"Com que então, Barbosa, você é pescador?"
Esta simples frase, dita numa voz branca, de um jeito quase distraído, me ia hoje rendendo uma quebra de amizade.
Frederico Paulo Barbosa Ramires é o homem mais calmo, sisudo e direito que jamais conheci. O senso comum encarnou-se nele como a seiva se infunde e se solidifica numa cabiúna. Dir-se-ia que a própria arquitetura de Barbosa fora armada com aquele material primário: os ossos robustos, as carnes duras, o corpanzil maciço, a fisionomia densa de hoplita membrudo. Familiarizamo-nos há muito. E nunca descobri no meu amigo uma trinca, um recanto desleixado, uma dependência indecisa e frouxa.
Vendo-o, hoje, no bonde, de caniço em punho, tive uma pequena surpresa, olhei para ele fiz-lhe aquela pergunta inócua. Parece que lhe toquei num ponto dolorido. Não se desconcertou, nem se irritou propriamente, mas respondeu-me com um nadinha de impertinência:
- "É verdade; pescador. Todos têm a sua mania, a minha é esta. Não faz mal a ninguém - senãoaos peixes. É higiênica, tem a sua dose de poesia..."
-"Bem, Barbosa, pesque, pesque, isso não precisa de justificação."
-"Mas, se eu quiser justificar?"
Fez então o elogio da pesca de vara. Uma pessoa fica à beira da água com a cana em punho, lança o anzol, e espera. Não há nisso nenhum desbarato de energias físicas nem morais. Por outro lado, não há tampouco a mínima astúcia nem a mínima violência. Fica à espera. Não corre atrás do peixe, não vai agarrá-lo. Nem o enxerga sequer. É como quem tira a sorte. O rio traz o peixe, o peixe vê a isca, engole-a, engasga-se. Então, o pescador sente na ponta da vara um estremecimento característico, dá-lhe um meneio, e puxa.
-"Como vê" (prosseguiu) "a intervenção do pescador é em tudo semelhante à do acaso, ou dos acidentes cegos que semeiam o curso dos rios e de todas as coisas. Ele espera, entendeu? ali, parado. Não vê o peixe, não sabe se o peixe virá, nem de que espécie há de ser caso venha;não sabe nada. Espera. É de uma imparcialidade absoluta."
-"Em todo caso atalhei, sabe que o rio é piscoso. E a imparcialidade, aí, quer dizer simplesmente que qualquer um serve."
-"Sim. Mas o peixe, se não pegasse no anzol, seria imortal? Não teria de morrer logo adiante?"
-"Dizem que eles têm o sestro de viver muito; até duzentos anos, conforme.,'
-"E você acredita isso? Quem é que contou os aniversários do peixe? E depois, olhe aqui, e depois que vem a ser um século ou dois diante da imensidade do tempo."
-"Alto lá, nós não vivemos a imensidade do tempo, Barbosa. Com esse artifício metafísico, se tem justificado muita pose de espíritos inumanos e muita monstruosidade material. Nós vivemos um minuto! Esse minuto é que deve ser a nossa medida. Tudo que o excede é imensurável. E, sendo imensurável, é sagrado."
-"Ahn..."
-"Mas, falando sério, você não precisa ter esse trabalho de justificar o seu gosto. Nada de repreensível na pesca, nem mesmo na caça. É lei do mundo que as espécies umas às outras se exterminem, por necessidade, por esporte, por prazer, por passar o tempo, é lei do homem que combata as outras espécies todas e a própria. Que lhe havemos de fazer? Observo-lhe, simplesmente, que a sua filosofia piscatória poderia justificar também uma larga parte da moral corrente nas relações humanas. Lança-se o anzol, fica-se à espera. Conheci um mercador que, fisgando e aleijando o freguês, não se desculpava por outra forma: Veio porque quis! Não obrigo ninguém a comprar."
-"Mas está muito direito" (replicou Barbosa). "Ele tinha razão. Eu, dono de um negócio, daria o preço que bem entendesse às minhas coisas."
-"Você não o faria, Barbosa."
-"Faria, sim, e você também."
-"Pois, se eu o fizesse, seria um espertalhão como qualquer outro."
Barbosa amuou, resmungou, e creio que só a sua sensatez e bonomia de animal forte, o impediu de levar adiante a contenda. Separamo-nos sem nos encarar. Fiquei penalizado com esse primeiro fio partido na teia de seda que vínhamos tecendo há tantos anos. Por um fio roto vai-se às vezes o tecido inteiro.
