapor!

Escumas, corvetas, pequeninos cutters, fragatas, lugres, brigues, iates... O que lá vai passado de leveza e graça!... Substituem-nas, às garças leves, os feios escaravelhos de ferro e piche; a elas, que viviam de brisas, os negros comedores de carvão, bicharocos que mugem roncos de touro enrouquecido.

Progresso amigo, tu és cômodo, és delicioso, mas feio... Que fizeste da coisa linda que é a vela enfurnada? Do barco à antiga, onde ressoavam canções de maruja, e todo se enleava de cordame, e trazia gajeiro na gávea, e lendas de serpentes marinhas na boca dos marinheiros, e a Nossa Senhora dos Navegantes em todas as almas, e o medo das sereias em todas as imaginações?

Desfez-se a poesia do reino encantado de Anfitrite ao ronco dos Lusitanias, hotéis flutuantes com garçons em vez de “lobos do mar”, não característicos, cosmopolitas, sem donaire, sem capitães de suíças pitorescos no falar como seiscentos milhões de caravelas. O fumo da hulha sujou a aquarela maravilhosa que desde Hanon e Ulisses vinha o veleiro pintando sobre a tela oceânica...

— Se paras o caso dos loucos e te metes por intermezzos líricos para uso de meninas olheirudas, vou dormir. Volta ao farol, romanticão de má morte.

— Eu devia castigar o teu prosaísmo sonegando-te o epílogo do meu drama, ó filho do “café” e do carvão!

— Conta, conta...

Certa tarde Gerebita chamou minha atenção para o agravamento da loucura de Cabrea, e aduziu várias provas concludentes.

— Queira Deus não seja hoje!...

— Tens medo?

— Medo? Eu? De Cabrea?

Queria que visses a estranha expressão de ferocidade que lhe endureceu o rosto!... A conversa parou aí. Gerebita chupava cachimbadas nervosas, fechado de sobrecenho como quem rumina uma ideia fixa. Deixou-me, e logo em seguida subiu. Como anoitecesse, recolhi-me pouco depois e deitei-me. Dormi e sonhei. Sonhei um sonho guinhotesco, agitadíssimo, com lutas, facadas, o diabo. Lembro-me de que, agredido por um facínora, desfechei contra ele cinco tiros de revólver; as balas, porém, grudaram-se à parede e deram de ressoar dum modo que me despertou. Mas acordado continuei a ouvir o mesmo barulho, vindo de cima, da lanterna.

Pressinto a catástrofe esperada. Salto da cama e aguço o ouvido: barulho de luta. Corro à escada, galgo-a aos três degraus e no topo esbarro com a porta fechada. Tento abri-la: não cede. Escuto: era de fato luta. Rolavam corpos pelo chão, fazendo retinir os vidros da lanterna, e ouvia-se um resfolego surdo, entremeado de embates contra os móveis. Trevas absolutas. Nenhuma réstia de luz coava para a escada.

Minha situação era esquerda. Ficar ali, inútil, quando portas adentro dois homens se entrematavam? Permanecia eu nessa dubiedade, quando choque violento escancarou-me a porta. Um clarão de sol chofrou-me os olhos. Senti nas pernas um tranco — e rodei escada abaixo de cambulha com dois corpos engalfinhados. Ergui-me, tonto, e vi em rebolo no chão os dois faroleiros.

Atirei-me à luta em auxílio de Gerebita.

— Dois contra um! — gemeu Cabrea, sufocado. — É covardia!

Pela primeira vez lhe ouvi a voz — e hoje noto que nada nela denunciava loucura. No momento pensei diversamente, se é que pensei alguma coisa. Gerebita, com grande assombro meu, também me repeliu.

— Não! Não! Eu só!

Nisto, um pegão de nortada, varrendo a torre, trancou a porta do lanternim com estrondo. Envolveu-nos de novo a escuridão.

E começa aqui o horror... Os rugidos que ouvi, os arrancos e sacões formidáveis da luta nas trevas, a minha ansiedade... Pavorosos minutos de vida que não desejo renovados.

Perdi a noção do tempo. Durou muito aquilo? Não sei dizer. Só sei que a tantas ouvi escapar-se ao peito de Gerebita um urro de dor, e logo em seguida uma imprecação — “Desgraçado!” — cujas derradeiras sílabas morreram num trincar de dentes atassalhando carnes. Cabrea grugulejou uns roncos que se casaram com o arquejar do peito de Gerebita, e a luta esmoreceu.

Sem palavras na boca, cegado pela escuridão, eu só ouvia, fora, os uivos da nortada, e ali, aquele arquejo do vencedor exausto caído à beira do vencido. Com os olhos da imaginação eu via esse quadro, que com os da cara enxergava tanto como se os tivera envoltos em veludo negro.

Não te conto os pormenores do epílogo. Obtive luz e o que vi não te conto. Impossível pintar o hediondo aspecto de Cabrea com a carótida estraçalhada a dente, caído num lago de sangue. Ao seu lado Gerebita, com a cara e o peito vermelhos, a mão sangrenta, estatelava-se no chão, sem sentidos. Os meus transes diante daqueles corpos martirizados, àquela hora da noite — daquela terrível noite negra como esta e sacudida por um vento do inferno!...

Na manhã seguinte Gerebita pousou-me a mão sobre o ombro e disse:

— O mar não leva daqui os corpos à praia e o mundo não precisa saber de que morreu Cabrea. Caiu n’água — morte de marinheiro, e o moço é testemunha de que matei para não morrer. Foi defesa. Agora vai jurar-me que isto ficará para sempre entre nós.

Jurei-o lealmente, tocando de leve a mão mutilada. E ele, num acesso de infinito desalento, quedou-se imóvel, a olhar para o chão, murmurando insistentemente:

— Eu bem avisei. Não me acreditaram. Agora está aí, está aí, está aí...

Nesse mesmo dia veio buscar-me Dunga. Mal a Gaivota largou, narrei-lhe a morte do faroleiro, romanceando-a: Cabrea, louco, a despenhar-se torre abaixo e a sumir-se para sempre no seio das ondas.

Dunga, assombrado, susteve no ar os remos.

— Pois morreu? E louco?

— Está claro!

— Claro que lhe parece, que a mim...

— Conhecia-o?

— Não conhecia outra coisa. Desde que furtou Maria Rita...

— Que Maria Rita?

— Pois Maria Rita, mulher do Gerebita, então não sabe? Que ele seduziu, homessa.

Abri a minha maior boca e arregalei o que pude os olhos.

— Como sabe disso?

— É boa! Sei porque sei, como sei que aquela gaivota que ali vai é uma e que este mar é mar. Maria Rita era uma morena de truz, perigosa como o demo. O tolo do Gerebita derreou-se de amores pela bisca e lá casou. E vai ela, a songuinha, mal o homem saía no Purus, metia em casa Cabrea. E nesse jogo viveram até que um dia fugiram juntos para outras terras. O pobre Gerebita se não acabou de paixão é que era teso. Mas entrou para o farol, o que é também um modo de morrer pro mundo. Pois bem. A bola vira, o tempo corre, e vai, senão quando, quem mete o Governo no farol em lugar do defunto Gavriel?

Cabrea! Cabrea que também andava descrente da vida porque Rita lhe fugira com terceiro. Coisas do mundo. Diz-me agora vossoria que o homem enlouqueceu, e rolou do penedo, e lá o rói o peixe. Está bem. Antes assim, que do contrário era em ponta de faca que aquilo acabaria...

Calei-me. Há situações na vida que as ideias embaralham de tal forma que é de bom conselho deixarmo-las se assentarem por si. Eis como...

— ... o meu grande amigo Eduardo foi empulhado por um assassino vulgar!

— Perdão. O fato de se não manejarem floretes não tira àquele pugilato o caráter de duelo.

— “Cavaleria rusticana”, então?

— E por que não?

Fonte:
Monteiro Lobato. Urupês.

sábado, 4 de abril de 2020

Varal de Trovas n. 229


Carlos Drummond de Andrade (Anúncio de João Alves)


Figura o anúncio em um jornal que o amigo me mandou, e está assim redigido:

À procura de uma besta.

- A partir de 6 de outubro do ano cadente, sumiu-me uma besta vermelho-escura com  os seguintes característicos: calçada e ferrada de todos os membros locomotores, um pequeno quisto na base da orelha direita e crina dividida em duas seções em consequência de um golpe, cuja extensão pode alcançar de 4 a 6 centímetros, produzido por jumento.

Essa besta, muito domiciliada nas cercanias deste comércio, é muito mansa e boa de sela, e tudo me induz ao cálculo de que foi roubada, assim que hão sido falhas todas as indagações.

Quem, pois, apreendê-la em qualquer parte e a fizer entregue aqui ou pelo menos  notícia exata ministrar, será razoavelmente remunerado.
Itambé do Mato Dentro, 19 de novembro de 1899.
 (a) João Alves Júnior.


55 anos depois, prezado João Alves Júnior, tua besta vermelho-escura mesmo que tenha aparecido, já é pó no pó. E tu mesmo, se não estou enganado, repousas suavemente no pequeno cemitério de  Itambé. Mas teu anúncio continua um modelo no gênero, se não para ser imitado, ao menos como objeto de admiração literária.

Reparo antes de tudo na limpeza de tua linguagem. Não escreveste apressada e toscamente, como seria de esperar de tua condição rural. Pressa, não a tiveste, pois o animal desapareceu a 6 de outubro, e só a 19 de novembro recorreste à Cidade de  Itabira. Antes, procedeste a indagações.

