Os manuais e os dicionários de literatura ensinam que o conto deve ter em si um só drama, um só conflito, uma só unidade dramática, uma só história, uma só ação, uma única célula dramática. Por isso, o conto rejeita as digressões e as extrapolações, ou seja, o passado anterior ao episódio é irrelevante, assim como o são os sucessos posteriores. Sendo o tempo limitado ao momento do drama, também o espaço seria circunscrito a uma sala, um cômodo. Sendo tudo tão restrito, por que as personagens seriam muitas? E a linguagem do conto? A da concisão, com predomínio do diálogo. Chegado o epílogo, o contista há de ter guardado um enigma. Ou o desfecho inesperado, embora determinado desde o começo. E mais uma infinidade de regras, limites, modelos.
Se todos os contistas assim elaborassem contos, há muito teríamos deixado de lado esse gênero cada vez mais rico, por se empobrecer, se uniformizar. Pois não é difícil escrever conto com obediência ao enunciado nos manuais. Os próprios escritores de manuais, os dicionaristas, os professores de literatura, os estudiosos do conto seriam bons contistas. Bastava-lhes seguir o modelo. E assim se deu durante muito tempo. E assim se dá há muito tempo. Não se pode negar, no entanto, que bons contistas não se afastaram de todo (ou em todas as composições) desse molde. Machado de Assis elaborou contos de estrutura tradicional. Guimarães Rosa também. E tantos outros. Assim como escritores medíocres realizaram contos de forma nova, moderna ou revolucionária. Ou seja, o bom conto tanto pode se moldar na tradição como na inovação. Ou não se moldar a nada.
Wilson Martins, no artigo “Contistas”, fez estas observações: “Em termos de literatura, escrever um conto não é contar uma história por escrito — é contá-la com estilo literário, ou seja, com elegância linguística, verossimilhança, sábia estruturação no desenvolvimento da intriga, desenho convincente no caráter dos personagens e invenção de pormenores, tudo concorrendo para defini-lo como obra de arte literária. Também nessa arte tem validade a lei de economia segundo a qual a moeda má expulsa a boa: desanimado com a enxurrada de pseudocontos publicados por pseudocontistas, Mário de Andrade, em desespero de causa, declarou ser conto tudo o que os autores designam como conto – afirmação sarcástica cuja ironia passou larga e convenientemente despercebida, com este resultado inesperado e não menos irônico: passou a ser conto tudo o que se publicava como conto...”
Segundo Assis Brasil, em A nova literatura (Rio de Janeiro: Companhia Editora Americana, 1973), o conto brasileiro se renovou com Samuel Rawet, cuja estreia se deu em 1956 na coleção Contos do Imigrante. E assim argumenta o crítico: “Aquela história linear, de começo, meio e fim, prima-pobre da novela e do romance, quebrava sua feição tradicional em busca de outros valores formais” (...) “o conto adquiria uma forma autônoma, não mais ligado ao convencional do enredo.”
Muitos são os contistas e poetas que mantinham engavetados (ou, melhor dizendo, arquivados em computador) seus escritos e, estimulados por leitores de sites e blogs (também escritores em potencial), resolveram publicar o primeiro livro. Alguns não vêm de muitas leituras, de muitos exercícios de escrita, ou leram e leem, apressadamente, tudo o que lhes aparece diante dos olhos, desde piadinhas e os chamados “contos eróticos” até clássicos da literatura universal. Leituras açodadas, sem anotações, sem consulta a dicionários, etc. A maioria desses novos escritores segue uma linha, um roteiro, uma estrada larga e longa, certos de que lhes espera a fama, a glória. Não conhecem as veredas, os atalhos, as pedras no meio do caminho, os córregos escondidos na mata. Muito menos os subterrâneos e os céus. Vão em procissão ou atrás do trio elétrico. Todos juntos, unidos, de mãos dadas. Seguem o padre, o pastor, o caminhão do som. Cantam o mesmo refrão. Estão na folia de reis ou na folia do carnaval. São foliões.
Poucos desses contistas e poetas novos vêm da leitura dos contos de fadas, dos poetas românticos, parnasianos e simbolistas, dos romancistas russos e franceses do século XIX, dos rabiscos na adolescência, dos primeiros versos na juventude, dos arremedos de contos e romances ao tempo da escola e da faculdade. Poucos se vão fazendo escritores. Sabem que não nascemos feitos, prontos. Muito menos que esse “estar pronto” (ou quase pronto) não se dá num passe de mágica.
