quinta-feira, 4 de junho de 2020

Varal de Trovas n. 283


Isabel Furini (Alma e Borboleta)

Isabel é de Curitiba/PR
Fonte:
Facebook

Laé de Souza (De Mal com a Vida)


Reclamam do meu jeito e da minha cara carrancuda. E dá para ser diferente? De manhã acordo com algazarra e gritos de garotos que correm atrás de uma bola e sobre patins. Num mesmo ritual de anos, vou até a janela e vejo aquele doido, só pode ser, que todos os dias, metido num calção listado, circula o parque correndo sempre a consultar um cronômetro que carrega no pulso. Uma folheada nos jornais me aumenta o mau humor. Só notícias ruins. Na televisão e no rádio, prolifera o pornô. Não bastasse o rock. Cuja culpa por eu ter começado a odiar é do desajustado do meu filho, sempre com o som ligado nas alturas, estourando meus tímpanos. Criei tanta ojeriza, que hoje a simples visão de uma guitarra me perturba a ponto de, se não me segurarem, quebrá-la na cabeça do roqueiro.

Agora, são mocinhas de pernas de fora e letras pornográficas fazendo sucesso. Não suporto mais o Tchan, dança do Bumbum, da Garrafa, do Maxixe, do Pirulito, Tanajura e outras mais, que certamente virão. Não que eu seja contra mulheres sensuais, mas estes batuqueiros já estão abusando e isso ninguém pode negar. Se não derem um breque, a coisa vai degringolar.

Até a minha música preferida, Índia, já não posso mais ouvir sem que me venha na mente a figura desdentada do Tiririca. Minha vontade é arrancar-lhe o restante dos dentes com um soco e, copiando Mike Tyson, morder-lhe as orelhas. Depois deste moço, nunca mais Índia será  a mesma.

Me tiraram o cigarro sob argumentos de melhorar minha saúde, já não posso sentir o gosto da fumaça e o cheiro do tabaco queimando. Sinceramente, só balela, pois continua a rouquidão e a tosse que me acompanham há anos. O cansaço, a falta de ar depois de qualquer esforço ainda são os mesmos. O nervosismo que sempre me acompanhou, segundo diz o pessoal que me cerca, está cada dia pior. Cá para mim, por dois motivos: a falta do cigarro e o conluio dessa gente que insiste em me atazanar. Quando vejo figuras de montanhas, cascatas e cavalos, fico em delírio, sonhando com um Malboro entre os dedos e grandes baforadas. Quando caio em mim, vejo que é tudo ilusão. Reconheço que implico com coisas mínimas e infernizo a vida de quem está perto. Mas também, como todo ex-fumante, condeno os que fumam e reclamo quando vem uma fumacinha, embora intimamente goste de sentir o cheiro. Aponto placas e exijo o cumprimento dos meus direitos de não-fumante.

Me proibiram a bebida, sob argumentação médica de que minha saúde exigia que deixasse de tocar em qualquer espécie alcoólica. Tenho certeza de que foi boicote, motivado pelo fato de que sob efeito do álcool eu dizia certas verdades que essa gente não gosta de ouvir. E ainda mais, sempre tinha um ou outro que ousava contestar e por várias vezes parti pra cima a fim de resolver no tapa. Até na entrada do ano, enquanto brindam com champanhe e se enchem de beber, me dão um suco e não descuidam. Como sinto inveja quando vejo um fulano cambaleando , em ziguezague jogar-se numa calçada e ali ficar sem dar a mínima para a vida.

Ah! essa turma que fica pegando no meu pé não perde por esperar. Qualquer dia, eu ainda apronto uma com eles. E vai ser antes dessa morte que só para me atormentar demora em chegar.

Fonte:
Laé de Souza. Acredite se quiser. SP: Ecoarte, 2000.

Rita Mourão (Poemas Escolhidos) 2


COLO DE MÃE

Mudei de cadeira, mudei de xícara,
joguei  fora o adoçante
e recriei meu café da manhã.
De nada adiantaram as mudanças,
tudo  tem outro gosto, tudo é fastio,
tudo  é uma esquisitice  aguda.
Estou macambúzia, gripada, mas nada dói em meu corpo.
Minha gripe é na alma, congestionada de saudade.
Ah, meu Deus! Dá-me a canequinha de lata,
o tamborete antigo e o colo de mãe
que  foram deixados  numa cozinha farta de aconchego.
Dá-me o fogão à lenha, o café de um coador de  pano
e os meus despreocupados anos de infância .
Hoje eu quero um remédio que me cure
dessa  dor inquietante de não  ser mais criança.
****************************************

DEPOIS DO VOO

Soletro-me.
Descubro-me cheia de hiatos e vocativos.
Já não sou o mesmo texto,
atravessaram-me  as  reticências
e a nudez de cada espaço, rege o compasso
das incertezas.
Descubro-me sobre barrancas ressequidas
e mergulho no rio que me atravessa.
Não satisfaço a minha secura,
minha  sede tem forma e nome.
Faço uma nova leitura, viagem que não cessa.
Nas entrelinhas o voo, o silêncio.
Meus sentimentos pedem renascimento,
mas  estou estagnada, sem coragem de me recriar.
Até  o verbo amar já não me é mais cortês.
Apenas me restaram  as  metáforas.
Depois do voo.
****************************************

DESEJO

Sou feita de atos e pensamentos
corpo e alma das letras em ação.
Mas o que mais me identifica e desenha meu perfil
são  as  palavras.
Eu sou o que escrevo, sou a palavra que me  revela
nas  entrelinhas dos meus poemas.
Queria tocar os corações das pedras,
queria que as pedras me lessem!
****************************************

ESPERA

É na tua ausência que desfolho tristezas
e  acaricio lembranças.
É nas horas de solidão
que  ganho asas, te bebo e te navego.
Nos meus sonhos te encontro rarefeito,
envolto  na volátil  presença da noite que te engole.
O sonho passa, mas meu corpo refeito
é  um profundo oceano à espera das tuas redes.
****************************************

EU E O TEMPO

Nos meus poemas faço uma profunda reflexão
sobre  o  sentido da vida.
Vivi, vivo, sofro e faço versos.
Mas a vida engole com sofreguidão as minhas rimas,
as  minhas  metáforas,  meus  tempos  verbais,
que  tanto  sustentaram  meus quereres.
 E meus poemas já pedem escoras.
****************************************

RAÍZES

Sou parte do Grande Sertão de Guimarães Rosa.
A terra me medra,
as árvores me enraízam, os pássaros me gorjeiam.
Caminho pisando folhas que me desfolham.
Sou exercida por savanas e meu cheiro é agreste.
Por isso minha alma canta,
contaminada pela Natureza que me define.
****************************************

SILÊNCIO

Existem  dias que  prefiro o silêncio,
um silêncio brando, suave, que me transporta
ao profundo útero da alma.
Feto sem luz, ali me recolho à espera de renascimento.
Choro um choro sufocado, que o silêncio silencia.
A  gestação  prossegue recriando minha alma
e  reencontro a vida que  a mim proponho.
 É no fundo do silêncio que me reconstruo
e  me apodero de novos sonhos.

