Que fará, estando junto
Sócrates a um hotentote?
Falo de varão defunto,
Pode sair livre o mote...
E, antes de mais nada, digo
Que essa junção de pessoas
Vi hoje mesmo em artigo
Repleto de cousas boas.
O artigo é de sociedade
Espírita e brasileira;
Trata só da humanidade,
É divisa sua e inteira.
Que eu já sou meio espírita,
Não há negá-lo. Costumo
Pôr na cabeça uma fita,
Em vez do chapéu a prumo.
Chamo à vida uma grã bota
Calçada pelo diabo;
Quando escrevo alguma nota,
Principio e não acabo.
Dou o João, velho amigo,
Nascido em cinqüenta e sete;
E ele, quando isto lhe digo,
Todo se alegra e derrete.
E proclamam em recompensa,
Que sou de cinqüenta e cinco;
Rimo-nos em boa avença,
Do meu brinco e do seu brinco.
Aqui há poucas semanas,
Puxei fieira na rua,
E comi sete bananas
Com pimenta e linha crua.
José Telha, que no sótão
Sustenta os seus macaquinhos,
Crê que alguns deles se botam
Para a casa dos vizinhos.
Mas eu respondo-lhe a cada
Palavra com heroísmo,
Que o que parece pancada,
É simples espiritismo.
E, voltando à vaca fria,
Sócrates era um sujeito
De grande filosofia,
Alta mente, heróico peito.
O hotentote, — conquanto
Lembre uma Vênus famosa
Pelo volumoso encanto,
Mas tão pouco volumosa,
Comparada àquela raça,
Tão pouco, como seria
Uma uva a uma taça,
A laranja à melancia;
O hotentote, em bestunto,
É pouco mais que um cavalo,
Dê-se-lhe um simples assunto,
Mal poderá penetrá-lo.
Mas, sendo um e outro feitos
Pela mesma mão divina,
Força é que sejam perfeitos,
Di-lo a grande Espiritina.
Daí a necessidade
De andar a gente em charola,
Não de cidade em cidade,
Mas de uma bola a outra bola.
Morre aqui algum peralta,
Que furtou grandes dinheiros,
Ressurge em bola mais alta,
Entre os simples caloteiros.
Vai a outra, e paga em dia
Todas as dívidas suas;
Vai a outra, e principia
A dar esmolas nas ruas.
Vai a outra, e já suprime
As ruas; chega à perfeita
Máxima pura e sublime
De só saber a direita.
Sobe finalmente à esfera
Onde uma sociedade
De arcanjos lindos o espera,
E o conduz à eternidade.
Ali Sócrates jocundo
Receberá o hotentote,
E falarão deste mundo,
E glosarão este mote:
— Para que há de haver juízes
Em Berlim, ou em outra parte?
Têm aqui iguais narizes
O inocente e Malazarte.
Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.
Sócrates a um hotentote?
Falo de varão defunto,
Pode sair livre o mote...
E, antes de mais nada, digo
Que essa junção de pessoas
Vi hoje mesmo em artigo
Repleto de cousas boas.
O artigo é de sociedade
Espírita e brasileira;
Trata só da humanidade,
É divisa sua e inteira.
Que eu já sou meio espírita,
Não há negá-lo. Costumo
Pôr na cabeça uma fita,
Em vez do chapéu a prumo.
Chamo à vida uma grã bota
Calçada pelo diabo;
Quando escrevo alguma nota,
Principio e não acabo.
Dou o João, velho amigo,
Nascido em cinqüenta e sete;
E ele, quando isto lhe digo,
Todo se alegra e derrete.
E proclamam em recompensa,
Que sou de cinqüenta e cinco;
Rimo-nos em boa avença,
Do meu brinco e do seu brinco.
Aqui há poucas semanas,
Puxei fieira na rua,
E comi sete bananas
Com pimenta e linha crua.
José Telha, que no sótão
Sustenta os seus macaquinhos,
Crê que alguns deles se botam
Para a casa dos vizinhos.
Mas eu respondo-lhe a cada
Palavra com heroísmo,
Que o que parece pancada,
É simples espiritismo.
E, voltando à vaca fria,
Sócrates era um sujeito
De grande filosofia,
Alta mente, heróico peito.
O hotentote, — conquanto
Lembre uma Vênus famosa
Pelo volumoso encanto,
Mas tão pouco volumosa,
Comparada àquela raça,
Tão pouco, como seria
Uma uva a uma taça,
A laranja à melancia;
O hotentote, em bestunto,
É pouco mais que um cavalo,
Dê-se-lhe um simples assunto,
Mal poderá penetrá-lo.
Mas, sendo um e outro feitos
Pela mesma mão divina,
Força é que sejam perfeitos,
Di-lo a grande Espiritina.
Daí a necessidade
De andar a gente em charola,
Não de cidade em cidade,
Mas de uma bola a outra bola.
Morre aqui algum peralta,
Que furtou grandes dinheiros,
Ressurge em bola mais alta,
Entre os simples caloteiros.
Vai a outra, e paga em dia
Todas as dívidas suas;
Vai a outra, e principia
A dar esmolas nas ruas.
Vai a outra, e já suprime
As ruas; chega à perfeita
Máxima pura e sublime
De só saber a direita.
Sobe finalmente à esfera
Onde uma sociedade
De arcanjos lindos o espera,
E o conduz à eternidade.
Ali Sócrates jocundo
Receberá o hotentote,
E falarão deste mundo,
E glosarão este mote:
— Para que há de haver juízes
Em Berlim, ou em outra parte?
Têm aqui iguais narizes
O inocente e Malazarte.
Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.
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Levo a prosa e a poesia,
através de um boletim,
e também toda a magia
que elas trazem para mim.