Fonte:
Domínio Público
Esta simples frase, dita numa voz branca, de um jeito quase distraído, me ia hoje rendendo uma quebra de amizade.
Frederico Paulo Barbosa Ramires é o homem mais calmo, sisudo e direito que jamais conheci. O senso comum encarnou-se nele como a seiva se infunde e se solidifica numa cabiúna. Dir-se-ia que a própria arquitetura de Barbosa fora armada com aquele material primário: os ossos robustos, as carnes duras, o corpanzil maciço, a fisionomia densa de hoplita membrudo. Familiarizamo-nos há muito. E nunca descobri no meu amigo uma trinca, um recanto desleixado, uma dependência indecisa e frouxa.
Vendo-o, hoje, no bonde, de caniço em punho, tive uma pequena surpresa, olhei para ele fiz-lhe aquela pergunta inócua. Parece que lhe toquei num ponto dolorido. Não se desconcertou, nem se irritou propriamente, mas respondeu-me com um nadinha de impertinência:
- "É verdade; pescador. Todos têm a sua mania, a minha é esta. Não faz mal a ninguém - senãoaos peixes. É higiênica, tem a sua dose de poesia..."
-"Bem, Barbosa, pesque, pesque, isso não precisa de justificação."
-"Mas, se eu quiser justificar?"
Fez então o elogio da pesca de vara. Uma pessoa fica à beira da água com a cana em punho, lança o anzol, e espera. Não há nisso nenhum desbarato de energias físicas nem morais. Por outro lado, não há tampouco a mínima astúcia nem a mínima violência. Fica à espera. Não corre atrás do peixe, não vai agarrá-lo. Nem o enxerga sequer. É como quem tira a sorte. O rio traz o peixe, o peixe vê a isca, engole-a, engasga-se. Então, o pescador sente na ponta da vara um estremecimento característico, dá-lhe um meneio, e puxa.
-"Como vê" (prosseguiu) "a intervenção do pescador é em tudo semelhante à do acaso, ou dos acidentes cegos que semeiam o curso dos rios e de todas as coisas. Ele espera, entendeu? ali, parado. Não vê o peixe, não sabe se o peixe virá, nem de que espécie há de ser caso venha;não sabe nada. Espera. É de uma imparcialidade absoluta."
-"Em todo caso atalhei, sabe que o rio é piscoso. E a imparcialidade, aí, quer dizer simplesmente que qualquer um serve."
-"Sim. Mas o peixe, se não pegasse no anzol, seria imortal? Não teria de morrer logo adiante?"
-"Dizem que eles têm o sestro de viver muito; até duzentos anos, conforme.,'
-"E você acredita isso? Quem é que contou os aniversários do peixe? E depois, olhe aqui, e depois que vem a ser um século ou dois diante da imensidade do tempo."
-"Alto lá, nós não vivemos a imensidade do tempo, Barbosa. Com esse artifício metafísico, se tem justificado muita pose de espíritos inumanos e muita monstruosidade material. Nós vivemos um minuto! Esse minuto é que deve ser a nossa medida. Tudo que o excede é imensurável. E, sendo imensurável, é sagrado."
-"Ahn..."
-"Mas, falando sério, você não precisa ter esse trabalho de justificar o seu gosto. Nada de repreensível na pesca, nem mesmo na caça. É lei do mundo que as espécies umas às outras se exterminem, por necessidade, por esporte, por prazer, por passar o tempo, é lei do homem que combata as outras espécies todas e a própria. Que lhe havemos de fazer? Observo-lhe, simplesmente, que a sua filosofia piscatória poderia justificar também uma larga parte da moral corrente nas relações humanas. Lança-se o anzol, fica-se à espera. Conheci um mercador que, fisgando e aleijando o freguês, não se desculpava por outra forma: Veio porque quis! Não obrigo ninguém a comprar."
-"Mas está muito direito" (replicou Barbosa). "Ele tinha razão. Eu, dono de um negócio, daria o preço que bem entendesse às minhas coisas."
-"Você não o faria, Barbosa."
-"Faria, sim, e você também."
-"Pois, se eu o fizesse, seria um espertalhão como qualquer outro."
Barbosa amuou, resmungou, e creio que só a sua sensatez e bonomia de animal forte, o impediu de levar adiante a contenda. Separamo-nos sem nos encarar. Fiquei penalizado com esse primeiro fio partido na teia de seda que vínhamos tecendo há tantos anos. Por um fio roto vai-se às vezes o tecido inteiro.
Fonte:
Domínio Público
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Levo a prosa e a poesia,
através de um boletim,
e também toda a magia
que elas trazem para mim.