Fonte:
Versos (Di) Versos. Disponível no site de Rita Mourão.
https://versosderita.weebly.com/versos-diversos.html

Aparecido Raimundo de Souza (As Mentiras que as Mulheres Gostam de Ouvir)


– SANTINHA, MEU BEM, EU TE AMO. NÃO POSSO viver sem ti, sem teu amor ao meu lado. Creia, no que agora direi: nunca te trai. Nunca! Se o fizesse, estaria enganando, não a mim, mas a Deus.

– Me ama tanto assim?

– Amo!

– Muito?

– Demais. Tu és o amor da minha vida.

– Jura?

– Por tudo quanto é mais sagrado. Decididamente não posso viver sem ti.

– E se eu morresse?

– Com certeza eu sucumbiria de profundo desgosto. Dois caixões seriam enterrados num mesmo dia e hora.

– Você não sente uma quedinha por aquele seu antigo caso?

– Santinha, entenda. Só tenho olhos para ti. Tenho ciúmes até das roupas que usas. Quer saber de um detalhe? Quando te vejo conversando com outros caras, principalmente os mais jovens que eu, penso comigo: “será que ela está querendo me trocar?”. Decididamente serás a última.

– E você o meu derradeiro. A propósito: teria coragem de me bater?

– Nem com uma flor.

– Já beijou outra mulher, ou melhor, outra boca, depois que está comigo?

– Só minha mãe e minhas irmãs. E, mesmo assim, no rosto.

– Nenhum selinho com uma amiguinha mais safadinha?

– Tu és e serás eternamente a minha eterna safadinha. Lembra sempre disso.

– E se uma vagabunda lhe desse bola, no meio da rua, o que faria?

– Chutava...

–... Pra gol?

– Claro que não, Santinha. Tu és, repito, a minha princesa. Com certeza, chutaria, mas para escanteio. O dia que tu faltares, juro, morrerei de tédio. De solidão. De tristeza. Deixarei de comer, de beber... Serei capaz de chegar aos extremos: por fim à vida. Meu amor, por ti, é eterno. Quando estou contigo, a meu lado, “estou nos braços da paz”. Lembra desses versos? É de uma música interpretada pela Maria Bethânia.

– E quando brigamos?

– Mais me apaixono por ti...

–... Me acha chata?

– Chata é a mulher do vizinho.

– Eu engordei além da conta?

– Qual o quê! Mesmo rechonchudinha não te troco por nenhuma magrinha.

– Então, estou certa. Você me acha uma baleia? Eu sabia...

–... Claro que não, minha deusa. Olha que corpinho de sereia, que sorriso, que olhar, que meiguice, que voz suave e macia... Tu és a mulher mais bonita deste mundo. Aliás, a única.

– Só deste?

– E de outros mais que por acaso existirem. Ponha na tua cabeça o que vou dizer e grava bem: Santinha, tu és a paixão da minha vida. O meu sol, o meu vento, o meu tudo... Resumindo: tu és a mulher dos meus sonhos. Sem tua presença constante ao meu lado, sou vazio profundo, caminho sem volta, dia sem sol... Noite sem estrelas...

– Nossa, como você está romântico!

– É o meu amor por ti que me faz ser assim, um eterno carente. Apaixonado, embasbacado. Confesso, amada minha. Fiquei, ou melhor, não fiquei: sou cativo de tua beleza.

– Vem cá. Me beija...

– Não havia reparado em teus cabelos. Puxa! estás maravilhosa, eu diria divina...

Risos.

– Percebi que hoje você fez a barba.

– Só para não te arranhar.

– Cortou o bigode...

–... Para veres melhor meu sorriso estampado e nunca esquecer que esse sorriso só existe porque tu estás aqui. Vamos fazer amor?

– Agora?

– Já.

– Não tomei banho. Eu estava na cozinha fazendo seu papazinho...

–... Que diferença isso faz? Te quero do jeito que estás. Sujinha, suada, cheirando a cadelinha molhada, os pés com chulé...

– Só um banho!

– Depois. Temos a noite toda...

– Preciso lavar a...

–... Nada disso. Quero teu corpo agora e pronto. Me transformarei no teu cachorrinho. Vou abanar meu rabinho, e, em seguida, te lamber da raiz dos cabelos aos dedos dos sapatos. Miau!

– Espere. Isso que você fez aí não é a voz de um cãozinho, mas de um gato. Em qual dos dois vai se transformar, afinal?

– Em ambos. É pra sentires como sou louco e como é grande, grande, muito grande o meu amor por ti.

– Meu Roberto!...

–... Minha Isolina!...

–... O quê? Quem é essa Isolina...?

–... Eu... Eu... Eu...

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. As mentiras que as mulheres gostam de ouvir. RJ: Editora AMCGuedes, 2013

quarta-feira, 3 de junho de 2020

Varal de Trovas n. 282


Silmar Böhrer (Lampejos Poéticos) XXX


Carlos Drummond de Andrade (Na Escola)


Democrata é dona Amarílis, professora na escola pública de uma rua que não vou contar, e mesmo o nome de dona Amarílis é inventado, mas o caso aconteceu.

Ela se virou para os alunos, no começo da aula, e falou assim:

— Hoje eu preciso que vocês resolvam uma coisa muito importante. Pode ser?

— Pode — a garotada respondeu em coro.

— Muito bem. Será uma espécie de plebiscito. A palavra é complicada, mas a coisa é simples. Cada um dá sua opinião, a gente soma as opiniões e a maioria é que decide. Na hora de dar opinião, não falem todos de uma vez só, porque senão vai ser muito difícil eu saber o que é que cada um pensa. Está bem?

— Está — respondeu o coro, interessadíssimo.

— Ótimo. Então, vamos ao assunto. Surgiu um movimento para as professoras poderem usar calça comprida nas escolas. O governo disse que deixa, a diretora também, mas no meu caso eu não quero decidir por mim. O que se faz na sala de aula deve ser de acordo com os alunos. Para todos ficarem satisfeitos e um não dizer que não gostou. Assim não tem problema. Bem, vou começar pelo Renato Carlos. Renato Carlos, você acha que sua professora deve ou não deve usar calça comprida na escola?

