Peguei da mais rica pena,
Molhei-a na melhor tinta,
E fiz uma cantilena:
“Tinta que repinta e pinta”.
Que haja nisso algum sentido,
Livre-me Deus de escrevê-lo;
Sentido, bem entendido,
No sentido de entendê-lo.
Mas que há nessa linha escura
Uma íntima harmonia
Com tudo o mais que se apura
De tantos casos do dia,
Isso é que não há negá-lo,
Exceto se uma pessoa
Quiser fazer de cavalo,
Assim, sem mais nada, à toa.
Pois não andou toda a gente
Com a imaginação acesa,
Em busca do presidente
Da República Francesa?
Havia apostas. Um era
Ferry, outro — homem de espada,
Outro Freycinet quisera,
Outro — Floquet, outro — nada.
E de tanta gente oposta
Sai um que a ninguém havia
Feito cuidar em aposta,
Se seria ou não seria...
Já sei... Não me explique, amigo;
Não seja de uns desfrutáveis
Que juram sempre consigo
Explicar os explicáveis.
Por exemplo, não me explique
O Ney, nem a delicada
Ação que faz com que fique
Toda a idade pasmada.
Essa jóia, esses quinhentos
Mil réis dados de pronto,
Como quem espalha aos ventos
Palavras leves de um conto,
Ação foi de grande siso;
Ter-se entre duas pilhérias
Ney, o marechal do riso,
Consolador de misérias.
E muitos pasmados ficam,
Por não crer que alguém possua
Cobres que se multiplicam
E os lance estéreis à rua.
Depois disto vem aquilo
Que a nenhum de nós consola,
Nem deixa a ninguém tranqüilo,
Nem traz figura de esmola.
Refiro-me às ameaças
Da Amazônia, que deseja,
Resguardar as suas graças
Do nosso amor, salvo seja.
Tudo porque há um sujeito,
Cardoso, ou cousa que o valha,
Que, não sei por que respeito,
Na tarefa em que trabalha,
Brigou com outra pessoa,
E os dois, que podiam juntos
Fazer muito cousa boa,
Em variados assuntos,
Agora não fazem nada;
Pregam-me até esta peça
De pôr a quadra acabada
Pendente da que começa.
Depois, daquilo, aquil'outro,
Expressão que ficaria,
Não rimando (e mal) com potro,
Sozinha, sem companhia.
Aquil’outro é a abundância
De roubos eclesiásticos,
Feitos com a petulância
Dos grandes dedos elásticos.
Sacrílegas limpaduras
Da casa de Deus — dos ouros,
Das pratas sacras e puras...
Naturalmente, só mouros.
Mouros — sejam da Mourama,
Ou mouros da Cristandade,
Que os há de uma e de outra rama
Por toda essa humanidade.
Não foram seguramente
Os capoeiras da rua
Que matam e francamente
Pela forte gente sua.
Adeus, versos duros, frouxos,
Sem inspiração nem graça,
Obra destes dias coxos,
Furtados e sem chalaça.
Por isso peguei da pena,
Por isso a molhei na tinta,
E fiz esta cantilena:
“Tinta que repinta e pinta!”
Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.
Molhei-a na melhor tinta,
E fiz uma cantilena:
“Tinta que repinta e pinta”.
Que haja nisso algum sentido,
Livre-me Deus de escrevê-lo;
Sentido, bem entendido,
No sentido de entendê-lo.
Mas que há nessa linha escura
Uma íntima harmonia
Com tudo o mais que se apura
De tantos casos do dia,
Isso é que não há negá-lo,
Exceto se uma pessoa
Quiser fazer de cavalo,
Assim, sem mais nada, à toa.
Pois não andou toda a gente
Com a imaginação acesa,
Em busca do presidente
Da República Francesa?
Havia apostas. Um era
Ferry, outro — homem de espada,
Outro Freycinet quisera,
Outro — Floquet, outro — nada.
E de tanta gente oposta
Sai um que a ninguém havia
Feito cuidar em aposta,
Se seria ou não seria...
Já sei... Não me explique, amigo;
Não seja de uns desfrutáveis
Que juram sempre consigo
Explicar os explicáveis.
Por exemplo, não me explique
O Ney, nem a delicada
Ação que faz com que fique
Toda a idade pasmada.
Essa jóia, esses quinhentos
Mil réis dados de pronto,
Como quem espalha aos ventos
Palavras leves de um conto,
Ação foi de grande siso;
Ter-se entre duas pilhérias
Ney, o marechal do riso,
Consolador de misérias.
E muitos pasmados ficam,
Por não crer que alguém possua
Cobres que se multiplicam
E os lance estéreis à rua.
Depois disto vem aquilo
Que a nenhum de nós consola,
Nem deixa a ninguém tranqüilo,
Nem traz figura de esmola.
Refiro-me às ameaças
Da Amazônia, que deseja,
Resguardar as suas graças
Do nosso amor, salvo seja.
Tudo porque há um sujeito,
Cardoso, ou cousa que o valha,
Que, não sei por que respeito,
Na tarefa em que trabalha,
Brigou com outra pessoa,
E os dois, que podiam juntos
Fazer muito cousa boa,
Em variados assuntos,
Agora não fazem nada;
Pregam-me até esta peça
De pôr a quadra acabada
Pendente da que começa.
Depois, daquilo, aquil'outro,
Expressão que ficaria,
Não rimando (e mal) com potro,
Sozinha, sem companhia.
Aquil’outro é a abundância
De roubos eclesiásticos,
Feitos com a petulância
Dos grandes dedos elásticos.
Sacrílegas limpaduras
Da casa de Deus — dos ouros,
Das pratas sacras e puras...
Naturalmente, só mouros.
Mouros — sejam da Mourama,
Ou mouros da Cristandade,
Que os há de uma e de outra rama
Por toda essa humanidade.
Não foram seguramente
Os capoeiras da rua
Que matam e francamente
Pela forte gente sua.
Adeus, versos duros, frouxos,
Sem inspiração nem graça,
Obra destes dias coxos,
Furtados e sem chalaça.
Por isso peguei da pena,
Por isso a molhei na tinta,
E fiz esta cantilena:
“Tinta que repinta e pinta!”
Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.
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Levo a prosa e a poesia,
através de um boletim,
e também toda a magia
que elas trazem para mim.