quinta-feira, 7 de maio de 2020

Rachel de Queiroz (Neves de Antanho)

    

O homem da repartição pediu um retratinho “cinco por sete’’; quem sabe haveria algum que ainda servisse dentro da velha caixa de fotografias, sobras de outros passaportes! Não, não havia. Só um, manchado e tão feio que nem a necessidade obrigaria a gente a usá-lo.

E, enquanto se procura, vão-se olhando os outros retratos, e no fim se percorre, de um em um, todo o resto da coleção.

Quantos defuntos, meu Deus do Céu, a gente carrega dentro do seu corpo: começa com os anjinhos, de seis meses, de um ano e dois vestidos no camisolão do batizado, nuzinhos de todo ou este trajado de anjo, na túnica azul que é ver mesmo uma mortalha; tirando as asas, podia ir direto pro caixãozinho de cetim —— já está até pintado como se usava enterrar anjo naquele tempo. E esta menininha de cinco anos, com os cachos de cabelo batendo nos ombros, também já existiu, não existe mais. Sou eu não, fui eu. Tão morta e desaparecida quanto se estivesse plantada na terra debaixo de um pé de saudade, E a adolescente de treze, e a moça magra de dezoito, toda pensativa para o fotógrafo, vestido escuro e gola branca, numa simplicidade deliberada que ela supunha “ideológica”. E depois a mulher feita de vinte e três anos já sofreu e está sofrendo , e logo a amargura da mulher de vinte e cinco, e a de trinta anos ressuscitada, e a de quarenta engordando, e a de cinquenta francamente envelhecendo, com a possível e tão difícil dignidade, Serão a mesma pessoa, todas elas? — E serei eu todas elas?

O fato é que de uma em uma elas foram emergindo, tomando o lugar da antiga, mas, nem se firmavam direito, iam forçosamente cedendo o lugar à outra, à mais velha; floriam e murchavam e nem ao menos tinham morte condigna, choradas por parentes e amigos. Desapareceram simplesmente. Foram subutilizadas pela mágica do tempo, substituídas sub-repticiamente como peças de máquina que se trocam. Aumentadas, diminuídas, deformadas, descoloridas, consumidas aos pedacinhos. Boneca de massa mole em mão dura de menina.

Ou — ideia ainda mais sinistra — autofagia, canibalismo. Toda a série de meninas, adolescentes, moças e mulheres devoradas, a mais nova pela mais velha, sucessivamente, até que a morte por sua vez devore a derradeira e acaba a história?

Como compensação se dirá que o corpo muda, mas a alma é a mesma. Mas essa é que é a grande interrogação. Será a mesma?

Ninguém pode dizer se essa menina de olhos grandes sentada aos pés de sua linda mãe terá na verdade a mesma alma da senhora avó que equilibra o neto no joelho. Que é que elas têm em comum? Nem amores, nem quereres, nem preferências, nem entusiasmo. De uma em uma, à medida em que passaram, tiveram os seus pecados — mas uma não pode bater no peito pelos erros da outra ou das outras —, cada uma tinha as suas circunstâncias especiais, suas agravantes e dirimentes.

Nem sequer as lembranças são comuns a todas. Porque as poucas lembranças conservadas em comum são conservadas como histórias que ela sabe, mas não que ela sente. Sentia, sentiu, não sente mais. Ah! Lembranças. Diga a gente o que disser, o passado é substância solúvel, se dilui dentro da vida, escorre pelos buracos do tempo — águas passadas, neves de antanho.

Ah, as aflitivas incursões pela dimensão do tempo. A alma do homem devia limitar suas percepções às simples três dimensões. Bastava que lhes fosse permitido apenas o direito de ir e vir dentro do espaço físico ou geográfico.

Mas a jornada pelo tempo. Essa jornada sem parada nem retorno, cujos marcos únicos são lembranças cada vez mais apagadas, já que as outras testemunhas também caminham, também se transformam, Por que dar ao limitado, ao vulnerável, ao transitório homem, um sentido do tempo — quando ele não tem sobre o tempo nenhum comando — apenas sofre o tempo, sem defesa?

O tempo anda em nós, mas nós não andamos nele. O tempo nos gasta como lixa, nos deforma, nos diminui e nos acrescenta — e sempre maldosa, erradamente.

Aqueles olhos de trinta anos atrás, onde estão os teus olhos reluzentes, rapariga? Hoje, nas mesmas órbitas, vogam apenas dois olhos apagados, diminuídos parece que até a cor deles mudou!

E a alma, a alma? Boa ou ruim, onde está a alma de outrora? A paixão, a violência, a esperança, o desafio. A inocente arrogância. Os amores, os desamores, mudou tudo. Nem a paisagem ficou, para servir de referência. A intrusa de agora renega tudo de dantes — seja corpo, alma ou cenário.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

quarta-feira, 6 de maio de 2020

Varal de Trovas n. 260


Carolina Ramos (O Garotão)


A tarde se esvaía, quando o garotão passou pelo casal de velhos.

Aliás, velho é força de expressão. Todo mundo sabe, ou deveria saber que, velhice, na maioria das vezes, é estado de espírito — há velhos jovens e jovens velhos, tudo dependendo da disposição. No caso, seria mais exato dizer — casal de meia idade, que ainda sabia dividir os encantos vespertinos de uma caminhada a dois.

Pois é, mesmo que a tarde estivesse morrente, havia sol a pino na alma daquele garoto de camiseta ampla, bermudas largas, aba do boné cobrindo a orelha esquerda, tênis sem griffe definida e de cordões desatados.

O jovem diminui o passo ao ultrapassar o par grisalho que, ternamente abraçado, seguia o mesmo rumo.

Jogou a pergunta como quem, de improviso, atira uma bola:

— Vocês gostariam de ser jovens como eu?

Após o instante de surpresa ante a inusitada abordagem, o casal sorriu, aprovando a desenvoltura do rapaz que, embora taludo, andaria aí pelos treze ou catorze anos de idade. Por sinal, fase de transição em que os braços e as pernas crescem tanto quanto o próprio ego e as dificuldades de comunicação com os adultos mais se complicam.

— Claro, que gostaríamos de ser jovens novamente, como não?! — respondeu o caminhante, interpretando também o pensamento da mulher.

O garoto estava com a corda toda. Continuou falando:

— Sabe... no outro dia, eu estava na praia com o meu iguana. Pintou gente assim... pra ver o bichinho! Homens, mulheres, velhos, moços, todos viraram crianças!... Igualzinho ao que aconteceu quando também fui até lá empinar a minha pipa com o emblema do Santos. Era todo o mundo de nariz pra cima, doido por uma puxadinha na linha, pra ver a pipa cabecear, lá no alto, presa pelo cabresto! Legal!

Emendou o assunto:

Na aula de ontem, meu professor de português me deu uma nota vermelha... e eu avisei: — Não quero uma nota vermelha... eu quero é nota azul. Aí, ele me perguntou: — Por quê azul, Rodrigo? E então respondi que vermelho é cor de coisa errada, cor de sangue, cor de guerra, de violência... e azul é a cor mais bonita de todas, senão, o céu não seria azul! — concordam? — O professor entrou na minha, abanou a cabeça, me chamou de poeta e me deu uma nota azul, bonita pra caramba! É isso, a gente tem de lutar pelo que quer!

A esse tempo o garotão já adiantara o passo, distanciando-se, embora não o bastante que lhe impedisse de ouvir o que dizia a emocionada senhora:

— Deus te conserve essa alegria, meu filho!

— Obrigado... Tchau...

O aceno de despedida e lá se foi ele, solto nas suas largas bermudas, trauteando um ritmo qualquer, de bem com a vida e em absoluta paz com a humanidade!

Mais jovens, mais leves, o homem e a mulher de meia idade, acompanharam, com olhos carinhosos, a figura mágica daquele garoto que dobrava a esquina, desaparecendo, feliz, no turbilhão do seu tempo.

As primeiras luzes do Natal, que se avizinhava, principiavam a ser acesas.

Pairou no ar uma certeza marota: — para cumprir sua missão, o velho Noel nem sempre precisa de barbas brancas e pode até se chamar Rodrigo!

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.
Livro enviado pela autora.