— Acho que não deve — respondeu, baixando os olhos.

— Por quê?

— Porque é melhor não usar.

— E por que é melhor não usar?

— Porque minissaia é muito mais bacana.

— Perfeito. Um voto contra. Marilena, me faz um favor, anote aí no seu caderno os votos contra. E você, Leonardo, por obséquio, anote os votos a favor, se houver. Agora quem vai responder é Inesita.

— Claro que deve, professora. Lá fora a senhora usa, por que vai deixar de usar aqui dentro?

— Mas aqui dentro é outro lugar.

— É a mesma coisa. A senhora tem uma roxo-cardeal que eu vi outro dia na rua, aquela é bárbara.

— Um a favor. E você, Aparecida?

— Posso ser sincera, professora?

— Pode, não. Deve.

— Eu, se fosse a senhora, não usava.

— Por quê?

— O quadril, sabe? Fica meio saliente…

— Obrigada, Aparecida. Você anotou, Marilena? Agora você, Edmundo.

— Eu acho que Aparecida não tem razão, professora. A senhora deve ficar muito bacana de calça comprida. O seu quadril é certinho.

— Meu quadril não está em votação, Edmundo. A calça, sim. Você é contra ou a favor da calça?

— A favor 100%.

— Você, Peter?

— Pra mim tanto faz.

— Não tem preferência?

— Sei lá. Negócio de mulher eu não me meto, professora.

— Uma abstenção. Mônica, você fica encarregada de tomar nota dos votos iguais ao de Peter; nem contra nem a favor, antes pelo contrário.

Assim iam todos votando, como se escolhessem o presidente da República, tarefa que talvez, quem sabe no futuro sejam chamados a desempenhar. Com a maior circunspecção. A vez de Rinalda:

— Ah, cada um na sua.

— Na sua, como?

— Eu na minha, a senhora na sua, cada um na dele, entende?

— Explique melhor.

— Negócio seguinte. Se a senhora quer vir de pantalona, venha. Eu quero vir de mídi, de máxi, de short, venho. Uniforme é papo furado.

— Você foi além da pergunta, Rinalda. Então é a favor?

— Evidente. Cada um curtindo à vontade.

— Legal! — exclamou Jorgito. — Uniforme está superado, professora. A senhora vem de calça comprida, e a gente aparecemos de qualquer jeito.

— Não pode — refutou Gilberto. — Vira bagunça. Lá em casa ninguém anda de pijama ou de camisa aberta na sala. A gente tem de respeitar o uniforme.

Respeita, não respeita, a discussão esquentou, dona Amarílis pedia ordem, ordem, assim não é possível, mas os grupos se haviam extremado, falavam todos ao mesmo tempo, ninguém se fazia ouvir, pelo que, com quatro votos a favor de calça comprida, dois contra, e um tanto faz, e antes que fosse decretada por maioria absoluta a abolição do uniforme escolar, a professora achou prudente declarar encerrado o plebiscito, e passou à lição de história do Brasil.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas.

Gislaine Canales (Glosas Diversas) 15


O OLHAR DELA...

MOTE:
Vou navegar estes mares,
de calmaria e procela
para ver se entre os olhares
encontro aquele olhar dela.

Clênio Borges
Porto Alegre/RS


GLOSA:
VOU NAVEGAR ESTES MARES,
vou navegar na emoção,
quero escutar os cantares
do meu próprio coração!

Nesse meu mar de esperança,
DE CALMARIA E PROCELA
é forte e doce a lembrança
que chega num barco à vela!

Por meios particulares
eu me ponho a procurar,
PARA VER SE ENTRE OS OLHARES
está quem quero enxergar!

Com amor e com ternura,
termino a nossa novela,
pois no fim desta procura,
ENCONTRO AQUELE OLHAR DELA.
****************************************

FORTUNA DO PERDÃO

MOTE:

Bendito seja o sujeito
que traído pelo irmão,
tira do fundo do peito
a fortuna do perdão!

Eduardo A. O. Toledo
Pouso Alegre/MG


GLOSA:
BENDITO SEJA O SUJEITO
que nunca guarda rancor,
é sinal de que ele é feito
só de amor, de muito amor!

Esse ser, mesmo tristonho,
QUE TRAÍDO PELO IRMÃO,
não destrói o grande sonho
que mora em seu coração!

Continua satisfeito,
pajeando a felicidade,
TIRA DO FUNDO DO PEITO
uma rosa de amizade!

A amizade verdadeira
é feita de doação,
e enriquece a terra inteira
A FORTUNA DO PERDÃO!
****************************************

PERFUME DELA

MOTE:

Ela voltou... penso... enfim!
Mas, a brisa me revela,
são as rosas do jardim,
usando o perfume dela.

Lila Ricciardi Fontes
São Paulo/SP


GLOSA:

ELA VOLTOU... PENSO... ENFIM!
Meu coração pulsa forte,
quase nem cabendo em mim,
sorrindo com tanta sorte!

Penso, ser o seu perfume,
MAS, A BRISA ME REVELA,
quase chorando de ciúme,
entrando pela janela...

Chega ao fim o meu festim,
pois os perfumes que eu sinto,
SÃO AS ROSAS DO JARDIM,
mais as mil flores de absinto!

Bem fundo, em meu coração,
esse perfume se anela,
são lembranças de emoção,
USANDO O PERFUME DELA.
****************************************

RENÚNCIA

MOTE:

Se a renúncia em seus degredos,
meus sonhos cobre de pó,
dou-me as mãos... enlaço os dedos
e finjo não estar só...

Otávio Venturelli
Nova Friburgo/RJ


GLOSA:

SE A RENÚNCIA EM SEUS DEGREDOS,
me faz sofrer e chorar,
enrolado nos meus medos
eu me incito a continuar!

Se essa renúncia enfadonha,
MEUS SONHOS COBRE DE PÓ,
minha alma, então, já nem sonha
uma tristeza sem dó!

Mas eu tenho os meus segredos,
segredos do coração:
DOU-ME AS MÃOS... ENLAÇO OS DEDOS
e invento nova emoção!

Por precisar de alegria,
do pranto, eu aperto o nó,
e me faço companhia,
E FINJO NÃO ESTAR SÓ…

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas XXV. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. março de 2005.

Contos e Lendas do Brasil (Gongo-Velho)


— É de ouvido que vou contar, pois essas coisas não são do meu tempo. Ouvia-as de minha mãe um sem número de vezes, em serões como este. — disse o velho africano.