Falharam. Formulaste depois um raciocínio: houve roubo. Só então pegaste da pena, e traçaste um belo e nítido retrato da besta.

Não  disseste  que todos os seus cascos estavam  ferrados; preferiste dizê-lo "de  todos  os  seus membros locomotores". Nem esqueceste esse pequeno quisto na orelha e essa divisão da crina em duas seções, que teu zelo naturalista e histórico atribuiu com segurança a um
jumento.

Por ser muito domiciliada nas cercanias deste comércio, isto é, do povoado e sua feirinha semanal, inferiste que não teria fugido, mas antes foi roubada. Contudo, não o afirmas em tom peremptório: "tudo me induz a esse cálculo". Revelas aí a prudência mineira, que  não avança (ou não avançava) aquilo que não seja a evidência mesma. E cálculo, raciocínio, operação mental e desapaixonada como qualquer outra, e não denúncia formal.

Finalmente- deixando de lado outras excelências de tua prosa útil - a declaração final: quem a apreender ou pelo menos "notícia exata ministrar", será "razoavelmente  remunerado". Não prometes recompensa tentadora; não fazes praças de generosidade ou largueza; acenas com o razoável, com a justa medida das coisas, que deve prevalecer  mesmo no caso de bestas perdidas e entregues.

Já é muito tarde para sairmos à procura de tua besta, meu caro João Alves do Itambé; entretanto essa criação volta a existir, porque soubeste descrevê-la com decoro e   propriedade, num dia remoto, e o jornal a guardou e alguém hoje a descobre, e muitos  outros são informados da ocorrência. Se lesses os anúncios de objetos e animais perdidos, na imprensa de hoje, ficarias triste. Já não há essa  precisão de termos e essa graça no dizer, nem essa moderação nem essa atitude crítica. Não há, sobretudo, esse amor à tarefa bem feita, que se pode manifestar até mesmo num anúncio de besta sumida.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Fala, Amendoeira. RJ: José Olympio, 1976.

J. G. de Araújo Jorge (O Canto da Terra) 6


FILOSOFIA

O Homem tem que ser contraditório
se o mesmo homem que ri
é o mesmo homem que chora,
se o mesmo homem que odeia
é o mesmo homem que adora...

O Homem tem que ser contraditório
se em seu próprio destino a sua própria vida
se contradiz,
- se o que hoje é tédio, ontem foi prazer, foi gozo,
se isto que agora o faz sentir-se venturoso
é o mesmo que depois vai torná-lo infeliz!

Destino glorioso
ou talvez, destino inglório,
- neste mundo incoerente, absurdo, assombroso,
o homem tem que ser contraditório…
- - - - - –

FILOSOFIA PERFEITA

Primeiro
eu queria dobrar as curvas de todos os caminhos,
e soltar os meus olhos livres
pelo mistério de todas as florestas
pela distância de todos os horizontes
e do cimo de todas as montanhas...

Depois,
abrir serenamente os braços coo aquele louco
lírico e profundo,
o mais louco e o mais lírico do mundo,
- e dizer para os homens que ficaram la embaixo
a amargurar os seus destinos:

- " deixai vir a mim os pequeninos..."

E finalmente, eu queria
como aquele gênio que desceu da montanha,
a montanha mais alta e mais estranha,
- fugir dos homens, da vida,
volver os olhos pra trás,
- e a sombra das ramagens da árvore do silêncio
provar o fruto do sonho, e beber a água pura e bendita,
da paz!
- - - - - –

FUTURO
      (A Pedro do Couto Filho)
  
Era após a última guerra...

O homem vestido de preto da cabeça aos pés
parecia que estava de luto, e falava aos fiéis
como há mil anos faz:

- "que enfim possa a hecatombe ter servido
de experiência aos homens,
e que esta tenha sido a última guerra,
e no futuro os homens vivam em paz!"...
..........................

No dia de Natal, a criança órfã dizia à mãe
ainda desconsolada:

- quero que pai Noel
traga do céu, um tambor... e uma espada!
- - - - - -

HINO 
   (A Renato Homem)
  
Quisera que meus braços fossem extensos e infinitos como os horizontes
para abraçar todas as terras.

Meu coração universal conhece todos os idiomas, e os meus
olhos trouxeram a cor dos mares
que contornam todos os países...

Meus pés não distinguem no atrito das terras as diferenças de raças
e as minhas mãos não distinguem no aperto de outras mãos
as diferenças de cores

Meus pés só distinguem os caminhos ásperos dos caminhos suaves
e as minhas mãos só distinguem as mãos rudes que trabalham
das mãos macias que vegetam...

Quisera abrir os braços e envolver todas as terras e todas as pátrias
e ensinar a todos os homens que a luz vem de um único sol
e que o amor deve unir todas as mãos ásperas
para que todos os caminhos sejam suaves…
- - - - - –

HUMANIDADE
    (A Ema Santandreu Morales)
  
Os homens me ensinaram a matar
foram eles que me deram a arma de dois gumes
do pensamento...

Os homens me tornaram um criminoso
e eu hoje me sinto
como se meu cérebro fosse o esquife do último deus...

Os homens me ensinaram a pensar
e eu assassinei o último deus
com a lâmina aguda do meu pensamento
friamente...

Agora os homens me perseguem
covardemente...
- - - - - –

HUMANISMO
    (A Romain Rolland) 
Fale ele italiano, russo ou japonês,
alemão
ou chinês,
se lhe estenderes franca e livremente a mão:
- será teu irmão!

Fale ele português, inglês ou castelhano,
tenha nascido na Ásia, África, Oceania
ou seja americano,
se ao seu lado estiveres na hora do perigo:
- será teu amigo!

Fale ele italiano, russo ou japonês,
francês
ou o idioma que for,
se a tomares nos braços e beijar-lhe a boca:
- será teu amor!

Mas... pode ele nascer até na tua casa,
ter teu sangue nas veias
morar mesmo contigo
partilhando uma herança ou disputando um bem:
será teu inimigo!
.........................

Volta, pois,, para o teu lar, para o teu campo,
teu escritório ou tua oficina,
e larga essa arma assassina
que te trará remorsos, ou quem sabe? - horror
- e vive em paz com o teu trabalho, com teus amigos,
com o teu amor!

E vê se agora não erras ...
Tens a chave que explica o segredo de todas
as guerras!

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. O Canto da Terra. 1945.

Ruth Guimarães (O Advogado do Sacristão)


Um sacristão estava distribuindo círios para quem quisesse acompanhar a procissão do Senhor Morto, em certa sexta-feira da Paixão, e sobrou um. Procurou com os olhos, estavam todos servidos. Entrou na igreja, colocou o círio atrás da porta e falou:

- Este aqui fica para o diabo.

Passado algum tempo, durante um naufrágio, o sacristão foi aprisionado pelos piratas e levado para a ilha dos Mouros. Andava desesperado, quando uma voz falou perto dele:

- Quando sentir bater no seu rosto uma ramada, agarre-se nela.

Ele assim fez. Sentindo o contato dos galhos, agarrou-se aos ramos invisíveis. No mesmo instante deu um vento forte, e quando ele viu estava descendo diante da sua porta.

Porém, não ficou sabendo quem foi o seu benfeitor. Como gostava de viajar, saiu novamente correndo mundo, e, desta vez a pé, por uma região desolada e pobre. Acabou-se o dinheiro, não encontrava trabalho e parou diante de uma granja. Vendo tantas galinhas, pediu que a mulher lhe fritasse meia dúzia de ovos, pelo amor de Deus. Não tinha dinheiro para pagar, mas iria correr mundo e quando voltasse, assim o ajudasse Deus, pagaria a dívida.

- E desta vez acho que ficarei curado da mania de viajar. Vou ficar quieto na sacristia da igreja da minha terra, que é um lugar santo.

A mulher fritou os seis ovos, ele os comeu, deliciadamente, e partiu.

Muitas aventuras o esperavam, andou ainda bastante, porém sorriu-lhe a sorte, progrediu, fez bons negócios, enriqueceu. Quis fazer duas coisas imediatamente: pagar aqueles seis ovos comidos há tanto tempo, dez anos ou mais, e voltar para a quietude da sua igreja.

Uma tarde, estava a granjeira diante da porta, viu apear de um cavalo baio, com arreios de couro macio e prata, um homem bem-vestido. Não o reconheceu senão quando ele contou que era o devedor dos seis ovos.

- Vim pagar-lhe, boa mulher, que me atendeu na hora da fome e da necessidade. Quero pagar tudo e deixar-lhe ainda uma boa quantia de presente.

A ganância mordeu o coração da mulher, vendo-o tão generoso, parecendo endinheirado.

- Vou fazer as contas - respondeu de cara fechada.

- Contas? Que contas? - estranhou o homem. - Pois então lá é preciso estar fazendo contas para saber o preço de seis ovos? Que lhe deu, boa mulher?

E ela lhe apresentou uma conta fantástica, uma lista imensa com o preço de milhares de galinhas.

- Que é isso? - perguntou o homem.

- Se eu tivesse posto aqueles seis ovos para chocar, teriam saído cinco franguinhas e um frango. As frangas botariam e tornariam a chocar. Em dez anos, eu teria tudo isto que está aqui nesta lista.

Como o homem se recusasse a pagar aquele absurdo, foram todos ao juiz mais próximo, e o julgamento do caso ficou marcado para daí a uns dias.

Muito desgostoso, foi o antigo sacristão andar um pouco, para espairecer. Andava e pensava, de cara amarrada, cenho franzido, temendo já tornar a ficar pobre, por causa da ambição da granjeira. Numa de suas voltas, encontrou-se com um homem, todo vestido de preto, de colarinho duro, sapatos de verniz, muito bem penteado.