Luiz Damo (Trovas do Sul) VIII


Acenamos ao passado
num gesto de despedida,
o amanhã tão cobiçado
nos espera com mais vida.
- - - - - –

A luz do sol no infinito
brilha sem discriminar,
sobre o bom, sobre o maldito,
pois a meta é iluminar.
- - - - - –

A mãe seu filho defende
mesmo antes do nascimento,
quando idosa, mal entende;
por que cai no esquecimento!
- - - - - –

A morte não fora feita
para em pranto se tornar
e a vida pra ser perfeita
deve à morte germinar.
- - - - - –

Ao deixares tua terra
deixa algo na despedida,
uma mensagem sincera
de agradecimento à vida.
- - - - - –

As duras penas impostas
aos de conduta anormal,
talvez sejam as respostas
por ter praticado o mal.
- - - - - –

Castelos são metralhados
durante uma tempestade,
principalmente os telhados
se estilhaçam sem piedade.
- - - - - –

Da janela da existência
vemos o tempo soltar
um grito com insistência:
– Vou pra nunca mais voltar!
- - - - - –

Dentro das prerrogativas
que pela vida são feitas,
tem muitas alternativas,
porém poucas são perfeitas.
- - - - - –

Embora a luz da humildade
não queira nos aquecer,
procuremos na verdade
seu calor para crescer.
- - - - - –

Muita luta e persistência
tal sopro de um vendaval,
varre com tanta insistência
quem lapida o cabedal.
- - - - - –

Nada tem de tão sublime
quanto a beleza da flor,
o seu perfume suprime
o mais intrigante odor.
- - - - - –

Nunca devemos julgar
sob o prisma emocional,
pois podemos condenar,
sem o amparo racional.
- - - - - –

Nunca tente colocar
o carro à frente dos bois,
pra não ter que suportar
uma decepção depois.
- - - - - –

O bom-senso ao ser responde
dentro do senso comum,
mas se vem, não sabe donde
e o leva a lugar nenhum…
- - - - - –

O que a mãe pro filho diz,
é lição alentadora.
Ele, iniciante, aprendiz,
ela eterna educadora.
- - - - - –

Os motoristas peritos
cautelosos e prudentes,
cometem menos delitos
por não serem negligentes.
- - - - - –

Pagando fora do prazo
muito além do vencimento,
pode haver juros do atraso
sem qualquer ressarcimento.
- - - - - –

Para compor uma trova
não tem limite de idade,
nós mesmos somos a prova,
basta criatividade.
- - - - - –

Pedestres e motoristas
devem andar de mãos dadas,
uns no volante, nas pistas,
outros firmes nas calçadas.
- - - - - -

Pequenas luzes dispersas
na vastidão do universo,
guias nas rotas adversas
se o caminho for perverso.
- - - - - –

Quem ama por interesse,
o amor nunca é verdadeiro,
mesmo que se parecesse
não passa de interesseiro.
- - - - - –

Quem cansado à noite deita
de manhã forte levanta
e o dia de luz se enfeita
num brilho que a vida encanta.
- - - - - –

Quem mente lama respira,
nada à verdade condiz
e acreditam ser mentira
aquilo que o falso diz.
- - - - - –

Saiba sempre ler a vida
nas linhas do cotidiano
e assim nunca seja lida
sua morte por engano.
- - - - - -

Sempre o primeiro sintoma
que a doença apresentar,
é como a flor sem aroma
muito prestes a murchar.
- - - - - –

Sobre o leito, o agonizante,
sente a morte se achegar,
sabe que a qualquer instante
seu mundo pode acabar.
- - - - - –

Tanta dor, quanta saudade,
sente aquele que ficou,
de quem foi pra eternidade
e sequer adeus deixou...
- - - - - –

Um grande passo foi dado
na busca do crescimento,
outro, mais acelerado,
visa o desenvolvimento.
- - - - - –

Vagas lembranças gravamos
de um passado tão distante,
trazer às mãos, procuramos,
velhos passos do imigrante.
- - - - - –

Verdes matas da esperança
vastos campos promissores:
tudo temos como herança
dos nossos antecessores.

Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.
Livro enviado pelo autor.

Lygia Fagundes Telles (Um Chá Bem Forte e Três Xícaras)



A borboleta pousou primeiramente na haste de uma folha de roseira que vergou de leve. Em seguida, voou até a rosa e fincou as patas dianteiras na borda das pétalas. Juntou as asas que se colaram palpitantes. Desenrolou a tromba. E inclinando o corpo para a frente, num movimento de seta, afundou a tromba no âmago da flor.

Maria Camila chegou a estender a mão para prendê-la pelas asas. Não completou o gesto. Entrelaçou novamente as mãos no regaço e ficou olhando. Era uma borboleta amarela, com um fino friso negro debruando-lhe as asas.

— Deve ser uma borboleta jovem — disse Maria Camila.

— Jovem? — repetiu a mulher debruçada na janela que dava para o jardim.

— Veja, as asas ainda estão intactas. E está sugando com tamanha força… Haverá tanto suco assim?

— Essa rosa abriu ontem cedo, a senhora lembra? E já está murchando — disse a mulher prendendo com um alfinete a alça do avental.

Maria Camila voltou-se para a janela. Estava sentada numa cadeira de vime, entre os dois canteiros do jardim. No céu azul-claro, as nuvens iam tomando uma coloração rosada. Havia uma poeira de ouro em suspensão no ar.

— Você ainda não pregou essa alça, Matilde?

— Não sei onde o botão foi parar.

— Pegue outro na minha caixa. Mas agora não! — pediu ela ao ver que a empregada já se dispunha a voltar para o interior da casa. Baixou o olhar até a roseira. — A gente vai clareando à medida que envelhece mas as rosas vermelhas vão escurecendo, veja, ela está quase preta.

— E essa borboleta ainda…

— Deixa — atalhou Maria Camila. Uniu as mãos espalmadas no mesmo movimento com que a borboleta unira as asas. Suas mãos tremiam. — Há de ver que a rosa está feliz por ter sido escolhida.

— Mas desse jeito ela vai morrer mais depressa.

— É melhor deixar.

A empregada passou lentamente a ponta do avental no peitoril da janela. Acompanhou com o olhar uma andorinha que cruzou o jardim num voo raso e desapareceu atrás do muro da casa vizinha. Suspirou.

— Acho que essa borboleta já esteve ontem por aqui, a senhora não viu?

Maria Camila concordou com um leve movimento de cabeça. Examinou com espanto as próprias mãos cheias de sardas.

— É a mesma.

— Acostumou — disse a mulher num tom indiferente. Fixou o olhar vadio nos ombros estreitos da patroa. — A senhora não quer que traga o chá?

— Estou esperando a menina.

— Mas a que horas ela ficou de aparecer?

— Às cinco — disse Maria Camila apertando os olhos. Inclinou-se para o relógio-pulseira. E escondeu no regaço as mãos fechadas. — Às cinco em ponto.

Foi emergindo do silêncio da tarde o zunido poderoso de uma abelha. O riso de uma criança explodiu tão próximo que pareceu brotar de dentro do canteiro.

— Essa menina… — E a empregada fez uma pausa para ajustar melhor o pente nos cabelos grisalhos: — Eu conheço?

— Não, não conhece.

— Quantos anos ela tem?

— Uns dezoito.

— Mas então não é menina!

Maria Camila fixou no céu o olhar perplexo. Voltou a examinar o relógio-pulseira. E cruzou os braços tentando dominar o tremor das mãos.

— Desde ontem ela já rondava por aqui. Cismou com essa rosa, tinha que ser essa rosa.

— Trabalhei na casa de um padre que tinha um canteiro só de roseiras brancas. Como duravam aquelas rosas!

Por um breve instante Maria Camila fixou-se de novo na borboleta. Teve uma expressão de repugnância.

— Chega a ser obsceno…

— Mas é sabido que as vermelhas têm mais perfume — prosseguiu a empregada apoiando-se nos cotovelos.

Duas crianças atravessaram a rua aos gritos. A borboleta recolheu precipitadamente a tromba e fugiu num voo atarantado. Uma pétala desprendeu-se da corola e foi pousar na relva. Outra pétala desprendeu-se em seguida e desenhando um giro breve, caiu num tufo de violetas. Maria Camila estendeu as mãos até a corola da flor. Não chegou a tocá-la. Recolheu as mãos e ficou olhando para as veias intumescidas com a mesma expressão com que olhara para a rosa.

— Ela é conhecida do doutor?

— Quem, Matilde?

— Essa moça que vem tomar chá…

— Trabalham juntos — disse Maria Camila passando nervosamente a ponta do dedo sobre a rede de veias. — Ela está fazendo um estágio no laboratório.

— Estágio?

— Sim, estágio.

A mulher ficou pensativa. Pôs-se a coçar o braço.

— E a senhora conhece ela?

— Já vi de longe.

— É bonita?

— Não sei, Matilde, não sei.

— Estágio — repetiu a empregada. — Então é essa que às vezes telefona pra ele.

Alguém iniciou na vizinhança um exercício de piano. O exercício era elementar e tocado sem vontade.

— Deve ser — sussurrou Maria Camila apanhando a pétala que caíra na relva. Levou-a aos lábios que estavam lívidos. — Deve ser.

— Hoje cedo ela telefonou, não perguntei quem era porque o doutor não quer mais que a gente pergunte. Mas reconheci a voz, só podia ser ela.

— São muito amigos. Os velhos, os mais velhos gostam da companhia dos jovens — acrescentou a mulher dilacerando a pétala entre os dedos. Fez um gesto brusco. — Esse menino era melhor no violino, não era?

A empregada fungou, impaciente.

— Nem no violino! A gente ficava com dor de cabeça quando ele começava com aquela atormentação. Diz que a mãe cismou que ele tem que tocar alguma coisa…

— Quem foi que disse?

— A Anita, que trabalha lá. Diz que a mãe fica o dia inteiro atrás dele, dando castigo se ele não estuda. São estrangeiros.

Maria Camila olhou furtivamente o relógio. Abriu e fechou as mãos num movimento exasperado. Manteve-as fechadas.

— Ele tocava melhor violino.

A mulher fez uma careta. E ficou seguindo com o olhar gelado uma adolescente que passava na calçada. Franziu a cara como se enfrentasse o sol.