Gongo-Velho — prosseguiu — se chamava antigamente um pequeno córrego que ia desaguar no Rio das Mortes. Agora, tem outro nome que o coração manda calar para que não se saiba ao certo o lugar onde se desenrolou este drama, onde tanta lágrima foi vertida. Esse córrego passava pelas terras de dois irmãos que tinham chegado do Reino com uma cadeia de escravos e ali se estabeleceram, numa existência tão solitária e recolhida que não parecia de criaturas humanas.

Havia multo ouro na redondeza e Gongo-Velho ficou-se chamando toda a terra dos irmãos recém-chegados. Foi de muito trabalho os anos que se seguiram. Minerava-se no Gongo-Velho com verdadeira fúria de amontoar tesouros. Nunca ninguém soube da vida daqueles dois portugueses, também nunca se soube que eles se metessem com a vida dos outros.     Apenas cá fora, aquém dos muros do retiro, que era um verdadeiro presídio, transpiravam vagos rumores de cenas horrorosas, narrações de bárbaros castigos a que repugnava ao mais embrutecido ouvinte dar inteiro crédito. Com certeza — pensava-se — havia muito exagero nessas descrições.

Quando algum desgraçado conseguia, iludindo a severa vigilância dos algozes, evadir-se, ia pedir asilo em paragens bem distantes daqueles vales, cujas quebradas repetiam os ecos dos soluços de agonia dos seus irmãos de infortúnio.

Os dois moços envelheceram. Tinham um capataz de confiança, português como eles, que conduzia a tropa carregada de ouro a Vila Rica.    Ninguém mais saia do retiro e ninguém mais entrava a não ser o capataz, quando voltava, trazendo as mais das vezes, novo contingente de pretos para a escravatura.    No entanto, até ali o Gongo-Velho não tinha estória.

Já estavam bem velhos os dois irmãos quando se deram os acontecimentos por que se tornaram famosas as lavras do Gongo-Velho.

O principio do episódio ninguém sabe ao certo,    pois não sobrou um só de tantos para contá-lo ao mundo.    O que se sabe é que uma vez, à noitinha, os cativos se rebelaram e, num sítio afastado onde se encontravam depois do trabalho do dia, atacaram um dos senhores, aquele que costumava feitorear o serviço; atiraram-no por terra e lhe estraçalharam o corpo.

Consumado o crime, o bando revoltoso tomou o caminho da casa e entrou pelo retiro como uma horda de selvagens, aos berros, agitando no ar a ferramenta do trabalho, a gotejar o sangue do seu senhor. O outro fazendeiro, que estava à frente da casa esperando os escravos, viu logo que se tratava de uma rebelião. E, como o irmão não aparecesse, compreendeu logo que ele tinha sido vitima da sanha dos escravos rebelados.

Então, precipitou-se para a turba ululante com os punhos cerrados e, numa explosão de palavras ásperas, conseguiu impor-se e dominar a rebelião. Diante dessa atitude inesperada os escravos submeteram-se, perdendo a liberdade que haviam conquistado por algumas horas. E, restabelecida a ordem, recolheram-se á senzala, mais parecendo uma procissão de penitentes.

No dia seguinte, os escravos foram levados pelo capataz para trabalhar num lugar que ficava do lado oposto àquele em que, na véspera, se haviam rebelado e onde deviam jazer os despojos do velho que fora assassinado.

Conta-se que o irmão, solitário e em lágrimas, dirigiu-se ao local da tragédia e recolheu os restos sangrentos do companheiro, sepultando-o numa cova aberta por suas próprias mãos.

E tudo pareceu mergulhar no esquecimento. Uma tarde, tendo chegado a gente das lavras, o senhor em pessoa foi presidir à distribuição do rancho. Chegou e foi logo dizendo:

— Não sei porque sinto na alma uma alegria tão grande... Quero que vocês todos comam à farta!

Nesse dia foi da melhor qualidade a comida que serviu.

A um canto, o capataz, com o queixo apoiado no cabo do rebenque, olhava espantado para o amo, pensando que, com certeza, ele tinha enlouquecido.

Terminado o repasto, o próprio fazendeiro, tomando ao capataz as grossas chaves que ele trazia à cinta, abriu a porta da senzala e assistiu à entrada dos escravos. Todos, um a um, homens, mulheres, velhos e crianças, elevando humildemente as mãos negras e calosas iam pedindo sunscristo, com um grunhido deformado pelo uso.

Depois que o último escravo entrou, o velho meteu na fechadura a chave ferrugenta, fechou a senzala e atirou para o terreiro as chaves restantes. Encostou uma escada, a muro maciço, de taipa, subiu até lá acima e abriu um buraco no sapé da coberta. Então, seus olhos pouco a pouco puderam ver o interior da senzala, alumiado por candeeiros de azeite, presos à parede sem reboco.

Na meia claridade do recinto, lombrigou pelo chão como um tumultuar de vermes. Em diversos pontos já iam brilhando as labaredas de pequenas fogueiras de cavacos. Mais habituada a vista, agora o fazendeiro distinguia os corpos dos escravos acomodando-se pelo chão, numa promiscuidade animalesca de homens e mulheres, velhos e crianças. Súbito, um grito lancinante quebrou o silêncio daquele sepulcro de vivos. Todos voltaram-se para o lado de um infeliz que, de um salto, tendo desdobrado a estatura hercúlea no meio da senzala, estorcia-se horrivelmente, erguendo-se ou caindo de rastros, como a procurar meter-se pelo chão a dentro.

Não demorou e outro grito se fez ouvir. Depois, novo grito igualmente espantoso. E, numa sucessão aterradora, os prisioneiros iam caindo no chão negro da senzala, bracejando numa confusão infernal. Eram centenas de fantasmas numa dança macabra, numa agonia indescritível.

Durante certo tempo, o fazendeiro, lá de cima do teto, espiando pelo buraco que fizera no sapé, teve diante dos olhos uma visão do inferno.

Dali a pouco toda aquela agitação foi amainando e só ficou um indefinível resfolegar, soluçado e trêmulo, que por sua vez diminuiu até tornar-se em sepulcral quietude, em silêncio de morte.

Sem compreender o que estava se passando, o capataz colava o ouvido à porta da senzala, ou mergulhava o olhar pelo estreito orifício da fechadura. No fundo, sentia medo de acertar com a explicação daquele mistério. Quando tudo lhe pareceu terminado, lembrou-se do fazendeiro. Subiu pela escada e foi encontrá-lo estendido na coberta, com a cabeça metida no buraco que fizera no sapé encardido pela fumaça.    Parecia inteiramente absorvido nas cenas monstruosas que se tinham passado lá embaixo, no interior escuro da senzala.

