sexta-feira, 22 de maio de 2020

Carlos Drummond de Andrade (Boneca Triste)


Galeria Stvdivs, em Laranjeiras. Hora quase sem movimento. Entra um senhor de cabelos grisalhos e percorre lentamente a exposição de bonecas do século XIX. Para mais tempo diante da peça no 14, examinando-a com atenção. Fala sozinho:

— Deve ser essa.

Faz um gesto de carinho no ar, como se tivesse a boneca no colo, e repete:

— Tenho quase certeza de que é essa.

Passeia os olhos em redor, à procura de alguém. Aproxima-se uma jovem, que pergunta:

— O senhor deseja alguma coisa?

— Desejo sim. Pode me informar se essa boneca anda?

— Pois não. Embora não tenha pernas articuladas, ela anda. E tem choro.

— Choro? Tem certeza de que ela chora, em vez de rir?

— Olhe, cavalheiro, nunca vi boneca dando risada. E esta não é a única chorona da coleção, veja bem. A de no 7, do fabricante alemão Handwerk, também tem choro, se o senhor puxar o fio.

— A vida é dura também para as bonecas, eu sei. Pois olhe, estava quase jurando que esta ria. Não estrondosamente, é claro, mas ria. É tão parecida, se não for a mesma.

— Parecida com qual?

— Com outra do mesmo tipo, mesmos cabelos, que comprei há muitos anos numa loja de antiguidades da rua Chile. A loja do Marques dos Santos, lembra-se?

— Acho que não sou desse tempo… O professor Marques dos Santos, é?

— Ele mesmo. Uma boneca francesa como essa aí, com assinatura incompleta.

— Essa também tem assinatura incompleta: Paris 501.

— Então é a mesma!

— Perdão, esta pertence a d. Sylvie Renault, e veio diretamente da Europa.

— A senhorita garante que veio diretamente?

— É o que está na ficha. Não há razão para duvidar.

— Não estou duvidando. Estou procurando me esclarecer.

— Desculpe, mas que interesse tem o senhor nisso?

— A senhorita vai zombar de mim se eu lhe disser.

— Absolutamente. Pode falar à vontade.

— A senhorita acredita… na alma das bonecas?

— Hem?

— Eu não disse que ia zombar? Estou vendo pelo seu sorriso.

— Bem, achei a pergunta engraçada, mas não tive intenção de zombaria.

— Todos acham a pergunta engraçada. Por isso mesmo eu não a faço mais a ninguém. Agora, no meio de tantas bonecas, e vendo o seu interesse em me ser útil, eu me animei… Desculpe, estamos conversados.

— Não. Continue. Fale na alma.

— Das bonecas? Aquela a que me refiro tinha alma, uma alma especial, própria de boneca, isso tinha.

— O senhor a comprou para sua filha, ou era colecionador?

— Nunca tive filha e nunca fui colecionador de nada.

— E então?

— Então, comprei a boneca exatamente porque não tinha filha nem filho. E também porque ela me pediu que a levasse.

— A boneca? Pediu de que maneira?

— Senti que ela me pedia, menos pelos olhos, que se moviam docemente, sem parecer mecânicos, do que pelo ar, entende? Ar muito especial, de esperança, de desejo triste. Acha que estou mentindo?

— Eu não disse nada.

— Não disse, mas está achando. É natural. Todos acham. Mas senti que a boneca precisava de mim, como eu, de repente, comecei a precisar dela. Levei-a para casa, minha mulher achou ridículo, fez uma cena.

— Por tão pouco.

— A partir daí, não nos entendemos mais, eu e minha mulher. Tentei convencê-la de que a boneca devia nos aproximar, em vez de nos dividir. Que era uma espécie de filha, representando a que não tivemos. E como filha a tratei sempre, o que mais irritava minha mulher, incapaz de nos compreender, a mim e à boneca.

— Estou imaginando as consequências.

— Bem, acabou em separação e desquite.

— O senhor ficou com a boneca.

— Eu tinha que ficar com ela, não havia outra solução. Passou a ser para mim um resumo da filha que não nasceu, da mulher que foi embora, das mulheres em geral. Sentia amor e respeito, amor e devoção. E a pobrezinha chorava.

— Mas isso não é comum nas bonecas?

— Nela era diferente. Era choro humano, e chorava por mim. O choro me impressionava, me doía. Eu não a fizera feliz. Comecei a reeducá-la. Levei-a a passeio, viajei, viajamos. Queria ensiná-la a sorrir. Custou, mas consegui. Esse dia foi uma festa, pulei e cantei de felicidade. Daí por diante, ela parecia outra. Sorria, ria, não estou mentindo não, que interesse tenho em mentir? Vivemos felizes algumas semanas, as mais belas de minha vida. Até que um dia…

— Um dia…?

— Ela também foi embora. Com seus próprios pés, com suas pernas desarticuladas.

— Furtada, talvez.

— Não houve furto. Nenhum sinal de ladrão. O apartamento, rigorosamente fechado. Fugiu. Tenho certeza que fugiu, talvez porque só ficara alegre para me contentar, e era uma boneca que não fora feita, melhor, que não nascera para ser alegre.

Fez uma pausa. Olhou uma última vez para a boneca no 14:

— Procurei-a por toda parte. Como ia achar uma boneca fugida no Rio de Janeiro? Hoje, lendo a notícia desta exposição, vim aqui espiar, reparar. Pensei que fosse aquela. Não é. Muito obrigado, senhorita. Nunca se encontra uma boneca fugida, cuja natureza tentamos modificar.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas.

V Concurso de Trovas de Cachoeira do Sul/RS (Prazo: 31 de Agosto)


REGULAMENTO

1– O V Concurso de Trovas de Cachoeira do Sul, promovido e realizado pela União Brasileira de Trovadores, Seção de Cachoeira do Sul, obedecerá a seguinte regulamentação:

2 – Para efeito deste concurso, entende-se por TROVA a  composição poética (poema) de quatros versos (linhas) setissilábicos, rimando o 1° com o 3° e o 2° com o 4°, expressando um sentido completo.

3 – TEMA ÚNICO: MÁRIO QUINTANA 

Trovas líricas e/ou filosóficas (não há necessidade de a palavra-tema aparecer na trova). Para autores residentes no Brasil e no exterior, assim como no Estado do Rio Grande do Sul e também para NOVOS TROVADORES.

4 – Formas de remessa;

A) Via Correio; as trovas deverão ser remetidas pelo sistema de envelopes para o seguinte endereço:

Rua Araújo de POA, 1204 - B - Santa Helena
Cachoeira do Sul – RS. CEP: 96 503 – 460 e

B) Via e-mail:

Fiel Depositária: Jaqueline Machado

tudoepossivelw7@gmail.com


As trovas deverão ser remetidas preferencialmente por e-mail para Jaqueline Machado.

5 – Abaixo da trova o autor deverá colocar sempre a CATEGORIA a que concorre: Nacional\Internacional, Estadual, Novos Trovadores Estadual e Novos trovadores Nacional. 

6 – Prazo para remessa: 31.08.20

7 – Cada autor poderá concorrer somente com UMA (1) trova.

8 – Os vitoriosos receberão diplomas virtuais com as trovas classificadas.

9 – O corpo de jurados será formado por trovadores de reconhecido valor literário, já premiados em diversos concursos, indicados pela entidade promotora do evento.

10 – Os casos omissos serão resolvidos pela diretoria da entidade promotora do evento.