— Como é que ela se chama? Essa do chá…

O menino interrompeu o exercício. O zunido da abelha voltou mais nítido, fechando o círculo em redor de um único ponto. Maria Camila respirou com esforço.

— Acho que estou gripada.

— Gripada? — E a mulher apoiou o queixo nas mãos. — A senhora está com os olhos inchados. Quer que eu vá buscar uma aspirina?

— Não, não é preciso — disse Maria Camila movendo a cabeça num ritmo fatigado. Encarou a empregada: — Não vai mesmo pregar esse botão? Não vai?

— Mas se não sei dele…

— Pegue um na minha caixa, já disse.

A mulher empertigou-se com solenidade. Passou ainda a ponta do avental na janela, a fisionomia concentrada. Chegou a abrir a boca. E enveredou para o interior da casa.

Maria Camila relaxou a posição tensa. Olhou o relógio, sacudiu a cabeça e fechou com força os olhos cheios de lágrimas. “Que é que eu faço agora?”, murmurou inclinando-se para a rosa. “Eu gostaria que você me dissesse o que é que eu devo fazer!…” Apoiou a nuca no espaldar da cadeira. “Augusto, Augusto, me diga depressa o que é que eu faço! Me diga!…”

A janela abriu-se. A empregada estendeu o braço num gesto digno. A voz saiu sombria.

— Não achei botão igual. Posso pregar este amarelo?

Maria Camila tirou do bolso do casaco o estojo de pó. Examinou-se ao espelho. Consertou as sobrancelhas. Umedeceu com a ponta da língua os lábios ressequidos e fechou o estojo. Ficou com ele apertado entre as mãos. Voltou-se para a janela.

— Pregue esse mesmo.

A mulher vacilava, rodando o botão entre os dedos.

— É o mais parecido que achei.

— Está bem, está bem — repetiu a outra reabrindo o estojo. Passou a esponja em torno dos olhos. Examinou as mãos. — Veja, Matilde, minhas mãos estão ficando da cor da tarde, tudo nesta hora vai ficando rosado…

— O céu parece brasa, que bonito!

— A gente vai ficando rosada também — disse atirando a cabeça para trás. Expôs a face à luz incendiada do crepúsculo. E riu de repente: — Acho a vida tão maravilhosa!

— Maravilhosa?

O menino parou de tocar. Maria Camila ficou alerta, os olhos brilhantes, as narinas acesas. Olhou para o relógio. Falou com energia.

— Assim que a moça chegar, sirva o chá aqui mesmo, faça um chá bem forte. E traga três xícaras.

— Mas se é só a senhora e ela…

— O doutor pode aparecer de surpresa, é quase certo que ele apareça — acrescentou a mulher limpando do vestido os pedaços da pétala dilacerada que ficara por entre as pregas da saia. Levantou-se. Respirava ofegante. — Quero os guardanapos novos, não vá esquecer, hein? Os novos.

Passos ressoaram na calçada. Quando ficaram mais próximos, a empregada pôs-se na ponta dos pés, tentando ver além do muro da casa vizinha:

— Deve ser ela… É ela! — sussurrou excitadamente. — É ela!

Maria Camila levantou a cabeça. E caminhou decidida em direção ao portão.

Fonte:
Lygia Fagundes Telles. Antes do Baile Verde. 1970.

terça-feira, 5 de maio de 2020

Varal de Trovas n. 259


A. A. de Assis (O Menino que Nasceu Voando)


Que pena que a memória é curta e o descapricho é grande. Aconteceu muita coisa importante em Maringá ao longo dos 65 em que aqui estou. Os fatos ficaram na lembrança, porém sem anotações quanto a determinados detalhes.

Por exemplo: a história de um menino que nasceu nas nuvens, dentro de um avião. Nos poucos registros a respeito, a primeira divergência é sobre a data: uns dizem que foi no dia 19 de julho de 1957 (data que me parece mais provável), outros falam em 10 de maio de 1958.

A população ouviu pelo rádio a notícia de que um avião da Vasp estava se aproximando de Maringá trazendo a bordo uma cena de cinema: uma jovem senhora entrara em trabalho de parto e precisou ser socorrida pelas aeromoças, que improvisaram algo parecido com cama no corredor da aeronave. Era um daqueles velhos e valentes Douglas DC-3, bimotor que prestou preciosos serviços aos nossos pioneiros.

Correria louca na cidade: uma ambulância com a sirene aberta abrindo caminho na Avenida Brasil. Radialistas, jornalistas, fotógrafos em disparada para não perder o furo de reportagem (televisão ainda não havia por aqui). Curiosos chegando de carro, de moto, de bicicleta, a pé. De repente o antigo aeroporto Gastão Vidigal foi tomado por uma enorme multidão.

Eu lá no meio, junto com o Manuel Tavares (diretor de “A Tribuna de Maringá”) e o fotógrafo Edgar Taborianski, já ensaiando a bela manchete em oito colunas para a edição do dia seguinte. “O menino que nasceu voando”.

O comandante do avião, bastante emocionado, ia informando ao pessoal de terra (creio que só um rapaz que cuidava do aeroporto), sobre o andamento da emergência. Pedia que a ambulância se postasse perto da pista de pouso e que os médicos e enfermeiras ficassem prontos para um procedimento imediato.

Não deu tempo. O bebê veio à luz dentro da aeronave, antes da aterrissagem, com a corajosa e eficiente ajuda das comissárias de bordo e o aplauso dos passageiros.

A história virou notícia nacional. O menino, que já nasceu famoso, foi registrado e batizado em Maringá, com um nome bem adequado: Miguel Vaspeano. Miguel por haver nascido voando, como um anjo; Vaspeano, como homenagem à Vasp, que lhe serviu de maternidade. Informou-se depois que a direção da empresa considerou tão importante o evento, que estaria até disposta a patrocinar os estudos do garoto até a universidade.

Mas veja como o destino às vezes surpreende. Miguel Vaspeano Lepeco fez carreira como piloto de táxi aéreo, voou durante 25 anos e terminou a biografia do mesmo modo como começou: morreu num acidente de avião, aos 52 anos, nas proximidades de Manaus, no dia 13 de maio de 2010. Ele pilotava o avião Sêneca prefixo PT JUV.

Se não há, deveria haver em Maringá uma Rua Miguel Vaspeano.

(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 16-4-2020)

Fonte:
Crônica enviada pelo autor.

Geraldo Pimenta de Moraes (Poemas Escolhidos)


DOCE INSTANTE...

Quantas vezes se busca pela vida
uma alegria, um bem, uma ventura,
sem nada achar-se, em luta estremecida,
vendo aumentar-se, sempre, a nossa agrura.

E, às vezes, num instante, sem corrida,
sem luta, sem espera e sem loucura,
ditosa e risonha, alma embevecida,
a gente tudo encontra, sem procura.

Que alegria de nós, então, se expande,
com doçura, através de um longo beijo,
num doce instante, que se faz bem grande!

E assim, a gente, em tão feliz ensejo,
recebe, palpitante, alma fagueira,
um Bem, que durar pode a vida inteira!...
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ENQUANTO ALGUNS...

Enquanto alguns batalham, sem temor,
com alma, com fervor e com respeito,
buscando um mundo bom e mais perfeito,
um mundo cheio de pureza e amor...

Enquanto alguns, com valentia e ardor,
se esforçam, procurando dar um jeito
de eliminar do mundo o desrespeito,
de eliminar do mundo a guerra e a dor...

Enquanto alguns, com seu amor profundo,
fraternidade buscam, neste mundo,
sofrendo, embora, todo escárnio e apodo:

– São muitos os que, em gesto furibundo,
buscam, com negro afinco e vil denodo,
fazer do mundo um mar de lama e lodo!
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FRUSTRAÇÃO

Pela vida alongando, um dia, os passos,
parti, confiante, austero e com ardor,
buscando, à minha frente, os róseos laços,
os róseos laços de um sublime amor...

E, em meus caminhos, só tive embaraços,
espinhos encontrando, em vez de flor...
— Fui enfrentando, assim, negros espaços,
negros espaços de tristeza e dor!...

E hoje, cansado, em minha mente, à toa,
eu sinto a imensa angústia, que povoa
toda a distância dos meus tempos idos,..

E a ferir-me a lembrança ainda vive
um punhado de sonhos vãos, perdidos,
do que eu quis ter na vida, mas não tive!
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NEM EM SONHO...

Eu sonhava contigo... Estavas linda!
Eras a santa imagem do pecado,
com atração tão doce, tão infinda,
que até fiquei pateta e deslumbrado.

E assim, eu disse a ti: — Sejas bem-vinda
a mim, que por ti vivo apaixonado!
E, como alguém que sai de uma berlinda,
sorridente, avancei para o teu lado...

E quando, todo amor, todo desejo,
quando faminto e louco por teu beijo,
quando, enfim, eu de ti me aproximei,

no instante do teu beijo então gozar,
não sei por que, meu Deus, eu acordei...
— Nem em sonho eu consigo te beijar!...
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O ZÉ TORRESMO

Era um pobre coitado o Zé Torresmo,
tão caolho, tão magro, tão sem trato,
que acreditava até, vivendo a esmo,
estar sobrando neste mundo ingrato.

Sem ter da vida um gesto bom e grato,
por todos desprezado, o Zé Torresmo,
esboçando na mente o seu retrato,
como que perguntava: — "Existo mesmo?..