Chamou por ele. Como não tivesse resposta, chamou-o de novo. Nada. Então, sacudiu-lhe o corpo. Estava morto. Tirou-o dali. O velho apresentava os olhos esbugalhados, mas extintos. Naquele espelho embaciado, devia ter ficado sua última visão: a dança macabra de tantos homens, mulheres, velhos e crianças, envenenados e presos, que chegaram à morte ao longo de horripilantes sofrimentos.

— Façamos oração, meus camaradas, para que seja aliviado em seu penar sem fim o velho fazendeiro, cuja alma sem descanso deve andar a estas horas vagando nas proximidades daquele sitio.

E, persignando-se, voltou à primitiva postura.

Fonte:
Rodrigo Otávio. Contos de Ontem e de Hoje. RJ: Ed. Guanabara, 1932.

terça-feira, 2 de junho de 2020

Varal de Trovas n. 281


Cláudio de Cápua (Esses Adultos)


A confirmação de mais um casamento desfeito foi o pronunciamento do divórcio por incompatibilidade de gênios. Da separação permaneceu entre o casal um único elo, uma linda menininha com menos de dezoito meses.

A jovem mulher dispensara a pensão e o auxílio, pois, alta funcionária federal, não precisava de esmolas. Queria mesmo era sua liberdade. Assim sendo, ficou feliz da vida. Ele, por sua vez, herdara a fazenda do pai, no interior, e ia pra lá a fim de administrá-la. Como bons companheiros, apertavam as mãos sem ressentimentos.

A menininha ficou com a mãe, indo morar em Santos, pois Laura para lá havia sido transferida. Daí em diante, cada um levou a vida que pediu a Deus.

Ela encontrou outro príncipe encantado, afinado com o seu jeito de ser, um professor universitário, homem bom, que logo se afeiçoou à menina, que, inocentemente, o chamava de tio Victor.

Pouco mais de dois anos decorridos, a menina ouviu de sua mãe:

- Ana Maria, vá tomar seu banho. Vista roupinha nova, hoje você vai conhecer seu pai, que chegou de viagem.

A menina, com cerca de 4 anos, chega, pela mão da babá, até o pai, que a esperava no carro estacionado em frente ao prédio. Aquele homem elegante, bronzeado, que pela primeira vez via e chamava de pai, logo a cativou. Disse-lhe ele ter vendido a fazenda no interior e que, agora, iria ficar perto da filha, morando na cidade vizinha, São Vicente. Administrava uma firma construtora.

A presença do pai passou a ser uma constante nos fins de semana e isso já durava mais de um ano. Ana Maria estava feliz, ganhava bonecas, revistas, doces e passeios. E com o passar do tempo, mais e mais se apegava ao pai.

Ocorreu-lhe uma ideia. A pessoa de quem mais gostava depois da mãe era, inegavelmente, o pai. Que tal se conseguissem dar um passeio com a mãe e o pai juntos?

Assim ficou atenta, à espera de uma brecha para concretizar seu sonho.

Num dos sábados, ao sair para o passeio, passou pela sala e ouvia a mãe ao telefone:

- É da pizzaria Micheluccio? Gostaria de encomendar uma pizza de atum para viagem. Passo ai para pegá-la por volta das dezenove horas.

Como de costume, o pai perguntou-lhe o que queria fazer.

- Eu gostaria de ir ao cinema ver o filme do Batman e, depois, comer uma pizza de champignon no Micheluccio. Essa pizzaria fica ali na Conselheiro Nébias. Eu adoro a pizza de lá!...

Após o cinema, foram à pizzaria. Saboreada a pizza, a menina, esticando o programa, pediu mais um guaraná e depois uma mouse de chocolate.

O pai observava a filha um tanto inquieta, a indagar as horas várias vezes, sem tirar os olhos da porta.

Foi quando entrou Laura. Ana Maria levantou-se e, pegando a mãe pela mão, levou-a até a mesa onde estava o pai.

- Olá, Gilberto - disse Laura. Estão se divertindo?

Gilberto levantou-se, cumprimentando-a com um aperto de mão.

Ana Maria ficou imóvel.

Laura pediu desculpas pela pressa, pegou a pizza e saiu.

- Que foi querida? A mousse não está boa?

O que Ana Maria acabara de presenciar era muito decepcionante! Fizera de tudo para apresentar seu pai à sua mãe... e eles já se conheciam, sem nunca lhe dizerem nada!

- Esses adultos!...

(Revista Santos, Arte e Cultura - Janeiro 2008)

Fonte:
Cláudio de Cápua. Retalhos de Imprensa. São Paulo: EditorAção, 2020.
Livro gentilmente enviado pelo escritor.

Silmar Bohrer (Croniquinha) 2


E a gente sai devagar a divagar pelos caminhos - esquinas, ribaltas, encruzilhadas - e não se dá conta de que talvez sejamos mais um autômato a estar perguntando como o OUTRO, da novela NOITE (Érico). "Quem sou ? De onde venho ? Para onde vou ? ".

Na verdade este mistério chamado vida, que ainda não conseguimos decifrar, é um enigma para o qual os seres que se dizem os inteligentes do planeta, não encontram respostas.

Como "donos", cultivam a ganância, o egoísmo, o preconceito. Armas poderosas que põem em risco a velha humanidade pelos séculos a fora.

TEMOS A EXALTAÇÃO DA BARBÁRIE.

Fonte:
texto enviado pelo autor.

Sammis Reachers (Poemas Avulsos) 1


A MORTE DE SAMUEL RICARDO
Para Kivitz, o temeroso da morte

Estou sentado solitário em meu sofá,
nesta sexta-feira da longa Paixão,
e ao contemplar a janela,
a luminosidade que ela deixa passar
filtrada pela diáfana cortina de linho,
penso que um dia a Morte entrará
por esta mesma janela, arrombando-a;
será talvez pela tarde, uma tardezinha
de paz e livros e solidão como esta.
Entrará epifânica, com um estrondo
de trovão, a Morte – um dragão
de escamas lindas, azuis como o céu e o mar.
Entrará arrombando os ferros,
explodindo a casa, ela a Morte,
a coisa mais desejável depois do Rei.
****************************************
 
CREPÚSCULO DOS DEUSES: RAGNARÖK

Um Dia feito da escuridão
de todos os dias
o Dia em que Odin-o-exaurido
será devorado pelo lobo Fenris,
Thor-do-trovão tombará sobre o cadáver
da serpente-sem-fim, Iormungand

Você é um dos homens
eleitos pelo deus, guerreiro?
Afie pois os dois caminhos de sua espada,
as duas asas de seu machado firme
e caia como vaga sobre o conflito:
será tudo em vão,
pois ao fim e ao cabo
como a Ordem venceria o Caos?