Cachoeira do Sul. Maio de 2020.
JAQUELINE MACHADO
Presidente da UBT Seção de Cachoeira do Sul

Fonte:
Regulamento enviado por Jaqueline Machado

quinta-feira, 21 de maio de 2020

Varal de Trovas n. 273


Scyla Bertoja (Meias Trocadas)


Não quero ser a primeira. Finjo dormir. Nos últimos cinco anos já aprendi alguns truques. Aquelas vozes rasgadas, agudas, incultas, Invadem o quarto, circundam as camas. Moldura sonora dos nossos pesadelos noturnos, a gritaria precede o abrir de cortinas e persianas, derramando claridade em nossos olhos ainda colados. Em seguida braços fortes e mãos geladas, quase sempre úmidas, nos agarram e nos levam meio arrastadas, para o banheiro. Às vezes, para adiantar serviço, duas de nós ao mesmo tempo. Fraldas molhadas ou até pior, cheiramos mal e o sentimento é de vergonha, constrangimento. Por isso, e não por preguiça, como querem alguns, seguimos reclamando  pelo corredor, o que não chega a comover as pessoas que nos amparam. Depois, à medida que somos lavadas, enxugadas e vestidas com roupas limpas e secas, vamos reconquistando a sensação de sermos, outra vez, humanas. Penso que aquelas que já perderam a consciência são mais felizes, pois não demonstram alguma repulsa em relação a seus corpos e parecem desconhecer a desagradável sensação ao acordar, indiferentes à humilhação e ao ridículo. Raramente opõem resistência aos modos bruscos de alguma atendente mais grosseira. Mas há sempre uma ou duas que não querem sair. Silenciam tão logo são colocadas embaixo do chuveiro, esboçando até, por vezes, um arremedo de sorriso idiotizado, senil. Braço rígido, mão em garra, aquele andar de cãozinho atropelado, o medo e a insegurança das cegas, são coisas normais na casa. Ninguém mais usa óculos. De nada serviria. Acho que a visão de algumas delas se compara à "Aurora no Castelo Norham", tela pintada por Turner, de concepção quase abstrata, que tem como tema uma mansão sobre o rio Tweed. Conheci uma reprodução da obra no consultório do médico que me operou pela primeira vez. Lindíssima. Mas não permite individualizar absolutamente nada.

O desfile matinal não é exatamente um espetáculo de grande elegância. Portadoras de todo tipo de deficiências, elas vão sendo acomodadas à mesa do café, com respeito e até carinho, pelas funcionárias, com direito a cafuné, afago nas costas, no rosto ou nas mãozinhas enrugadas e manchadas pelo tempo. As cabeças vão do grisalho ao branco amarelado. Apesar do ambiente em que vivo, meu conhecimento sobre doenças é parco. Mas da idade eu sei. Fico atenta ao modo como emagrecem rapidamente, mesmo alimentando-se com frequência e em abundância. Ficam enrijecidas e movimentam-se com dificuldade. Ao falar, confundem os sons e produzem discursos ininteligíveis. No entanto, parecem saber o que estão tentando dizer. Em seguida esquecem tudo. Algumas delas demonstram uma espécie de dualidade. Dão respostas claras e lúcidas, emitem sua vontade, mas, ao relatar algum episódio de suas vidas, agregam histórias que não aconteceram na realidade - fabulação. Segundo ouvi dizer, é somente para preencher, no cérebro, os espaços que não podem ficar vazios.

Minhas companheiras, com raras exceções, foram esposas, mães, trabalhadoras, artistas, durante o período mais produtivo de suas vidas. No entanto, a doença e a idade a todos nivelam. Os processos degenerativos não respeitam diplomas, títulos honoríficos, contas bancárias. Tampouco histórias de dedicação e capacidade de trabalho.

Chega a minha vez. A humilhação de depender dos outros para exercer os mais simples atos da vida já seria suficiente para desesperar, mas não fica por aí. Sirvo também de galhofa para as jovens que me garantem esse mínimo de dignidade que é andar limpa, razoavelmente vestida e alimentada. Riem do meu corpo mal feito e dão apelidos chulos às minhas partes pudendas.    Poderiam evitar mencioná-las em seu linguajar rasteiro. Mas se comprazem ao ver-me irritada. Aquém me devo queixar? Serei bem tratada após receberem as reprimendas de seus patrões? Ou serei alvo de uma perseguição corporativa?

Tenho tentado parecer indiferente - sem grande sucesso - ou argumentar diretamente com meus anjos da guarda. Elas são profissionalmente qualificadas, mas nem todas trazem de suas famílias a educação e a sensibilidade necessárias ao entendimento da nossa situação. Um dia ouvi um comentário assim: "Minha bisavó também teve esses problemas e ficou em nossa casa até morrer, e nunca incomodou ninguém". Fiquei pensando e cheguei à conclusão de que há coisas que não podem ser compradas.

Morando neste lugar, às vezes lembro do canil onde costumava deixar Tolstói quando viajava por alguns dias. O veterinário estava lá diariamente. As instalações eram muito limpas e tudo era adequado ao gosto e à necessidade dos cães para evitar o estresse. Meu poodle branco adorava ficar lá. Somente o meu retorno era melhor do que aquele ambiente.

Na sala de música, enquanto espero para colocar os fones e deliciar-me com a Quinta Sinfonia de Beethoven, uma colega, inconformada, conta que, às vezes, observando os próprios pés, não reconhece as meias. Tem certeza de que não são suas.

Sou invadida por sentimentos de revolta e impotência, coloco os fones e levanto o volume para conseguir abafar o grito que me habita o peito há muitos anos. A falta de tato da companheira me parece pior que o meu preconceito. A ignorância dela me atingiu profundamente. Como pode queixar-se das meias para alguém que não possui as pernas?

Fonte:
Rozelia Scheifler Rasia, Alba Pires Ferreira, Ilda Maria Costa Brasil (org.). Coletânea Enigmas. Porto Alegre/RS: Alternativa, 2012.

Isabel Furini (Poemas Infantis)


A CARTOLA DO MÁGICO

Perto da cidade havia um lago.
Perto do lago
morava um mágico.

O mágico tinha uma cartola,
a cartola estava guardada
em uma pequena gaiola.

Cartola de mágico, voa.
Essa cartola gostava do lago
e de navegar em uma canoa.

A cartola decidiu sair.
Ela era muito esperta
e contou uma mentirinha.

Reclamou que doía a aba,
pois fazia muito tempo
que ela não voava.

O mágico a deixou sair
e a cartola ficou
livre e muito feliz.

O mágico e a cartola
sempre se apresentavam
em hospitais e em escolas.

Riam felizes as crianças,
pois o mágico e a cartola
semeavam esperança.
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A MEDUSA, A ESTRELA  E A BLUSA


O sonho da Medusa
é ser muito elegante.
Ela abre o seu guarda-roupa,
Mas fica muito confusa.

Pergunta-se a Medusa:
Qual será a melhor blusa
Para passear com a Estrela
Que está sempre alegre e bela?

Confusa dona Medusa,
Pede conselho ao Camarão.
E o sábio Camarão fala:
- Em qualquer ocasião, o melhor
É escolher com o coração.
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O BARQUINHO MEDROSO


O pai o observa e fala:
Cuidado com o vendaval!
O barquinho fica assustado
E começa a chorar.
Buuaaaaa! Buuaaaaa!

O pai o consola.
Aconselha voltar à praia
O barquinho  quase desmaia
Era o seu primeiro vendaval!

O pai o incentiva:
Lute! Você pode navegar.
O barquinho volta para a praia
E na areia encalha.

Estou salvo! Estou salvo! –
Grita o barquinho encalhado,
E um pequeno caranguejo
Fala: - Nesse barco eu embarco.

O barquinho e o caranguejo
Esperam a tempestade passar.
Mais tarde, o papai barco observa
O barquinho e o caranguejo
Navegar e dançar.
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O CHOCOLATE, O ABACATE E O TOMATE


O abacate e o tomate
Sentem ciúme, muito ciúme
Porque todas as crianças
Preferem o chocolate

O tomate, muito zangado,
Grita que o chocolate
Só faz aumentar a pança

E o abacate esclarece:
Comer muito chocolate
Faz temer a balança!

O chocolate já sabe
Que ele está na liderança
Mas fica muito acanhado

Com calma ele argumenta
Pra que a vida seja sadia
As crianças ele orienta:

- É bom comer com temperança
Um pouquinho a cada dia
Evitando a comilança.
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O CONCURSO MUSICAL


Foi um concurso trabalhoso,
difícil a decisão!
O jurado duvidava
e as cabeças giravam,
como um antigo pião.