Será que a minha vida ao mundo importa?…”
E assim, o Zé Torresmo, alma inocente,
fitava o céu, com sua vista torta,

como a dizer a Deus, humildemente,
num gesto triste, pela dor ferido:
"Perdão, Senhor, por eu haver nascido".
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SONETO SEM FIM...

Um soneto eu tentava, então, fazer,
todo inspirado num sublime rosto,
num lindo rosto, lindo de morrer,
— legítima expressão de encanto e gosto...

E esse rosto, que dava gosto ver,
queria ver num meu soneto posto,
quando acontece, então, me aparecer
o anjo divino — a dona desse rosto...

E eis que esse ente querido, um riso aberto,
de mim se aproximou, olhar esperto,
quando eu já tentava o último terceto...

Trêfega, esbelta, alegre e com meiguice,
"abraça-me, vovô!" — ela me disse,
interrompendo, assim, o meu soneto...
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SUBLIME PERFEIÇÃO...

Dos céus merece, como prêmio, a Palma
do Amor, quem nesta vida enfrenta escolhos,
de alegria vestindo, à beira da alma,
toda angústia que vem de seus refolhos.

E assim agindo, com bondade e calma,
sorrir procura para os seus abrolhos.
E os infernos de dor, que esconde na alma,
vai transformando em céu de amor, nos olhos.

É perfeito e se torna quase um santo,
pois sabe disfarçar seu desencanto,
quem tem gestos assim puros e sábios

de afogar sua angústia, seu desgosto,
dentro do amor a lhe florir no rosto,
com um sorriso a lhe bailar nos lábios!
****************************************

VIBRAÇÃO...

E deixa que minha alma, então contente,
sorrindo vibre, no êxtase do beijo
que, para festa desse meu desejo,
teus lábios hão de dar-me, ardentemente!

Todo o meu ser há de tremer, fremente,
ante o prazer infindo, que antevejo,
e em cujo doce e tão sublime ensejo,
hei de sorrir feliz, gostosamente!

De Cupido no Altar, então faremos
as núpcias desse amor sensacional…
e o grito do prazer, juntos, daremos,

como se fora a prece conjugal...
Enfim, nós ambos, eu e tu, seremos
do mundo inteiro o mais feliz casal!

Fonte:
Aparício Fernandes (org.). Anuário de Poetas do Brasil – Volume 4. Rio de Janeiro: Folha Carioca, 1979.

Irmãos Grimm (O Lobo e a Raposa)


Houve, uma vez, um lobo que tinha em sua companhia a raposa, e a coitada da raposa tinha de fazer tudo o que ele queria, pois era mais fraca, por isso, ficaria muito alegre se pudesse livrar-se de tal patrão.

Certo dia, em que estavam atravessando a floresta, o lobo disse-lhe:

- Pelo ruivo, vê se me arranjas algo para comer, do contrário como-te.

A raposa respondeu:

- Conheço por aqui um sítio no qual há um casal de ovelhinhas. Se desejas, podemos apanhar uma delas.

O lobo gostou da ideia e concordou. Foram até lá e a raposa furtou a ovelhinha, entregou-a ao lobo e afastou-se.

O lobo devorou-a num abrir e fechar de olhos mas não se satisfez, queria comer também a outra e foi buscá-la. Mas foi tão desastrado que a mãe da ovelhinha percebeu-o e desandou a berrar e a balir tão fortemente, que os camponeses vieram correndo. Lá encontraram o lobo e o espancaram, tão rudemente, que o pobre ficou reduzido a lastimável estado. Mancando e uivando, conseguiu arrastar-se para junto da raposa.

- Pregaste-me uma boa peça! - disse ele - Eu quis apanhar o outro cordeirinho e vieram os camponeses, que me encheram de pancadas.

- E tu, - respondeu a raposa - por que és tão guloso?

No dia seguinte, voltaram ao campo e o lobo disse:

- Pelo ruivo, vê se me arranjas qualquer coisa para comer, do contrário como-te.

- Conheço um sitiozinho aqui por perto, cuja dona hoje à tarde vai fazer bolinhos. Se quiseres podemos ir buscar alguns.

Foram até lá e a raposa esgueirou-se em torno da casa, tanto espiou e farejou que conseguiu descobrir o prato, furtou seis bolinhos e levou-os ao lobo.

- Eis aqui o que comer! - disse, e afastou-se para os seus afazeres.

O lobo engoliu os seis bolinhos de uma vez, dizendo:

- Chegam apenas para aumentar a vontade.

Dirigiu-se à casa, puxou o prato logo de uma vez; este caiu e ficou em mil pedaços, fazendo um barulhão dos diabos. A mulher correu para ver o que acontecia e descobriu o lobo, pôs-se a gritar chamando mais gente que, sem dó nem piedade, desandou a espancar o lobo até mais não poder. Este, mancando das duas pernas, saiu gemendo e foi ter com a raposa.

- Que boa peça me pregaste! - gritou choramingando - os camponeses pegaram-me e curtiram-me a pele sem dó nem piedade!

- Mas, - respondeu a raposa - por que és tão guloso?

No terceiro dia, tendo saído juntos, o lobo arrastava-se penosamente, assim mesmo disse:

- Pelo ruivo, vê se me arranjas qualquer coisa para comer, do contrário como-te.

A raposa respondeu:

- Conheço por aqui um homem que matou uma vaca e guardou a carne salgada dentro de um barril, na adega. Vamos buscá-la.

- Sim, - disse o lobo - mas eu quero ir junto contigo para que me ajudes, do contrário não poderei fugir.

- Como quiseres! - disse a raposa.

Foi mostrando-lhe o caminho e as passagens ocultas que por fim os levaram à adega. Havia lá grande quantidade de carne, e o lobo, esfaimado, atirou-se imediatamente a ela, pensando: "Não largarei tão cedo!"

A raposa também comia a valer, mas não deixava de olhar em volta, correndo de quando em quando para o buraco pelo qual haviam entrado a ver se estava ainda bastante delgada para passar por ele. O lobo, intrigado, perguntou-lhe:

- Explica-me, cara raposa, por que é que corres de cá para lá e pulas para dentro e para fora?

- Tenho, naturalmente, de espiar se vem alguém! - respondeu a espertalhona. - Mas aconselho-te a não comer demais.

- Ora, - disse o lobo - não sairei daqui enquanto não esvaziar o barril.

Nesse ponto, o camponês, que ouvira os saltos da raposa, desceu à adega, assim que o viu, a raposa deu um pulo para fora do buraco. O lobo quis fazer o mesmo, mas tanto se empanturrara que seu ventre enorme não conseguiu passar pelo buraco e ficou lá entalado.

Então o camponês pegou um pau e bateu-lhe tanto que o matou. A raposa, porém, fugiu para a floresta, muito feliz por ter-se livrado finalmente daquele glutão.

Fonte:
Contos de Grimm

segunda-feira, 4 de maio de 2020

Varal de Trovas n. 258


Olivaldo Júnior (Meu Reino por um Álcool em Gel!)


(Crônica premiada em 3º Lugar no I Concurso Literário Virtual da ACL – Academia Virtual Contemporânea de Letras – Isolamento Social - Coronavírus)

Toninho era obcecado por sua saúde. Mais especificamente pela falta de saúde da qual poderia ser vítima. Portanto, os amigos o tinham apelidado de “Toninho Drogaria”, pois o cara não saía da farmácia. Era, praticamente, o médico informal da família, o curandeiro-mor da galera, o pajé improvisado da taba, digo, do bairro em que morava. Assim, quando ouviu na tevê que o coronavírus estava de malas prontas para o Brasil, desesperou-se em nível hard.

Baixo, gordo, de cabelos pretos, Toninho era o típico gordinho simpático e, assim que soube do inimigo que o País estava prestes a enfrentar, tratou de se mexer e se informar sobre a origem do perigo, seus sintomas, formas de contágio e táticas de enfrentamento, que, dentre outras, consistia basicamente em evitar abraço, beijo e aperto de mão, assim como lavar as mãos e usar álcool em gel quando as mãos não estiverem propriamente sujas, como proteção.

“Hum... Álcool em gel, eu usava era para acender a churrasqueira...”, pensou com seus botões nosso Toninho. “Preciso estocar esse produto! Vai que... Nunca se sabe!”. Mas o que Toninho não sabia era que, assim como ele, outros brazucas tinham tido essa ideia. A mãe de Toninho, por exemplo, não tinha pensado em estocar álcool, não, mas em estocar comida e produtos de limpeza. Dona Lúcia estava convencida disso. E Toninho só pensava em álcool.

− Mãe, tô saindo para comprar álcool! Quer carona pro mercado?, falou, preocupado, já na porta de casa, para a mãe, que já vinha armada de sacolas, ecobags, em suas mais variadas cores e padronagens, pois a compra seria farta.

− Cê me deixa no Mercado Novo, filho, que eu me viro de voltar de Uber.

− Sussa, mãe. Eu vou comprar todo o álcool que eu puder, hahahahaha!

− De fome, nós num morre, não, filho!

− Nem de falta de álcool, mãe. Eu garanto!

