Por isto ele tinha aquela grande tristeza,
Que ele nunca disse bem que tinha...
Fernando Pessoa
As patas do animal deslizaram no barro e a mão susteve a rédea para manter o equilíbrio. A chuva caía persistente e encharcava a longa crina castanha.
Olhos tristes, faces encovadas, aproximou-se da calçada alta e em rápida laçada prendeu o animal ao poste. Chegou-se ao balcão deserto, coberto de moscas:
– Uma dose. Forte. Bem forte.
O homem flácido embrulhou-se e recuou tímido antes de atendê-lo.
– Este frio que não passa...
O homem flácido entregou-lhe a bebida. Examinou o conteúdo do copo, onde pequenas borbulhas explodiam como pérolas.
– Da melhor.
– Obrigado.
Sorveu o líquido de uma vez e sentiu a sensação morna espalhar-se por todo o corpo. Enfiou as mãos nos bolsos do capote e deteve-se à porta. Circulou a vista pela praça deserta:
– Apenas o senhor vive neste lugar?
O homem escorou-se ao balcão e balbuciou palavras ininteligíveis.
– Todos se foram?
O homem flácido continuava a atropelar palavras.
– E se eu estivesse aqui para matá-lo?
O homem abria desmesuradamente os olhos e fazia gestos confusos com as mãos.
– Pensarei nisto, homem. Pensarei nisto.
Aproximou-se do animal e enxugou-lhe, com a aba do capote, o focinho gotejante. A vista caiu então no vulto, encolhido no banco tosco, no centro da praça. Voltou ao balcão e bateu muitas vezes com os nós dos dedos na madeira:
– Ele lá. Está vendo? Lá, no banco da praça. Persegue-me há anos. Sabia?
O olhar do homem flácido procurava compreender. O braço continuava apontando:
– Lá. No banco da praça.
O homem encolhia-se e mostrava-se mais balofo. E tinha medo dos olhos tristes.
– Persegue-me sempre, sem parar. Um tormento.
Voltou à porta, decidido. A praça mostrava-se deserta. Circulou pela calçada, olhos vigilantes e mais tristes. As casas, iguais e cinzentas, acachapadas sob o aguaceiro, cercadas de carrapicho. A igreja, ao centro, coberta de lodo e descascada, crescia monstruosa e ele teve uma ponta de medo. A água, em riachos, gorgolejava em muitas direções.
Recuou em passos lentos, levantou a aba do capote, desceu a do chapéu, para impedir que o vento continuasse a lhe navalhar o rosto.
O homem, debruçado ao balcão, disforme e pesado. Foi necessário que o suspendesse pelas axilas, acumulando o máximo de forças, e o jogasse sobre sacas. Então pulou o balcão e se serviu sucessivamente de doses douradas, até se sentir perfeitamente aquecido. Com esforço, transpôs uma das sacas sobre o balcão e aproximou-a do animal:
– Farte-se.
Apanhou, nadando no enxurro, o pedaço de madeira com muitos nós, e sopesou-o. Ao erguer-se, os olhos abriram-se surpresos e depois semicerraram-se desconfiados para estudar, com cuidado, o vulto ali encolhido no banco tosco, meio enfiado na lama, no centro da praça.
Voltou rápido e bateu o pedaço de madeira com tal violência no balcão que o homem deslizou pela parede como enguia.
– Persegue-me sempre! Não me deixa em paz.
Pegou o homem pelo braço, decidido:
– Venha.
Trouxe-o por sobre o balcão, as pernas gordas a atrapalhar.
– Venha!
Empurrou-o porta afora e juntos percorreram a calçada. Estacou. O banco estava deserto, lá sozinho no centro da praça, meio encoberto pelo mata-pasto, e cresceu-lhe por isto um começo de ódio e decepção.
– Volte, homem, para a sua venda. Não preciso mais de você.