Estreou em livro Graciliano Ramos aos 41 anos de idade. Isto não quer dizer que tenha começado a escrever tarde. O exercício de escrever está para o escritor como o exercício de andar e falar está para os recém-nascidos. O aprendizado faz-se lentamente. Escrever, no entanto, não é um mecanismo inerente a todos. Como não o é compor música ou pintar quadros. Exercitar o ato de escrever pode resultar num São Bernardo, após anos e anos de exercício contínuo, diário, quase febril. Ou pode redundar em historietas de gosto discutível. Isso quando o candidato a escritor é muito pretensioso. Quando não o é, termina escrevendo artigos ou reportagens. Se chegar a tanto.
A arte, ao contrário da ciência ou da sabedoria, é um mistério até para seu criador. Porque o artista é também um homem comum, embora momentaneamente arrebatado pelo mistério da arte. O artista não “entende” a arte que ele mesmo reflete, exceto no instante da “criação", ou, melhor dizendo, da captação. Se o chamado artista entende sua chamada arte, nem ele nem ela são artista e arte. São copiadores, no pior dos casos, ou técnicos em escrever, no caso do simplesmente escritor. Ou apenas homens inteligentes. O artista não é necessariamente um homem inteligente.
O narrador (autor de prosa de ficção), como o poeta, é um curioso, um escavador, um repórter. Um vagabundo à cata de aventuras, de pessoas, de fatos. Para disso extrair a matéria-prima de suas “criações” ou “criaturas”. Os outros não percebem nada, porque, no máximo, veem. Ou não veem, porque não buscam ver.
Nenhum ficcionista cria tipos, inventa personagens. Se o fizesse, estaria abstraindo o homem e fracassaria como escritor. O que realiza é, primeiro, uma descoberta, porque o ser humano é sempre terra desconhecida. Descobre o seu semelhante. Crê na sua existência, como os navegadores antigos acreditavam nos mundos novos. E parte no seu rumo. E o explora, sozinho. Penetra-o, confunde-se com ele. Revela-o. O ficcionista é um revelador. De mundos reais e quase sempre ignorados.
A história curta, tradicionalmente conhecida como conto, não só tem servido de objeto de discussões de ficcionistas e teóricos da literatura em busca de definições, como tem dado ensejo a constantes rebatismos, mercê das transformações que tem sofrido. Muitos encontraram belas e grandiosas definições. Arranjar, porém, novos nomes para o gênero parece tarefa sem proveito. Porque a cada definição e a cada transformação seria preciso um novo batismo. Assim, o termo relato, se serve a Borges, não se amolda a Rubião. Até um mesmo escritor cultua o gênero sob diversas formas.
Todo contista sonhará escrever um grande romance? Contos mais longos seriam ensaios para romances? Talvez sim, inconscientemente. Ensaio que não deveria ser levado ao palco, sob pena de vaias do público. Os bons narradores escrevem contos ou romances e novelas. Nunca confundem alhos com bugalhos.
Talvez seja equivocada a ideia de unidade temática em livro de contos. Ora, uma peça curta, como conto e poema, será sempre uma peça curta, mesmo que momentaneamente inserida num volume junto a outras. Quando se fala de “Cantiga de esponsais”, pouco importa se foi publicada neste ou naquela coleção de Machado de Assis, embora só pudesse estar em Histórias sem data, porque assim o quis o autor. Mas isso não significa nada para o leitor (é de interesse do pesquisador, do estudioso, do historiador, etc).
Os gêneros literários estão em constante mutação e interligação. No Brasil ainda se praticam contos aos modos de Flaubert, Balzac, Eça de Queiroz, Machado de Assis, Edgar Allan Poe, Maupassant, Tchecov e outros, todos diferentes entre si. Uns se perdem no meio do caminho e enveredam pela crônica. Outros querem escrever História, que também é crônica. Há até o conto-ensaio. A maioria, no entanto, permanece presa aos ditames do velho e bom realismo. Uns não se afastam do sertão ou do mundo rural. Outros se transviam pelos becos das urbes. Há os que não sabem de matos nem de ruas e preferem os meandros da mente. Uns leram muito, outros nada leram. Uns souberam vagar pelos abismos de Poe, pularam fora dos livros, outros permaneceram de olhos vidrados na paisagem aberta diante de suas janelas. Uns se exercitaram mais, outros se contentaram com os primeiros mugidos. Tem sido assim, é assim, será assim sempre.
Não há mais o conto, no sentido tradicional, dicionarizado do termo. Conto é apenas termo literário de manual e dicionário. Para orientação dos editores e dos professores de literatura. Quem disse que Machado só escreveu contos, romances, poemas e crônicas? Gilmar de Carvalho escreve legendas, Carlos Emílio escreve delírios verbais, Jorge Pieiro escreve contemas, outros querem imitar Maupassant ou Tchekov. O que importa não é a forma, se há atmosfera ou não, se há enredo ou não. Ser ou não ser conto, isto é lá para os filósofos. Importa ser arte literária.