O mais musical é o barco
faz Tchiuuumm … Tchiuumm ...
Não! - gritava outro jurado -
O mais musical é o avião!
Seu som faz lembrar o rojão.

Slam! Blam! Faz a porta
do avião quando é fechada.
Brrrr trommm! Brrr trommm!
Faz o avião na tempestade.

- E você, jurado Zecão?
- Eu voto no caminhão.
Seus motores fazem ruídos
que estremecem o coração.
Brooommm!! Brooommm!!

E o trem? Esqueceram do trem?
Porque a meu ver,
o mais musical do mundo
é o apito do trem!
Piuíííííííí! Piuíííííííí! Piuíííííííí!

Assim as horas passavam
sem nenhuma conclusão,
até que um jurado zangado
acaba com aquela indecisão:
- Todos estão empatados!
Gritou com voz de tenor.

E saíram todos cantando
felizes com a competição.
Seguiam o trem e o caminhão
ao lado do barco e do avião.
E cada um deles dizia:
“Eu sou um grande campeão”.
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O OVO DE PÁSCOA


Um ovinho da Páscoa
o bicho-preguiça encontrou.
Ele tentou comer o ovinho,
mas a tartaruga não deixou.

- Esse não é ovo de Páscoa
seu bichinho danado!
Esse ovo é o meu filho,
meu filhinho muito amado.

- Desculpe-me, mas eu sou míope...
pergunte ao jacaré,
uma vez mordi a sua cauda
pensando que era o meu pé.

Riu muito a tartaruga
e se mexeram suas rugas.
Depois ela falou:
- Eu vou dar meu ovo de Páscoa
que um coelho branco me deu.

Esse coelho é muito querido
e presenteia com ovos coloridos.
São ovos de chocolate
pintados com polpa de abacate.

Fonte:
Blog da Poetisa

Aparecido Raimundo de Souza (Provocado)


ANJOLINO ENTROU NA LOJA DE DEPARTAMENTOS...

... pisando forte, como quem penetra autoritário, na própria casa, carregando, com ambas as mãos, uma caixa enorme contendo um aparelho de som que havia comprado no dia anterior. Procurou pela jovem simpática que o atendeu, mas não a viu em parte alguma. Uma vendedora se aproximou solícita, sorriso aberto de canto a canto no rosto.

– Pois não, senhor? Posso ajudá-lo?

– Procuro pela vendedora Solimar.

– Que pena! A senhorita Solimar está em horário de almoço. Posso lhe ser útil?

– De repente... É o seguinte: Como é seu nome?

– Bonifácia...

–... Pois, então, Bonifácia. Comprei aqui, ontem, este aparelho de som e fui direto para casa. Era aniversário de minha filha e queria fazer surpresa. Acontece que na hora de ligar, nada.

– O senhor ligou corretamente?

– Corretamente.

– Chegou a ler o manual?

– De cabo a rabo.

– Que defeito ele apresentou?

– O Manual?

– Não, senhor. O aparelho.

– Simplesmente não quis funcionar.

– O senhor usou alguma tomada suspeita?

– Se você me explicar o que é uma tomada suspeita...

– Chamamos de tomada suspeita aquela não conectada aos padrões normais. Fios soltos, gatos, ou terminais que suportam acúmulos de aparelhos ligados ao mesmo tempo, como geladeira, fogão, forno de micro-ondas, ventilador, carregador de celular, computador...

– Já entendi. A tomada está dentro das especificações corretas.

– Faça o favor de aguardar um segundo. Vou ver com meu gerente.

Bonifácia voltou trinta minutos depois (o equivalente a um segundo no relógio dela) com um rapaz mediano de estatura, cara escanhoada e redonda, cabelo partido ao meio. Parecia um filho de cruz credo desmamado.

– Pois não, senhor?

– Qual sua graça?

– Gervásio Patuá, as suas ordens. Sou o gerente.

– Perfeito, seu Gervásio. Como falei com a Bonifácia, comprei aqui, ontem, este aparelho e fui direto para casa. Era aniversário de minha filha e queria fazer surpresa. Na hora de ligar, nada.

– Entendo! O senhor ligou corretamente?

– Acabei de explicar tudo a sua funcionária.

– Ok. Sua rede é 110 ou 220?

– 110.

– O senhor chegou a ler o manual?

– De cabo a rabo.

– Qual a vendedora que o atendeu?

– Uma tal de Solimar.

– Sei. É uma de nossas melhores vendedoras. Está em horário de almoço. Me diga uma coisa, por favor: na hora em que o aparelho foi testado aqui na loja, ou seja, na hora que o senhor foi ao estoque para receber o aparelho, notou alguma coisa errada?

– Nada, tudo normal. Sem problemas.

– O senhor se recorda se na hora do teste o rapaz fez alguma observação?

– Nenhuma que eu me lembre.

– Ao chegar em casa o senhor atentou para a voltagem atrás do aparelho?

– Amigo, o rapaz que testou já deixou no jeito.

– Bem, nesse caso, sua tomada deve estar com defeito.

– Não está, não. São todas novas. Mudei para o apartamento não tem dez dias. Peguei as chaves e a primeira coisa que fiz antes de levar a família, cachorro, periquito, papagaio, foi verificar se a parte elétrica estava nos conformes. Aliás, sou o primeiro morador.

– Vou pedir que o senhor tenha um pouquinho mais de paciência. Solicitarei ao rapaz encarregado da entrega dos produtos que são vendidos aqui para que faça um novo teste. Se me permite, levarei o aparelho comigo. Cinco minutos, não mais...

Esse “não mais” durou exatamente uma hora e meia. Retorna o gerente, com o aparelho e a moça que o atendera.

– E, então...?

–... O senhor tem toda razão. Realmente o aparelho não funciona...

– Tudo bem, seu Gervásio. Então, troque por outro e fim de papo.

– Infelizmente não podemos. O senhor terá que levá-lo na autorizada.

– Amigo esse aparelho saiu daqui apresentando esse defeito que o senhor mesmo mandou seu funcionário testar. Não sou o responsável por ele, nem lhe dei causa. Exijo que troque por outro igual e fim de papo.

– Cavalheiro, seu caso, agora, não é mais com a gente.

– A Solimar me falou que se houvesse algum imprevisto era só vir aqui e procurar por ela.

– Compreendo. O senhor está coberto de razão. Contudo, a Solimar também não poderá fazer nada. É norma da matriz. Temos que acatar. No seu caso, só a autorizada. A propósito: o senhor fez a garantia estendida?

– Não. O que vem a ser isso?

– Quando o senhor adquire um aparelho deve fazer imediatamente a garantia estendida. Acontecendo qualquer coisa de errado, como de fato aconteceu... A garantia estendida...

–... Meu prezado Gerásio, me ajude a juntar alguns pontos soltos...

– Gervásio, senhor. Que pontos soltos?

– Vocês fazem propaganda enganosa na televisão, ludibriam a boa fé dos clientes, sacaneiam os compradores como bem querem, e, agora, simplesmente vem aqui me dizer, quase duas horas de espera, que não podem trocar um aparelho, por outro, porque é norma da matriz? E ainda, para completar, tem a cara de pau de acrescentar essa balela de garantia estendida?

– Cavalheiro, não fazemos propaganda enganosa, não ludibriamos ninguém, tampouco a boa fé das pessoas, menos ainda sacaneamos. Nossa empresa é séria e está no mercado há mais de vinte anos. No seu caso, voltando a ele, nada podemos fazer porque o senhor não optou pela garantia estendida.

– E se na hora que esse seu funcionário estivesse testando a porcaria, essa droga não ligasse, que atitude vocês tomariam?

– Substituiríamos imediatamente o aparelho por outro...

–... Então... Substitua...

–... O senhor já saiu da loja.

– Fui direto para minha casa. O aparelho, como vocês estão vendo, voltou do mesmo jeito que saiu daqui.