Mas você terá combatido,
você terá deveras combatido
e não foi afinal para isso e para este Dia,
ó boneco de pó predestinado,
que o pai Odin criou os homens?
****************************************

LAMENTO À MANEIRA ANTIQUA

Um coração de tipo e viés cigano
valia-me mais que este meu, pacato
eu amaria as que me constrangem, sem recato
trocaria minha farda por colorido pano.

Beberia vinho em fundas taças de cristal
sem atinar para a vil aparência do mal;
deitaria meu rosto de pranto em todo colo
e redimiria de o vazio delas todo o dolo...

Mas temo e tremo, pela alma e destino meus;
recolho-me à minha taba, espero em meu Deus.
****************************************

MAR OCIDENTAL

Em meio à praça
Em meio ao mar
Espero com flores
O cortejo passar

E além (a)dentro
(d)os livros, Álcoois de Guillaume*
E Paul**, no Cemitério Marinho
Ou no Waste Land
calçando as botas de Eliot***

Meu amor acabou
E perambulo pelo cais,
Praças e mares
mercando narcóticos e livros

E em silêncio busco a Ti,
Deus maltrapilho,
Para que me ressuscite
- - - - - -
*Guillaume Apollinaire
**Paul Valéry
***T.S. Eliot

****************************************

CANTIGA DOS MOLEQUES FRUTEIROS

Pedrinho tem fome de mato,
das frutinhas que tantas dão por lá:

Cajuí, taperebá, araticum e cajá
Cambuci, guabiroba, cagaita e maracujá

Juca menino erradio
pulou a cerca do sítio,
e lá se foi, frutas a roubar:

Pindaíva, marôlo, sorvinha e biribá
saguarají, feijoa, sapoti e joá

Gustinho não poupa ninguém
nem atina se a fruta é veneno;
se tem polpa pouca
ou se nem polpa tem,
a de vez ele come,
a passada também:

Mangaba, guriri, tucum e butiá
uarutama, bacupari, marmelinho e ingá

Renato é um bicho-do-mato:
chafurda nas matas,
rompe pelos florestins
sabe o tempo de cada fruta,
e deita sozinho a fazer seus festins:

Babaçu, inajá, catolé e bacuri
sapota, cupuaçu, araçá e cacauí

Fernandinho é moleque mateiro:
gosta é de pelar pé de árvore
no pomar da avó.
É fruta que não acaba tão cedo
e lá vai ele, arteiro, trepar no arvoredo:

Grumixama, cubíu, marmixa e abiu
guaburiti, pitangatuba, murtinha e camu-camu

Saltam riacho, cerca de roça,
mata fechada e o que se lhes dá;
Comem de tudo e tudo sem pressa,
sorvendo o bom doce de tudo o que há:

Acumã, pequiá, jameri e jaracatiá
aboirana, curriola, fruta-de-tatu e cambuiú.

Fonte:
Sammis Reachers. Pulsátil: poemas canhestros & prosas ambidestras. e-book. 2014.

A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) A Marcha da Produção


Maringá, 18 de outubro de 1958. Tudo pronto para a partida da Marcha da Produção, rumo ao Rio de Janeiro, para um protesto em frente ao Palácio do Catete, então sede do governo federal. Juscelino Kubistchek era o presidente da República. Seria um evento épico, provavelmente o mais marcante de toda a história da cafeicultura.

Produtores de café convalesciam de uma série de desoladoras geadas, situação agravada por longas secas e incêndios nas áreas rurais. A economia da região, que dependia fundamentalmente da rubiácea, padecia fortemente as consequências da crise. Para completar, o governo JK parecia insensível e batia pesado nas costas da agricultura com uma perversa política de preços para os produtos do campo e, pior ainda, impondo sobre o café um malfadado confisco cambial. Daí estarem todos com os nervos à flor da pele, criando clima para a preparação de um vigoroso movimento a que se deu o nome de “Marcha da Produção”.

Café não é brinquedo do governo”, diziam as faixas empunhadas por homens, mulheres, jovens, reunidos em Maringá para a partida em direção à antiga capital. O esquema era assim: sairiam daqui duas caravanas, a de Maringá e a de Paranavaí, que se juntariam adiante com as caravanas de Londrina e Jacarezinho. Em Ourinhos, entrariam na Marcha os cafeicultores paulistas, aos quais se somariam mais à frente produtores mineiros, fluminenses e capixabas. Seria um tsunâmi de gente do campo batendo às portas do Catete.

Como tudo o que se referia ao café afetava a vida de toda a população do norte-noroeste do Paraná, o movimento recebeu total apoio dos bispos de Maringá, Dom Jaime Luiz Coelho, e de Londrina, Dom Geraldo Fernandes, bem como de Associações Comerciais, Clubes de Serviços e outras entidades. Na liderança dos cafeicultores, destacavam-se o maringaense Renato Celidônio e o londrinense Álvaro Godoy.

Ao som de rojões, a caravana pegou a estrada após a bênção de Dom Jaime, que de batina branca foi no primeiro jipe, ao lado de Celidônio. Centenas de veículos – jipes, caminhões, automóveis, tratores. A expectativa era chegar ao Rio com cerca de 40 mil pessoas.

Deu-se, porém, que a Marcha foi interrompida antes de chegar a Marialva. O caminho estava bloqueado por uma barricada formada por soldados do Regimento de Infantaria do Exército de Ponta Grossa. Ante os manifestantes, que insistiam em romper a barreira, o major comandante, do alto de um tanque, fez o apelo: “Parem, irmãos, em nome da lei”. Dom Jaime e Celidônio tentaram convencer o militar a retirar a barricada, mas não houve jeito. Para evitar as consequências de um enfrentamento, a Marcha acabou ali.

Acabou, mas não acabou. A repercussão foi enorme em todo o país. O presidente JK tomou um susto ao ser informado do tamanho do protesto. Medidas importantes foram tomadas. Não a ponto de deixar contentes os cafeicultores, mas dando para acalmar um pouco os ânimos.

(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 23-4-2020)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

segunda-feira, 1 de junho de 2020

Varal de Trovas n. 280


Stanislaw Ponte Preta (Pedro — O Homem da Flor)


Se você se enquadra entre aqueles que se dizem boêmios ou, pelo menos, entre aqueles que costumam ir, de vez em quando, a um desses muitos barzinhos elegantes de Copacabana, é provável que já tenha visto alguma vez Pedro - o homem da flor. Se, ao contrário, você é de dormir cedo, então não. Então você nunca viu Pedro — o homem da flor - porque jamais ele circulou de dia a não ser lá, na sua favela do Esqueleto.