- Que mal o aflige, amigo, que o vejo tão transtornado?

Contou-lhe tudo o homem, e o outro, sorrindo, falou:

- Ora, não é caso para tristezas. Acontece que sou advogado. O senhor ainda nem pensou em contratar os serviços de um profissional?

- Ainda não.

- Pois então, eu me considero contratado. Vá tranquilo. No dia do julgamento, estarei lá para defendê-lo.

Parecia tão seguro de si que o homem se animou.

Chegou o dia do julgamento. Começou a sessão. Alguns casos foram julgados. E foi a vez do sacristão. E nada de aparecer o advogado. O juiz esperou. Nada. Começou a ficar impaciente, fulminando com o olhar o pobre homem, que ainda estava mais agoniado. E o advogado não aparecia. Ele estava vendo que, por falta de defesa, ia ser obrigado a entregar todo o seu dinheiro, ia ser preso, iam matá-lo. Suava frio e maldizia a hora em que aceitara o serviço de qualquer desconhecido. Nisso, o advogado entrou. O homem se animou, mas olhando para ele, viu-lhe a barbicha em ponta, os pés de pato e tremeu.

"Com quem me meti, neste embaraço! E agora mais esta. Acabo perdendo também a alma"

Porém o temível advogado tranquilizou-o:

- Se lembra do círio que deixou para mim, atrás da porta da igreja? Em agradecimento, já o livrei da prisão na ilha dos Mouros e aqui estou novamente para tornar a salvá-lo. Tranquilize-se que não quero a sua alma.

E dirigindo-se ao juiz, que não sabia da sua condição satânica, falou, cortesmente:

- Queira desculpar o meu atraso, estava cozinhando um pouco de feijão, para plantar.

- Estava fazendo o quê!?

- Estava cozinhando feijão para plantar - repetiu o advogado, insensível às risadas que estalavam de todos os lados, ao ouvir o povo declaração tão esquisita.

O juiz recostou-se na sua alta cadeira e riu também.

- Amigo, - disse ele - trabalho completamente perdido, pois feijão cozido não nasce.

- Então, por que estamos aqui debatendo se de ovos fritos nascem pintos?

E foi assim que o sacristão pôde voltar em paz à sua igreja.

Fonte:
Ruth Guimarães. Lendas e Fábulas do Brasil. 1964.

sexta-feira, 3 de abril de 2020

Varal de Trovas n. 228


Humberto de Campos (Indefesa)


O Dr. Edgard esperava há meia hora na sala de visita a formosa dona daquela casa, e evocava, saudoso, o tempo em que a conhecera.

Fora há seis anos, em uma festa náutica, em Botafogo. Passageiros da mesma lancha, ele acompanhava um páreo, detidamente, com o seu binóculo de marfim, quando alguém lhe arrancou violentamente dos olhos, gritando-lhe com alvoroço:

- Ora, empreste-me! sim?

Ele voltou-se, e viu que o seu binóculo estava ao serviço de dois olhos tão verdes como as águas, e, preso deles, não conseguiu mais, nesse dia, acompanhar um número sequer daquela campanha esportiva, travada nas ondas.

Dentro de seis meses estavam noivos. E um dia, por um arrufo, por um breve ciúme sem causa, acabou-se o noivado, partindo ele para a Alemanha, a aperfeiçoar os estudos, ficando ela, jovem e linda, no Rio, onde se casara, afinal, com um advogado, quatro meses antes do seu regresso.

Ele sabia do casamento quando a encontrou, uma tarde, na Avenida:

- Então, de volta, doutor? - exclamou a maravilhosa criatura, estendendo-lhe a mão pequenina, numa grande alegria.

- É verdade. E venho encontrá-la mais formosa, mais risonha, e, com certeza, mais feliz!

- Sabe que me casei? - tornou a moça, despedindo-se - Apareça em nossa casa. Teremos imenso prazer em recebe-lo.

E apertando-lhe a mão, com um olhar, que era um relâmpago:

- Vá! Sim?

Recapitulava o jovem médico esses episódios, origens daquela visita, quando ressoaram passos na escada, e surgiu à porta da sala, deslumbrante de graça e de mocidade, a figura que mais o encantara na vida.

- Oh!... - exclamou, deslumbrado, pondo-se de pé.

Sentaram-se os dois, pálidos, entreolhando-se em silêncio. De repente, com uma audácia imprevista, ele aventurou, incontido.

- Estás deslumbrante, Ecilda! Estás tentadora... maravilhosa... irresistível!

E, de súbito, cerrando os dentes:

- Se tu não gritasses... eu me precipitaria sobre ti, cobrindo-te de beijos!

A moça, trêmula, os lábios entreabertos, olhou-o nos olhos, e, levando à garganta a mãozinha branca, sussurrou, apenas, a meia-voz, tranquilizando-o:

- Estou... rouca!

E fechou os olhos…

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze.

Amaryllis Schloenbach (Baú de Trovas)


A lua fulge tristonha,
sozinha no céu imenso;
Minha alma na noite sonha
enquanto em teus olhos penso.
- - - - - –

— Coração, bates ligeiro,
até mudas de compasso,
se recordo o amor primeiro
ou se perto dele passo!
- - - - - –

— Coração, fonte de amor,
mostras a cada segundo
que em toda ilusão há dor,
nos destinos deste mundo!
- - - - - –

Espumas, ondas bravias,
soluça o oceano em revolta;
como ele sou (não sabias?)
quando aguardo tua volta.
- - - - - –

Este amor que é meu tormento
bate em casa abandonada...
Responde, na voz do vento,
somente o eco, mais nada!
- - - - - –

Este amor que eu acalento,
pelo qual estou perdida,
é meu canto e meu lamento,
minha morte e minha vida!
- - - - - –

Foste embora, certo dia;
fiquei magoada, a chorar...
Hoje sinto — quem diria? —
que foi sorte e não azar!
- - - - - -

Invejo a rosa tão linda,
que, sem ligar para a sorte,
a vida perfuma ainda,
altiva, à espera da morte!
- - - - - –

Já não posso refrear
esta paixão violenta,
que ruge mais do que o mar,
presa de rude tormenta!
- - - - - –

Morre a noite de repente.
Seu sangue cobre a amplidão,
e a aurora, triste e silente,
se ajoelha em oração.
- - - - - –

O fio do pensamento
vai tão longe e até parece
que, impelido pelo vento,
quer prender quem já me esquece!
- - - - - –

O orvalho, do céu liberto,
de uma flor se fez amante,
e em seu regaço entreaberto
pôs um límpido brilhante!
- - - - - –

Procura esquecer teu pranto
secando o pranto de alguém;
assim verás mais encanto
no encanto que a vida tem!
- - - - - –

Quando, no ocaso da vida,
um amor nos surpreende,
a existência agradecida
em nova chama se acende!
- - - - - –

Quero da rosa a existência,
sua beleza e frescor:
veludo toda, e essência,
para a colheita do amor.
- - - - - –

Relembro as tardes da infância,
olho a praia, escuto o vento...
Fica mais perto a distância
nas asas do pensamento...
- - - - - –

Se queres colher a paz,
não procures tão a esmo;
só pode tê-la quem traz
a paz dentro de si mesmo!
- - - - - –

Solitário, junto à margem
chora, saudoso, o salgueiro:
parecem vir da ramagem
as águas do rio inteiro!
- - - - - –

Sonho, palavra pequena,
porém, de grande valor:
faz a vida mais amena
e muito mais belo o amor!
- - - - - –

Um breve sonho de amor
— depois, ventura perdida —
é aquele doce amargor
em que se resume a vida.
- - - - - –

Viver num corpo sem alma
— eis o meu drama, porque
perdi minha paz e a calma
depois que perdi você.

Fontes:
– Aparício Fernandes (org.). Trovadores do Brasil. 2. Volume. RJ: Ed. Minerva,
– Revistas Virtual de Trovas “Trovia”
- Boletim da UBT Seção São Paulo
– A Trovadora

Irmãos Grimm (O Estranho Pássaro)


Houve, uma vez, um feiticeiro que, sob forma de mendigo, ia de casa em casa pedir esmolas e raptava as moças bonitas. Ninguém sabia para onde as levava, porque todas desapareciam sem deixar vestígios.

Um dia, apresentou-se à porta de um homem que tinha três filhas muito bonitas. Tinha o aspecto de um pobrezinho maltrapilho, com um saco às costas, como se fosse para guardar o que recebia. Pediu a caridade de um pouco de comida e, quando a filha mais velha chegou à porta para dar-lhe um pedaço de pão, ele empurrou-a com a mão e ela pulou, sem saber como, para dentro do saco. Em seguida, a passos apressados, ele partiu, levando-a consigo para sua casa no coração da floresta espessa.

Naquela casa tudo era suntuoso e ele presenteou-a com quanto ela desejou, dizendo:

- Meu tesouro; aqui comigo passarás muito bem e poderás ter tudo o que desejares.

E as coisas duraram assim alguns dias, passados os quais ele disse:

- Tenho de fazer uma viagem e preciso deixar-te sozinha por algum tempo. Aqui tens as chaves da casa. Podes percorrê-la inteiramente e ver tudo o que há nela, menos, porém, o quarto que se abre com esta chavinha. Proíbo-te de lá entrares, sob pena de morte.

Deu-lhe, também, um ovo, dizendo-lhe:

- Toma muito cuidado com ele. Aconselho-te a trazê-lo sempre contigo para que não se perca, pois perdendo-o sobrevirá uma grande desgraça.