– Concordo com o cavalheiro. Só há um problema o troço não está funcionando. Quando o senhor saiu com ele daqui, ontem, estava em perfeitas condições de uso.

– Tudo bem, tudo bem. Mas, meu amigo Germásio, eu cheguei em casa e ele deu pau. O que fiz foi embalar tudo de novo, do jeitinho que estava e voltar para trás.

– Cavalheiro, por favor, meu nome é Gervásio. Gervásio. Olhe meu crachá. Gervásio. Pois é como eu já lhe passei e volto a repetir. O senhor está coberto de razões, tem direito de reclamar, de brigar, de perder as estribeiras, mas nesse caso, sinto muito, só a autorizada.

– Meu amigo, entenda. Não estou lhe pedindo nenhum favor. Apenas exigindo o que está no Código de Defesa do Consumidor. É meu direito. Comprei essa droga em quinze vezes, sem entrada. O que acontece se eu resolver não pagar?

– Seu nome, senhor, será incluído no SPC.

– Vocês ainda têm o direito de sujar o único bem que prezo acima de qualquer coisa?

– Quando o senhor concretizou a compra, com a nossa vendedora Solimar, assinou um contrato. São as normas estabelecidas nele que nos apresenta várias opções, uma delas, enviar seu nome aos órgãos dos fichas sujas. Desta forma, se o senhor não honrar o que acordou...

–... Eu honro, e vocês? Custa trocar essa porra?

O gerente Gervásio fez um longo gesto de condescendência tentando acalmar os ânimos de Anjolino. Bonifácia sugeriu um café para serenar os vapores de uma possível combustão que, de espontânea, prenunciava acabar numa balbúrdia iminente.

– É complicado. Embaraçoso, admito, mas a loja nada pode fazer pelo senhor.

– Nada?

– Nada. Só a autorizada. Repetindo, se o senhor tivesse concordado com a garantia estendida...

–... Já percebeu que neste país a corda rebenta sempre para o lado dos mais fracos? No caso eu sou essa parte fraca. Venho aqui nesta espelunca, adquiro um aparelho com vocês, pago, por ele, o olho da cara... Me atiro de cabeça, num juro do caramba, a peça comprada apresenta um defeito, volto aqui menos de doze horas de efetivada a transação e vocês não podem fazer nada?

Começou a juntar gente. Pessoas que estavam no interior, em outras seções, se aproximaram para bisbilhotar e mexericar.

– Trouxe o carnê, a nota fiscal, tudo como manda o figurino e a loja simplesmente me diz que não pode fazer nada?

– Gostaríamos de poder estar resolvendo sua situação, mas repito, diante dessas circunstâncias, a empresa não arca com nenhuma responsabilidade, mau uso, ligações mal feitas...

Anjolino, em vista disso, perdeu de vez as estribeiras, a compostura, o bom senso. A sua brutalidade adormecida, em questão de segundos aflorou. E foi com essa altaneria à flor da pele, que partiu para o tudo ou nada. Levantou bem os braços para que todos pudessem vê-lo e ouvi-lo bem. Gritou alto, forte, imponente, cabeça ereta:

– Vocês não arcam com nenhuma responsabilidade? Me chamam de mentiroso, alegando que fiz uso indevido, tentam me convencer que liguei essa geringonça errada e terminam dizendo que se eu não pagar meu nome irá parar o rol dos caloteiros? Pois vou mostrar, seu gerentezinho filho da mãe, o que é que eu faço com essa droga.

Passou a mão no aparelho e, inopinadamente, num repelão, o arremessou contra uma dezena de televisores em exposição. Houve pequenas explosões em cadeia, o que colocou a galera em debandada. Não contente Anjolino chutou prateleiras e derrubou uma série de objetos que serviam de mostruário para promoção. A loja inteira, com esse ataque, ficou em estado desesperador. Nada restou inteiro para contar a história. Virou um caos. De um momento a outro, num abrir e piscar de olhos, tudo se transformou uma praça de guerra, um verdadeiro Deus-nos-acuda. A segurança do shopping foi acionada, a polícia requisitada, uma ambulância, uma guarnição do Corpo de Bombeiros e até soldados do batalhão de choque.

De Anjolino, entretanto, nem rastro.

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. As mentiras que as mulheres gostam de ouvir. RJ: Ed. AMC Guedes, 2013.
Livro enviado pelo autor.

quarta-feira, 20 de maio de 2020

Varal de Trovas n. 272


Benevides Garcia (Felicidade, onde moras?)

Fonte: Facebook

A. A. de Assis (O Tesouro de Maringá)


O tesouro maior de uma cidade são as famílias que nela se formaram. Gosto dessa frase, não sei se minha ou se ouvida alhures. Gosto e assino embaixo.

Ele paulista, ela mineira. Chegaram aqui ainda meninos, no início da década de 1940. Conheceram-se num baile do Aero Clube. Namoraram, casaram, multiplicaram. Nasceram-lhes seis rapazes e quatro moças, logo vieram seis noras e quatro genros. Depois os netos, bisnetos. Na festa das bodas de diamante do casal pioneiro (60 anos de amor e solidariedade), o clã já reunia mais de cem pessoas.

Que família é essa? Tantas, parecidas todas. Basta pegar uma lista de telefones. Qualquer um daqueles sobrenomes daria uma bela história dentro da bonita história de Maringá.

O velho casal está entre nós ainda, recordando momentos marcantes. A inauguração da cidade no dia 10 de maio de 1947. A eleição do primeiro prefeito. A posse da primeira Câmara de Vereadores. As primeiras escolas. A chegada do primeiro avião, do primeiro ônibus, do primeiro trem. Os primeiros cinemas. Os primeiros desfiles cívicos. Os primeiros comícios. Os primeiros clubes. As primeiras grandes lojas. Os primeiros padres e pastores. Os primeiros doutores: médicos, dentistas, engenheiros, advogados, agrônomos. Os primeiros professores. O primeiro juiz. O primeiro promotor. Os primeiros bancos. Os primeiros jornais. As primeiras emissoras de rádio. A primeira emissora de televisão. A chegada do primeiro bispo. O primeiro Festival de Cinema. A inauguração da Catedral. A primeira faculdade, a universidade.

No início era pouco mais que uma aldeia, uma pequena comunidade em que todos se conheciam. As casinhas de madeira. As noites mal iluminadas. Ruas esburacadas. Homens calçados de botas, mulheres calçadas de galochas, para enfrentar o barro nos dias de chuva. Janelas fechadas nos dias de sol para abrandar a invasão da poeira. O passa-passa de jipes com as rodas acorrentadas, caminhões carregados de toras ou de sacas de café. A banda de música. O jipe 28. O Clube do Caçula. As matinês dançantes no Grande Hotel. Os piqueniques no horto florestal. O sorvete na Oriental. O aperitivo no Bar Colúmbia.

Aos poucos a cidade foi crescendo para o alto e para todos os lados, transformando-se num enorme aglomerado em que ninguém mais sabe quem é quem. Mais de 400 mil, quase 500 mil maringaenses, fora os vizinhos que diariamente aqui circulam.

Mas nas reuniões de família os elos permanecem. Cada clã é uma rosa, cada parente uma pétala. O maior tesouro de Maringá. Bonito isso.

Não faz muito tempo estive no jantar de aniversário de um amigo pioneiro. Quando o conheci, em 1955, eram só ele e os irmãos menores. Agora a seu redor está um grupão unido e lindo, desde os de cabelos brancos até a meninada de colo.

Poeta chora à toa. Chorei.