Fortaleza, abril de 2010.
Fonte:
http://www.niltomaciel.net.br/
Se todos os contistas assim elaborassem contos, há muito teríamos deixado de lado esse gênero cada vez mais rico, por se empobrecer, se uniformizar. Pois não é difícil escrever conto com obediência ao enunciado nos manuais. Os próprios escritores de manuais, os dicionaristas, os professores de literatura, os estudiosos do conto seriam bons contistas. Bastava-lhes seguir o modelo. E assim se deu durante muito tempo. E assim se dá há muito tempo. Não se pode negar, no entanto, que bons contistas não se afastaram de todo (ou em todas as composições) desse molde. Machado de Assis elaborou contos de estrutura tradicional. Guimarães Rosa também. E tantos outros. Assim como escritores medíocres realizaram contos de forma nova, moderna ou revolucionária. Ou seja, o bom conto tanto pode se moldar na tradição como na inovação. Ou não se moldar a nada.
Wilson Martins, no artigo “Contistas”, fez estas observações: “Em termos de literatura, escrever um conto não é contar uma história por escrito — é contá-la com estilo literário, ou seja, com elegância linguística, verossimilhança, sábia estruturação no desenvolvimento da intriga, desenho convincente no caráter dos personagens e invenção de pormenores, tudo concorrendo para defini-lo como obra de arte literária. Também nessa arte tem validade a lei de economia segundo a qual a moeda má expulsa a boa: desanimado com a enxurrada de pseudocontos publicados por pseudocontistas, Mário de Andrade, em desespero de causa, declarou ser conto tudo o que os autores designam como conto – afirmação sarcástica cuja ironia passou larga e convenientemente despercebida, com este resultado inesperado e não menos irônico: passou a ser conto tudo o que se publicava como conto...”
Segundo Assis Brasil, em A nova literatura (Rio de Janeiro: Companhia Editora Americana, 1973), o conto brasileiro se renovou com Samuel Rawet, cuja estreia se deu em 1956 na coleção Contos do Imigrante. E assim argumenta o crítico: “Aquela história linear, de começo, meio e fim, prima-pobre da novela e do romance, quebrava sua feição tradicional em busca de outros valores formais” (...) “o conto adquiria uma forma autônoma, não mais ligado ao convencional do enredo.”
Muitos são os contistas e poetas que mantinham engavetados (ou, melhor dizendo, arquivados em computador) seus escritos e, estimulados por leitores de sites e blogs (também escritores em potencial), resolveram publicar o primeiro livro. Alguns não vêm de muitas leituras, de muitos exercícios de escrita, ou leram e leem, apressadamente, tudo o que lhes aparece diante dos olhos, desde piadinhas e os chamados “contos eróticos” até clássicos da literatura universal. Leituras açodadas, sem anotações, sem consulta a dicionários, etc. A maioria desses novos escritores segue uma linha, um roteiro, uma estrada larga e longa, certos de que lhes espera a fama, a glória. Não conhecem as veredas, os atalhos, as pedras no meio do caminho, os córregos escondidos na mata. Muito menos os subterrâneos e os céus. Vão em procissão ou atrás do trio elétrico. Todos juntos, unidos, de mãos dadas. Seguem o padre, o pastor, o caminhão do som. Cantam o mesmo refrão. Estão na folia de reis ou na folia do carnaval. São foliões.
Poucos desses contistas e poetas novos vêm da leitura dos contos de fadas, dos poetas românticos, parnasianos e simbolistas, dos romancistas russos e franceses do século XIX, dos rabiscos na adolescência, dos primeiros versos na juventude, dos arremedos de contos e romances ao tempo da escola e da faculdade. Poucos se vão fazendo escritores. Sabem que não nascemos feitos, prontos. Muito menos que esse “estar pronto” (ou quase pronto) não se dá num passe de mágica.
Estreou em livro Graciliano Ramos aos 41 anos de idade. Isto não quer dizer que tenha começado a escrever tarde. O exercício de escrever está para o escritor como o exercício de andar e falar está para os recém-nascidos. O aprendizado faz-se lentamente. Escrever, no entanto, não é um mecanismo inerente a todos. Como não o é compor música ou pintar quadros. Exercitar o ato de escrever pode resultar num São Bernardo, após anos e anos de exercício contínuo, diário, quase febril. Ou pode redundar em historietas de gosto discutível. Isso quando o candidato a escritor é muito pretensioso. Quando não o é, termina escrevendo artigos ou reportagens. Se chegar a tanto.
