NILTO MACIEL
Baturité, 1945
DOMADOR
E essa cabeça dura,
teimosa, olhando além do lombo,
esses pés inquietos,
sofridos, pisando em brasa,
esse corpo pesado,
dormente, retorcendo-se na cama.
De que adianta
escancarar a boca,
como porta de igreja,
se dentro a descrença
bate contra o teto,
desassossegado morcego?
Se não é possível
bordejar de novo
o primeiro gemido,
quando essa palavra torpe
não passava de invenção
de menino-prodígio?
Calo-me, feito um bode mudo
que não esqueceu de remoer
as próprias vísceras,
teimosas, presas aos dentes.
E mordo o travesseiro
– animal travesso –,
chuto a sombra
– doido varrido –,
aperto a cabeça
para domar essa coisa
que me atravessa a vida
como a ferrugem da faca.
INSÔNIA
Foge, demônio secular, maldito,
deixa dormir serenamente e só
este menino de ilusões refeito,
deixa-o sonhar seus anjos coloridos.
Pela janela deste quarto foge,
invade a noite e seu silêncio breve,
e esquece este menino sonhador,
que se deitou para sonhar comigo.
Arreda, pois este inocente ser
feito de fantasia é bem capaz
de te domar, de te fazer dormir.
É bem capaz de transformar-te, e já,
num anjo bom, numa mulher, talvez,
e se perder contigo em sonhos maus.
IMAGENS
Eu olhava para a Lua
e via São Jorge
e um dragão em luta.
Faz tanto tempo aquilo
que ate penso
ser nova a lua de agora.
Olho de novo para o céu.
Há nuvens, muitas nuvens,
como se fosse desabar
uma tempestade.
E faz frio, muito frio,
ao meu redor.
É como se a lua fosse
uma imagem
dentro de outra imagem.
E eu a imagem
da grande imagem
de mim mesmo.
CONTEMPLAÇÃO
Para além daquelas escuridões,
cobras destilam veneno
e se entre-devoram.
Horror!!!
A beira do precipício,
sondo-me.
Eu, o mais próximo de mim,
pouco me vejo,
tão insondável me sinto..
O meu abismo sou.
O TEMPO
Não passa o tempo lento
que a gente nunca vê.
É como o vasto vento
que passa na tevê.
Frio cedo fazia,
faz agora calor.
Antes tudo doía,
já nem me dói a dor.
Tempos idos sonhei,
ninguém me viu sonhar.
Hoje, que me acordei,
não sei como acordar.
Faz anos fui nascer.
Ninguém me percebeu.
O destino a não ser,
e eu mesmo, apenas eu.
O tempo corre, corre,
e desce, sobe, desce,
e, enquanto a gente morre,
ele desaparece.
INDEFINIÇÃO
O homem não é sua sombra
por mais que assim queira a luz.
Nem o cachorro sarnento
é sua pálida sombra.
Nem a mais cálida árvore
é sua sombra soberba.
Não são os contornos do homem
a sua essência, sua alma,
e muito menos seu todo.
Há, entre a luz penetrante
e a rarefeita e delgada
sombra estendida, o cachorro,
a imóvel árvore presa,
há o homem livre e liberto.
Há no princípio luz-alfa,
como há no fim sombra-ômega.
A própria morte talvez,
ou sua véspera vil.
E aquele homem mortal
antes da sombra dá luz.
ALMA
Ó meus amigos
que rimos e choramos solidários:
noss'alma triste não vale a tristeza,
nem a alegria que trazemos nela.
Noss’alma não vai além da vida,
por mais que dure a inocência
ou a dor de ser mortal, de carne feito.
Nossa pequenina alma
não cabe sequer dentro da lágrima
ou do brilho dos olhos de quem ri.
Nossa alma, meus amigos,
é o desespero vão
de não podermos rir do próprio fim.
Fonte:
MACIEL, Nilto. Navegador: poemas. Brasília: Editora, 1996.