(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 07-5-2020)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Daniel Maurício (Devaneios Poéticos) 3


Ah, este meu anjo!
Tendo asas
Até que poderia pra bem longe voar
Mas preferiu ficar e sofrer comigo.
É...eu vi
Uma lágrima de anjo.
****************************************
Ao nos encontrar
Nossos olhos fizeram um brinde
Tomei um gole de você
E a taça da saudade ficou menor.
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Depois de vírgulas e reticências
Na minha história de amor,
Você
Foi o meu ponto final.
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Dos matizes dos teus olhos
Empresto as cores
Para os meus versos.
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Em minhas mãos
Uma lágrima pingou
Regando a pétala do malmequer.
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Meus olhos choviam.
Mas a poesia,
Me ofereceu seu guarda chuva.
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Minhas alegrias ganharam pernas
E com as tuas
Bailaram no espaço.
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Na xícara de chá
A saudade ganhou sabor.
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Na delicadeza dos teus traços
Pinto no imaginário
Com as cores que eu te quero.
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Na pressa de te encontrar,
Outonalmente,
Vou despindo meus retalhos
Pelo caminho.
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Santas são as mãos de mãe.
Onde há sempre um remedinho
Que com muito carinho
Cura as feridas
E da alma tira a dor.
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Seu beijo
É a chave
Que abre meu apetite
Por você.
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Teus lábios:
Altar
Onde oferto os meus beijos.
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Um vírgula nos separa.
À tua margem,
Só meus olhos
Em ti mergulham.
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Você
Era tão presente na minha saudade
Que o mofo não tinha vez.
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Voo...
Nos olhos azuis de Helena
"O pássaro da poesia"
Extensão do céu fazia.

Fonte:
Facebook

Humberto de Campos (As Perdizes)


Chegado do interior de Minas, onde nasceu, vive, e não sabe se morrerá, o capitão Venâncio Pimentel, coletor em Poço Fundo, ficou deslumbrado com o Rio de janeiro. Com uma dezena de contos no bolso, provenientes da arrecadação semestral da coletoria, tomou o simpático sertanejo a deliberação de conhecer a cidade, guiando-se por si mesmo, dispensando, em tudo, o auxilio de estranhos. Teatros, cinemas, restaurantes, subúrbios, estabelecimentos públicos, tudo isso recebeu, de passagem, a visita da sua curiosidade.

Nada, porém, lhe causou tanta admiração, como a quantidade de mulheres desacompanhadas que encontrava na rua, principalmente nas proximidades do ponto dos bondes da Jardim Botânico, depois das nove horas da noite. Adivinhando-lhe a procedência, e farejando-lhe o dinheiro, essas criaturas infelizes acercavam-se do forasteiro, olhando-o de esguelha, sorrindo-lhe com brejeirice, num desafio maneiroso e calculado. Ele fixava então, a leviana, que tomava o bonde, e acompanhava-a até a Lapa, até o Catete, ou até a Glória, de onde voltava ao ponto de partida, para experimentar, de novo, quatro, cinco, seis, oito vezes, as mesmas sensações da conquista.

Uma destas noites, ia eu tomar o carro, às onze horas, em companhia do Sr. deputado Antônio Carlos, quando este descobriu, no ponto de costume, o capitão Venâncio, a quem me apresentou, contando-me, ao mesmo tempo, a fraqueza do seu velho correligionário e concidadão.

- Que gosto acha o senhor nessa extravagância, Sr. Pimentel? - perguntei eu, escandalizado, ao mineiro, acentuando as palavras com a tonalidade proposital da minha censura.

- Gosto? - atalhou o sertanejo. - Gosto, eu não acho nenhum. Eu acho é engraçado.

- Engraçado? - estranhei.

- Sim, senhor. Eu faço isso para me lembrar de Minas, das minhas caçadas no Poço Fundo. Cada mulherzinha dessas é mesmo que perdiz.

- Perdiz? - interveio o Dr. Antônio Carlos, admirado.

- Sim, senhor. Vossa Senhoria nunca andou caçando perdiz?

E explicou, ajudando a palavra com a mímica:

- A gente vai, às vezes, pelo mato, pisando aqui, pisando ali, cauteloso. com a espingarda calada, quando ouve, de repente, um barulho no chão, entre as folhas. Olha, e vê: é a perdiz que está no folhedo, imóvel, quieta, olhando pra gente. Sentindo-se descoberta, solta um voo baixo, rasteiro, junto do solo. A gente não atira: vai andando, vai seguindo, vai acompanhando a bicha, até que ela, afinal, chega no ninho.

- E quando a perdiz chega no ninho, que é que faz? - indaguei, curioso.

E o capitão, rindo:

- Que é que faz? Deita-se!

E saltou para o estribo de um bonde, espantando uma revoada…

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicada em 1921.

terça-feira, 19 de maio de 2020

Varal de Trovas n. 271


Laé de Souza (Perneta na São Silvestre)


Aguinaldo que vinha se preparando para correr na São Silvestre, por Coxia, sofria o dissabor de com a perna quebrada, ter que desistir. De emergência, providenciou-se uma corrida eliminatória, chegando em primeiro lugar o Perneta. Após os prêmios, reuniram-se para discutir sobre a sua participação na São Silvestre. O secretário de esportes votou contra a saída da verba de sua secretaria para ajudar, pois via pouca chance de vitória, visto que numa corrida de tal envergadura, dificilmente um aleijado iria ganhar. Referia-se a uma leve torção que o corredor sofrera quando criança e que o levara até hoje a puxar da perna esquerda, o que lhe valera o apelido. Sabia também que o Sr. Avariando (nome do Perneta), era dado a tomar umas pingas, o que não condizia com o comportamento de um esportista. Perneta que tinha ficado calado até aquele momento, enfureceu-se; "Pera aí meu caro. O Ronaldo, lá de Descoberto, Minas Gerais, já teve anemia e nem por isso deixou de ganhar no ano retrasado. O baixinho não vai ganhar este ano, pois agora sou eu quem vai apresentar Coxia para o mundo. E de beber, é o seguinte: Sou igual a muitos motoristas, quanto mais bebo, mais corro." E foi saindo, sem querer saber de mais conversa. A oposição segurou o homem prometendo verba para as despesas.

Representante oficial de Coxia na corrida. Perneta era saudado por todos e fazia seus treinamentos diários com torcida. O patrão dispensou-o do trabalho, com direito a remuneração, pelo que prometeu nas entrevistas da vitória, elogiá-lo. Está certo que, normalmente, mais faltava do que trabalhava, mas valia a colaboração. Ermenegildo, pretendente a candidato a prefeito, mandou que o Perneta arrumasse empréstimo, que assim que recebesse um dinheiro que estava a juros, lhe daria para pagar. Mas tinha que prometer subir com ele nos palanques em sua campanha. Daria o dinheiro em janeiro. Quando perguntado pelo Perneta se daria o dinheiro, ganhasse ou perdesse a corrida, Ermenegildo, desconversava com um: "Você vai ganhar, você vai ganhar." Seu Quindim, que agora já não cobrava as pingas que o Perneta tomava em sua quitanda, dizia que a cachaça pela vitória, seria por sua conta. Fartos convites para churrascos, dificilmente recusados,

Chegara o grande dia. Reservaram hotel em São Paulo. O Perneta exigiu que pelo menos fosse quatro estrelas. Levou uma bandeira de Coxia, uma do Brasil e tinha pinta de atleta vencedor. Fretaram um ônibus para a torcida, que ficaria em um hotel mais barato. Na noite do dia 31, para festejar, reuniu-se com Pé Grande, Trator e o Chiquinho num bar do Bexiga e rolaram cantando samba e bossa nova, só interrompidos para tomar mais um gole da branquinha. Calibrados, dormiram na calçada mesmo, acordando com o pipocar dos fogos da meia noite, a chegada do Ano Novo e um bêbado que passava gritando viva aos quenianos.

Perneta não voltou à cidade nem para pegar suas roupas. Os três companheiros nem tocaram no assunto de tê-lo visto. Os mais velhos choravam a vergonha, enquanto outros gozavam e contavam piadas. O secretário aceitou as desculpas do prefeito e reassumiu seu cargo. Ermenegildo pessoalmente queimou as faixas e desmanchou o palanque.

Fonte:
Laé de Souza. Acredite se quiser. SP: Ecoarte, 2000.