E, ao chegar ao tal mercado, Dona Lúcia, munida de suas bags, viu o que seria chamado de caos, apocalipse, ou fim do mundo, em plena tarde de início de outono. Era um tal de acotovelar o próximo e carregar os carrinhos com tudo o que não fosse imediatamente perecível, a fim de fazer um estoque para a Terceira Guerra Mundial, digo, para a fase de quarentena, que, a julgar por aquelas compras, duraria quarenta meses, ou quarenta “séculos”.

“Acho que eu vou ter trabalho!”, falou para si mesma arregaçando as mangas nossa frágil Dona Lúcia, receosa pelo que aquela simples tarde de compras poderia vir a lhe custar.

Toninho, por sua vez, havia chegado à melhor farmácia da Cidade, a “Beguine Dodói”, que estava tão lotada quanto o mercado. As pessoas estava alucinadas, sem limites.

Assim, ao avistar uma prateleira, no canto esquerdo de quem entra, cheinha de álcool em gel, Toninho se alegrou. Mas, como um filme de Almodóvar, ou algum equivalente, conforme Toninho se aproximava da prateleira, foram surgindo clientes tão afoitos quanto ele em seu caminho, fazendo com que um mero corredor se transformasse num verdadeiro paredão de fuzilamento, num movimento surreal de pessoas que deveriam manter distância.

− Mulheres deveriam ser poupadas dessa fila!, gritou uma senhora, não de idade, mas de roupa de ginástica, toda cheia de si, dondoca dos trópicos.

− E eu, que tenho mais de sessenta?! Quero meu álcool primeiro!, disse o vovô que, com todo o gás que a melhor idade lhe dava, sopapeou dois.

Toninho foi se enervando e, como se fosse um Superman sem capa e sem cueca por cima da calça, com toda a força que um hipocondríaco é capaz de gerar, deu seu “grito do Ipiranga”, seu grito de guerra em busca de paz:

− Um álcool! Um álcool! Meu reino por um álcool em gel!

Shakespeare, nessa hora, se mostrou revitalizado em sua glória, lá no Céu dos Dramaturgos. Uma fala de Ricardo III tinha sido parafraseada por um pobre brasileiro que tudo o que queria era álcool em gel para as mãos.

Tumulto ainda maior. Ninguém demonstrou a menor piedade por ninguém. O alvo era comprar seu frasco de álcool em gel e que se danasse o parceiro.

Dona Lúcia, por sua vez, também se esfalfava ao disputar um saco de arroz com uma vizinha. E, ao contrário de Toninho, Dona Lúcia nem pôde evocar Sir William Shakespeare. 

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Baú de Trovas IX


Mais alegre é o meu destino
e a vida é menos agreste,
pois sinto o gosto divino
do beijo que tu me deste!
APARÍCIO FERNANDES
- - - - - –

Quem tem amor escondido
nas dobras do coração,
pode perder o sentido
mas nunca perde a ilusão.
INÁCIO RAPOSO
- - - - - –

Quando eu penso que tu pensas
que nem sempre penso em ti,
sei então que me dispensas
todo o amor que te pedi.
J. V. PALHARES
- - - - - –

Minha cama, bem macia,
que todo conforto tem,
não tira a melancolia
que sinto sem ver meu bem.
JACINTO LANGÔNI FILHO
- - - - - –

Teu olhar doce e castanho,
brilhando com forte luz,
modelou bem o tamanho
dos braços de minha cruz.
JAYME PAULO FILGUEIRA
- - - - - –

Que importa a distância, o mar,
céu e terra, a Eternidade!
Para nos aproximar,
basta um Sonho e uma Saudade!
JOÃO GUIMARÃES FILHO
- - - - - –

Não levo mágoa da vida
que não me foi deleitosa:
— mesmo com espinhos, Querida,
há algo mais lindo que a rosa?
JORGE AZEVEDO
- - - - - –

Menina de olhos serenos,
que me fitas sem parar,
meus dias são mais amenos
quando estás a me fitar...
JOSÉ ANTONUCCI FILHO
- - - - - –

Nesta vida dolorosa
de quem ama e sofre e espera,
és como a rama da rosa
quando acaba a primavera.
JOSÉ CARLOS PEIXOTO
- - - - - –

Se esses teus olhos falassem...
Se eles pudessem falar...
Talvez jamais enganassem
a quem vivem a enganar.
L. PORCIÚNCULA DE MORAES
- - - - - –

Eu que vivia esta vida
com toda tranqüilidade,
depois de tua partida
fiquei morto de saudade.
JOSÉ LOPES PEREIRA FILHO
- - - - - –

Sem ti não vivo tristonho
nem minha sorte maldigo:
— Pelo milagre do sonho,
eu passo as noites contigo!
JOSÉ LOURENÇO
- - - - - –

Bendigo o amor que sonhei;
e, com os sonhos que fiz,
na vida conseguirei
esquecer-te e ser feliz.
JOSÉ VÍTOR DE PAIVA
- - - - - –

Tão pequena és tu, no entanto,
vê só que contradição:
ocupas o espaço inteiro
de todo o meu coração.
JUCA CHAVES
- - - - - –

Quando tu passas sorrindo,
com o teu sorriso de flor,
minha alma te vai seguindo
como uma sombra de amor.
LAURINDO DE BRITO
- - - - - –

No jardim beijei a rosa,
à penumbra do sol posto,
querendo que a flor mimosa
fosse a rosa do teu rosto.
LÉCIO GOMES DE SOUZA
- - - - - –

Hoje eu vinha te dizer
que o nosso amor acabou.
Chegando perto de ti,
percebi que ele aumentou!...
LÉLIO M. FALCÃO
- - - - - –

Amor é isto, querida,
isto apenas, nada mais:
duas vidas numa vida,
em duas almas iguais!
LEÔNCIO CORREIA
- - - - - –

Quanto mais a vida corre.
mais me convence a razão
que, em verdade, o Amor só morre
quando morre o coração!
LEOPOLDO BRAGA
- - - - - –

Se choro — é tua tristeza
que o meu coração invade.
Rindo — fiz minha riqueza
da tua felicidade!
LEOZINHA F. MAGALHÃES DE ALMEIDA
- - - - - –

Que encanto dá ao teu rosto
a meiguice desse olhar!
Tem ternuras de sol posto,
tem carícias de luar!
LISETTE VILLAR DE LUCENA TACLA
- - - - - –

Mãos de rosa, róseos seios;
em ti, Rosa, tudo é rosa!
Pois até quando te vejo
tenho sonhos cor-de-rosa!
LUCANO DOS REIS
- - - - - –

Pouco te vejo, não minto.
Mas não importa, meu bem:
junto de ti eu me sinto
mais feliz do que ninguém!
LÚCIA MERCEDES CORDEIRO
- - - - - –

Morena, a flor do teu riso
faz meu coração pulsar
— verbena do paraíso,
numa noite de luar!
LUIZ ALVES CORRÊA
- - - - - –

Quero que sejas decente,
para a ninguém iludir:
— Quem diz, de fato, o que sente,
nunca precisa mentir!
MANOEL CABEDA PÉREZ
 - - - - –

Fonte:
Aparício Fernandes. A Trova no Brasil: história e antologia. São Cristovão/RJ: Artenova, 1972.

Aparecido Raimundo de Souza (Microfrases) I


ESSA HISTÓRIA DE ESCREVER contos em microfrases, começou com Ernest Hemingway, autor de “O Sol Também se Levanta”, “Por Quem os Sinos Dobram”, "O Velho e o Mar" e “Adeus às Armas”, entre outros. A ideia central do escritor se baseava em narrar um fato, produzindo um texto, usando apenas seis palavras, como num minimalismo.

Dito de forma mais abrangente: a nossa finalidade foi a de criar frases nos mais diversos temas, deixando que os leitores quebrem a cabeça preenchendo as elipses faltosas, adaptando a imaginação e completando, a maneira de cada entendimento lido, o que o autor quis dizer, por detrás dos períodos aqui apresentados.

Uma microfrase famosa de Hemingway, que aparece em  “Winner  Take Nothing”. ‘NÃO DESCREVA UMA EMOÇÃO. CRIE UMA’. Perceberam? Apenas seis palavras. Nesse tom, trouxemos para nossos amados e queridos leitores, pequenos contos em microfrases empregando, nada mais, nada menos, que até meia dúzia de palavras. Confiram.

1
Desespero
O homem seguia meus passos. Fugi.

2
Gosto apurado
Mamãe amava rosas vermelhas na sala.

3
Divagação
Gosto de olhar para o futuro.

4
A palo seco
Meu caminho é longo. Adoro passear.

5
Fato
Quando você partiu, fiquei com saudade.

6
Real
Olho para tudo e me encanto.

7
Ponto pacífico
Meu espelho reflete a minha alma.

8
Sonho perfeito
Se ela chegasse agora... Eu sorriria...

9
Sem resposta
Qual de nós dois se perdeu?

10
Voraz
E o silêncio calou minha voz.

11
Sem rumo
No compasso dos meus passos, viajei.

12
Multiplicação desenfreada
Fui, retornei mil vezes. Me repeti.


13
Requinte formal
Aqui estou inteiramente nu. Quero você!

14
É fato
Se eu olhar para trás, despencarei.