Sentou-se na ponta da calçada, junto ao animal, que focinhava o conteúdo da saca, na pressa de comer. O capote aberto, indiferente ao vento frio, não afastava os olhos do banco tosco e deserto. Demorou-se ali longamente. Depois levantou-se, abotoou-se até o pescoço, voltou a descer as abas do chapéu e a subir a gola do capote. Firmou na mão o pedaço de madeira e saiu, blote, blote, a mergulhar as botas no barro mole, disposto a uma inspeção. O animal, farto, escorou-se ao poste, sonolento, indiferente à chuva.
Aproximou-se do velho banco de madeira carcomida, derreado na lama e no mato crescido. As casas pareciam vigiá-lo. A igreja bem plantada e disforme no meio do capinzal que alcançava os peitos.
Parou diante da porta e pensou em abri-la em encontrão rápido. O sentimento de respeito fê-lo apenas encostar os dedos. Surpreendeu-se ao vê-la ceder sem esforço e escancarar-se par em par. A nave pareceu-lhe imensa, sem fim e deserta. Os passos reboaram e ele passou a mudá-los com prudência. A abóbada, lá no alto, e o crucifixo, lá distante, deram-lhe conta de que estava sozinho. Voltou sobre os próprios passos e se deteve à porta escancarada para o tempo. O vulto estava no banco, encurvado e solitário. O ódio e o desespero crisparam-lhe os dedos no pedaço de madeira.
Aproximou-se pisando em tufos de capim. Viu-se às costas do vulto, que se tornara mais impreciso, envolto que estava na espessa neblina. O braço subiu e caiu em pancadas violentas e sucessivas, até sentir-se exausto e descobrir que o pedaço de madeira se partira em farpas miúdas.
Voltou para junto do animal. Estirou-se na calçada, abriu o capote, jogou o chapéu para o lado, desabotoou a camisa e recebeu no peito, como um bálsamo, a água fria que caía em cortina cerrada. Poderia dormir profundamente e deixar o tempo passar.
Então aproximaram-se e seguram-lhe os pulsos. A multidão fechava o círculo e o homem flácido mostrava-se ainda apavorado:
– Entrou aqui na venda, tirou-me do sono, bebeu e espancou-me.
O homem fardado olhou-o nos olhos e o homem flácido ampliou os gestos:
– Arrastou-me aqui fora, por cima do balcão. Aqui fora.
O dedo gordo, igualmente flácido, apontou trêmulo para a saca:
– E tudo aquilo, de muito valor e de minha propriedade, para o cavalo dele. Prejuízo grande.
O homem fardado ordenou que se afastassem. Austero e silencioso, examinou o animal. Depois, encurvado, mãos nos joelhos, estudou o homem de faces encovadas estirado na calçada:
– Encapotado como está, e com este sol, de onde terá vindo?
Voltou ao animal. Verificou sela, arreios.
– Coberto de suor. Estafado. Vê-se logo.
A voz cansada e catarrosa de um velho tão velho que não tinha mais o que envelhecer se destacou por entre as muitas cabeças:
– Muitos se foram, amargurados e tristes, no tempo das chuvas e das pestes na Lagoa Grande. Lembram-se? Parece um deles.
O homem fardado encarou o velho bem velho, com ar de incredulidade:
– Muitos e muitos anos já se passaram, velho. Anos e mais anos.
Depois, mostrou-se revoltado:
– Ninguém surgiu, da multidão tão grande, a passear na praça ou a rezar na igreja, para segurar-lhe o braço e impedir que desse cabo daquele pobre coitado, que apareceu por aqui e ninguém sabe também de onde veio.
Voltou a examinar, detidamente, o homem encapotado, estendido na calçada, e sentiu por ele, inexplicavelmente, muita pena.
– Dorme profundamente.
Pensou um instante e concluiu:
– Melhor assim.
E olhou na direção do morro, para os lados da serra do Catolé:
– Levem-no e julguem-no.
(Caio Porfírio Carneiro, Chuva: Os dez cavaleiros)
Fontes
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.
Que ele nunca disse bem que tinha...