Vinicius de Moraes (Antologia Poética) IV


EPITÁFIO

Aqui jaz o Sol
Que criou a aurora
E deu a luz ao dia
E apascentou a tarde

O mágico pastor
De mãos luminosas
Que fecundou as rosas
E as despetalou.

Aqui jaz o Sol
O andrógino meigo
E violento, que

Possuiu a forma
De todas as mulheres
E morreu no mar.
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POR-DO-SOL EM ITATIAIA

Nascentes efêmeras
Em clareiras súbitas
Entre as luzes tardas
Do imenso crepúsculo.

Negros megalitos
Em doce decúbito
Sob o peso frágil
Da pálida abóbada

Calmo subjacente
O vale infinito
A estender-se múltiplo

Inventando espaços
Dilatando a angústia
Criando o silêncio....
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SONETO AO INVERNO

Inverno, doce inverno das manhãs
Translúcidas, tardias e distantes
Propício ao sentimento das irmãs
E ao mistério da carne das amantes:

Quem és, que transfiguras as maçãs
Em iluminações dessemelhantes
E enlouqueces as rosas temporãs
Rosa-dos-ventos, rosa dos instantes?

Por que ruflaste as tremulantes asas
Alma do céu? o amor das coisas várias
Fez-te migrar – inverno sobre casas!

Anjo tutelar das luminárias
Preservador de santas e de estrelas...
Que importa a noite lúgubre escondê-las?
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SONETO A OTÁVIO DE FARIA

Não te vira cantar sem voz, chorar
Sem lágrimas, e lágrimas e estrelas
Desencantar, e mudo recolhê-las
Para lançá-las fulgurando ao mar?

Não te vira no bojo secular
Das praias, desmaiar de êxtase nelas
Ao cansaço viril de percorrê-las
Entre os negros abismos do luar?

Não te vira ferir o indiferente
Para lavar os olhos da impostura
De uma vida que cala e que consente?

Vira-te tudo, amigo! coisa pura
Arrancada da carne intransigente
Pelo trágico amor da criatura.
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SONETO DE DESPEDIDA

Uma lua no céu apareceu
Cheia e branca; foi quando, emocionada
A mulher a meu lado estremeceu
E se entregou sem que eu dissesse nada.

Larguei-as pela jovem madrugada
Ambas cheias e brancas e sem véu
Perdida uma, a outra abandonada
Uma nua na terra, outra no céu.

Mas não partira delas; a mais louca
Apaixonou-me o pensamento; dei-o
Feliz – eu de amor pouco e vida pouca

Mas que tinha deixado em meu enleio
Um sorriso de carne em sua boca
Uma gota de leite no seu seio.
****************************************

SONETO DE LONDRES


Que angústia estar sozinho na tristeza
E na prece! que angústia estar sozinho
Imensamente, na inocência! acesa
A noite, em brancas trevas o caminho

Da vida, e a solidão do burburinho
Unindo as almas frias à beleza
Da neve vã; oh, tristemente assim
O sonho, neve pela natureza!

Irremediável, muito irremediável
Tanto como essa torre medieval
Cruel, pura, insensível, inefável

Torre; que angústia estar sozinho! ó alma
Que ideal perfume, que fatal
Torpor te despetala a flor do céu?
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SONETO DE VÉSPERA

Quando chegares e eu te vir chorando
De tanto te esperar, que te direi?
E da angústia de amar-te, te esperando
Reencontrada, como te amarei?

Que beijo teu de lágrimas terei
Para esquecer o que vivi lembrando
E que farei da antiga mágoa quando
Não puder te dizer por que chorei?

Como ocultar a sombra em mim suspensa
Pelo martírio da memória imensa
Que a distância criou – fria de vida

Imagem tua que eu compus serena
Atenta ao meu apelo e à minha pena
E que quisera nunca mais perdida...

Fonte:
Vinícius de Moraes. Livro de Sonetos. RJ: Sabiá, 1967.
Livro enviado pelo poeta.

Contos e Lendas do Brasil (Porque os Galos Cantam de Madrugada)

Certo dia Sua Majestade o Leão deu uma festa e para a mesma convidou todos os outros bichos. O pagode devia começar aos primeiros albores do dia e os convidados a essa hora já deveriam estar presentes.

A festa era de arromba, a mais bonita de quantas havia notícia até aquela data. Quando chegou o dia marcado, nenhum dos bichos teve sossego. É que nenhum queria faltar ao convite, muito menos perder a hora.

Ao clarear do dia, o rei dos animais já tinha a casa cheia. Uma multidão. Nenhum dos convidados faltara, a não ser mestre Galo. Ele se esquecera inteiramente do convite.

Notando a sua ausência, Sua Majestade enfureceu-se, achou que aquilo era pouco caso, não tinha desculpa e mandou uma escolta de dois gambás para trazer o galo à sua presença.

Quando os gambás entraram no galinheiro, foi um salve-se quem puder; a galinhada saltou dos poleiros e se pôs a esvoaçar pelo rancho, a cacarejar que nem maluca. Mestre Galo acordou, espreguiçou~se e não atinou com aquilo.

Um gambá falou:

— Viemos buscar-te, seu tratante, por ordem de Sua Majestade. El-rei Leão dá-te a honra de um convite para a maior festa do mundo e ficas a dormir.. .

O galo coçou a cabeça:

— Ah! É verdade! Esqueci-me, perdi a hora!

— Pois por isso mesmo estás pegado para Judas. Outra vez, darás um nó na crista, para não esqueceres, ..

— Perdão, camaradas! Não me levai para lá! Que desejará fazer de mim Sua Majestade?...

— Ainda perguntas! Comer-te, se tamanha honra te der, caso não queira entregar-te aos gambás, a fim de que nós demos cabo de ti!

E dizendo isso, um dos gambás foi destroçando toda a família de mestre Galo, sem deixar uma cabeça na extremidade de cada pescoço. Os gritos aumentaram e as penas
esvoaçaram no interior do rancho.   

O galo chorava, maldizia-se, mas em vão. Ordenou-lhe:

— Vamos! Para a presença de Sua Majestade!

Mestre Galo não teve outro remédio senão seguir na frente, mas cabisbaixo e jururu.  Chegados ao palácio do leão, a escolta e o preso foram ter à presença de Sua Majestade, que soltou um urro de raiva;

— Patife! Galo de uma figa! Com que então ousaste desobedecer ao meu real convite, não te apresentando à hora marcada para a minha festa? Pois vais pagar caro esse atrevimento.. .

— Saiba Vossa Majestade que não foi por querer, mas por lamentável esquecimento. Perdão! Eu me ajoelho aos pés do meu rei!

— Tens o que se chama memória de galo, cabeça de vento. Ia dar-te a morte, mas como te humilhaste, e para não perturbar a alegria da minha festa, vou comutar a pena. Daqui para diante, como castigo do teu esquecimento, não dormirás depois da meia-noite. Dormirás ao pôr do sol e acordarás logo depois. À meia-noite, cantarás, às duas amiudarás e ao surgir do dia cantarás ainda, dando sempre sinal de que estás alerta. Se dormires, se não cantares nas horas indicadas, tu com tua família correrás o risco de ser comido pelos animais inimigos de geração tão indigna. Assim não esquecerás mais e ficará punida tua vil memória!
*    *    *

Mestre Galo sentiu-se muito contente com a solução e, para não se esquecer de que havia de cantar à meia-noite, cantou também ao meio-dia. Dessa data em diante, passou a cumprir o seu fado, cantando pela madrugada a fora, por ter desatendido a um convite do monarca. E quando canta, fecha os olhinhos, fazendo força para não se esquecer de que tem de cantar outra vez, e canta de dia para se lembrar de que há de cantar de madrugada.

Fonte:
Anísio Mello (org.). Estórias e Lendas de Minas Gerais, Espírito Santo e Rio de Janeiro. São Paulo. Ed. Iracema.