Ela pegou as chaves e o ovo, prometendo fazer tudo direito como lhe pedia. Quando ele partiu, a moça correu a inspecionar a casa de alto a baixo examinando tudo. Os aposentos reluziam de ouro e prata e ela deslumbrada confessava jamais ter visto tal magnificência. Por fim chegou diante da porta proibida. Quis passar direto, mas a curiosidade era tanto que não lhe foi possível resistir. Olhou para a chave. Era uma chave comum, meteu-a na fechadura, fazendo-a girar devagarzinho, e a porta escancarou-se. Mas, o que se lhe deparou ao entrar lá?
 
No meio do quarto, havia uma grande bacia ensanguentada e, dentro dela, pedaços de cadáveres esquartejados. Ao lado havia um cepo, em cima do qual estava a machadinha reluzente. Ao ver isso sentiu tal pavor que o ovo lhe escapou da mão, indo cair dentro da bacia. Mais que depressa, apanhou-o, tentou limpar o sangue que nele se manchara, mas em vão. Por mais que esfregasse e raspasse, o sangue voltava a aparecer e não conseguiu limpá-lo.

Pouco depois, o feiticeiro regressou da viagem e a primeira coisa que pediu foi a chave e o ovo. Ela, tremendo como vara verde, entregou-lhos. Vendo as manchas vermelhas no ovo, ele percebeu que havia entrado no quarto sangrento. Então disse:

- Entraste lá contra a minha vontade, agora voltarás a entrar contra tua vontade. Tua vida está no fim.

Atirou-a ao chão, arrastou-a até lá pelos cabelos, decapitou-a no cepo e esquartejou-a, deixando que o sangue escorresse pelo chão, depois jogou os pedaços dentro da bacia junto com os demais que lá estavam.

- Agora vou buscar a segunda! - disse ele.

Transformou-se em mendigo e tornou a apresentar-se diante da porta, pedindo esmola. A segunda filha levou-lhe um pedaço de pão. Dela também se apoderou com um simples toque da mão e levou-a embora. E esta acabou como a irmã. Deixou-se vencer pela curiosidade, abriu o quarto sangrento para ver o que continha e, à volta do feiticeiro, teve de pagar com a vida a curiosidade.

Ele então foi buscar a terceira, mas esta era prudente e astuciosa. Assim que o feiticeiro partiu, após ter-lhe entregue as chaves e o ovo, ela antes de mais nada guardou o ovo em lugar seguro e só depois visitou a casa de cima a baixo, abrindo também a porta proibida.

Ah! O que viu lá dentro! As suas queridas irmãs esquartejadas e os pedaços dentro da bacia. Recolheu cuidadosamente todos os membros, juntando-os um por um bem direitinho: cabeça, tronco, braços e pernas, os quais, uma vez recompostos, começaram a mover-se e reviver. Daí a pouco, as duas irmãs abriam os olhos ressuscitadas. Numa alegria imensa abraçaram-se e beijaram-se muito felizes.

Quando o feiticeiro regressou, pediu logo as chaves e o ovo; não descobrindo nele sinal algum de sangue, disse:

- Superaste bem a prova, por isso serás minha esposa.

Agora, porém, ele já não tinha mais nenhum poder sobre ela e devia fazer tudo o que ela quisesse. Ela, então, respondeu:

- Está bem! Antes, porém, tens de levar um cesto cheio de ouro a meus pais, mas deves carregá-lo tu mesmo nas costas. Enquanto isso, eu providenciarei tudo para a festa.

Depois correu para um quartinho onde havia ocultado as irmãs e disse-lhes:

- Chegou o momento de vos salvar. Aquele malvado vos levará mesmo para casa, mas, assim que chegardes, mandai-me socorro.

Mandou que entrassem no cesto e cobriu-as bem, espalhando por cima o ouro de maneira que ficassem escondidas aos olhares dos outros. Depois chamou o feiticeiro e disse:

- Agora leva o cesto. Mas eu ficarei olhando da minha janela a ver se paras no caminho para descansar.

O feiticeiro colocou o cesto nas costas e pôs-se a caminho, mas o cesto pesava tanto que o suor lhe corria do rosto. Então sentou-se para descansar um pouco, mas uma das moças gritou de dentro do cesto:

- Estou olhando da minha janelinha e vejo que descansas. Vai andando, depressa!

Julgando que fosse a noiva quem assim falava, ele pôs-se a andar depressa. Quis sentar-se uma segunda vez, mas a moça gritou novamente:

- Estou olhando da minha janelinha e vejo que descansas. Vai andando, depressa!

Cada vez que parava, a moça gritava-lhe a mesma coisa e ele foi obrigado a ir para diante até que, gemendo e sem fôlego, entregou o cesto com o ouro e com as duas moças na casa de seus pais.

Enquanto isso, a noiva preparava a festa de bodas e mandou convidar os amigos do feiticeiro. Depois pegou uma caveira com seu riso de escárnio, enfeitou-a bem, colocou-lhe uma grinalda de flores e encostou-a à janelinha como se estivesse olhando para fora. Quando tudo ficou pronto, meteu-se dentro de um barrilete de mel, cortou um acolchoado e enrolou-se em penas, ficando assim parecida a um estranho pássaro que ninguém poderia reconhecer:

Saiu de casa e no caminho encontrou parte dos convidados que lhe perguntaram:

    – De onde vens, estranho pássaro?
    – De um ninho de plumas eu saio.
    – Que faz lá a bela noivinha?
    – De alto a baixo varreu a casinha,
    agora espera o noivo na janelinha.

Por fim encontrou o noivo, que lentamente vinha voltando e como os outros também perguntou:

    – De onde vens. estranho pássaro?
    – De um ninho de plumas eu saio.
    – Que faz lá a bela noivinha?
    – De alto a baixo varreu a casinha,
    agora espera o noivo na janelinha.

O noivo olhou para cima e viu a caveira toda enfeitada. Pensando que fosse a noiva, acenou-lhe amavelmente. Mas, tinha apenas entrado em casa com os convidados, quando chegaram os parentes e irmãos da noiva, enviados em seu auxílio. Trancaram todas as portas para que não fugisse ninguém e atearam fogo à casa, de modo que o feiticeiro com toda a sua gentalha acabaram queimados vivos dentro dela.

Fonte:
Contos de Grimm.

quinta-feira, 2 de abril de 2020

Varal de Trovas n. 227


Pedro Du Bois (Poemas Escolhidos) 5


CHORO

Era a propaganda
com seus feitos
:aumentadas estrelas
 avistadas através
 dos telescópios

o melhor dos mundos
coordenado pela
maior inteligência

há o momento
em que sozinho
o pensamento
recai na solidão
e a verdade aflora
a insignificância
de alguém que chora.
- - - - - –

COMODIDADE

Num dia comum
de horas comuns
atividades comuns
idas e voltas comuns

de repente
como nada
como tudo
como sempre
a irrealidade
inviabiliza
incomoda
a comodidade
que nos esconde

incomuns pessoas
            deslocadas
            desfocadas
        desesperadas
            pelo retorno
             comunitário.
- - - - - –

DESCAMINHO

Por onde sigo
descaminho
em passos rápidos
no trajeto curto
descaminho
de longa caminhada
na chegada não prevista
descaminho
apresso (mais) os passos
por onde passo
descaminho
sei do fracasso
do regresso
para onde vou
descaminho
sei que não haverá
chegada.
- - - - - –

DISTÂNCIAS

Distantes nos tornamos
menos críticos
na visão panorâmica
de amplos ângulos
em todas as curvas

na distância somos
meros pontos contra
a linha do horizonte

o distanciamento poupa
a vida nos sentimentos
resguardados no que
não podemos ver

distantes lembranças
abrandam a saudade
guardada nos corpos
aproximados.
- - - - - –

HISTÓRIA

Em voz baixa me contam a história
fatos e atos realizados e acontecidos
na vergonha de tempos de escuros
simulacros: a chuva bate contra
a vidraça e a água escorre vidas
perdidas em batalhas sangrentas
onde o ódio e a ganância alternam
os ataques: nossos irmãos fogem
para outras terras cujos donos
não os recebem simpaticamente

presos aos poderes maléficos
mantemos abaixadas as cabeças
e o orgulho escondido na vergonha
de sermos explorados e ludibriados
no medo que nos devora a mente

vozes mínimas repetem o texto oral
que do passado não há réplica
sobre o que nos contam: fomos
sempre assim e ainda somos
pois a raiva cedeu lugar
ao impassível rosto: nenhuma
fibra vibra onde não há mistério.
- - - - - –

TANTO

Tanto ordenamos
        condenados
   tanto mudamos
              isolados
  tanto buscamos
         escondidos
  tanto queremos
    desesperados

o tonto não percebe
as oportunidades
brinca em ameaças

tanto da vida perdida
indo atrás do vento
e do vulto fugidio
das imagens

tanto sonhamos
         acordados.
- - - - - –
Fonte:
Pedro Du Bois

França Júnior (Crianças)


- Como é bonito!

- Que mimo!

- Que anjinho do céu!

Tais são as palavras que nos saem espontâneas dos lábios ao vermos uma criança loura, de olhos azuis, sorriso feiticeiro, bochechas cor-de-rosa, um desses entes que constituem, na opinião de todos, o elo da família, o encanto, a felicidade do lar.

E deixando-nos seduzir pela beleza das crianças, exclamamos, sem sondar-lhes primeiro os mistérios do coração.

- Quanta inocência!

- Que candura!

- Que singeleza!

Alguns minutos de convivência, porém, com os tais "anjinhos do céu" são bastantes para convencer-nos de que eles são mais espirituosos e malignos que todos os diabos da terra.

