Existe um tipo de
trovas de duração relativamente efêmera, às quais não se pode atribuir grande
valor literário ou artístico, mas que nem por isso deixam de ser interessantes
e dignas de menção. São as trovas de circunstância, que assim denominamos por
se basearem em ocorrências ou costumes ocasionais. Neste aspecto estão
incluídas as trovas de propaganda, as que utilizam gírias, as de brincadeira,
visando determinado fato ou pessoa, as de exaltação a personalidades famosas
(excetuamos desta categoria as trovas sobre Jesus Cristo), as que abordam temas
como o petróleo, nomes de cidades, realizações governamentais, nomes de livros,
etc. De um modo geral, não gostamos de trovas laudatórias, mas isso é apenas um
ponto de vista pessoal, proveniente talvez do grande respeito que temos por
todos os gêneros de Poesia, mormente pela Trova. Com o advento dos Jogos
Florais e dos frequentes concursos de trovas, cujas festividades de
encerramento reúnem um grande número de trovadores, esses encontros passaram a
ser um campo fértil para as trovas de circunstância. Vejamos alguns exemplos.
O poeta
João Rangel Coelho (pai de Colbert Rangel Coelho, muito embora o velho Rangel
faça questão de dizer que Colbert é que é filho dele) é um dos grandes campeões
da trova no Brasil. Além disso, quando lhe dá na veneta, torna-se tão mordaz
que, junto dele, a famosa "boca de inferno" de Gregório de Matos
seria uma mísera boca de fogareiro. Não menos ágil de pensamento é o poeta e
trovador Aristheu Bulhões, residente em Santos. Sendo excelente repentista, o
Aristheu, mal acaba de declamar uma trova que vem de improvisar, e já está
mentalmente compondo outra quadrinha para dizer em seguida.
Certa
vez, no ônibus que nos levava para um dos Jogos Florais de Nova Friburgo, João
Rangel Coelho estava conversando com a queridíssima (de nós todos) trovadora
Magdalena Léa, que, segundo o A. A. de Assis, é o único broto com mais de
cinquenta aninhos. Na ocasião, Magdalena mostrava ao Rangel uma fotografia de
suas filhas (dela). De repente, o Aristheu interrompe a conversa para dizer ao
Rangel a centésima trova que havia improvisado. Este, que escutara
pacientemente as outras noventa e nove, não aguentou
mais. Virando-se para Magdalena e apontando a fotografia, saiu-se com esta:
As tuas filhas são belas,
são uns primores de Deus.
Eu adoro os ares delas,
mas detesto os aris...teus!
Ainda em
Friburgo, nos I Jogos Florais daquela cidade, em 1960, calhou de ficarem no
mesmo hotel as trovadoras Helena Ferraz, Cléa Marina e Augusta Campos. A
expansividade era natural, contrastando com o silêncio reticencioso de uma
velha reprodução da Mona Lisa de Leonardo da Vinci, ali pendurada à guisa de
ornamentação. Augusta Campos, poetisa cearense residente no Rio, verdadeiro
azougue em matéria de trovas de circunstância, lançou ao quadro um olhar
desconfiado e no dia seguinte comentava:
Na parede, a Mona Lisa,
vendo a nossa animação,
fica assim meio indecisa,
sem saber se ri ou não.
Anos
depois, a mesma poetisa estava assistindo a uma reunião
da antiga seção da Guanabara do
Grêmio Brasileiro de Trovadores, quando entra na sala, triunfalmente, uma
trovadora cujo vestido causaria complexo de Inferioridade ao mais rutilante dos
arco-íris. Na mesma hora, Augusta Campos sapecou esta quadrinha:
Margarida vai passando
no seu traje original.
Pensa que está abafando,
parece um pavão real...
Naturalmente, mudamos
o nome da poetisa "homenageada", para evitar embaraçosas acareações.
Vamos a
mais um exemplo de trova de circunstância. Nosso querido amigo e confrade
Adalberto Dutra de Rezende, mineiro de Cataguases, radicado no Paraná, trovador
de alto nível e advogado ilustre, é, sem sombra de dúvida, um homem decidido.
Imaginem que, alguns dias antes da semana santa do ano de 1962, deixou a
paisagem plácida de Bandeirantes (onde reside)e veio ao Rio apenas para
comunicar-me e também ao Colbert Rangel Coelho, Zálkind Piatigorsky e José
Maria Machado de Araújo, que havia organizado em Bandeirantes, sob os auspícios
do Lions e do Rotary Club, uma Noite de Autógrafos, na qual deveríamos
autografar nossos livros, para o público local. A festa seria... no sábado de
aleluia! Chantageados pela amizade, não houve como alegar a exiguidade do
tempo. Fomos. Em lá chegando — como diriam os puristas — notamos que o Zé Maria
estava meio preocupado e até mesmo arredio. É que sua esposa estava nos
preparativos finais para a chegada do primeiro herdeiro da casal. Sabendo disto
e aproveitando a deixa proporcionada por uma das melancólicas e solitárias
caminhadas do trovador lusitano, compusemos esta quadrinha, de parceria com o
nosso anfitrião e também com Zálkind Piatigorsky;
Lá se vai o Zé Maria,
cabisbaixo, andando a pé,
pensando: será Maria?
cismando: será José?
Pouco
tempo depois nascia Maria Lúcia, primogênita do casal Machado de Araújo.
Censurando os três jotas (Juscelino, Jânio e João Goulart) e fazendo alusão às
letras iniciais de seus respectivos sobrenomes surgiu certa vez, entre o povo,
uma trova muito bem feita, embora bastante ferina. Além de ser de
circunstância, é também anônima, pois não se sabe quem a compôs. Ei-la:
Em três anos — quase nada! —
os três jotas: K — Q — G,
fizeram da pátria amada
esta coisa que se vê.