Literatura Infantil (Origens)

Pintura de Parede em 3D
O impulso de contar histórias deve ter nascido no homem, no momento em que ele sentiu necessidade de comunicar aos outros alguma experiência sua, que poderia ter significação para todos. Não há povo que não se orgulhe de suas histórias, tradições e lendas, pois são a expressão de sua cultura e devem ser preservadas. Concentra-se aqui a íntima relação entre a literatura e a oralidade.

A célula-máter da Literatura Infantil, hoje conhecida como "clássica", encontra-se na Novelística Popular Medieval que tem suas origens na Índia. Descobriu-se que, desde essa época, a palavra impôs-se ao homem como algo mágico, como um poder misterioso, que tanto poderia proteger, como ameaçar, construir ou destruir.

São também de caráter mágico ou fantasioso as narrativas conhecidas hoje como literatura primordial. Nela foi descoberto o fundo fabuloso das narrativas orientais, que se forjaram durante séculos a.C., e se difundiram por todo o mundo, por meio da tradição oral.

A Literatura Infantil constitui-se como gênero durante o século XVII, época em que as mudanças na estrutura da sociedade desencadearam repercussões no âmbito artístico.

O aparecimento da Literatura Infantil tem características próprias, pois decorre da ascensão da família burguesa, do novo "status" concedido à infância na sociedade e da reorganização da escola. Sua emergência deveu-se, antes de tudo, à sua associação com a Pedagogia, já que as histórias eram elaboradas para se converterem em instrumento dela.

É a partir do século XVIII que a criança passa a ser considerada um ser diferente do adulto, com necessidades e características próprias, pelo que deveria distanciar-se da vida dos mais velhos e receber uma educação especial, que a preparasse para a vida adulta.

As Mil e Uma Noites: Coleção de contos árabes compilados provavelmente entre os séculos XIII e XVI. São estruturados como histórias em cadeia, em que cada conto termina com uma deixa que o liga ao seguinte. Essa estruturação força o ouvinte curioso a retornar para continuar a história, interrompida com suspense no ar.

Foi o orientalista francês Antoine Galland o responsável por tornar o livro de As mil e uma Noites conhecido no ocidente (1704). Não existe texto fixo para a obra, variando seu conteúdo de manuscrito a manuscrito. Os árabes foram reunindo e adaptando esses contos maravilhosos de várias tradições. Assim, os contos mais antigos são provavelmente do Egito do séc. XII. A eles foram sendo agregados contos hindus, persas, siríacos e judaicos.

O uso do número 1001 sugere que podem aparecer mais histórias, ligadas por um fio condutor infinito. Usar 1000 talvez desse a ideia de fechamento, inteiro, que não caracteriza a proposta da obra.

Os mais famosos contos são:
• O Mercador e o Gênio;
• Aladim ou a Lâmpada Maravilhosa;
• Ali-Babá e os Quarenta Ladrões Exterminados por uma Escrava;
• As Sete Viagens de Simbá, o Marinheiro .

O rei persa Shariar, vitimado pela infidelidade de sua mulher, mandou matá-la e resolveu passar cada noite com uma esposa diferente, que mandava degolar na manhã seguinte. Recebendo como mulher a Sherazade, essa iniciou um conto que despertou o interesse do rei em ouvir-lhe a continuação na noite seguinte. Sherazade, por artificiosa ligação dos seus contos, conseguiu encantar o monarca por mil e uma noites e foi poupada da morte.

A história conta que, durante três anos, moças eram sacrificadas pelo rei, até que já não havia mais virgens no reino, e o vizir não sabia mais o que fazer para atender o desejo do rei. Foi quando uma de suas filhas, Sherazade, pediu-lhe que a levasse como noiva do rei, pois sabia um estratagema para escapar ao triste fim que a esperava. A princesa, após ser possuída pelo rei, começa a contar a extraordinária "História do Mercador e do Efrit", mas antes que a manhã rompesse, ela parava seu relato, deixando um clima de suspense, só dando continuidade à narrativa na manhã seguinte.

Assim, Sherazade conseguiu sobreviver, graças a sua palavra sábia e à curiosidade do rei. Ao fim desse tempo, ela já havia tido três filhos e, na milésima primeira noite, pede ao rei que a poupe, por amor às crianças. O rei finalmente responde que lhe perdoaria, sobretudo pela dignidade de Sherazade.

Fica então a metáfora traduzida por Sherazade: a liberdade se conquista com o exercício da criatividade. Fantasia ajuda a formar a personalidade da criança.

A literatura infantil surgiu somente no século 17, com a descoberta da prensa. As histórias infantis e os contos populares, no entanto, existem desde que o ser humano adquiriu a fala. Há notícias de histórias antigas na África, na Índia, na China, no Japão e no Oriente Médio — como a coleção de contos árabes As Mil e Uma Noites.

Algumas histórias tratam de temas que fazem parte da tradição de muitos povos e apresentam soluções para problemas universais. É o caso de “O Pequeno Polegar”. O personagem representa o desejo de vingança do mais fraco contra o mais forte. Os pequenos se identificam com os heróis e experimentam diversas emoções.

Que criança não fica com medo ao imaginar o Lobo Mau devorando a Vovozinha? Ou odeia a bruxa quando ela prende Rapunzel na torre? Para a escritora Ana Maria Machado, os contos de fadas pertencem ao gênero literário mais rico do imaginário popular. "Essas histórias funcionam como válvula de escape e permitem que a criança vivencie seus problemas psicológicos de modo simbólico, saindo mais feliz dessa experiência."

A ideia foi difundida após a divulgação dos estudos do psicólogo austríaco Bruno Bettelheim (1903-1990). Para ele, nenhum tipo de leitura é tão enriquecedor e satisfatório do que os contos de fadas, pois eles ensinam sobre os problemas interiores dos seres humanos e apresentam soluções em qualquer sociedade. Ou seja, a fantasia ajuda a formar a personalidade e por isso não pode faltar na educação.

Uma obra é clássica e referência em qualquer época quando desperta as principais emoções humanas. O que os pequenos mais temem na infância? A separação dos pais; e esse drama existencial aparece logo no começo de muitas histórias consideradas referências na literatura.

Para Bettelheim, a agressividade e o descontentamento com irmãos, mães e pais são vivenciados na fantasia dos contos: o medo da rejeição é trabalhado em João e Maria, a rivalidade entre irmãos em Cinderela e a separação entre as crianças e os pais em Rapunzel e O Patinho Feio.

A leitura das histórias no passado tinha mais um propósito muito claro: apontar padrões sociais para as crianças. O objetivo das moças ingênuas era encontrar um príncipe, como mostrado em A Bela Adormecida e Cinderela. Em A Polegarzinha, de Andersen, a recompensa final da protagonista, Dedolina também era o casamento.

Já garotas desobedientes, como Chapeuzinho Vermelho, deparavam com situações dramáticas, como enfrentar o Lobo Mau. Essa história tinha forte caráter moral na sociedade rural do século 17: camponesas não deviam andar sozinhas. Isso mostra como os contos serviam para instruir mais que divertir.

Fonte:
Portal Educação

segunda-feira, 18 de maio de 2020

Varal de Trovas n. 270


Aparecido Raimundo de Souza (Revoada de Maritacas)


TRABALHEI, POR TRÊS meses, numa agência de automóveis e, confesso, minha experiência nessa área não foi das mais promissoras. O único cliente que tive o privilégio de ter em mãos, e, mesmo assim, porque minha gerente me passou o contato, depois de  fechada a venda, se constituía em somente ligar e pedir para que retornasse à agência, assinar os papéis e fazer o restante do pagamento, vez que havia dado de entrada uma soma considerável em dinheiro vivo.

Há dias, eu ligava, insistia, perseverava e o sujeito me cozinhava em banho-maria o que me levou a acreditar que indubitavelmente a criatura desistira da compra, ou, no pior dos mundos, ficara enraivecido pelo simples fato de, quando viera na loja pela primeira vez, ter sido atendido com toda amabilidade por uma linda jovem alta e magra, de cabelos compridos e olhos profundos e claro, olhos envolventes e carregados de uma meiguice invulgar.