Os leitores vão ler, no correr deste folhetim, a prova do que fica dito. É rara, nesta cidade, a casa onde não haja, pelo menos, duas ou três crianças.

Vejamos como realizam elas as santas alegrias do lar.

Vem rompendo o dia.

A família, entregue ao delicioso sono da madrugada, acorda ao som de pequenos gritos, que começam destacados e vão num crescendo imponente até a nota final, como o coro da "bênção dos punhais" dos Huguenotes.

- Hi! Hi! eu quero pão com manteiga.

- Espera um pouco, nhonhô, o padeiro ainda não veio.

- Hi! Hi! Quero pão,

- O senhora, vá acomodar aquele menino - diz o pai de família, pondo a cabeça fora dos cobertores.

- O que é isso lá dentro? grita a mãe.

- É nhonhô Pedrinho, que quer pão,

- Cala a boca, menino.

- Não calo. Hi! Hi! Eu quero pão.

-Ah bom chinelo! diz de outro quarto a irmã mais velha. - Hi! Hi! Hi!

- Bonito, agora é outro que lá está a chorar.

- Levante-se, senhora, e acabe com aquilo.

- Hi! Hi! Hi! Eu não quero pão, quero rosca.

- Ó Jacinta? Dá um biscoito a esse menino.

- Hi! Hi! Hi! Não quero biscoito, quero rosca.

~ Onde é que eu vou buscar rosca a esta hora, nhonhô Joãozinho?

O terceiro, que dorme o sono da inocência, levanta-se despertado pela música dos irmãos, e procura um pretexto para chorar também.

Não é difícil achá-lo. Acostumado a acordar comendo e a adormecer à noite engolindo, lembra-se de que na véspera não tomou chá. e ei-lo entrando no harmonioso ensemble:

- Hi! Hi! Hi! Quero o meu pão da ceia.

- Não chora, nhonhô.

- Hei de chorar. O meu pão da ceia,

- Ó senhora, eu não posso dormir! Isto é um inferno!

- O que quer que faça? acode a mulher já de mau humor.

- Levante-se, A sua obrigação é cuidar dos filhos.

- E a sua também.

- Se lhe parece...

- É boa! Pelo que vejo eu devo ser pau para toda a obra!

- Para que se casou?

- Se soubesse que era para aturar estas e outras, não tinha certamente saído da casa de meus pais.

- Já tardava que a senhora não enchesse a boca com a casa de seus pais!

- Sabe o que mais? Durma, que o seu mal é sono.

O marido volta-se para um lado, e lá vai a mulher exercer a mais nobre das missões.

Serenada a tempestade, os três inocentes, metidos em calças de chita, deixando ver pelas aberturas posteriores as fraldas das camisas, montam em paus de vassouras e percorrem a casa, levando diante de si cadeiras e quebrando tudo.

- Onde está o jornal de hoje? pergunta o marido que, não podendo mais conciliar o sono, toma o expediente de erguer-se do leito e vir à janela respirar as brisas da manhã.

- Ainda há pouco o vi aqui.

- Estava em cima desta mesa.

- Ó Jacinta?

- Senhora?

- Quem foi que tirou o jornal que estava na sala?

- Não sei, não senhora.

- Então esse jornal não aparece?

- Está-se procurando.

- E a Gazeta de Notícias também sumiu-se?

- Procura o jornal, negra, não me exasperes.

Depois de muitas pesquisas, descobre-se que tanto o jornal como a Gazeta figuram nas cabeças dos três inocentes, transformados em chapéus de dois bicos!

- Isto não se atura!

- Menino, olha que eu um dia...

- Não fui eu, foi Pedrinho.

- É mentira, foi Joãozinho.

- Foi Chico, papai.

- Quem rasgou foi o Ciro.

Este pomposo nome de gloriosas tradições históricas pertence a um crioulinho, preto como azeviche, de oito para nove anos de idade. É o companheiro inseparável dos três. Filho da preta, amamentou o mais velho, goza em casa dos privilégios de cria, os quais como os leitores não ignoram, estendem-se desde a sala de visitas até ao tacho de doce de cozinha.

Há Ciros que, para divertirem os conhecidos e amigos da casa, cantam modinhas com muita graça, e dançam o fado com invejável habilidade.

Ciro é o primeiro mestre que têm os inocentes, antes de irem à escola beber os rudimentos da língua vernácula. Graças a tão proveitosas lições, Joãozinho chama os ladrões de capiangos, o Chico diz sabiava em vez de sabia, e Pedrinho tem uma prosódia especial. Esse distinto professor inocula-lhes também nos espíritos os primeiros germes de superstição.

Chico tem medo de lobisomens. Pedrinho conta aos camaradas que certas mulheres à noite viram mula sem cabeça. E Joãozinho acredita na influência do saci e dos diabos a tresandarem a enxofre, com os pés de cabra e olhos de fogo.

Continuemos.

À mesa há sempre grande discussão entre os três, por causa de lugares.

- Eu fico aqui.

- Esta cadeira não é sua,

- É minha. Mamãe, olha o Chico.

- Larga.

- Não largo.

Da discussão passam a vias de fato.

A mãe ou o pai, que nem sempre estão de bom humor, intervém no conflito, dando um carolo neste, uma chinelada naquele, o que os obriga a gritar com toda a força dos pulmões, terminando por estenderem-se no chão e espernearem como um peru degolado a debater-se com a morte.

É então que entra em cena a avó.

A avó é um ente incompreensível! Está constantemente a ralhar com os netos. Chama-os de pestinhas, se desaparecem-lhe os óculos da cesta de costura.

Quando um deles entorna vinho na toalha ouve imediatamente um longo discurso, em que figuram sempre estes chavões;

- "O menino está com o diabo no corpo! Não sei onde tem o juízo! Parece que tem bicho carpinteiro, Deixa estar que o colégio te há de ensinar etc., etc."

Não lhes perdoa, enfim, as travessuras, por mais insignificantes que sejam.

Ai! Porém dos pais, se ousam castigar uma das mimosas crianças...

A boa velha entra logo no terreno das recriminações, e agora a vereis:

- O pobrezinho não fez nada! Dão-lhe bordoada por dá cá aquela palha! Coitadinho do menino! Está magro só de pancada.

Graças à avó resolve-se do melhor modo possível o incidente das cadeiras, e eis os três a jantarem com invejável apetite, como se nada houvera sucedido.

Os episódios que se dão ao jantar são dignos de menção.

- Eu não quero o arroz assim, diz um.

- Ora, pois, vamos lá. Como quer o arroz?

- Quero por cima do bife.

- O meu pedaço é mais grande que o seu.

- Ixi! Olha só o meu de que tamanho é!

- Você não teve ovo e eu tive,

- Que bem me importa! Eu tive duas azeitonas.

- Papai, eu quero empada.

- Eu também quero.

- Eu quero do lado que tenha camarão.

Se há alguma visita à mesa, costumam os inocentes fazer às vezes revelações indiscretas, que põem a família de cara à banda.

Exemplifiquemos:

- Hoje aqui em casa houve o diabo por causa deste doce de coco.

- Cala a boca, menino.

- Vovó não viu?

- Está bom, coma: ninguém perguntou-lhe quantos anos tinha.

- Papai não quis dar dinheiro para os ovos. Mamãe disse que ...

O pai começa logo a tossir.

A mamãe franze os sobrolhos.

A irmã mais velha estende o braço por baixo da mesa, para obrigar o pequeno a calar-se com um beliscão.

A visita abaixa os olhos.

E o inocente, cora a singeleza que o caracteriza, está disposto a narrar a história até o fim, quando um beliscão mais forte obriga-o a voltar-se para a mana, e dizer-lhe em tom ameaçador:

- Você não me dá! Olhe que eu conto.

A irmã empalidece.

- Cala a boca menino.

- Conto sim, o que seu Juca disse a você lá na sala.

- Mamãe pensa que eu não vi? Vi, sim senhora.

Terminado o jantar chega o tal Juca, que é recebido em casa com as atenções e delicadezas de quem pode dar uma excelente corte de noivo.

O inocente mais bonitinho aproxima-se do novo personagem e diz-lhe:

- Ó seu Juca, você sabe de uma coisa?

- O que é, meu bem?

- Papai diz todos os dias à mamãe que há de agarrar você para casar com a mana, porque você é muito rico.

Há um minuto de silêncio.

Ninguém sabe o que há de dizer.

Ainda estão todos sob a pressão do desagradável incidente quando dá-se outro ainda mais terrível!

Batem à porta.

O menino dispara como uma seta para o corredor, e de lá começa a gritar:

- Mamãe? Mamãe?

- O que é?

- Está aí seu Peru Recheado.

- Meus Deus! Acode o pai, pondo as mãos na cabeça. Que vergonha!

- Passa para dentro, menino.

- É seu Peru Recheado, sim senhora, aquele homem muito gordo, que veio cá ontem...

- “Sou eu, minha senhora”, interrompe o sujeito, que sabe que é conhecido por aquela alcunha; e ao entrar na sala toma logo o expediente de aceitar as explicações que lhe dá a família com ar alegre:

- Não se zangue, minha senhora. Eu sei o que são crianças. Este é o mais velho?

- Não, senhor, é o do meio; o mais velho é aquele.

- É muito engraçadinho, e sobretudo muito vivo.

- Muito! O senhor não pode imaginar. Olhe, ainda anteontem...

E lá vem uma história das gracinhas da criança, contada com todos os pormenores.

- Deixe lhe mostrar o mais moço. Este é muito bem criadinho .

