A tia não queria que matasse os insetos, afugentasse os bichos. As baratas voavam na cozinha, caíam na xícara de leite.
— Ninguém sabe o que é inseto, ninguém sabe o que é bicho.
A loucura da tia, a casa em desordem, virada pelo avesso. Moscas, baratas, ratos, como donos da casa, invadindo tudo, roendo, roubando, destruindo.
— Tia, viu minhas meias?
— Procure, menino; procure. Não criaram asas. Estão n’algum lugar.
— Botei dentro dos sapatos, vai ver que os ratos levaram.
— Não levaram, menino; você precisa amar os bichos. Sua mãe não lhe queria assim.
— Pois bem; eu quero agora as minhas meias e não encontro. Não encontro porque os diabos dos ratos são os donos da casa.
— Diabos? Não diga isso, menino; não fale assim. O Demônio nunca porá os pés enquanto viva eu estiver. Espere um pouco, tenha paciência, e eu encontro suas meias.
Saiu pela casa inteira, chouteando nas chinelas de couro, espiando os cantos das alcovas. Acendeu uma vela. Alumiou buracos, frinchas. Meteu a mão num velho urinol fora de uso, e um ratinho escorregou-lhe entre os dedos, e fez cuí-qui ao cair no chão. Ela apanhou o filhote e colocou no fundo do ninho. Voltou ao quarto dele e estendeu-lhe duas cédulas.
— Compre, menino, na loja de seu Domingos, um par igualzinho ao seu.
— Juro como um dia destes acabo com esta praga — rosnou o menino.
— Não acaba, não. Eles são como filhos, como você. Não vê que nunca me casei? Não vê que nunca tive filhos? No dia em que você se casar, o que será feito de mim, sem eles?
O menino sentiu o azedume das palavras, mas logo esqueceu.
"No dia em que você se casar..."
Sua inocência chegava a tanto. Não lhe passava pela cabeça que o sobrinho...
— A senhora não vê que este menino...
— Maldade. Por isso o Demônio andava solto no mundo, atentando as criaturas.
— A senhora não vê que ele é igualzinho a uma menina?
— É bonitinho, sim; igualzinho à mãe dele.
As pessoas abanavam a cabeça, desoladas. Ela não compreendia, meio aluada — doença de solteirona, envelhecendo sozinha, numa casa cheia de ratos e baratas.
Fontes:
http://www.germinaliteratura.com.br/2009/colunapanaplo_jorgepieiro_out2009.htm
Imagem = http://escritasdatiaju.blogspot.com
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