“Tu és Cólera, e sobre esta
Doença amiga edifico
A minha igreja, e uma sesta
Perpétua, em ficando rico”.
Assim me dizia o Bento
Da Silva Luz, boticário,
Inventor de um cozimento,
Inócuo e pecuniário.
E, vendo que eu o escutara,
Cheio de alegria e riso,
Como alguém que se prepara
A ter igual paraíso,
Quis saber qual fosse a causa
Daquela expressão ridente;
Eu, depois de certa pausa,
Disse-lhe naturalmente:
— “Quando cogito em que a peste
Pode entrar por nossa casa,
Cuido no favor celeste
Que trará pendente na asa.
Deu ela entre alienados
De Buenos-Aires, matando
Metade dos atacados,
E nova gente atacando.
Cada telegrama conta
Dois, três, cinco, oito, dez loucos,
Que ficam de mala pronta
E vão deixando isto aos poucos.
Não tarda que o derradeiro
Hóspede saia do asilo
E fique o edifício inteiro
Despovoado e tranqüilo.
E calcule agora a soma
De palácios encantados,
Feitos de nácar e goma,
Telhados e destelhados;
Calcule os pássaros feios
De asas longas, longas pernas,
Que enchem por todos os meios
As frias noites eternas;
Calcule as meias idéias
Feitas de meias lembranças,
E a meia luz das candeias,
E a meia flor de esperanças;
E as gargalhadas sem boca,
Ouvidas perpetuamente,
Ora claras, ora roucas,
E as conversações sem gente.
Farrapos de consciência,
Cozidos pelo delírio,
E uma enorme concorrência
De patuscada e martírio;
Calcule agora essa vida
De doidos enclausurados,
De repente interrompida,
E os corpos amortalhados.
Nem sempre a peste é moléstia,
Sacramentos e ataúde;
Aos doidos vale uma réstia
De inesperada saúde.
Por isso é que, quando penso
Naquele monstro terrível,
Acho um beneficio imenso,
Que o torna bom e aprazível.
E digo: Oh! abençoado
Destino que tal prescreve!
Que haja ao pé do alienado
A epidemia que o leve!”
Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.
Doença amiga edifico
A minha igreja, e uma sesta
Perpétua, em ficando rico”.
Assim me dizia o Bento
Da Silva Luz, boticário,
Inventor de um cozimento,
Inócuo e pecuniário.
E, vendo que eu o escutara,
Cheio de alegria e riso,
Como alguém que se prepara
A ter igual paraíso,
Quis saber qual fosse a causa
Daquela expressão ridente;
Eu, depois de certa pausa,
Disse-lhe naturalmente:
— “Quando cogito em que a peste
Pode entrar por nossa casa,
Cuido no favor celeste
Que trará pendente na asa.
Deu ela entre alienados
De Buenos-Aires, matando
Metade dos atacados,
E nova gente atacando.
Cada telegrama conta
Dois, três, cinco, oito, dez loucos,
Que ficam de mala pronta
E vão deixando isto aos poucos.
Não tarda que o derradeiro
Hóspede saia do asilo
E fique o edifício inteiro
Despovoado e tranqüilo.
E calcule agora a soma
De palácios encantados,
Feitos de nácar e goma,
Telhados e destelhados;
Calcule os pássaros feios
De asas longas, longas pernas,
Que enchem por todos os meios
As frias noites eternas;
Calcule as meias idéias
Feitas de meias lembranças,
E a meia luz das candeias,
E a meia flor de esperanças;
E as gargalhadas sem boca,
Ouvidas perpetuamente,
Ora claras, ora roucas,
E as conversações sem gente.
Farrapos de consciência,
Cozidos pelo delírio,
E uma enorme concorrência
De patuscada e martírio;
Calcule agora essa vida
De doidos enclausurados,
De repente interrompida,
E os corpos amortalhados.
Nem sempre a peste é moléstia,
Sacramentos e ataúde;
Aos doidos vale uma réstia
De inesperada saúde.
Por isso é que, quando penso
Naquele monstro terrível,
Acho um beneficio imenso,
Que o torna bom e aprazível.
E digo: Oh! abençoado
Destino que tal prescreve!
Que haja ao pé do alienado
A epidemia que o leve!”
Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.
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Levo a prosa e a poesia,
através de um boletim,
e também toda a magia
que elas trazem para mim.