Certa noite na década de 70, eu, novato na profissão de jornalista, retornara das Oficinas da Imprensa Alemã, onde fazia bicos de revisor. Já estava prestes a me deitar, quando bateram à porta. Era Gerson Filho e seu irmão Adauto, ambos potiguares radicados em São Paulo desde bebês, e meus amigos de infância.
Gerson informou-me que seu pai, militar aposentado e proprietário do maior jornal de Botucanhanha, havia falecido e gostaria que eu o acompanhasse até o velório.
No velório grande era a movimentação, pois na cidade havia uma base da Aeronáutica, corporação a que o falecido pertencera. Não estavam presentes só militares, mas muitos políticos e representantes da sociedade, uma vez que o jornal era importante na cidade.
O clima, obviamente, era solene e triste. Lá pelas tantas da madrugada, pediu a palavra a sogra do falecido, dona Gervásia, cearense e crente um tanto fanática e também algo destrambelhada:
- Senhor Deus, por Jesus, tenha piedade deste desgraçado, que só deu desgostos para minha pobre filha.
Por Deus, por Jesus, perdoa este infeliz, que nunca desempenhou a paternidade de meus netos, porque sempre foi um pai irresponsável e ausente.
Piedade Pai, para este homem que se passava por Major, quando era apenas um 2o sargento.
Deus perdoa ele, por ser amante da bebida e da boêmia etc...etc...
A esta altura, a maioria dos presentes estava de olhos arregalados de espanto e uns fazendo força para não rir, inclusive eu.
Foi quando Adauto deu três passos para o lado e falou, entredentes, para o irmão Gerson, com humildade fransciscana:
- Será que não dá pra fazer a voinha parar de esculhambar o papai?!
(Revista Santos Arte e Cultura - Fevereiro 2017)
Fonte:
Cláudio de Cápua. Retalhos de Imprensa. São Paulo: EditorAção, 2020.
Livro enviado pelo escritor.
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