~ Ó Chiquinho.

- O que é?

- Vem cá.

- Não vou.

- Vem cá, meu filho.

- Ó home, o que quer comigo?

- Fale aqui com o senhor.

- Não falo.

- Assim é feio, vamos, venha perguntar como ele está.

O pobre homem, que receia alguma indiscrição, procura desculpar o menino do melhor modo possível, e muda o curso da conversa.

Momentos depois está o engraçadinho Chiquinho a brincar-lhe com a corrente do relógio, a pedir-lhe a bengala e a contar-lhe o que jantou naquele dia.

Tais são as crianças.

O chapéu, que lhes cai sob as unhas, fica sem pelo. Quando formam batalhões, brigam sempre por causa do comando. Passados os assomos belicosos, têm aspirações mais modestas, querem ser cocheiros.

Nesses momentos não há para eles posição mais invejável que a daquele que domina uma plataforma de bondes empunhando as guias de duas mulas.

Vamos brincar de escola, dizem às vezes aos companheiros.

Na tal escola o que se arvora de mestre dispensa tudo, menos os bolos.

Se lhes dão a metade de uma fruta, abrem o dique do choro, e reclamam-na inteira.

Quando comem em companhia de outros algum doce, procuram apreciá-lo aos bocadinhos, a fim de que sejam os últimos que fiquem mastigando e possam desta arte fazer inveja aos que deixaram de comer.

Em resumo, as crianças são homenzinhos com todos os defeitos e virtudes dos homens grandes.

Entretanto, ao vê-las resplendentes de beleza e de graça, exclamamos;

– Que anjinhos do céu!

- Que singeleza !

- Que candura!

Fonte:
R. Magalhães Junior. Antologia de humorismo e sátira. RJ: Bloch, 1998.

quarta-feira, 1 de abril de 2020

Varal de Trovas n. 226


Rachel de Queiroz (Manhã na Casa de João Alípio)

    

Antes que o sol dê sinal, dão sinal os passarinhos. Os golas, os cabeças-vermelhas; depois os canários; depois, quase pedindo silêncio, o trocado da graúna.

A cantoria dos passarinhos é que ajuda a despertar. João Alípio se vira na rede, tosse, abre os olhos. A primeira claridade aparece entre a telha-vã. O olhar de João Alípio vai direto ao buraco da telha quebrada, perto do rincão. Pela trigésima vez lembra-se de que precisa trocar aquela telha. Aliás a telha da casa toda não ficou lá grande coisa, muito fraca e areenta. O barro fraco, que ele mesmo ajudou a bater na caieira da represa do açude. Ganhando a diária do homem, claro.

O homem faz questão de que na terra tudo seja dele: — assim, quando o morador vai embora, não tem questão. Pagou pra levantar a casa e barrear a taipa. Podia pagar também as cercas do roçado. Mas isso ele não paga, cada um que se vire. Em terra onde se trabalha de meia, o dono ajuda o morador com as cercas. É a vantagem que a meia tem; mas só o diabo sabe como dói na hora de repartir. Também meeiro não tem sujeição, aquela penitência de três dias por semana trabalhar para a fazenda, ganhando só meio jornal ou pouco mais. A seco. O desconto no jornal é o aluguel da terra, diz o dono, Pelo roçado, pela casa, pelo açude, pela lenha, para criar uns bichinhos. Estará certo? Vai ver não, mas o pobre sempre é quem leva o prejuízo.

Sabe que mais? Quem quiser que conserte o telhado. Deixa o diabo da casa cair. O homem que faça outra, não é o direito dele?

Nessa altura João Alípio já está caqueando o chão com o pé, em procura da “apragata”. Na rede vizinha a mulher se vira, pergunta meio adormecida:

— É você, João? — depois se emborca e volta a dormir, de rosto contra o pano.

João Alípio não tem que mudar de roupa, dormiu com as calças de todo o dia. Já de pé, dá uma espiada no menino menor que ronca, nuzinho, na sua rede do canto, junto à porta; o pai sente um cheiro — safado, molhou de novo!

João Alípio abre a porta da cozinha, tira um caneco d'água no pote e vai para o quintal lavar a cara e a boca. O cachorro magro o acompanha e dá uma corridinha de brincadeira nas galinhas que já estão ciscando. O galo protesta, danado.

Lá fora está frio. Uns esgarçados de névoa sobem do baixio do açude. A barra do dia acabou de clarear, os passarinhos já se dispersaram.

João Alípio pega o facão e uma acha de marmeleiro e repica um facho bem fininho para acender o fogo. Chega ao fogão de barro (que ele mesmo fez e já está selado, pedindo reforma), tira o bocal da lamparina, pinga umas gotas de gás no facho, risca um fósforo, arruma a lenha por cima do facho, vê se levantar estalando a primeira labareda. Aí ele bate na porta da camarinha das meninas e chama Neném, a mais velha, para vir fazer o café. Nessa altura o menino do meio, que dorme no corredor, já está de caneco na mão pedindo garapa. Neném sai do quarto com o cabelo levantado que é um arapuá, dá um croque no menino, toma a bênção ao pai, bota no fogo a lata com a água do café, e sai para o quintal. Logo em seguida aparece Côquinha, a segunda, arrastando o lençol. Côquinha também diz bença pai, pega na lata grande, se enrola no lençol feito uma visagem (já disse que lá fora faz frio) e desce em procura do açude. É ela que enche os potes, toda de manhã. A mulher será a derradeira a se levantar: está no mês de descansar, pesada e cheia de dores, Nossa Senhora do Parto lhe dê uma boa hora.

João Alípio recebe a tigela do café, bebe dum gole, põe-se a picar fumo na mão, enche o cachimbo. Apanha no torno a blusa remendada de ir pro roçado. Sacode os punhos da rede do filho maior, que dorme na sala. O frangote se levanta dum salto, estremunhado, com a cara espantada. Esse não pede bênção a ninguém, é moderno e entusiasmado.

João Alípio pega a enxada no canto, sai ao terreiro, se senta no banco debaixo do pé de jucá. Fica um pouco fumando, espiando Neném que entrou no chiqueiro e se prepara para tirar o leite da cabra.

Afinal ele se levanta, se espreguiça e se põe a caminho do roçado. Vinte passos atrás dele vem o rapaz, calado, emburrado, quase arrastando a enxada. Depois  do rapaz o cachorro.

João Alípio olha o sol, já descoberto. Pensa que é tarde, vai apertando o passo, mas ai se lembra que hoje não é dia de sujeição. Diminui o passo, espera o filho. Hoje vai de seu, que o dia é dele.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

Alberto Isaías Ramires (Baú de Trovas)


A trova boa e perfeita
tem, na sua formação,
um pouco de pensamento,
um pouco de coração.
- - - - - –

Da vida, pelos caminhos,
uma coisa aprendi bem:
a roseira dá espinhos,
mas nos dá rosas, também…
- - - - - –

Falar mal da vida alheia
é coisa que não convém;
quem tem telhado de vidro
não fustiga o de ninguém…
- - - - - –

Juraste que eternamente
minha, só minha, serias.
Mas o teu "eternamente"
não foi além de dois dias...
- - - - - –

Lá se foi a meninice,
meu barquinho do papel,
minha ingênua peraltice,
meu doce Papai Noel...
- - - - - –

Não entendes meu desgosto,
mas aprende esta lição:
nem sempre pomos no rosto
as mágoas do coração.
- - - - - –

Num mundo triste e sisudo,
cheio de ódio e ambição,
do trabalho fiz escudo
e, da honradez, religião!
- - - - - –

O amor começa, meu bem,
num sorriso ou num olhar;
mas, por capricho, também,
assim pode terminar…
- - - - - –

Passam dias, meses, anos...
Quem na vida, nada alcança
deve sempre aos desenganos
antepor uma esperança.
- - - - - –

Por nascer pobre, o Divino
num gesto compensador,
despertou, em meu destino,
a lira de trovador…
- - - - - –

Quando eu morrer, por favor
coloquem na minha cova
um epitáfio de amor
escrito em forma de trova!
- - - - - –

Saudade - um berço vazio,
uma lágrima, uma dor;
coração sentindo frio
longe da chama do amor…
- - - - - –

Semeia por onde fores,
bondade, amor e carinho;
e transformarás em flores
as pedras do teu caminho.
- - - - - –

Sobre o Amor já se tem dito
muita coisa de valor;
mas bem poucos, acredito,
sabem mesmo o que é o Amor!
- - - - - –

Via-a rezando, contrita,
com os olhos fitos no céu.
Quanto pecado escondido
debaixo de um fino véu!...
- - - - - –

Vitória - Ilha do mel
que nos deslumbra e extasia.
Um pedacinho de céu
que é sonho, amor e poesia...

Ruth Guimarães (Artes de Branca-Flor)


 Havia um moço que gostava muito de jogar. Aos conselhos dos mais velhos, costumava dizer que perdia apenas o seu dinheiro e que isto não é muita coisa.

– Perde mais – dizia-lhe o velho pai. – Perde dinheiro, noites de sono, o tempo, a vergonha. E um dia perderá a alma.

O moço ria e continuava frequentando as casas de jogo todas as noites.

Um dia, depois de ter perdido tudo, ao jogar com um sombrio parceiro mal-encarado, não tendo mais o que jogar, ouviu espantado esta proposta:

– Se quiser continuar, eu caso mil escudos com a sua sombra.

– Com o quê?

– Com a sua sombra.

O moço pensou por um momento.

– Ora! A minha sombra não me fará grande falta. Até hoje não me serviu de nada.

Jogou e perdeu.

