Com franqueza, esta Bulgária
Vai-me esgotando a paciência;
Lembra a ilha Baratária,
Onde, após uma audiência,
Sancho, que naquele dia
Começara a governá-la,
Foi, com muita cortesia,
Levado a uma grande sala.
Tinha uma fome de rato
O governador recente,
E viu prato, e prato, e prato,
Prato de atolar o dente.
Quanto manjar, quanto molho,
Não direi, por mais que diga;
Só a vista enchia o olho...
Restava encher a barriga.
Mas tão depressa acudia
Algum servo respeitoso,
Trazendo-lhe uma iguaria
De cheirinho apetitoso,
Um doutor, que se postara
Ao lado, sem mais demora
Fazia um gesto co’a vara,
E ia-se a iguaria embora.
Afinal, pergunta o Sancho
Que era aquela caçoada.
Responde o doutor, mui ancho,
Que nada, não era nada.
Que, como ele tinha a cargo
A sua saúde e vida,
Cabia-lhe pôr embargo
A uma ou outra comida.
— “Bem, então dê-me essas belas,
Maravilhosas perdizes”.
— “Livre-o Deus de tocar nelas,
Nem de chegar-lhe os narizes”.
— “Mas, aquele gordo coelho
Espero que me não negue”.
— “Senhor, o melhor conselho
É que nem sequer lhe pegue”.
— “Naquele prato travesso
Cuido que há olha-podrida”.
— “Não coma, por Deus lh'o peço!
Aquilo espatifa a vida.
“Deixe Vossa Senhoria
A cônegos e a reitores
Essa péssima iguaria
Que tanto estraga os humores”.
E o pobre Sancho com fome,
Por mais que lhe dê na gana,
Tudo pede e nada come,
Até que se desengana.
Assim anda a tal Bulgária;
Elege, mas não elege,
Pois, como na Baratária,
Há um doutor que a protege.
“Este príncipe!” — “Não presta;
Faz-lhe mal aos intestinos”.
— “Est'outro?” — “Escolha funesta”.
— “Aquel'outro?” — “Um valdevinos.
“Para os seus humores basta
Este da Mingrélia; é moço,
Boa cara e boa casta;
Demais, pertence ao colosso”.
E a Bulgária, se há de os braços
Estender e recebê-lo,
Fazendo assim com abraços,
Em vez de a murros fazê-lo,
Timeos Danaos, et dona
Ferentes, pensa consigo;
E com ar de valentona,
Recusa o presente amigo.
Bulgária dos meus pecados,
Imita o meu pobre Sancho,
Que, vendo os pratos negados,
Agarrou um pão a gancho.
Um pão seco e frescas uvas,
Acaba essas longas bodas.
Já tens véu, grinalda e luvas,
Escolhe uma vez por todas.
E, tomando a liberdade
De te chamar D. Amélia
(Ó rima! Ó necessidade!)
Bulgária, escolhe o Mingrélia!
Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.
Vai-me esgotando a paciência;
Lembra a ilha Baratária,
Onde, após uma audiência,
Sancho, que naquele dia
Começara a governá-la,
Foi, com muita cortesia,
Levado a uma grande sala.
Tinha uma fome de rato
O governador recente,
E viu prato, e prato, e prato,
Prato de atolar o dente.
Quanto manjar, quanto molho,
Não direi, por mais que diga;
Só a vista enchia o olho...
Restava encher a barriga.
Mas tão depressa acudia
Algum servo respeitoso,
Trazendo-lhe uma iguaria
De cheirinho apetitoso,
Um doutor, que se postara
Ao lado, sem mais demora
Fazia um gesto co’a vara,
E ia-se a iguaria embora.
Afinal, pergunta o Sancho
Que era aquela caçoada.
Responde o doutor, mui ancho,
Que nada, não era nada.
Que, como ele tinha a cargo
A sua saúde e vida,
Cabia-lhe pôr embargo
A uma ou outra comida.
— “Bem, então dê-me essas belas,
Maravilhosas perdizes”.
— “Livre-o Deus de tocar nelas,
Nem de chegar-lhe os narizes”.
— “Mas, aquele gordo coelho
Espero que me não negue”.
— “Senhor, o melhor conselho
É que nem sequer lhe pegue”.
— “Naquele prato travesso
Cuido que há olha-podrida”.
— “Não coma, por Deus lh'o peço!
Aquilo espatifa a vida.
“Deixe Vossa Senhoria
A cônegos e a reitores
Essa péssima iguaria
Que tanto estraga os humores”.
E o pobre Sancho com fome,
Por mais que lhe dê na gana,
Tudo pede e nada come,
Até que se desengana.
Assim anda a tal Bulgária;
Elege, mas não elege,
Pois, como na Baratária,
Há um doutor que a protege.
“Este príncipe!” — “Não presta;
Faz-lhe mal aos intestinos”.
— “Est'outro?” — “Escolha funesta”.
— “Aquel'outro?” — “Um valdevinos.
“Para os seus humores basta
Este da Mingrélia; é moço,
Boa cara e boa casta;
Demais, pertence ao colosso”.
E a Bulgária, se há de os braços
Estender e recebê-lo,
Fazendo assim com abraços,
Em vez de a murros fazê-lo,
Timeos Danaos, et dona
Ferentes, pensa consigo;
E com ar de valentona,
Recusa o presente amigo.
Bulgária dos meus pecados,
Imita o meu pobre Sancho,
Que, vendo os pratos negados,
Agarrou um pão a gancho.
Um pão seco e frescas uvas,
Acaba essas longas bodas.
Já tens véu, grinalda e luvas,
Escolhe uma vez por todas.
E, tomando a liberdade
De te chamar D. Amélia
(Ó rima! Ó necessidade!)
Bulgária, escolhe o Mingrélia!
Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.
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Levo a prosa e a poesia,
através de um boletim,
e também toda a magia
que elas trazem para mim.