Baturité, 1945
DOMADOR
E essa cabeça dura,
teimosa, olhando além do lombo,
esses pés inquietos,
sofridos, pisando em brasa,
esse corpo pesado,
dormente, retorcendo-se na cama.
De que adianta
escancarar a boca,
como porta de igreja,
se dentro a descrença
bate contra o teto,
desassossegado morcego?
Se não é possível
bordejar de novo
o primeiro gemido,
quando essa palavra torpe
não passava de invenção
de menino-prodígio?
Calo-me, feito um bode mudo
que não esqueceu de remoer
as próprias vísceras,
teimosas, presas aos dentes.
E mordo o travesseiro
– animal travesso –,
chuto a sombra
– doido varrido –,
aperto a cabeça
para domar essa coisa
que me atravessa a vida
como a ferrugem da faca.
INSÔNIA
Foge, demônio secular, maldito,
deixa dormir serenamente e só
este menino de ilusões refeito,
deixa-o sonhar seus anjos coloridos.
Pela janela deste quarto foge,
invade a noite e seu silêncio breve,
e esquece este menino sonhador,
que se deitou para sonhar comigo.
Arreda, pois este inocente ser
feito de fantasia é bem capaz
de te domar, de te fazer dormir.
É bem capaz de transformar-te, e já,
num anjo bom, numa mulher, talvez,
e se perder contigo em sonhos maus.
IMAGENS
Eu olhava para a Lua
e via São Jorge
e um dragão em luta.
Faz tanto tempo aquilo
que ate penso
ser nova a lua de agora.
Olho de novo para o céu.
Há nuvens, muitas nuvens,
como se fosse desabar
uma tempestade.
E faz frio, muito frio,
ao meu redor.
É como se a lua fosse
uma imagem
dentro de outra imagem.
E eu a imagem
da grande imagem
de mim mesmo.
CONTEMPLAÇÃO
Para além daquelas escuridões,
cobras destilam veneno
e se entre-devoram.
Horror!!!
A beira do precipício,
sondo-me.
Eu, o mais próximo de mim,
pouco me vejo,
tão insondável me sinto..
O meu abismo sou.
O TEMPO
Não passa o tempo lento
que a gente nunca vê.
É como o vasto vento
que passa na tevê.
Frio cedo fazia,
faz agora calor.
Antes tudo doía,
já nem me dói a dor.
Tempos idos sonhei,
ninguém me viu sonhar.
Hoje, que me acordei,
não sei como acordar.
Faz anos fui nascer.
Ninguém me percebeu.
O destino a não ser,
e eu mesmo, apenas eu.
O tempo corre, corre,
e desce, sobe, desce,
e, enquanto a gente morre,
ele desaparece.
INDEFINIÇÃO
O homem não é sua sombra
por mais que assim queira a luz.
Nem o cachorro sarnento
é sua pálida sombra.
Nem a mais cálida árvore
é sua sombra soberba.
Não são os contornos do homem
a sua essência, sua alma,
e muito menos seu todo.
Há, entre a luz penetrante
e a rarefeita e delgada
sombra estendida, o cachorro,
a imóvel árvore presa,
há o homem livre e liberto.
Há no princípio luz-alfa,
como há no fim sombra-ômega.
A própria morte talvez,
ou sua véspera vil.
E aquele homem mortal
antes da sombra dá luz.
ALMA
Ó meus amigos
que rimos e choramos solidários:
noss'alma triste não vale a tristeza,
nem a alegria que trazemos nela.
Noss’alma não vai além da vida,
por mais que dure a inocência
ou a dor de ser mortal, de carne feito.
Nossa pequenina alma
não cabe sequer dentro da lágrima
ou do brilho dos olhos de quem ri.
Nossa alma, meus amigos,
é o desespero vão
de não podermos rir do próprio fim.
Fonte:
MACIEL, Nilto. Navegador: poemas. Brasília: Editora, 1996.
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Levo a prosa e a poesia,
através de um boletim,
e também toda a magia
que elas trazem para mim.