– Ora, sempre há sonhos muito esquisitos! – exclamou o César, logo pela manhã, quando se ergueu da cama.
– Com quem sonhaste? – perguntou D. Margarida, que ainda se achava deitada.
– Sonhei que estávamos num jardim, D. Eponina, a senhora do Sá Coelho, e eu, e que ela se atirou a mim aos beijos apertando-me nos braços dizendo que me adorava!
– E que necessidade tinha eu de saber desse teu sonho? – perguntou D. Margarida um tanto contrariada e, cá entre nós, com toda a razão.
– Oh! meu amor! Pois queres que eu tenha segredos para ti? Eu conto-te a minha vida toda, inclusive os meus sonhos!
– Pois sim, mas uma reserva natural, ou por outra, a delicadeza mais rudimentar deveria fazer com que não me contasses coisas que não me podem ser agradáveis, e cuja revelação nenhum interesse, nenhuma conveniência tem.
– Ora esta! Nunca esperei que te zangasses!
– Não estou zangada, mas simplesmente ressentida; nenhuma esposa gosta de saber que mesmo em sonhos seu marido andou aos beijos com outra mulher!
– Em primeiro lugar, eu não beijei, fui beijado! Fui violentado!… Eu não queria!… D. Eponina caiu sobre mim com uma fúria!…
– Pois olha! Eu estou mais magoada contigo que com ela. .
– Deixa-te disso, Margarida! Os sonhos não querem dizer nada!…
– Não querem dizer nada, mas são sempre o resultado de uma impressão qualquer, recebida na vida real: se tu não tivesses tido um mau pensamento a respeito de Eponina, jamais sonharias que ela caiu sobre ti aos beijos!
– Por pouco mais, darias razão àquele fazendeiro, que mandou surrar o escravo por ter sonhado que este queria assassiná-lo!…
– Sim, tens razão, César… Sonhos são sonhos… uma tolice minha aborrecer-me por causa de uns beijos quiméricos, de que nenhuma culpa tens.
– Ora, ainda bem que te chegas à razão!.
E não se falou mais nisso: a discussão passou… como um sonho.
Três ou quatro dias depois, Margarida foi a primeira a erguer-se da cama.
– Que é isto? – perguntou César despertando. – Ergueste hoje mais cedo?
– Sim, porque estou aborrecida; tive um sonho terrível!
– Sim?… Com quem sonhaste?.
– Não quero ter segredos para meu marido: sonhei com o Braguinha!
– Com aquele patife, com aquele desavergonhado, que entendeu que podia namorar-te às minhas barbas! Pois tu sonhaste com esse homem?!.
– Sonhei; que tem isso?… Que culpa tenho eu?
– Conta-me o teu sonho.
– Isso não! Tu já ficaste tão zangado sabendo que sonhei com o Braguinha; que não farias se eu te contasse o resto?!
– Margarida! Nunca esperei que tu…
– Deixa-te disso!… Os sonhos não querem dizer nada. Demais, aconteceu-me o mesmo que a ti o outro dia: não beijei – fui beijada!.
O César saltou da cama furioso:
– Não calculas a vontade com que estou de quebrar a cara do Braguinha!
– Ora, aí tens! ~ exatamente o caso do fazendeiro!
Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos vários.
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