Fernando Pessoa
As patas do animal deslizaram no barro e a mão susteve a rédea para manter o equilíbrio. A chuva caía persistente e encharcava a longa crina castanha.
Olhos tristes, faces encovadas, aproximou-se da calçada alta e em rápida laçada prendeu o animal ao poste. Chegou-se ao balcão deserto, coberto de moscas:
– Uma dose. Forte. Bem forte.
O homem flácido embrulhou-se e recuou tímido antes de atendê-lo.
– Este frio que não passa...
O homem flácido entregou-lhe a bebida. Examinou o conteúdo do copo, onde pequenas borbulhas explodiam como pérolas.
– Da melhor.
– Obrigado.
Sorveu o líquido de uma vez e sentiu a sensação morna espalhar-se por todo o corpo. Enfiou as mãos nos bolsos do capote e deteve-se à porta. Circulou a vista pela praça deserta:
– Apenas o senhor vive neste lugar?
O homem escorou-se ao balcão e balbuciou palavras ininteligíveis.
– Todos se foram?
O homem flácido continuava a atropelar palavras.
– E se eu estivesse aqui para matá-lo?
O homem abria desmesuradamente os olhos e fazia gestos confusos com as mãos.
– Pensarei nisto, homem. Pensarei nisto.
Aproximou-se do animal e enxugou-lhe, com a aba do capote, o focinho gotejante. A vista caiu então no vulto, encolhido no banco tosco, no centro da praça. Voltou ao balcão e bateu muitas vezes com os nós dos dedos na madeira:
– Ele lá. Está vendo? Lá, no banco da praça. Persegue-me há anos. Sabia?
O olhar do homem flácido procurava compreender. O braço continuava apontando:
– Lá. No banco da praça.
O homem encolhia-se e mostrava-se mais balofo. E tinha medo dos olhos tristes.
– Persegue-me sempre, sem parar. Um tormento.
Voltou à porta, decidido. A praça mostrava-se deserta. Circulou pela calçada, olhos vigilantes e mais tristes. As casas, iguais e cinzentas, acachapadas sob o aguaceiro, cercadas de carrapicho. A igreja, ao centro, coberta de lodo e descascada, crescia monstruosa e ele teve uma ponta de medo. A água, em riachos, gorgolejava em muitas direções.
Recuou em passos lentos, levantou a aba do capote, desceu a do chapéu, para impedir que o vento continuasse a lhe navalhar o rosto.
O homem, debruçado ao balcão, disforme e pesado. Foi necessário que o suspendesse pelas axilas, acumulando o máximo de forças, e o jogasse sobre sacas. Então pulou o balcão e se serviu sucessivamente de doses douradas, até se sentir perfeitamente aquecido. Com esforço, transpôs uma das sacas sobre o balcão e aproximou-a do animal:
– Farte-se.
Apanhou, nadando no enxurro, o pedaço de madeira com muitos nós, e sopesou-o. Ao erguer-se, os olhos abriram-se surpresos e depois semicerraram-se desconfiados para estudar, com cuidado, o vulto ali encolhido no banco tosco, meio enfiado na lama, no centro da praça.
Voltou rápido e bateu o pedaço de madeira com tal violência no balcão que o homem deslizou pela parede como enguia.
– Persegue-me sempre! Não me deixa em paz.
Pegou o homem pelo braço, decidido:
– Venha.
Trouxe-o por sobre o balcão, as pernas gordas a atrapalhar.
– Venha!
Empurrou-o porta afora e juntos percorreram a calçada. Estacou. O banco estava deserto, lá sozinho no centro da praça, meio encoberto pelo mata-pasto, e cresceu-lhe por isto um começo de ódio e decepção.
– Volte, homem, para a sua venda. Não preciso mais de você.