Realmente, a Emilly, minha gerente, se constituía, sem tirar, nem por, num pedaço de caminho largo, propício a todos os tipos de pecados, além de atenciosa, dócil e incrivelmente dona de si, o que constituía no seu principal segredo para tratar com as pessoas, mesmo as mais indecisas e culminar com os fechamentos rápidos impostos pela empresa, sem mencionar o fato de que, mês após mês, a beldade vinha batendo o primeiro lugar em fechamentos de negócios e atendimentos vips entre os demais colegas.

Como eu estava pensando seriamente em desistir e ela, sabedora de meus problemas pessoais, abriu mão desse cliente em particular, observando todavia que a aquisição estava concretizada, faltando apenas que a criatura viesse até a revendedora e assinasse a papelada para finalmente levar para casa o veículo de sua predileção.

— Como te falei, Berredo — disse com delicadeza a Emilly. —  Basta você ligar todo santo dia, que ele uma hora não terá como lhe dizer não. Lembra que água mole em pedra dura... E não esqueça: a comissão dessa venda (isso fica aqui entre nós) eu repassarei a você na totalidade, para lhe dar uma injeção de força e ânimo.

Seguindo os conselhos de Emilly, todo santo dia assim que chegava, passava a mão no telefone e lembrava o seu Anacleto Barbosa a vir até a agência, tomar uma água gelada, saborear um delicioso cafezinho... No primeiro dia, seu Anacleto me pediu desculpas alegando não poder comparecer em face de precisar ir a um enterro. Apresentei, num gesto respeitoso, as minhas condolências e desliguei. Em face desse imprevisto, deixei passar uns dias e ataquei novamente.

Seu Anacleto, como num disco de vinil arranhado, pediu mil desculpas prometendo que em breve viria me conhecer pessoalmente. Mandou um abraço à Emilly e nosso papo findou ai, fechando com a mesma conversa mole que “precisava ir urgente a um enterro”. Confesso que fiquei deveras chateado com a criatura e prometi, a mim mesmo, que ligaria uma derradeira vez, e então descartaria o camarada que tudo indicava e levava a crer, fazia hora e motejava com a minha fuça.

Deixei de novo passar uns dias e voltei à carga,  intencionando de antemão se o filho das unhas viesse com a mesma lenga-lenga de precisar comparecer a um enterro, como das vezes passadas. Com pesar de perder o emprego e ficar sem moral com a Emilly, mandaria o enrolão com carro e tudo para aquele lugar. Liguei. Seu Anacleto, bom de papo, se quedou em mesuras. Pediu perdão, falou do cafezinho que eu prometera e fechou o nosso diálogo com a mesma dispensa esfarrapada que naquele dia também não poderia vir à loja, em face de carecer ir a um enterro.

Juro por tudo quanto é mais sagrado, minha intenção não era outra senão a de mandar aquela figura asquerosa e nojenta tomar naquele lugar, com todas as letras. Eu precisava desabafar, falar poucas e boas, mandar para os ouvidos do infeliz cobras e lagartos. Todavia, parece que levado pelo silêncio repentino que fiz imprimir à minha voz, e pela  respiração ofegante de puro espanto e raiva, ou sei lá o quê, seu Anacleto explicou:

- Berredo, meu caro jovem. Esqueci de lhe falar. Peço humildemente que me perdoe. Acredito que a senhorita Emilly não lhe tenha colocado a par sobre a minha profissão. Sou agente funerário!    

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Rita Mourão (Trovas Premiadas) 2


Não temo o mar que me nega
ser mais branda a travessia.
Temo sim, a mente cega
que me bloqueia a ousadia!
- - - - - -
Não temo quedas, barreiras,
por mais que a tristeza insista.
Águas que são cachoeiras
não tem lodo que resista!
- - - - - -
Nas serestas da lembrança
onde o orvalho enfeita a tela,
a minha ilusão te alcança,
mas a razão diz:- Cautela!!!
- - - - - -
Nesta espera em que me farto
só dispenso a nostalgia
é quando a porta do quarto
tua chegada anuncia!
- - - - - -
Neste teatro que há em mim,
do meu papel não lamento.
Sem saber qual é meu fim
enceno o final que invento.
- - - - - -
No espaço, brilhando inquieta,
Cadente estrela me induz
a pensar que algum poeta
faz no céu versos de luz.
- - - - - -
No lar que me fez honrado
ante os conceitos de espaço,
o respeito era sagrado
mesmo que o pão fosse escasso.
- - - - - -
Nos meus embates medonhos
sempre enfrento os desafios,
quando a vida tece sonhos
e o tempo desfaz os fios.
- - - - - -
Nossas almas parecidas,
nossos sonhos se irmanando,
eu e tu, vidas vividas,
tarde demais se encontrando.
- - - - - -
Num cenário à luz de vela,
papai repassando a lida
deixou-me a lição mais bela
encenando a própria vida.
- - - - - -
Num jogo da fantasia
entre a loucura e a razão,
vislumbro na cama fria
teu corpo que busco, em vão.
- - - - - -
Os meus desejos de agora,
juntei-os, pus no correio:
(destino, Natais de outrora),
mas a resposta não veio
- - - - - -
O trovador finge tanto
que ao cantar a própria dor,
finge que a dor no entanto
é de um outro trovador.
- - - - - -
Ousar não é ser valente
ao buscar gloria e poder.
Ousadia é quando a gente
humaniza o nosso ser!
- - - - - -
Para ter felicidade,
ao buscá-la eu pressuponho,
que seja qual for a idade
felicidade é ter sonho.
- - - - - -
Por mais que o orgulho insista
peço a Deus a quem me entrego
que nas horas da conquista
eu saiba despir meu ego.
- - - - - -
Por medo meu coração
fechou-se e ainda pôs trave,
mas agora outra paixão
bate à porta e quer a chave.
- - - - - -
Quando a lua me abre as frestas
das lembranças que são tuas,
eu choro as velhas serestas
feitas à luz de outras luas!
- - - - - -
Quando deixei minha terra,
jurei e cumpri a jura,
que venceria esta guerra
entre o sertão e a cultura!
- - - - - -
Quando uma ofensa me oprime
em silêncio enfrento tudo.
Qualquer grito se redime
ante meu protesto mudo.
- - - - - -
Queres chamar-me de amigo,
mas teu olhar traidor
é a frase que eu mais bendigo
das frases mudas do amor
- - - - - -
Resisto, mas me afrouxando,
revogo a minha sentença.
Quem ama mesmo sangrando
perdoa e renova a crença.
- - - - - -
Retida além do horizonte
onde a razão se esvazia,
dos sonhos ergo uma ponte
e prossigo a travessia.
- - - - - -
Roxa ou preta quando antiga,
mas rubra se a dor maltrata.
Por isso na há quem diga
da saudade a cor exata.
- - - - - -
Se a porta é larga, desvio,
sem luta não tem vitória.
Porta estreita é o desafio
de quem vence e faz história!
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Sem ter fortuna aparente,
sob a luz de um lampião
fui bem mais rica e mais gente
naquela casa de chão.
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Se o homem abaixasse a fronte
com fé, respeito, humildade,
seria a Terra uma ponte
entre Deus e a humanidade.
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Seria a paz mais presente
e o porvir menos incerto,
se nas mãos do adolescente
sempre houvesse um livro aberto.
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Ser mãe é perpetuar
a vida em seu seguimento
conjugando o verbo AMAR
seja qual for o momento.
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Sozinha, num desvario,
sem concretude, meus braços,
traçam, sobre um leito frio
o perfil dos teus abraços.
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Tiro a máscara e ouço aflita,
de um mar de farsas sem fim,
meu outro eu que ainda grita
por vida dentro de mim.
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Trazendo o filho nos braços,
ante a dor ou alegria
toda mãe possui os traços
da Virgem Santa Maria!
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Velha casa, sonho alado
que a saudade hoje remonta
para mostrar meu passado
brincando de faz de conta.

Fonte:
Site de Rita Mourão
https://versosderita.weebly.com/trovas-premiadas.html