O parceiro enfiou a sombra num saco e antes de partir, falou:

– Se você quiser reaver o que perdeu, procure por mim na montanha Negra, daqui a um ano e um dia.

Muito perturbado, o moço foi para casa. O pai, que o achou mais sombrio que de costume, falou:

– Que aconteceu?

E o moço não queria contar. Mas não tardou que toda a gente soubesse e reparasse que ele não tinha sombra, que o deixou muito mal visto no povoado, e fazia com que todos o apontassem com o dedo, por onde quer que andasse. Aí ele compreendeu que a sombra fazia muita falta. Ademais o pai lhe dizia:

– Estás vendo? Você perdeu a alma. Era o diabo o seu parceiro. Carregou a sua sombra. Carregou a sua alma. Ah! infeliz.

Apavorado, o moço resolveu procurar a sombra na tal montanha Negra, e pôs-se a caminho.

Chegou à montanha Negra, encontrou a casa do diabo, que era realmente aquele seu mal-encarado parceiro, e pediu-lhe a sombra.

– Ah! Sim, pois não. Dou-a se você plantar uma fila de bananeiras de manhã, e à tarde você colher, nessas mesmas bananeiras, bananas maduras para o jantar.

O moço foi para a roça do diabo, sentou-se num toco e começou a chorar. Avaliava agora a sua pouca sorte, e como o jogo tinha sido a sua perdição.

Ora, o diabo tinha uma filha muito bonita, chamada Branca-Flor. Branca-Flor espiou pelas aberturas do mato o moço sentado no tronco caído e gostou dele. Apareceu-lhe e falou:

– Não tem nada, não. Deite-se aqui no meu colo.

Aninhou a cabeça do moço no colo, pegou a catar-lhe cafuné, a conversar com ele, perguntando muitas coisas, de mansinho, até que ele adormeceu. Então, arredou-lhe a cabeça, plantou as mudas, e se escondeu. Quando o moço acordou, muito assustado, pensando que nada tinha feito, e nas desgraças que iam lhe acontecer, viu as bananeiras plantadas, com os cachos madurinhos pendendo. Muito alegre, apanhou as bananas e levou-as ao patrão. Este não desconfiou, mas a mulher dele, que era mais esperta, disse:

– Isto são artes de Branca-Flor.

No outro dia, quando o moço pediu a sombra, o diabo arranjou outra prova: deu-lhe um saquinho de feijão verde.

– Plante este feijão. Que ele brote e cresça, e feijão para o meu virado até de tarde. Senão…

O moço ainda não tinha voltado bem do espanto pelo que tinha acontecido na véspera. Foi para a roça mais triste e acabrunhado do que antes.

– Hoje eu não escapo.

Sentou no mesmo cepo e começou a chorar. Apareceu-lhe a moça bonita da véspera, aninhou-lhe a cabeça no colo, e começou a catar cafuné no seu cabelo até que ele dormiu.

A tarde, enroscavam-se nas estacas os cipós de feijão, com as vagens granadas, no ponto de colher. Radiante, o moço apanhou os feijões e levou deles uma peneira cheia ao diabo. O diabo aceitou o trabalho, mas a mulher, desconfiada, resmungou:

– Aqui andam artes de Branca-Flor.

No outro dia, mal o moço abriu a boca para falar da sombra, o diabo já falou:

– Atirei um anel no mar. Procure-o e traga-o aqui. Senão…

O moço foi para a praia, e, sentado num montinho de areia, começou a chorar. Apareceu Branca-Flor, chamou um peixinho, pediu-lhe o anel, e logo veio de volta o pequeno mensageiro de rabo de prata, com o anel na boca.

Então, o diabo também começou a desconfiar de tanta habilidade e resolveu matar o moço – com pretexto ou sem ele, e mais a filha que o tinha feito de bobo.

Fez uma cara muito hipócrita, devolveu-lhe a sombra, e falou:

– Pode ir embora amanhã.

Branca-Flor adivinhou tudo e se preveniu.

Pôs na cama do moço e na dela dois potes de barro cheios de vinho. Pegou um punhado de cinzas frias do fogão, um punhado de agulhas da caixa de costura, e um pedaço de sabão de cinza da despensa. Foi muito de mansinho procurar o moço que se sentara a um canto, meditando, e disse:

– Fujamos, que meu pai quer nos matar. Ele tem dois cavalos muito bons: um castanho e um preto. O castanho é rápido como o vento. Vá à cocheira e pegue o outro, que é rápido como o pensamento.

Em seguida, cuspiu três vezes no fogão, deu ao rapaz os embrulhinhos com as agulhas, o sabão e a cinza, para guardar, montaram e fugiram.

Já estavam longe quando repararam que o moço no escuro tinha selado o cavalo errado. Estavam fugindo no cavalo rápido como o vento. Era perigoso voltar, e Branca-Flor resolveu tocar para diante.

– Não faz mal, vamos neste mesmo. Até que papai descubra, estaremos longe.

Entrementes, na casa do diabo, todos se acomodaram. Deitou-se o diabo na sua cama de chamas, como uma salamandra. Deitou-se a mulher. Deitaram-se os diabos e diabinhos. Ficou tudo quieto. Quando nos grandes relógios dos salões silenciosos começaram a soar as badaladas da meia-noite, o diabo ergueu a cabeça do travesseiro e chamou: “Branca-Flor!”

Um cuspo no fogão respondeu:

– Já vou.

O diabo deitou e esperou. Esperou quase uma hora. E então tornou a chamar: “Branca-Flor!”

Outro cuspo respondeu com voz mais fraca:

– Já vou.

Esperou um pouco e chamou pela terceira vez: “Branca-Flor!”

Outro cuspo respondeu com voz mais fraca ainda, como de quem está quase dormindo:

– Já vou.

O diabo deixou passar mais um pouco e tornou a chamar. Ninguém respondeu. Aí ele se levantou, pegou um pau e foi à cama do moço e malhou até que viu escorrer o que julgou ser sangue. Foi à cama da filha e bateu até ouvir o rumor do que parecia ossos quebrando. Voltou para a cama e a mulher perguntou:

– Estão mortos?

– Estão sim. Escorreu sangue.

– Estão mortos mesmo? Você verificou?

– Os ossos estalaram.

A mulher não acreditou e foi ver. E viu: potes quebrados, vinho escorrendo, e nem sinal, nem do moço, nem da moça.

– Fugiram! – gritou.

Descoberto o logro, o diabo correu à cocheira, selou o cavalo preto e saiu atrás deles. Estava quase alcançando os fugitivos, quando Branca-Flor, olhando para trás, avistou a nuvem preta que vinha que vinha.

– Papai vem ai — avisou a moça. – Atire para trás o punhado de cinzas.

O moço assim fez e logo se formou um nevoeiro que baixou tão espesso como uma cortina. Não se enxergava nada. O diabo andou daqui, dali, pererecando, até que conseguiu passar. Quando estava pertinho outra vez, o moço, a mando de Branca-Flor, atirou o sabão. Formou-se um atoleiro de tijuco preto, tão grudento, que o diabo suou para escapar. Saiu dele enfezado, e foi outra vez atrás dos moços. Quando estava quase a alcançá-los pela terceira vez, o moço jogou as agulhas. Formou-se um espinheiro tão cerrado, que o diabo, aí, não teve remédio senão voltar. Chegou ao inferno e encontrou a diaba furiosa.

– Mulher – explicava ele todo atrapalhado. – Eu não pude atravessar o espinheiro…

– Que espinheiro? Que mané espinheiro o quê?! Aquilo era um punhado de agulhas. Se você não fosse tão besta, tinha passado.

O diabo tornou a montar, louco da vida, e foi perseguir os moços de novo.

Branca-Flor olhou para trás e viu a nuvem preta. Vinha que vinha. Ela transformou então o cavalo num lago, os arreios numa barca, o moço num pescador e ela mesma num cisne branco. O diabo chegou ao rio, perguntou ao pescador se tinha visto um moço e uma moça, assim assim, montados num cavalo alazão. O pescador nada respondia. Aí, o diabo, danado com o pouco caso dele, voltou ao inferno. Branca-Flor desmanchou a mágica, montaram de novo e galoparam para a frente, no seu cavalo escuro, rápido como o vento. Mas a mulher do diabo atiçou-o:

– Bobo de uma figa! Não viu que o moço era o barqueiro e Branca-Flor, o cisne branco?

O diabo montou e saiu.

– Desta vez trago aqueles dois de qualquer jeito.

– Melhor matá-los no caminho – insinuou a diaba.

– Ou isso.

Quando chegou ao lugar onde estivera o rio, cadê o rio? Voou ligeiro, pelo espaço, andando pelo mundo todo, em sua procura. Quando Branca-Flor olhou para trás, viu a nuvem preta. Vinha que vinha, feia em cima deles.

Então ela transformou o cavalo e os arreios numa roseira, ela numa rosa vermelha e o moço num beija-flor. O diabo passou, olhou as roseiras e a rosa e o pássaro, nem desconfiou. Correu mundo no seu cavalo veloz como o pensamento e não encontrou ninguém. Voltou ao inferno, e a mulher, assim que o viu, foi logo gritando:

– Bocó! Bocó de fivela! Não viu uma roseira, com uma rosa vermelha?

– Bem bonita disse o diabo.

– Não seja bobo! A rosa era Brança-Flor, e o beija-flor, o moço. Volte e traga os dois!

O diabo foi, mas Branca-Flor, e o moço, e a roseira e o beija-flor, tudo tinha sumido. Lá adiante, passou por uma igreja e o padre estava na porta, puxando a corda do sino:

– Seu Padre! Não viu um moço e uma moça, montados num cavalo alazão?