15
Bucólico
Sonho sonhar mil coisas enquanto durmo.


16
Descoberta
E, de repente, me vi sozinho.

17
Trágico
Olhei em meu derredor. Estava só.

18
Fuga
Quando quero chorar, fico sozinho comigo.


19
Idealização amorosa
Meu amor me beijou. Quase desmaiei...

20
Picar na veia
Meu futuro é incerto. Tenho medo!

21
Retrocesso invulgar
Ah, se pudesse voltar no tempo...!

22
Heteróclito
Gosto de olhar o mar. Rejuvenesço.

23
Ponto final
A sua luz incendeia minha escuridão.

24
Incontestável
Hoje sou você, amanhã nos dois.

25
Bizarro
Se morresse agora, perderia a vida.

26
Súplica
Não pare, não pare! Me ame...

27
Petição
Volta, amor. Venha  correndo... Estou carente...

28
Fim da linha
Corri tanto atrás de você... Cansei!

29
Bagaço
Olha como você me deixou: vazio!

30
Ponto pacífico
Descobri que sou maluco por você!

Fonte:
Texto enviado pelo escritor.

domingo, 3 de maio de 2020

Varal de Trovas n. 257


Rubem Braga (Nascer no Cairo, ser Fêmea de Cupim)


Conhece o vocábulo escardichar? Qual o feminino de cupim? Qual o antônimo de póstumo? Como se chama o natural do Cairo?

O leitor que responder "não sei" a todas estas perguntas não passará provavelmente em nenhuma prova de Português de nenhum concurso oficial. Mas, se isso pode servir de  algum consolo à sua ignorância, receberá um abraço de felicitações deste modesto cronista, seu semelhante e seu irmão.

Porque a verdade é que eu também não sei. Você dirá, meu caro professor de Português, que eu não deveria confessar isso; que é uma vergonha para mim, que vivo de escrever, não conhecer o meu instrumento de trabalho, que é a língua.

Concordo. Confesso que escrevo de palpite, como outras pessoas tocam piano de ouvido. De vez em quando um leitor culto se irrita comigo e me manda um recorte de crônica anotado, apontando erros de Português. Um deles chegou a me passar um telegrama, felicitando-me porque não encontrara, na minha crônica daquele dia, um só erro de Português; acrescentava que eu produzira uma "página de bom  vernáculo,  exemplar". Tive vontade de responder: "Mera coincidência"- mas não o fiz para não entristecer o homem.

Espero que uma velhice tranquila no hospital ou na cadeia, com seus longos ócios me permita um dia estudar com toda calma a nossa língua, e me penitenciar dos abusos que tenho praticado contra a sua pulcritude. (Sabem qual o superlativo de pulcro? Isto eu sei por  acaso: pulquérrimo! Mas não é desanimador saber uma coisa dessas? Que me aconteceria se eu dissesse a uma bela dama: a senhora é pulquérrima? Eu poderia me queixar se o seu marido me descesse a mão?)

Alguém já me escreveu também - que eu sou um escoteiro ao contrário. "Cada dia você parece que tem de praticar a sua má ação – contra a língua." Mas acho que isso é exagero.

Como também é exagero saber o que quer dizer escardichar.  Já estou mais perto dos cinquenta que dos quarenta; vivo de meu trabalho quase sempre honrado, gozo de boa saúde e estou até gordo demais, pensando em meter um regime no organismo - e nunca soube o que fosse escardichar. Espero que nunca, na minha vida, tenha escardichado ninguém; se o fiz, mereço desculpas, pois nunca tive essa intenção.

Vários problemas e algumas mulheres já me tiraram o sono, mas não o feminino de cupim. Morrerei sem saber isso. E o pior é que não quero saber; nego-me terminantemente a saber, e, se o senhor é um desses cavalheiros que sabem qual é o feminino de cupim, tenha a bondade de não me cumprimentar.

Por que exigir essas coisas dos candidatos aos nossos cargos públicos? Por que fazer do estudo da língua portuguesa uma série de alçapões e adivinhas, como essas histórias que  uma pessoa conta para "pegar" as outras? O habitante do Cairo pode ser cairense, cairei, caireta, cairota ou cairiri e a única utilidade de saber qual a palavra certa será para decifrar um problema de palavras cruzadas. Vocês não acham que nossos funcionários públicos já gastam uma parte excessiva do expediente matando palavras cruzadas?

No fundo o que esse tipo de gramático deseja é tornar a língua portuguesa odiosa; não alguma coisa através da qual as pessoas se entendam, mas um instrumento de suplício e de opressão que ele, gramático, aplica sobre nós, os ignaros.

Mas a mim é que não me escardicham assim, sem mais nem menos: não sou fêmea de cupim nem antônimo do póstumo nenhum; e sou cachoeirense, de Cachoeiro, honradamente de Cachoeiro de Itapemirim!

Fonte:
Rubem Braga. Ai  de  Ti, Copacabana. RJ: Ed. do Autor, 1960.

Rita Mourão (Poemas Escolhidos)


CONCEITOS

Bem-aventurado o homem
que  caminha amealhando  sonhos
e bendizendo amanheceres.
Benditos são  aqueles que promovem a paz
e reconhecem a igualdade de todos os SERES!
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CULTIVO


No meu caminho tinha uma pedra,
no  meu caminho tinha um sonho.
Do meu caminho quebrei a pedra,
no  meu caminho fiz um jardim.
Dei corda ao sonho e plantei rosas, plantei jasmins.
Hoje o perfume de cada dia atrai insetos e passarinhos
que  na zoeira dos seus  deveres
tecem  seus  ninhos, cumprem seus lemas.
Do meu caminho quebrei a pedra,
do meu caminho fiz um poema.
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O POETA E A POESIA


Mais nua do que Eva lancei-me à vida.
Vesti-me de palavras, da leitura do  mundo
e  me fiz poeta.
A poesia não pode ser derrotada.
Foi ela quem cantou  a mitologia Grega,
as  liturgias, os salmos e o culto maior a Deus.
É através dela que o poeta  abre  a cancela dos sentimentos,
toca  suas feridas, macera suas dores
e transforma suas lágrimas em versos.
Foi o encanto da poesia que deu ritmo ao universo.
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POR QUE ESCREVO


Escrevo porque a arte define o amor,
escrevo   porque  a poesia me completa.
Poetar é minha oração diária,
se  não escrevo minha alma dói
e  a dor da alma  asfixia.
Na  poesia exercito os meus sentimentos
e faço de cada momento o registro das minhas metas
sem  que eu me sinta exposta.
A vida me consome, quero me  definir
em  palavras, as palavras me editam.
Em meus poemas, me desnudo, me  desbravo
e sem medo deixo fluir meus segredos,
desvarios  de um poeta.
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VERSOS (DI) VERSOS


Foi a ti, que entreguei os meus desertos,
 despi   minha alma  e deixei  que me   habitasses.
Foi para ti que desfiei palavras, teci  sonhos
e me fiz poeta.
Quero beber da tua fonte e me aportar em tuas margens.
Nos teus céus me recolherei como um poente
que  se entrega  aos braços do universo.
Foi para ti que aprendi a fazer versos!
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ARIDEZ


Emprenhada de ilusão vaguei pelo imenso
descampado  das  promessas.
Não houve parto, houve partida.
Caminho e em meu corpo se enrosca
um cheiro de folhas maceradas.
Ou de um vinho, que já deixou de ser generosa oferta.
Desiludida, não busco mais amor,
apenas  me alimento de metáforas.
Sou a anáfora dos meus desertos íntimos,
um  cacto à espera do milagre da chuva.
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CONFISSÃO


Meu corpo se propôs a ser barco
para  navegar  os teus oceanos,
dominar  tuas  enseadas e com  os fios dos meus sonhos,
tecer  uma  rede para  te prender a  mim.
No sem fim dos teus segredos,
sem   medo  quero  ancorar  o meu barco, farto de emoções.
Na concha das tuas curvas saciarei minha sede,
secura  de esperas seculares.
E depois de ti não navegarei outros mares.
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METAMORFOSE

Antes eu sofria de árvore
e cantava o canto delas.
Acompanhava suas floradas,
subia  em seus troncos,
comia  cajus,  pitangas vermelhas
e  me via no espelho do rio.
O rio ladeava, eu ladeava com  ele
pisando  musgos, barrancas encharcadas,
buscando  atalhos.
Hoje sou pedra em lapidação
e sofro de cascalho.

Fonte:
Versos (Di) Versos. Disponível no site de Rita Mourão.
https://versosderita.weebly.com/versos-diversos.html

Sílvio Romero (A Sapa Casada)


(Conto Sergipano)

Uma vez havia um homem que tinha três filhos. O mais velho deles lá num dia foi ao pai e disse:

– "Meu pai, eu já estou moço feito, vossa mercê já está velho, e por isso eu quero ir ganhar a minha vida".

— "Pois bem, meu filho; mas tu o que queres — a minha bênção com pouco dinheiro, ou a minha maldição com muito?"

O moço respondeu:

– "A sua maldição com muito."

Assim foi, e o moço partiu. Depois de andar muitas terras e passando sempre contrariedades, casou-se.

Um ano depois o seu irmão do meio foi ao pai e lhe disse que também queria ir ganhar a sua vida. O pai lhe fez a mesma pergunta que ao primeiro, e o moço respondeu como ele e partiu.