Quando anoitece Pedro pega a sua clássica cestinha, enche de flores, cujas hastes teve o cuidado de enrolar em papel prateado, e sai do barraco rumo a Copacabana, onde fica até alta madrugada, entrando nos bares — em todos os bares, porque Pedro conhece todos — vendendo rosas. Quando a cesta fica vazia, Pedro conta a féria e vai comer qualquer coisa no botequim mais próximo. Depois volta para casa como qualquer funcionário público que tivesse cumprido zelosamente sua tarefa, na repartição a que serve.

Conversei uma vez com Pedro — o homem da flor. Já o vinha observando quando era o caso de estar num bar em que ele entrava. Via-o chegar e dirigir-se às mesas em que havia um casal. Pedia licença e estendia a cesta sobre a mesa. Psicologia aplicada, dirão vocês, pois qual o homem que se nega a oferecer uma flor à moça que o acompanha, quando se lhe apresenta a oportunidade? Sim, talvez Pedro seja um bom psicólogo mas, mais do que isso, é um romântico. Quando o homem mete a mão no bolso e pergunta quanto custa a flor, depois de ofertá-la à companheira, Pedro responde com um sorriso:

— Dá o que o senhor quiser, moço. Flor não tem preço.

Como eu ia dizendo, conversei uma vez com Pedro e, desse dia em diante, temos conversado muitas vezes. Ele sabe de coisas. Sabe, por exemplo, que a rosa branca encanta as mulheres morenas, enquanto que as louras, invariavelmente, preferem rosas vermelhas. Fiel às suas observações, é incapaz de oferecer rosas brancas às mulheres louras, ou vice-versa. Se entra num bar e as flores de sua cesta são todas de uma só cor, não coincidindo com o gosto comum às mulheres presentes, nem chega a oferecer sua mercadoria. Vira as costas e sai em demanda de outro bar, onde estejam mulheres louras, ou morenas, se for o caso.

O pequeno buquê de violetas — quando as há — é carinhosamente arrumado pelas suas mãos grossas de operário, assim como também as hastes prateadas das rosas. Saibam todos os que se fizeram fregueses de Pedro — o homem da flor — que aquele papel prateado artisticamente preso na haste das rosas e que tanto encanta as moças foi antes um prosaico papel de maços de cigarros vazios, que o próprio Pedro recolheu por aí, nas suas andanças pela madrugada.

Sei que Pedro ama a sua profissão, tira dela o seu sustento, mas acima de tudo esforça-se por dignificá-la. Não vê que seria um mero mercador de flores! Lembro-me da vez em que, entrando pelo escuro do bar, trouxe nas mãos a última rosa branca para a moça morena que bebia calada entre dois homens. Quando os três levantaram a cabeça ante a sua presença, pudemos notar — eu, ele e as demais pessoas presentes — que a moça era linda, de uma beleza comovente, suave, mas impressionante. Pedro estendeu-lhe a rosa sem dizer uma palavra e, quando um dos rapazes quis pagar-lhe, respondeu que absolutamente não era nada. Dava-se por muito feliz por ter tido a oportunidade de oferecer aquela flor à moça que ali estava. E sem ousar olhar novamente para ela, disse:

— Mais flores daria se mais flores eu tivesse!

Assim é Pedro — o homem da flor. Discreto, sorridente e amável, mesmo na sua pobreza. Vende flores quase sempre e oferece flores quando se emociona. Foi o que aconteceu na noite em que, mal chegado a Copacabana, viu o povo que rodeava o corpo do homem morto, vítima de um mal súbito. Só depois é que se soube que Pedro o conhecia do tempo em que era porteiro de um bar no Lido. Na hora não. Na hora ninguém compreendeu, embora todos se comovessem com seu gesto, ali abaixado a colocar todas as suas flores sobre as mãos do homem morto. Pois foi o que Pedro fez, voltando em seguida para a sua favela do Esqueleto.

Naquela noite não trabalhou.

Fonte:
Stanislaw Ponte Preta. Dois amigos e um chato. Ed. Moderna, 1996.

Antonio Cabral Filho (13º Colar de Trovas) Beijo


Tema: BEIJO

01
Quero beijar na boca,
é uma bela sensação.
Uma vontade muito louca
e até arde o coração.
Madalena Cordeiro - ES


02
Até arde o coração
o beijo, quando bem dado,
acende o fogo, a paixão,
naquele que foi beijado.
Aurineide Alencar - MS


03
Naquele que foi beijado
o beijo deixou raízes,
mas o amor foi arrancado,
só restaram cicatrizes.
Gilberto Cardoso - PB e RN


04
Só restaram cicatrizes,
se foram beijos de Judas,
mas te digo, não te iludas:
melhor saldo é dos felizes.
Antonio Cabral Filho - RJ

05
So restaram cicatrizes,
somos todos aprendizes,
os beijos dão diretrizes:
melhor saldo é dos felizes!....
Luiz Cláudio – RN


06
Melhor saldo é dos felizes,
digo com toda a certeza,
pois o abraço afasta as crises
e o beijo é boa surpresa.
Antonio Francisco Pereira - MG


07
O beijo traz boa surpresa,
eis o que me aconteceu:
trouxe bem mais que riqueza
O beijo que ela me deu.
Gilberto Cardoso – PB e RN

 

08
O beijo que ela me deu
tinha sabor de hortelã.
Me beijou e prometeu:
se quer mais, volte amanhã.
Antonio Francisco Pereira - MG


09
Se quer mais, volte amanhã!
Prometeu, mas não cumpriu,
mostrou de longe a maçã,
mas nem a porta me abriu.
Petrônio Oliveira - MG

 

10
Mas nem a porta me abriu!...
Beijou-me, mas sem calor.
Seu beijo não me atraiu.
Bom mesmo é com muito amor.
Gilberto Cardoso – PB e RN

 

11
Bom mesmo é com muito amor
No estômago borboletas
Colorindo a alma de cor
na boca são agulhetas.
Mirlene Andrade - SE


12
E na boca são agulhetas,
acupuntura sem par.
Entra no rol dos caretas
Quem não gosta de beijar.
Gilberto Cardoso – PB e RN


13
Quem não gosta de beijar,
não pode ser boa gente,
nunca vai se aproximar
de algum amor bem decente!
Talita Batista - RJ


14
De algum amor bem decente
guardo na minha lembrança
um beijo bem caliente
quando ainda era criança!....
Luiz Cláudio – RN


15
Quando ainda era criança
à minha avó eu beijava.
Depois, cheio de esperança,
algum trocado aguardava.
Gilberto Cardoso – PB e RN


16
Algum trocado aguardava
o pedinte na calçada.
Um beijo não esperava,
e a tez ficou ruborada.
Oliveira Caruso - RJ


17
E a tez ficou ruborada,
porque você disse adeus,
mas logo fui abraçada,
e uni meus lábios aos seus.
Madalena Cordeiro - ES


18
Uni meus lábios aos seus,
no seio da noite escura,
mas foi por obra de Deus,
que não fizemos loucura.
Antonio Cabral Filho - RJ


19
Que não fizemos loucura,
mas beijando eu fico louca,
só me beija com ternura,
me puxe e beija-me a boca.
Mirlene Andrade - SE


20
Me puxe e beija-me a boca,
cubra meu corpo de beijos,
deixe minha alma bem louca,
pra saciar seus desejos.
Antonio Cabral Filho - RJ
 

21
Pra saciar seus desejos,
no seu corpo, a minha mão,
vaga enquanto em lampejos,
a beijo em sofreguidão.
Zé Ferreira - RN


Fonte:
Trovadores do Brasil

Aparecido Raimundo de Souza (W ou B?)