A arte, ao contrário da ciência ou da sabedoria, é um mistério até para seu criador. Porque o artista é também um homem comum, embora momentaneamente arrebatado pelo mistério da arte. O artista não “entende” a arte que ele mesmo reflete, exceto no instante da “criação", ou, melhor dizendo, da captação. Se o chamado artista entende sua chamada arte, nem ele nem ela são artista e arte. São copiadores, no pior dos casos, ou técnicos em escrever, no caso do simplesmente escritor. Ou apenas homens inteligentes. O artista não é necessariamente um homem inteligente.
O narrador (autor de prosa de ficção), como o poeta, é um curioso, um escavador, um repórter. Um vagabundo à cata de aventuras, de pessoas, de fatos. Para disso extrair a matéria-prima de suas “criações” ou “criaturas”. Os outros não percebem nada, porque, no máximo, veem. Ou não veem, porque não buscam ver.
Nenhum ficcionista cria tipos, inventa personagens. Se o fizesse, estaria abstraindo o homem e fracassaria como escritor. O que realiza é, primeiro, uma descoberta, porque o ser humano é sempre terra desconhecida. Descobre o seu semelhante. Crê na sua existência, como os navegadores antigos acreditavam nos mundos novos. E parte no seu rumo. E o explora, sozinho. Penetra-o, confunde-se com ele. Revela-o. O ficcionista é um revelador. De mundos reais e quase sempre ignorados.
A história curta, tradicionalmente conhecida como conto, não só tem servido de objeto de discussões de ficcionistas e teóricos da literatura em busca de definições, como tem dado ensejo a constantes rebatismos, mercê das transformações que tem sofrido. Muitos encontraram belas e grandiosas definições. Arranjar, porém, novos nomes para o gênero parece tarefa sem proveito. Porque a cada definição e a cada transformação seria preciso um novo batismo. Assim, o termo relato, se serve a Borges, não se amolda a Rubião. Até um mesmo escritor cultua o gênero sob diversas formas.
Todo contista sonhará escrever um grande romance? Contos mais longos seriam ensaios para romances? Talvez sim, inconscientemente. Ensaio que não deveria ser levado ao palco, sob pena de vaias do público. Os bons narradores escrevem contos ou romances e novelas. Nunca confundem alhos com bugalhos.
Talvez seja equivocada a ideia de unidade temática em livro de contos. Ora, uma peça curta, como conto e poema, será sempre uma peça curta, mesmo que momentaneamente inserida num volume junto a outras. Quando se fala de “Cantiga de esponsais”, pouco importa se foi publicada neste ou naquela coleção de Machado de Assis, embora só pudesse estar em Histórias sem data, porque assim o quis o autor. Mas isso não significa nada para o leitor (é de interesse do pesquisador, do estudioso, do historiador, etc).
Os gêneros literários estão em constante mutação e interligação. No Brasil ainda se praticam contos aos modos de Flaubert, Balzac, Eça de Queiroz, Machado de Assis, Edgar Allan Poe, Maupassant, Tchecov e outros, todos diferentes entre si. Uns se perdem no meio do caminho e enveredam pela crônica. Outros querem escrever História, que também é crônica. Há até o conto-ensaio. A maioria, no entanto, permanece presa aos ditames do velho e bom realismo. Uns não se afastam do sertão ou do mundo rural. Outros se transviam pelos becos das urbes. Há os que não sabem de matos nem de ruas e preferem os meandros da mente. Uns leram muito, outros nada leram. Uns souberam vagar pelos abismos de Poe, pularam fora dos livros, outros permaneceram de olhos vidrados na paisagem aberta diante de suas janelas. Uns se exercitaram mais, outros se contentaram com os primeiros mugidos. Tem sido assim, é assim, será assim sempre.
Não há mais o conto, no sentido tradicional, dicionarizado do termo. Conto é apenas termo literário de manual e dicionário. Para orientação dos editores e dos professores de literatura. Quem disse que Machado só escreveu contos, romances, poemas e crônicas? Gilmar de Carvalho escreve legendas, Carlos Emílio escreve delírios verbais, Jorge Pieiro escreve contemas, outros querem imitar Maupassant ou Tchekov. O que importa não é a forma, se há atmosfera ou não, se há enredo ou não. Ser ou não ser conto, isto é lá para os filósofos. Importa ser arte literária.
Fortaleza, abril de 2010.
Fonte:
http://www.niltomaciel.net.br/
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