Depois também de muito viajar e sofrer, casou-se.

Daí a um ano o irmão caçula também pediu ao pai para ir ganhar a sua vida. O pai perguntou-lhe se queria a bênção com pouco dinheiro, ou a maldição com muito. O moço quis a bênção, e seguiu caminho.

Depois de andar algum tempo ouviu uma voz muito bonita, estando ele a descansar perto de uma lagoa. O moço ficou muito maravilhado e disse que se casaria com a dona daquela voz, fosse lá ela quem fosse.

De repente ele se viu num palácio muito rico e apareceu-lhe uma sapa para casar com ele. O moço casou-se, mas ficou muito triste.

Ora, passando algum tempo, ele e os irmãos tinham de ir visitar a família, pois isso mesmo tinham contratado com os pais. Num certo dia todos três tinham que se apresentar. Todos tinham que levar presentes mandados por suas mulheres, e o rapaz mais moço, casado com a sapa, andava muito aflito sem ter o que levar. A sapa lhe disse que lhe desse linhas que ela queria aprontar umas rendas para mandar à sogra.

O moço deu uma gargalhada e atirou-lhe as linhas na água. A sapa gritou todo o dia dentro da lagoa, formando muita espuma, e o moço desesperado. Mas, quando foi no dia, apareceu-lhe uma renda tão linda como ele nunca tinha visto. O moço partiu.

Houve muita alegria lá na casa dos pais, e o presente mais bonito foi o levado pelo caçula, pelo que os irmãos ficaram com muita inveja. Despediram-se os moços para voltar para suas casas, e os pais lhes pediram para no dia tal voltarem, levando cada um sua mulher. Aí os dois filhos mais velhos ficaram mais contentes, porque já rosnava por lá que o caçula tinha-se casado com uma sapa.

O mais moço nada disse, e andava em casa muito triste, pensando na vergonha por que ia passar se apresentando com uma sapa por mulher.

Quando foi no dia da viagem a sapa pulou para fora da lagoa com um rancho enorme de sapos e sapinhos, e pôs-se a caminho com o moço, ele a cavalo e ela num carro de boi com seu acompanhamento. O moço ia muito triste.

Chegando à casa do pai, todos se puseram a caçoar da sapa, que não dava o cavaco. Na ocasião do jantar, ela, em vez de comer, escondia a comida no seio, e as cunhadas especialmente se puseram a ridicularizá-la como porca.

De repente a sapa tirou do seio uma porção de flores em que se tinham transformado os bocados de comida e se desencantou numa princesa muito formosa, que serviu de admiração a todos, menos às cunhadas que morreram de paixão e inveja.

Fonte:
Sílvio Romero. Contos Populares do Brasil. RJ: José Olympio, 1954.

sexta-feira, 1 de maio de 2020

Varal de Trovas n. 256


Paulo Mendes Campos (Os Diferentes Estilos)


Parodiando Raymond Queneau, que toma um livro inteiro para descrever de  todos  os  modos  possíveis  um  episódio  corriqueiro, acontecido em um ônibus de Paris, narra-se aqui, em diversas modalidades de estilo, um fato comum da vida carioca, a saber: o corpo de um homem de quarenta anos presumíveis é encontrado de madrugada pelo vigia de uma construção, à margem da Lagoa Rodrigo de Freitas, não existindo sinais de morte violenta.

Estilo interjeitivo - Um cadáver! Encontrado em plena madrugada! Em pleno bairro de  Ipanema! Um homem desconhecido! Coitado! Menos de quarenta anos! Um que morreu quando a cidade acordava! Que pena!

Estilo colorido - Na hora cor-de-rosa da aurora, à margem da cinzenta Lagoa Rodrigo de Freitas, um vigia de cor preta encontrou o cadáver de um homem branco, cabelos louros, olhos azuis, trajando  calça amarela, casaco pardo, sapato marrom, gravata branca com bolinhas azuis. Para este o destino foi negro.

Estilo antimunicipalista - Quando mais um dia de sofrimentos e desmandos nasceu para esta cidade tão mal governada, nas margens imundas, esburacadas e fétidas da Lagoa Rodrigo de Freitas, e em cujos arredores falta água há vários meses, sem falar nas frequentes mortandades de peixes já famosas, o vigia de uma construção (já permitiram, por debaixo do pano, a ignominiosa elevação de gabarito em Ipanema) encontrou o cadáver de um desgraçado morador desta cidade sem policiamento. Como não podia deixar de ser, o corpo ficou ali entregue às moscas que pululam naquele perigoso foco de epidemias. Até quando?

Estilo reacionário - Os moradores da Lagoa Rodrigo de Freitas tiveram na manhã de hoje o profundo desagrado de deparar com o cadáver de um vagabundo que foi logo escolher para morrer (de  bêbado) um  dos bairros mais elegantes desta cidade, como se  já  não  bastasse para enfear aquele local uma sórdida favela que nos envergonha aos olhos dos americanos que nos visitam ou que nos dão a honra de residir no Rio.

Estilo então - Então o vigia de uma construção em Ipanema, não tendo sono, saiu então para passeio de madrugada. Encontrou então o cadáver de um homem. Resolveu então procurar um guarda. Então o guarda veio e tomou então as providências necessárias. Aí então eu resolvi te contar isto.

Estilo áulico - À sobremesa, alguém falou ao Presidente, que na manhã de hoje o cadáver de um homem havia sido encontrado na Lagoa Rodrigo de Freitas. O Presidente exigiu imediatamente que um de seus auxiliares telegrafasse em seu nome à família enlutada. Como lhe informassem que a vítima ainda não fora identificada, S. Ex.a, com o seu estimulante bom humor, alegrou os presentes com uma das suas  apreciadas blagues.

Estilo schmidtiano - Coisa terrível é o encontro com um cadáver desconhecido à margem de um lago triste à luz fria da aurora! Trajava-se com alguma humildade mas seus olhos  eram azuis, olhos para a  festa alegre colorida deste mundo. Era trágico vê-lo morto. Mas ele não estava ali, ingressara para sempre no reino inviolável e escuro da morte,  este rio um pouco profundo caluniado de morte.

Estilo complexo de Édipo -  Onde andará a mãezínha do homem encontrado morto na Lagoa Rodrigo de Freitas? Ela que o amamentou, ela que o embalou em seus braços carinhosos?

Estilo preciosista - No crepúsculo matutino de hoje, quando fulgia solitária e longínqua a  Estrela-d'Alva, o atalaia de uma construção civil, que perambulava insone pela orla Sinuosa e  murmurante de uma lagoa serena, deparou com a atra e lúrida visão de um ignoto e gélido ser humano, já eternamente sem o hausto que vivifica.

Estilo Nélson Rodrigues - Usava gravata  de  bolinhas  azuis  e morreu!

Estilo sem jeito - Eu queria ter o dom da palavra, o gênio de um Rui ou o estro de um Castro Alves, para descrever o que se passou na manhã de hoje. Mas não sei escrever, porque nem todas as pessoas que têm sentimento são capazes de expressar esse sentimento. Mas eu gostaria de deixar, ainda que sem brilho literário, tudo aquilo que senti. Não sei se cabe aqui a palavra sensibilidade. Talvez não caiba. Talvez seja uma  tragédia. Não sei escrever mas o leitor poderá perfeitamente imaginar o que foi isso. Triste, muito triste. Ah. se eu soubesse escrever.

Estilo feminino - Imagine você, Tutsi, que ontem eu fui ao Sacha's, legalíssimo, e dormi tarde. Com o Tony. Pois logo hoje, minha filha, que eu estava exausta e tinha hora  marcada no cabeleireiro, e estava também querendo dar uma passada na costureira, acho mesmo que vou fazer aquele plissadinho, como o da Teresa, o Roberto resolveu me telefonar quando eu estava no melhor do sono. Mas o que era mesmo que eu queria te contar? Ah, menina, quando eu olhei da janela, vi uma coisa horrível, um homem morto lá na beira da Lagoa. Estou tão  nervosa!  Logo eu que tenho horror de gente morta!

Estilo lúdico ou infantil - Na madrugada de hoje por cima, o corpo de um homem por baixo foi encontrado por cima pelo vigia de uma construção por baixo. A vítima por baixo não trazia identificação por cima. Tinha aparentemente por cima a idade de quarenta anos por baixo.

Estilo concretista - Dead dead man man mexe  mexe  Mensch  Mensch MENSCHEIT.

Estilo  didático - Podemos encarar a morte do desconhecido encontrado morto à margem da Lagoa em três aspectos: a) policial; b) humano; e) teológico. Policial: o homem em sociedade; humano: o homem em si mesmo; teológico: o homem em Deus. Polícia e homem: fenômeno; alma  e Deus: epifenômeno. Muito simples, como os senhores veem.

Fonte:
Paulo Mendes Campos. Supermercado. RJ: Tecnoprint, 1976.