O ESTILISTA CAPILAR QUE ME ATENDEU NA NOVA barbearia que inaugurou esta semana, na sobreloja do prédio onde tenho meu escritório para empresários que precisam lavar dinheiro e enganar a Receita e a Polícia Federal, na Avenida Presidente Vargas, quase colado à Candelária, a primeira impressão que me deixou foi a de que não tinha nádegas. Pelo menos o suficiente para ser notado. A jeans bege que usava, preso a um cinto de couro preto, bem acima do umbigo, juntamente com a camisa branca, por dentro da calça, dava a ele, ares de uma linguiça mal empetecada e seca e, ainda por cima, amarrada pelo meio.

A única coisa que não combinava com a calça, nem com o cinto, tampouco com a camisa e os sapatos amarelos, era o celular minúsculo no bolso. Os cabelos longos que lhe caíam até a altura da região ínfero-posterior da cabeça estavam presos por uma pregadeira vermelha em formato de peixinho, coincidentemente da mesma cor da capinha que protegia o aparelho telefônico.

Diante dos espelhos enormes, a figura do barbeiro se destacava. Sentado na cadeira de assento verde, com almofadas e bolinhas da mesma cor, eu podia observá-lo de todos os ângulos. Visto pela traseira, parecia um pau de arrimo que comumente as pessoas idosas usam para se locomoverem. Não se distinguiam os contornos de um ser normal, ou seja, onde terminava as costas, emendava o que deveria ser o traseiro, e onde este acabava, tinha início as pernas. Mas, no conjunto, um perfeito e estranho varapau.

Na realidade, o cidadão se assemelhava a uma dessas tábuas usadas em andaimes de prédio, posta em pé, ora se movendo de um lado, ora de outro. De frente, lembrava um periscópio de submarino na posição em que os marinheiros o colocam para observar a superfície. Se olhado pelas laterais, principalmente à direita, vinha, à cabeça, a figura de um cachorro vira-lata fujão, depois de ter revirado o lixo na cozinha e esparramado o que havia dentro, pela casa afora.

Verdade seja dita: tirando essas bizarrices todas, o cara era ágil, desembaraçado e veloz, na tesoura. Cortava meu cabelo com a precisão de um profissional que conhece profundamente o serviço que executa. Devido à sua destreza, mal dava para acompanhar os movimentos cadenciados de suas mãos na tesoura, trabalhando o couro cabeludo, aparando as pontas aqui e ali até ficar tudo do jeitinho como lhe havia ordenado.

De repente interrompeu o desbaste e perguntou muito solícito, se aceitava um café quentinho saído naquele exato momento. Optei pela água gelada. Uma moça simpaticíssima, estatura mediana, rosto claro, olhos pretos e grandes, acondicionada num vestido azul-marinho colado ao corpo, deixando entrever os contornos de uma calcinha minúscula, veio lá de dentro, com uma bandeja, e me serviu, zelosa e apressurada. O traje da elegante, em contraste com a severidade do patrão, não excluía, de forma alguma, a graça e a formosura do feitio. Em seguida fui galardoado com o jornal todo desfolhado com relatos de alguns dias atrás.

– Escuta, companheiro, não foi na semana passada que o Lula botou na cabeça o boné do MST?

– Acho que sim, senhor...

– E não foi também, na mesma época que o Papa João Paulo II pregou a castidade para os jovens?

– Sim, senhor. Por que as perguntas?

– Esse jornal é velho demais. Por favor, amigo, devolva ao lugar de onde veio.

O rapaz ainda tentou substituir a tal publicação por uma leitura mais em voga, contudo a revista igualmente era tão antiga que trazia resenhas de uma novela chata que havia acabado mês anterior.

Não sei se alguém já atentou para um fato corriqueiro, mas de vital importância, se levado a sério: em recepções, sejam de hotéis, casas de massagens, imobiliárias, instituições bancárias, consultórios médicos e dentários, salões de beleza e barbearias, as revistas e os jornais destinados ao público “esperante” nunca são do dia. Geralmente essas velharias ficam espalhadas pelos assentos, ou jogadas pelo chão, à espera que um boboca, para matar o tempo, se ocupe em lhe desfolhar as páginas. É raro chegar num desses lugares e dar de cara com alguma coisa realmente digna de ser lida.

Para não deixar o sujeito chateado, resolvi puxar conversa.

– Qual é seu nome, amigo?

– Bilson, senhor...!

–... Wilson?

– Não. Bilson. Bilson de Freitas.

– Com B ou com W?

– Com W, de Bilson.

Graças a Deus não precisei dar continuidade ao papo, pois a minha sessão havia terminado. Antes de me despachar, dando lugar a outro, o rapaz pegou um espelho redondo e o colocou por detrás das orelhas, a altura que eu pudesse ver se a coisa ficara a gosto. Aprovei com um aceno de cabeça e ele pareceu se alegrar com a minha satisfação.

Paguei o corte, agradeci a água, dei uma olhadela de cima em baixo para a secretária de vestido de colante azul-marinho e prometi solenemente voltar outras vezes. Não por ele, mas pelo sorriso indescritível da bela potranca, que devolveu com um tchauzinho maroto e um piscar de olhos discreto, a minha observação detalhada às suas enormes pernas roliças.

Lá fora, enquanto espiava a vitrine de uma loja de conveniências, pensei com meus botões:

– “Bem, acho que esse barbeiro tem problemas com a voz. É de fato fanhoso, ou não sabe escrever o próprio nome. Ou via outra: está a fim de tirar um sarro com os meus cornos. Ou com os meus córneos. E por que não? Bilson com W. Onde já se biu?”.

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. As mentiras que as mulheres gostam de ouvir. RJ: Editora AMCGuedes, 2013