Eu, que vendo como compro as imagens que ou vislumbro, ou imagino, vi esta manhã uma cigarra morta. Eu estava chegando ao trabalho, e lá estava ela, intacta, parada, com a barriga para baixo e as translúcidas asas para cima, reluzentes, sólidas, ao sol. Lembrei-me na hora de um verso bonito de Cecília Meireles que diz: Não tenho inveja às cigarras: / também vou morrer de cantar. Isso é bonito, porque um poeta é meio cigarra também. Digo meio e não inteiro por causa do próprio ofício de escrever poemas, que, quase sempre, leva o poeta a ter outro trabalho, a fim de garantir o leite das crianças e, o que não é raro, seu próprio. Assim, meio cigarra, meio formiga, atravesso as páginas de meus dias, cantando e escrevendo o que vejo. Hoje, pela manhã, vi uma das minhas caída, morta na calçada. Se foi macho, cantou até morrer por sua amada. Se foi fêmea, amou, até morrer, seu bem-amado. Se eu fumasse, acenderia um cigarro e ganharia um trocadilho. Como não fumo, me resta, mais tarde, quando em casa, pegar a guitarra e me lembrar de que as cigarras, como os brutos, os músicos, os poetas e outras formas de inocência distraída, também amam. Com seu canto de moído vidro, seus cacos na garganta atroz, suas asas que desfocam o sol, recolhem-se e morrem.
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Fontes:
O Autor
Imagem = http://sorrisos-e-restos.deviantart.com
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Levo a prosa e a poesia,
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que elas trazem para mim.