Sentou-se na ponta da calçada, junto ao animal, que focinhava o conteúdo da saca, na pressa de comer. O capote aberto, indiferente ao vento frio, não afastava os olhos do banco tosco e deserto. Demorou-se ali longamente. Depois levantou-se, abotoou-se até o pescoço, voltou a descer as abas do chapéu e a subir a gola do capote. Firmou na mão o pedaço de madeira e saiu, blote, blote, a mergulhar as botas no barro mole, disposto a uma inspeção. O animal, farto, escorou-se ao poste, sonolento, indiferente à chuva.
Aproximou-se do velho banco de madeira carcomida, derreado na lama e no mato crescido. As casas pareciam vigiá-lo. A igreja bem plantada e disforme no meio do capinzal que alcançava os peitos.
Parou diante da porta e pensou em abri-la em encontrão rápido. O sentimento de respeito fê-lo apenas encostar os dedos. Surpreendeu-se ao vê-la ceder sem esforço e escancarar-se par em par. A nave pareceu-lhe imensa, sem fim e deserta. Os passos reboaram e ele passou a mudá-los com prudência. A abóbada, lá no alto, e o crucifixo, lá distante, deram-lhe conta de que estava sozinho. Voltou sobre os próprios passos e se deteve à porta escancarada para o tempo. O vulto estava no banco, encurvado e solitário. O ódio e o desespero crisparam-lhe os dedos no pedaço de madeira.
Aproximou-se pisando em tufos de capim. Viu-se às costas do vulto, que se tornara mais impreciso, envolto que estava na espessa neblina. O braço subiu e caiu em pancadas violentas e sucessivas, até sentir-se exausto e descobrir que o pedaço de madeira se partira em farpas miúdas.
Voltou para junto do animal. Estirou-se na calçada, abriu o capote, jogou o chapéu para o lado, desabotoou a camisa e recebeu no peito, como um bálsamo, a água fria que caía em cortina cerrada. Poderia dormir profundamente e deixar o tempo passar.
Então aproximaram-se e seguram-lhe os pulsos. A multidão fechava o círculo e o homem flácido mostrava-se ainda apavorado:
– Entrou aqui na venda, tirou-me do sono, bebeu e espancou-me.
O homem fardado olhou-o nos olhos e o homem flácido ampliou os gestos:
– Arrastou-me aqui fora, por cima do balcão. Aqui fora.
O dedo gordo, igualmente flácido, apontou trêmulo para a saca:
– E tudo aquilo, de muito valor e de minha propriedade, para o cavalo dele. Prejuízo grande.
O homem fardado ordenou que se afastassem. Austero e silencioso, examinou o animal. Depois, encurvado, mãos nos joelhos, estudou o homem de faces encovadas estirado na calçada:
– Encapotado como está, e com este sol, de onde terá vindo?
Voltou ao animal. Verificou sela, arreios.
– Coberto de suor. Estafado. Vê-se logo.
A voz cansada e catarrosa de um velho tão velho que não tinha mais o que envelhecer se destacou por entre as muitas cabeças:
– Muitos se foram, amargurados e tristes, no tempo das chuvas e das pestes na Lagoa Grande. Lembram-se? Parece um deles.
O homem fardado encarou o velho bem velho, com ar de incredulidade:
– Muitos e muitos anos já se passaram, velho. Anos e mais anos.
Depois, mostrou-se revoltado:
– Ninguém surgiu, da multidão tão grande, a passear na praça ou a rezar na igreja, para segurar-lhe o braço e impedir que desse cabo daquele pobre coitado, que apareceu por aqui e ninguém sabe também de onde veio.
Voltou a examinar, detidamente, o homem encapotado, estendido na calçada, e sentiu por ele, inexplicavelmente, muita pena.
– Dorme profundamente.
Pensou um instante e concluiu:
– Melhor assim.
E olhou na direção do morro, para os lados da serra do Catolé:
– Levem-no e julguem-no.
(Caio Porfírio Carneiro, Chuva: Os dez cavaleiros)
Fontes
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.
Imagem = Cavaleiro da Morte, de Lúcio Mota
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Levo a prosa e a poesia,
através de um boletim,
e também toda a magia
que elas trazem para mim.