O padre dizia:

– É hora da missa.

E tocava o sino: – delém, delém…

– Seu Padre, estou perguntando…

– É hora da missa…

Delém, delém, delém.

E o diabo foi para o inferno.

Não adiantou a diaba gritar, ralhar, pintar os canecos com ele.

– Já estou cansado. Não vou mais atrás de ninguém. Vá você.

Branca-Flor e o moço seguiram viagem. Nunca mais que viram a nuvem preta.

– Meu pai desistiu – ela falou. E riu.

Com pouco, chegaram a uma cidade. Ela ficou escondida à beira do caminho, e o moço foi à cidade, procurar trabalho, para depois levá-la com ele. Antes que fosse, Branca-Flor deu-lhe um anel, e disse:

– Não tire este anel do dedo…

– Nunca?

– Nunca. Senão você me esquece.

– Não tiro — o moço prometeu.

E foi embora.

Andou muito pela cidade, perguntando se havia trabalho, até que foi dar na casa de uma família muito rica. Ajustou de trabalhar lá. Logo no primeiro dia, esqueceu a recomendação de Branca-Flor, e tirou o anel para lavar as mãos. No mesmo instante, foi o mesmo que nunca tivesse existido Branca-Flor. Esqueceu-a como esqueceu o diabo, a montanha Negra, o inferno, a perseguição, tudo. Ficou mais de ano na casa. Por fim, namorou uma das moças, filha do patrão, e tratou casamento com ela. E tornou a passar outro ano.

Num mês de maio, muito sereno e claro, ia ser o casamento. Às vezes o moço parava olhando para fora, para as estradas, ou se detinha diante de uma rosa; ou perscrutava o lago, tentando apanhar uma idéia que lhe fugia. Nas vésperas do casamento, apareceu uma moça muito bonita e pediu para fazer os doces do dia.

– Sou doceira como não há igual no mundo.

A cozinheira experimentou o serviço dela, achou que era assim mesmo, como a moça dizia, e ela principiou o trabalho. Fez manjares finos, cocadinhas, furrundum e pé-de-moleque, papo-de-anjo, baba-de-moça, bem-casados, quindim, queijadinha, espera-marido, pudim, bem-bocado, beijinho.

E o bolo. Ah! o bolo. Alto como uma torre, todo branco de neve, e lá em cima a moça botou um casal de bonecos.

Chegou o dia do casamento, e já estavam todos à mesa para o banquete. O noivo e a noiva, nas suas roupas de gala, sentaram-se à cabeceira da mesa. Então a boneca virou-se para o boneco e perguntou:

– Tu não te lembras daquele dia em que meu pai te mandou plantar mudas de bananeiras e eu então te vali?

Os convidados puseram-se a rir. Nunca tinham visto brinquedo tão interessante. Os risos dobraram quando o boneco ensaiou um passo de dança, sacudiu a cabeça e resmungou com voz grossa:

– Não me lembro. Não me lembro.

E a bonequinha, delicadamente, insistia:

– E não te lembras quando meu pai te mandou plantar feijão verde e eu então segunda vez te vali?

– Não me lembro, não me lembro.

– E não te lembras quando meu pai jogou o anel no fundo do mar e eu mandei um peixinho buscar?

– Não me lembro, não me lembro.

– Não te lembras quando meu pai queria nos matar e nós fugimos num cavalo veloz como vento?

– Não me lembro, não me lembro.

– Não te lembras quando viraste um pescador, e eu, um cisne branco?

– Um cisne branco… – murmurou o boneco. – Um cisne branco… Ai! Não me lembro.

– Não te lembras quando viraste um beija-flor e eu, uma rosa vermelha?

– A rosa… – repetiu o boneco, pensativo, com o dedo na testa. – A rosa vermelha. Ai! Não me lembro.

– Não te lembras quando viraste padre e eu a santa que estava no altar?

Nessa hora, o boneco deu um salto e respondeu:

– Já me lembro!

O moço, que estava sentado ao lado da noiva, levantou-se agitado. Lembrara-se de tudo e queria ver a moça que tinha feito os bonecos.

Encontrou-a toda vestida de noiva, casaram-se e foram muito felizes. Houve muito doce, muita música, uma festa de arromba. Eu ia trazer uns doces e repartir com vocês, mas, quando ia passando na ponte, os cachorros do vigário correram atrás de mim e derrubei os doces n’água.

Fonte:
Ruth  Guimarães. Lendas e fábulas do Brasil. 1964.

terça-feira, 31 de março de 2020

Varal de Trovas n. 225


João Batista Leonardo (Um Sábio Disse)


Intrigante conotação nos seres vivos, num mundo mutante onde a analogia se faz marcante, junto ao nascimento, vivência, morte e continuidade. A terra é viva e todos nós vivos fazemos parte do seu ciclo, intrínsecos nos seus desígnios e embrenhados numa correlação, certamente intrigante e interessante à análise.

Um sábio disse, somos iguais a árvore. Temos um princípio no acaso, uma presente vivência e um mesmo fim. As árvores têm raízes fincadas no chão, fundas ou rasas, absorvendo de acordo com o solo abrangente a qualidade dos nutrientes, alimentando e fixando, tanto as resistentes, frondosas ou franzinas. Semelhante a ela, temos raízes fincadas no solo da abrangência luminosa de nossa gema firmamento, onde estão os valores, conceitos e fraquezas; ali nos sustentamos e sugamos os nutrientes físicos e emocionais, forças mantenedoras da continuidade. Quanto mais rico for nosso solo, nossa gema firmamento, tanto mais forte será nossa árvore.

Assim como ela, temos o tronco, variando de tamanho dependendo da árvore praticada. É a parte mais resistente, com ele nos colocamos de pé, resistimos aos ventos, temporais e percalços da vida, produzimos, sustentamos e alimentamos os galhos.

Os galhos são nossos dependentes familiares, profissionais e materiais. Podem ser mais ou menos fortes de acordo com a qualidade dos tempos vividos. Conceito firmado, na formação da família, no valor econômico conseguido, na reputação profissional, primando o mérito na comunidade evidenciado no equilíbrio participativo.

Dos galhos vem a ramagem contendo nossas flores, frutos, sementes e folhas. As flores representam nossas belezas, qualidades, prazeres e o festejo da formação dos frutos. Tanto mais flores, tanto mais frutos, tanto mais belas flores, tanto melhores frutos. Os frutos nos qualificam como produtores, são os resultados da participação efetiva dentro das deliberações tomadas, são os resultados das determinações do arbítrio, são o quinhão de julgamentos. Como na árvore, nossas sementes produzirão descendentes, filhos e netos, firmando nossa continuidade genética.

As folhas nas árvores refletem sua higidez e têm função de relação com o mundo. Nossas folhas mostram nossa aparência e a relação com pessoas, conhecidos, amigos e profissionais. São as que dão o colorido variado nas árvores porque mudam e são mais abundantes. Como na árvore nossas folhas podem ser pessoas novas, velhas, sadias, doentes, bonitas, feias, boas, más, viçosas e secas. Na árvore as folhas são benéficas, passam, envelhecem, caem viram adubo e fortificam o solo.

Assim também as pessoas passam, as amizades acabam, os conhecidos e profissionais desaparecem, porém sempre deixam o adubo de algum ensinamento, fortificando e enriquecendo nosso solo. "A vida seria muito mais produtiva se pudéssemos nascer com a idade de oitenta anos e gradativamente nos aproximar dos dezoito" (Mark Twain - do livro "Life on the Mississipi").

Nem toda árvore floresce e frutifica e nem por isso perde méritos. Vale aqui o pensamento de Henfil, no livro Diretas Já: "Na árvore, se não houver frutos, valeu a beleza das flores; se não houver flores, valeu a sombra das folhas; se não houver folhas, valeu a intenção da semente". Analogamente, tantas pessoas não florescem, não frutificam, não colhem as oportunidades, são dependentes, pendurados na sociedade e carentes; no entanto, têm valor, prestam-se em oferecimento aos que desejam servir.

A árvore que propicia sombra, ar fresco, beleza e frutos, um dia morrerá e ficará por tempo de lembrança na carcaça, até que a terra a absorva virando alimento. Como as árvores, também morremos e nossas raízes, tronco, galhos, ramagem, flores, frutos e folhas, ficarão por algum tempo na mente daqueles componentes de nossas abrangências.

Árvore e homem, uma analogia intrigante, visto o âmago fisiológico dos seres vivos, a importância da vida de relação e a dependência entre si, não obstante, a árvore vive na constância da sua espécie: "A árvore que produz um fruto amargo, se for alimentada com guloseimas e doces não mudará sua natureza; produzirá o mesmo fruto amargo, e nele não saboreará nenhuma doçura" (Abu Shakur, poeta). O homem não, desde o mais amargo, o mais rude, quando lhe oferecido a doçura da compreensão, a esperança e oportunidade, se transforma numa pessoa boa e aceitável. A árvore é imutável, tem tempo e ciclo obrigatório. O homem é mutável, tem arbítrio e com ações transforma os tempos; pode nascer num chão pobre, porém no exercício do esforço e agarrando boas oportunidades enriquece o solo e vira árvore frondosa.

Ainda a árvore nasce, vive, morre e acaba, o corpo humano também, porém a magnânima diferença está na presença da alma junto aos homens, é eterna e perpetuará num outro tempo muito mais frutuoso e abrangente.

Fonte:
João Batista Leonardo Os tempos da esperança à razão. Maringá: Gráfica Primavera, 2008.