Em vez
de coisa, a palavra era outra, que preferimos não publicar. Aliás, nosso
interesse pela quadrinha é simplesmente trovadoresco, sem qualquer inclinação
política.
Certa
vez, minha esposa (ainda éramos namorados), quando lecionava num Grupo Escolar,
em Minas, viu-se às voltas com um singelo problema: devia conseguir
uma trova que falasse em alimentação, para ser recitada
por um dos seus alunos. Não conseguindo encontrar logo a tal trova, ela mesma
fez esta oportuna quadrinha, que salvou a situação, e cuja autoria modestamente
atribuiu a um "poeta desconhecido". Eis a trova, perfeitamente
caracterizada como "de circunstância", que um de seus pequenos alunos
recitou com a ênfase e os gestos de praxe:
Gosto muito de legumes,
verdura e frutas também.
Como tudo sem queixumes,
sou forte como ninguém!
No dia
21 de novembro de 1965, como parte das festividades dos Primeiros Jogos Florais
da Guanabara, foi oferecido aos trovadores um almoço no "Vale do Paraíso
Campestre Clube", localizado em Jacarepaguá. Surgiu então a ideia de se
fazer entre os presentes um concurso-relâmpago, tendo como tema o nome do
clube. Cada um improvisou a sua trova e a poetisa Lourdes Povoa Bley alcançou o
1.° lugar com esta trova de circunstância:
Esta soberba mansão
tem tudo de que preciso.
Deixo, pois, meu coração
no "Vale do Paraíso".
Quando,
no Ceará, desmoronou a barragem do açude de Orós, fazendo inúmeras
vítimas, as circunstâncias me inspiraram esta quadrinha, que dediquei ao
bravo povo cearense;
Se a Desgraça conhecesse
a fibra que existe lá,
já teria desistido
de vencer o Ceará!
Certa
vez, conversavam alguns trovadores quando notaram que um pouco adiante, dois
padres trocavam ideias sobre o controvertido assunto do celibato sacerdotal.
Imediatamente, o trovador A. A. de Assis aproveitou a circunstância para
ironizar;
Parece incrível, de fato:
– os padres, neste momento,
lutam contra o celibato,
e nós — contra o casamento!
Não há
poeta ou trovador que alguma vez não tenha sido perseguido por um pai ou mãe,
pedindo versos para os seus rebentos. Certa vez tive que improvisar, para um
cartão de aniversário, esta quadrinha de circunstância, horrivelzinha como ela
só, mas que o orgulhoso papai achou uma beleza:
Hoje eu completo um aninho
e estou contente, porque
vou repartir meu bolinho,
dando um pedaço a você.
Em outra
ocasião, Colbert Rangel Coelho, integrando um grupo de trovadores que viajavam
para participar de uns Jogos Florais, teve a sorte de, no ônibus, sentar-se ao
lado de uma moça muito bonita, mas calada e compenetrada. Colbert ficou
quietinho mas, na primeira parada, ao descer para um cafezinho, piscou o olho e
nos segredou:
Eu sentado na beirada,
ela junto da janela.
— Graças às curvas da estrada,
vou sentindo as curvas dela...
Em Pouso
Alegre,MG, fiz uma trova de circunstância que passou a figurar no cardápio da
Cantina Uirapuru, e que me valeu uma refeição de graça:
Se você está com fome,
não faça como um zulu!
— Civilizado só come
na Cantina Uirapuru!...
Em 1969,
na cidade mineira de Juiz de Fora, quando do encerramento de um concurso de
trovas promovido pelo Lions Clube local, estiveram presentes
duas grandes poetisas portuguesas;
Maria Helena e Maria Amélia Novais. No banquete oferecido aos trovadores, Elton
Carvalho, que é um excepcional "fazedor" de trovas de circunstância,
sentou-se entre as duas referidas poetisas. Lá pelas tantas, dirigindo-se aos
demais trovadores, que se haviam localizado na outra extremidade da mesa,
saiu-se com esta belíssima trova, onde há uma oportuna alusão ao rio Tejo, que
banha a capital portuguesa:
Amigos, não os invejo,
tão distantes, isolados:
– estou feliz como o Tejo,
com Portugal dos dois lados.
O Desembargador Dr. Luís
Antônio de Andrade, uma das
maiores culturas jurídicas de nosso país, certa vez ofertou ao poeta Manuel
José Lamas um exemplar de nossa coletânea 'Trovadores do Brasil",
dedicando-o com esta trova de circunstância, cujo último verso é o seu próprio
nome, um setissílabo perfeito:
Ai vão, meu caro Lamas,
como prova de amizade,
as trovas que tanto amas!
Luis Antônio de Andrade,
Eis uma
trova de circunstância laudatória, feita por Inês Gaspar Palácio, homenageando
a cidade de Maringá {PR):
Maringá! Quanta esperança
se contempla em teu caminho,
pois teu lema é segurança,
trabalho, fé e carinho!
O poeta
Ary de Andrade refere-se a um esperto motorista de caminhão que, ao longo das
estradas, "aplicava" sempre esta trova, a qual servia tanto para
comover os credores como para as suas conquistas amorosas de Romeu
perambulante:
Você não tem coração!
Se tivesse, não faria
que um chofer sem um tostão
vivesse nesta agonia!
continua…
Fonte:
Aparício Fernandes. A Trova no Brasil: história & antologia. Rio de
Janeiro/GB: Artenova, 1972
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através de um boletim,
e também toda a magia
que elas trazem para mim.