Geraldo Pimenta de Moraes (Baú de Trovas)


As lágrimas que hoje choro
hão de secar, meu benzinho,
quando tiver o que imploro:
— O lenço do teu carinho...
- - - - - –

Da roupa e a cara pintada
faz a mulher seus "engodos"...
Mas... é sem roupa, sem nada,
que ela mais agrada a todos...
- - - - - –

Da vida em seu louco afã,
há quem carregue, com calma,
no rosto, a luz da manhã,
lendo a noite dentro da alma.
- - - - - –

De beijar-te não me tolhas…
— Que teus lábios, a rigor,
são duas primeiras folhas
de um doce livro de amor...
- - - - - –

Despedida — adeus dorido
que tanto nos mortifica...
— Sofrimento repartido
entre quem vai e quem fica.
- - - - - –

De você assim tão junto,
conversando os dois, a sós,
eu sinto, por nosso assunto,
quanta distância entre nós...
- - - - - –

Dor mais funda não existe,
mais acerba, mais pungente,
do que a gente viver triste,
com saudade até da gente.
- - - - - –

Esperança — bem que enleva
nossa vida, no presente...
— Um raio de luz na treva
do incerto amanhã da gente.
- - - - - –

É triste quando ela passa,
tão formosa e indiferente,
esbanjando a sua graça,
sem achar graça na gente!
- - - - - –

Existe uma opção na Terra,
em mentes sãs, há mil sóis:
- É melhor nunca haver guerra
do que ser "Berço de Heróis".
- - - - - –

Lágrimas de nós fluindo,
quando enfrentamos abrolhos,
são gotas de dor fugindo
de nossa alma, pelos olhos.
- - - - - –

Luz sublime, que fascina,
desprende-se, em doce brilho,
do olhar, que é força divina,
da mãe que acarinha um filho!
- - - - - –

Mulher bela, indiferente,
como a sorte fugaz:
 - Quanto mais foge da gente,
mais a gente corre atrás...
- - - - - –

Muita vez, fingindo calma,
na vida enfrentando escolhos,
a dor eu a escondo na alma,
de riso enfeitando os olhos.
- - - - - –

Na mãe que canta, embalando
um filhinho, até faz gosto
ver-se tanto amor brincando
na ternura de um só rosto!
- - - - - –

Na solidão, triste, assim,
minha dor é tão intensa,
que eu sinto fugir de mim
a minha própria presença...
- - - - - –

Neste mundo de percalço,
mentira existe tão linda
que se troca um amor falso
por amor mais falso ainda...
- - - - - –

Num velório, a vela acesa,
com chama embora aziaga,
não tem tamanha tristeza
como depois que se apaga.
- - - - - –

O alegre que ri de um triste
deve lembrar-se, no entanto,
no exíguo espaço que existe
entre o riso, a dor e o pranto.
- - - - - –

O Criador, na ânsia extrema
de tornar tudo mais lindo,
fez o Amor — esse poema,
que as almas cantam, sorrindo!
- - - - - –

O meu viver, na verdade,
chego a senti-lo risonho...
Que eu gozo a felicidade
onde ela existe — no sonho...
- - - - - –

Os meus olhos buliçosos,
fitando-te, assim risonhos,
são dois pássaros ansiosos,
buscando um ninho de sonhos...
- - - - - –

O tempo enfrento com gosto,
com paciência, amor e calma...
Se a velhice vem-me ao rosto,
não a deixo entrar-me na alma.
- - - - - –

Quando amor você murmura,
meu bem, me beijando assim,
a minha alma, com ternura,
ri feliz, dentro de mim!...
- - - - - –

Quanta angústia nos invade
na despedida inclemente,
quando a sombra da saudade
passa a ser sombra da gente.
- - - - - –

Quando comigo dançou,
tão embebido eu sonhava
que, quando a orquestra parou,
minha alma ainda dançava…
- - - - - –

Quando padeço um tormento,
da trova eu faço meu pranto.
E assim, ante o sofrimento,
em vez de chorar, eu canto.
- - - - - –

Quando passo por diversos
tormentos, buscando calma,
faço trovas, cujos versos
são retalhos de minha alma.
- - - - - –

Quanto Bem não nos seduz
por trazer contradição...
– Que valor teria a luz
não houvesse a escuridão?...
- - - - - –

Quem nunca sentiu saudade,
com sua angústia e negror,
jamais sentiu, na verdade,
em sua alma, a luz do amor.
- - - - - –

Saudade... rosa envolvente,
de inebriante fragrância,
perfumando a alma da gente,
da roseira da distância...
- - - - - –

Se no tempo eu me mergulho,
com minhas cãs tenho zelos,
chegando a sentir orgulho
da alvura dos meus cabelos.
- - - - - –

Se vendesses teu carinho,
teu carinho que é tão doce,
comprá-lo-ia, inteirinho,
por qualquer preço que fosse...
- - - - - –

Um clarão há que retalha
e enegrece os corações:
— É o que irrompe na batalha,
ao ribombar dos canhões.
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Geraldo Pimenta de Moraes, que eventualmente usava o pseudônimo Gerpimoré, nasceu na cidade de São Sebastião do Paraíso/MG, em 19 de setembro de 1913. Filho de Francisco Pimenta de Moraes e Antonieta Cosmina de Moraes. Vitorioso em diversos concursos de trovas e poesias. Além dos diplomas e medalhas que possui, conquistados em concursos de tremas e poesias — principalmente de trovas. Têm inúmeros trabalhos publicados em jornais e revistas, coletâneas, e através dos concursos já referidos. Pertenceu à Arcádia de Pouso Alegre e à União Brasileira de Trovadores. Militar inativo, capitão do Exército, onde prestou serviços durante 25 anos, conquistando, nesse tempo: Medalha de Bronze (10 anos de bons serviços); Medalha de Prata (20 anos de bons serviços); Medalha de Guerra e Medalha do Pacificador (por haver tomado parte na última Grande Guerra). Residia em São Paulo.
 
Fonte:
Aparício Fernandes (org.). Anuário de Poetas do Brasil – Volume 4. Rio de Janeiro: Folha Carioca, 1979.

Carlos Drummond de Andrade (A Fugitiva)


A última bomba H estava irredutível. De modo algum abandonaria o seu refúgio lodoso, a 750 metros de profundidade, no Mediterrâneo.

- Não faça isso com a gente - suplicavam-lhe três mil oficiais, técnicos, mergulhadores, marinheiros e praças, empenhados  há  quase  90 dias em sua recuperação, e que por fim a localizaram naquele fundo de mar, bem encolhida, bem desiludida.

- Daqui vocês não me tiram - respondeu-lhes a bomba. - O primeiro que me tocar, eu  explodo. Talvez este tempo de verbo não exista, mas pouco estou ligando à gramática de vocês. À gramática e ao resto. Estou farta! Farta!

Os expedicionários insistiam. Aquele domicílio era  impróprio para ela; não ficava bem a uma bomba nuclear, talhada para altas missões, dormir no fundo das águas, que nem peixe fugindo à caçada submarina. Que desmoralização para um artefato de 20  megatons! Era em seu próprio benefício que a estavam querendo tirar dali.

- Hmmm - resmungou a bomba, sem se deixar convencer.

- Vamos. Suas companheiras de viagem caíram em terra, não deram trabalho. Foram logo recolhidas, e até agradeceram nossa solicitude em reavê-las. Uma bomba normal gosta de voar, voar sempre sobre a terra inteira, divertindo-se com o turismo aéreo nos bombardeiros. Não é para destruir nada, nem sequer para assustar ninguém, pois vocês  viajam incógnitas. É por  prazer. E você recusa esse prazer que nós lhe oferecemos?

- Prazer! Prazer! Que prazer sente uma bomba em não explodir? Afinal, que fizeram as colegas em território espanhol?

- Coisinha à-toa. Apenas contaminaram as plantações em torno de Palomares, mas nós indenizamos os lavradores. Não queremos que nossas bombas dêem prejuízo a ninguém.  Uns pobres-diabos até ficaram radiantes: há muito tempo que não viam dinheiro, e dólar, jamais.

- Quantos mortos?

- Fora os tripulantes dos aviões que se chocaram, nenhum. Você mesma, aí dentro d'água, não assusta o pessoal. Nosso embaixador em Madri e o Ministro do Turismo da Espanha vieram tomar banho lá em cima, para provar que você não é de nada. Venha, já está ficando tarde.

- Estão vendo? Eu não sou de nada! Nenhuma bomba é de nada! Para que foi, então, que nos fizeram?

Como ninguém respondesse, ela continuou:

- Vocês, ao nos criarem, não deram somente uma nova  angústia à humanidade. A nós também nos rechearam de angústia. Ficamos ansiosas por explodir - e nada. É hoje, é  amanhã, e nunca se resolve. Acabamos ficando mais angustiadas do que as populações que se angustiam por nossa causa. E vocês fazem disso um jogo, vocês e os outros.  Estávamos com grandes esperanças no Vietnã, mas qual o quê. Vamos envelhecendo, outros engenhos nos passam para trás, amanhã a Lua será ocupada e equipada com armas fantásticas, astros e planetas entrarão no brinquedo, e nós apodrecendo por aí, sem uso, sem  préstimo.  Por  isso  aproveitei  o desastre de avião, e caí fora. Quero me livrar dos homens.

Falando, falando, deslocou-se entre as rochas, para melhor esconder-se. A turma aproveitou o movimento e fisgou-a, alçando-a à superfície, sob protesto. Esta não escapa à  sorte de voar sobre a Terra. Depois de recondicionada.

Nem elas escapam.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Caminhos de João Brandão. RJ: José Olympio, 1976.